Sañjaya ABIY em REVISTA Maio - 2019
nº04
GEETAJI VIVE
NESTA EDIÇÃO: VOZ DA DIRETORIA
p. 02
ABIY ENTREVISTA
p. 03
INSPIRAÇÃO
p. 11
ESPECIAL CONVENÇÃO
p. 14
TRIBUTO
p. 18
LUZ SOBRE GEETAJI
p. 24
LUZ SOBRE CITTA
p. 39
CANTINHO DO ASSOCIADO p. 42 Foto da Capa e Contracapa: Copyright RIMYI, Pune, Photograph by Shael Sharma
SAÑJAYA - ABIY em REVISTA FICHA TÉCNICA Presidente Sun Vaz Moura Vice-Presidente Ana Silvia Stocche Comitê de Comunicação (CCom) Coordenação Karla Vasconcellos Redesenho Marca ABIY Ana Carolina Fernandes Keila Akemi Design Gráfico Ana Carolina Fernandes Caroline Cantelli Diagramação e Layout Caroline Cantelli Pauta, Edição e Revisão Daniela Santa Rosa Karla Vasconcellos Tradução Karla Vasconcellos Ramiro Murillo Régis Mikhail Abud Filho Jornalismo Daniela Santa Rosa Mídias Sociais CCom Cris Destri Diogo Durval Elaine Moreli Li Camargo Luanda de Moura Professores Associados Colaboradores Desta Edição Camila de Lucca · Cyntia Carvalho Deborah Weinberg · Fernando Sanchez Lynn Karina Grecu · Marcia Neves Pinto Mel Vieira · Nicôle Bartosik Pedro Pessoa · Renata Ventura Rodrigo Miró de Cordova · Rosana Seligmann Sun Vaz Moura Outros Colaboradores - Índia Harish Deshpande (texto) Shael Sharma (fotos)
A revista da ABIY é elaborada pela equipe de voluntários do CCom. Entretanto, todos os associados são convidados a participar enviando suas sugestões, comentários, críticas e correções para o e-mail comunicacao@iyengar.com.br 01
VOZ DA DIRETORIA
Queridos Amigos, Associados, Professores, e Companheiros no caminho do Yoga, É com imensa alegria que estamos lançando a 4ª edição digital de Sañjaya - ABIY em Revista, homenageando nossa querida Geeta Iyengar, que faleceu no final do ano de 2018, logo após ter finalizado os 12 dias de celebrações pelo centenário de seu pai. Teremos uma série de tributos, histórias e artigos que contam um pouco sobre a sabedoria e a força desta praticante, pioneira e desbravadora que, juntamente com Guruji, sustentou, disseminou e trabalhou arduamente para que o yoga tocasse mais e mais pessoas. Esperamos com isso contribuir para que Geetaji e sua mensagem de inclusão e abertura para com todos os seres permaneçam em nossos corações e em nossas práticas. Que seu legado seja eterno. Celebramos também a vinda de Abhijata Iyengar pela primeira vez ao Brasil. A 3ª Convenção Brasileira de Iyengar Yoga é um momento histórico de aproximação dos praticantes a um membro da família Iyengar aqui mesmo em nosso país. Abhi vem para fortalecer nosso elo com a fonte, esclarecer conceitos, abrir caminhos e inspirar a todos a seguir com firmeza e leveza, trazendo seu olhar doce e afiado, que reflete os mais de 15 anos de estudos e práticas diárias ao lado de Guruji (seu avô). Aproveite a leitura e esta maravilhosa oportunidade de estar mais perto destas mulheres tão especiais, Geetaji e Abhijata. Grande abraço. Com amor, Sun Vaz Presidente ABIY
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ABIY ENTREVISTA
A Força de uma
Yogini
Geeta S. Iyengar foi entrevistada por Joan White em 2016 e a entrevista foi originalmente publicada em inglês na revista Sādhanā IYNAUS por ocasião da Convenção Americana de Iyengar Yoga do mesmo ano, organizada pela Iyengar Yoga National Association of the United States. Joan White é professora certificada nível Júnior Avançado. Ela começou seus estudos com Guruji em 1973. Joan levou o método Iyengar Yoga para a Filadélfia, onde mora e coordena a B.K.S. Iyengar Yoga School of Central Philadelphia. Confira a seguir a tradução para o português da entrevista
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Tradução: Ramiro Murillo Revisão: Marcia Neves Pinto
Geeta S. Iyengar é a filha mais velha do falecido Sri B.K.S. Iyengar. Nasceu em 7 de dezembro de 1944. Ela começou a tentar fazer posturas de yoga brincando perto de seu pai, enquanto ele praticava. Na juventude, teve problemas de saúde e quase sucumbiu à nefrite, doença que ataca os rins. Após a medicina tradicional falhar, seu pai tomou a frente e tratou-a com yoga. Quando contava nove anos, ele disse a ela que, se não praticasse, ela morreria.
ūrdhva padmāsana em śīrṣāsana em Yoga: a Gem for Women
Conheci Geeta em 1976, na minha primeira visita a Pune. Fiquei impressionada com a profundidade e amplitude de sua prática. Ficamos amigas em 1991 durante