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3. O herói mitificado, o santo martirizado
2. Escritos de Artaud
Antonin Artaud escreveu muito ao longo de toda sua vida. Aliás, foi seu desejo de fazer carreira literária que o levou a Paris, em 1920, após sucessivas passagens por diversos sanatórios e estações de repouso. Martin Esslin (1978), que publicou uma biografia e cronologia bastante detalhada, refere que, em 1915, Artaud teve uma crise de depressão que o levou ao primeiro internamento, tendo ele 18 anos. Em 1916, convocado pelo serviço militar, foi dispensado nove meses depois por problemas de saúde. Artaud passou por sucessivos internamentos entre 1916 e 1920, quando chegou a Paris. Na capital francesa, Artaud iniciou sua carreira como ator de teatro e cinema, tornando-se o teatro o centro de seu interesse. Seus escritos são sua principal produção. São manifestos, conferências, poesias, cartas, projetos de encenação, críticas, reflexões, cadernos, relatos etc. Com relação ao teatro, nunca chegou a realizar totalmente aquilo que propunha, fator que contribui para a formação de um mito artaudiano, uma vez que instiga e atrai, suscitando muitas questões de debates. Os textos de Artaud não foram planejados por ele como um todo linear, de forma a apresentar ordenadamente suas ideias e conceitos. Segundo o pesquisador mexicano Felipe Reyes Palacios (1991), em seu livro Artaud y Grotowski: ¿el teatro dionisiaco de nuestro tiempo, “Artaud não é um teórico sistemático, e por isso maneja livremente toda sorte de influências.” (p. 56-57). Seus escritos são a produção de uma vida, e, embora Artaud tivesse interesse na publicação em jornais, revistas e mesmo livros, em poucas ocasiões pôde organizá-los como uma unidade para esse fim – exceção, por
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Ismael Scheffler
exemplo, de O teatro e seu duplo, publicado pela primeira vez em 1938. Nesse livro, o mais conhecido, reuniu diversos textos, alguns antes publicados e outros ainda inéditos, estabelecendo uma organização dos textos e conceitos para o leitor. Vários outros textos, aos quais temos acesso, sequer foram escritos para o público em geral, como as suas cartas, ou mesmo os Cadernos de Rodez, que escreveu em meio a delírios enquanto interno em um sanatório na cidade de Rodez. Artaud escrevia a partir de si. Em 1923, tentou publicar alguns de seus poemas na Nouvelle Revue Française (nrf), a revista mais influente sobre a elite intelectual francesa, mas eles foram rejeitados pelo diretor Jacques Rivière. A partir daí, Artaud e Rivière trocaram diversas cartas nas quais, entre outras coisas, discutiram sobre a luta que era, para Artaud, expressar-se:
Sofro de uma terrível doença do espírito. Meu pensamento foge-me de todas as maneiras possíveis, do simples fato do pensamento em si mesmo ao fato externo de sua materialização em palavras. As palavras, a conformação das frases, o fio interior dos pensamentos, as simples reações da mente – estou sempre em busca de meu ser intelectual. Quando, por isso, ocorre apoderar-me de uma forma, embora imperfeita, anoto-a, receoso de vir a perder toda a ideia. (Artaud2 apud Esslin, 1978, p. 25).
Essas cartas geraram vários frutos: a publicação dessa discussão na nrf de setembro de 1924, por sugestão do próprio Rivière, e posteriormente em livro intitulado Correspondência com Jacques Rivière (publicado em tradução no Brasil pela Editora Moinhos, em 2020). A partir daí, o nome de Artaud se tornou conhecido no meio intelectual, e ele passou também a colaborar na nrf.
Martin Esslin (1978) afirma que Artaud
[...] encontrava finalmente um assunto para escrever: Seu caso pessoal, sua incapacidade como paradigma do problema da própria arte. A rejeição de Rivière provocara-o ao exame de seu próprio problema e à compreensão de que
Artaud e o Teatro Sagrado
tal contrariedade era de importância e significações gerais. [...] A correspondência com Rivière revelou Artaud a si mesmo: pela primeira vez deparava com um tema próprio. [...] O novo tema encontrado era ele próprio, seu caso particular. (p. 26-27).
Algumas semanas após essa publicação, Artaud ingressou no Movimento Surrealista, que, segundo Esslin (1978), pode ser considerado “como consequência direta e lógica de sua rejeição da noção convencional de ‘literatura’.” (p. 27). Artaud escreveu sobre teatro, cinema, poesia, suicídio, psiquiatria, cultura e sociedade, política e sobre uma diversidade de temas. Partiu de suas experiências, de suas dores, de sua falta de clareza e lucidez para questionar inúmeras estruturas e funcionamentos da sociedade. O teatro é apenas um destes elementos, de grande destaque.
No que tange ao teatro, ele desenvolveu uma grande reflexão, elaborando não uma técnica ou metodologia para o ator ou para o encenador, mas princípios e críticas que puseram em xeque o teatro de sua época. Podemos estimar algumas fases: seus primeiros escritos, os da fase surrealista (1924-1926), os do período do Teatro Jarry (1926), os do Teatro da Crueldade (1932-1933), e mesmo seus escritos sobre o México (1936) ou aqueles do internamento e pós-internamento (últimos anos de sua vida), por exemplo. Mas independentemente da tentativa de estabelecer uma divisão de fases da vida de Artaud e procurar diferentes enfoques, existe no universo dos escritos deste autor certa unicidade que se desdobra e se remaneja, uma visão da vida e do teatro (se é que poderiam ser mencionados como elementos separados) que a perpassa, acompanhando Artaud por sua vida. Certas questões que, muitas vezes, não ficaram exatamente claras para o próprio Artaud, quer por incapacidade ou por falta de outros referenciais que o ajudassem a esclarecer aquilo que ele vislumbrava, ele apenas sentia, cria, intuía, imaginava.
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