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6. Um teatro político

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Notas

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É possível falar em um teatro político de Artaud? Teatro metafísico, teatro alquímico, teatro da crueldade, são definições que o próprio autor propõe, na tentativa de definir e fazer entender suas propostas. Mas, teatro político? Artaud quer uma revolução, quer mudanças sociais radicais. O teatro, para ele, é um meio para que essas mudanças aconteçam. Erroneamente, suas propostas são muitas vezes entendidas desconectadas de sua visão social e política. O autor, todavia, não tem em vista uma revolução imediatista, nem propostas político-partidárias. Aliás, esse foi um dos principais motivos de seu rompimento com o Surrealismo, quando os surrealistas aderiram ao comunismo (Arantes, 1988). Em uma conferência realizada no México, em 1936, Artaud afirmou:

Será que Artaud pouco se importa com a revolução?, perguntaram-me. Pouco me importo com a de vocês, não com a minha – respondi, abandonando o surrealismo, pois o Surrealismo também havia se transformado num partido. Esta revolta pelo surrealismo, que a revolução surrealista pretendia, nada tinha a ver com uma revolução que pretende já conhecer o homem e o torna prisioneiro no quadro das suas mais grosseiras necessidades. Os pontos de vista do Surrealismo e do marxismo eram irreconciliáveis. (Artaud 9 apud Willer, 1986, p. 91).

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Conforme Felício (1996), Artaud “tem consciência dos problemas suscitados pela reificação dos homens e da nítida situação de exploração reproduzida, dia após dia pela máquina capitalista.

Ismael Scheffler

Tem consciência dos problemas sociais-políticos e econômicos de seu tempo.” (p. 115). Ele não mergulha em uma busca mística desconectado da realidade que o cerca. Durante sua viagem ao México, em 1936, publicou artigos e proferiu palestras publicadas posteriormente como Mensagens Revolucionárias, “onde fala das relações entre o materialismo histórico e o racionalismo europeu, da presença do instinto de morte nesse racionalismo, da ausência de uma revolução ao nível do sujeito.” (Teixeira Coelho, 1982, p. 76). Em determinado momento afirmou ter ido ao México “em busca de homens políticos, não de artistas.” (Willer, 1986, p. 84).

Analisando o capitalismo, Artaud reconhece que este não consiste apenas em um modo de produção material, “mas em um modo de produzir a vida.” (Arantes, 1988, p. 76). Por outro lado, posiciona-se contra o comunismo e o critica porque acredita que este se ocupa das mesmas questões que o capitalismo, apenas propondo a transferência do poder da burguesia para o proletariado, atendose à produção material, ao desenvolvimento técnico com fins de melhoria das condições materiais da vida, atingindo assim “apenas as aparências superficiais”. No Manifesto por um Teatro Abortado diz:

Para mim há muitas maneiras de entender a Revolução e dentre estas maneiras, a Comunista me parece de longe a pior, a mais reduzida. Uma revolução de preguiçosos. Não me importa absolutamente, eu o proclamo bem alto, que o poder passe das mãos da burguesia para as do proletariado. Para mim a Revolução não está aí. Ela não será em uma simples transmissão de poderes. Uma Revolução que pôs na primeira fileira de suas preocupações as necessidades da produção e que devido a este fato se obstina em apoiarse no maquinismo como um meio de facilitar a condição dos operários é para mim uma revolução de castrados. E eu não me alimento desta erva aí. Eu acho, ao contrário, que uma das razões principais do mal de que sofremos reside na exteriorização desenfreada e na multiplicação prolongada ao infinito da força; ela reside também em uma facilidade anormal introduzida nas trocas de homem para homem e que não deixa mais ao pensamento o tempo de retomar raiz

Artaud e o Teatro Sagrado

nele mesmo. [...] Limitar-me-ei em dizer que a Revolução mais urgente a realizar está em uma espécie de regressão no tempo. Que nós voltemos à mentalidade ou simplesmente aos hábitos de vida da Idade Média, mas realmente e por uma via de metamorfose nas essências, e julgarei então que teremos efetuado a única revolução de que vale a pena que se fale. (Artaud, 1995, p. 39).

A pretendida revolução artaudiana queria explodir os fundamentos do mundo moderno e “descentrar o fundamento atual das coisas.” (Artaud10 apud Arantes, 1988, p. 77). O que pretendia não era de fato um regresso ao medievalismo, quando imperava a dominação de ideologias através da Igreja Católica. Ele queria era eliminar a alienação do ser humano para com a vida cotidiana, propondo uma volta a um “estado de vivência mítica”. Constatando a decadência da sociedade ocidental em suas ideias, costumes e valores, propôs uma “revolução inútil”, que não atingisse o imediato, mas que trabalhasse no âmbito virtual, questionando e minando os valores reinantes. Vera Lúcia Felício destaca isso ao afirmar que: “Se o teatro é o meio escolhido por Artaud, é porque ele crê ser o único meio que age diretamente sobre a consciência das pessoas, portanto, um instrumento ativo e enérgico, capaz de revolucionar a ordem social existente. [...] O Teatro da Crueldade só pode crer numa revolução que atinja destrutivamente a ordem e a hierarquia dos valores tradicionalmente aceitos como absolutos.” (Felício, 1996, p. 113). A subversão desses valores é fundamental para Artaud. Ele reconhece que a confusão e a ruptura fragmentam o indivíduo e a sociedade. Por isso, acredita que a revolução precisa ocorrer “pela cultura, na cultura”, na busca de uma revolução integral. No prefácio de O teatro e seu duplo, reflete sobre a cultura contrapondo duas diferentes formas de compreendê-la. Uma, dominante na sociedade ocidental, coloca a cultura como algo separado da vida, como um sistema de conhecimentos, informações, instrução. Essa visão de cultura traz consigo uma noção elitista e dualista – o culto e o inculto –, a ideia da “aquisição” de cultura que

Ismael Scheffler

remete a uma desconexão. “Como se de um lado estivesse a cultura e do outro a vida; e como se a verdadeira cultura não fosse um meio refinado de compreender e exercer a vida.” (Artaud, 1993, p. 4). Em oposição a essa “idolatria da cultura”, ele apresenta a ideia da “cultura em ação”, que se torna no homem como que um novo órgão, uma espécie de segundo espírito que rege as ações mais sutis, o espírito presente nas coisas. Artaud acredita na existência de forças latentes capazes de se manifestarem pelo totemismo que o Ocidente não mais considera. Essa cultura é a autêntica, segundo ele, e as relaciona com os manas (que surgem pela identificação mágica). A cultura se funde com a vida e a vida com a cultura, promovendo a integração do ser humano. Assim, a dicotomia corpo e espírito do Ocidente, presente na primeira definição de cultura, não encontra espaço na segunda, porque não distingue as forças da natureza, das divindades e do ímpeto humano que dá sentido à vida: “A verdadeira cultura pressupõe uma modificação integral, mágica, do ser no homem, numa união entre corpo e espírito, em que este último é cultivado no corpo que, por sua vez, trabalha o espírito.” (Felício, 1996, p. 121). A revolução aspirada por Artaud, passa de dicotômica a fusional por meio de uma transformação na maneira da sociedade compreender a vida. Ele possuía uma “fé revolucionária no plano mais elevado e mais decisivo possível.” (Artaud, 1995, p. 108). O idealismo artaudiano pretendia transformações nas estruturas mais profundas da sociedade, na forma de viver suas relações, não como indivíduos isolados, mas como um ser integrado ao social. Nesse sentido, queria uma recuperação das raízes pré-modernas, quando a vida não podia ser compreendida separada da religião. Dessa mesma forma, não há para ele separação da arte e da vida, pois estão envolvidas pela mesma força metafísica. A arte não se encontra como algo a ser apreciado, mas como algo a ser vivido.

Artaud (1993) afirma que “no ponto de desgaste a que chegou nossa sensibilidade, certamente precisamos, antes de mais nada, de um teatro que nos desperte: nervos e coração.” (p. 81). Através do teatro, ele pretendia abalar sensorial e espiritualmente o

Artaud e o Teatro Sagrado

espectador, “questionar organicamente o homem, suas ideias sobre a realidade e seu lugar poético na realidade” (Artaud, 1993, p. 88), desenvolver sua sensibilidade, colocá-lo em um estado de percepção mais apurado para transformar a consciência. Artaud (1995, p. 108) mesmo afirma que “a grande mudança que se prepara no domínio social deve vir de cima. São as bases espirituais sobre as quais nós vivemos e que devemos retomar completamente”. Os nervos e o coração não estão dissociados, mas são veículo um para o outro. “Não se separa o corpo do espírito, nem os sentidos da inteligência” (Artaud, 1993, p. 83), logo, trata-se de uma revolução integral. Felício, em seus estudos sobre o autor, destaca a existência destes dois aspectos no Teatro da Crueldade: um físico, exterior (gesto, imagens, sons), que é direcionado ao impacto pela sensibilidade do público, e outro religioso ou filosófico, interior, constituído pelas ideias metafísicas. Artaud apontou várias formas objetivas para que o teatro atingisse os nervos do público, mas sublinhou veementemente que, caso haja estabelecimento de uma linguagem teatral fixa, esta arruinaria o teatro, pois a cristalização de uma forma consiste, segundo ele, no impedimento do movimento da cultura, do espírito. É o rompimento da linguagem que pode tocar a vida e impedir a idolatria. O espaço é uma exigência do teatro, não apenas porque reúne todas as linguagens, mas por ser um fator que age sobre a sensibilidade nervosa. Artaud não o compreende apenas fisicamente em suas dimensões, mas pretende utilizar seus “subterrâneos”. O espaço é que permite o encontro e o acordo entre os homens. É nele que a cultura, na forma compreendida pelo autor, ocorre, sendo um impulsionador dos deslocamentos e movimentos culturais. A linguagem espacial assume a função idêntica de transgredir o mundo já estabelecido – também por isso o espaço teatral para Artaud assume uma composição diferente dos espaços teatrais convencionais. Ele, abandonando a literatura, se propõe a mergulhar na “cultura corpórea-gestual-musical” (Felício, 1996, p. 121), ou

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seja, mergulhar na cena, que é realmente a atividade e acontecimento teatral – manifestação da cultura. O teatro artaudiano quer fazer o espaço e fazê-lo falar, criando poesia no espaço através de imagens materiais, simbólicas.

Embora parecessem utópicas as pretensões de Artaud para transformar a sociedade, seus escritos tiveram grande influência no trabalho e nas experimentações de inúmeros grupos e encenadores, muitos com desejos semelhantes de revolução social, como os estudantes revolucionários de 1968. Tanto Martin Esslin (1978) quanto Teixeira Coelho (1982) destacam a influência do pensamento artaudiano nas manifestações estudantis deste período.

Fato é que não há como pensar o teatro de Artaud sem levar em conta a cultura e a organização da sociedade e de seus valores, pois elas são motivações para a imersão no universo mítico pretendido por ele e para a sua compreensão da função social do teatro. Ele realmente difere de alguns encenadores e reformadores do teatro no início do século XX, que ambicionavam interferências políticas mais diretas. Artaud pretendia realizar sua revolução considerando sua própria época, o contexto no qual estava imerso e suas experiências pessoais, propondo uma nova ordem, ou talvez seja melhor dizer, retomando uma antiga ordem mítica, ontológica.

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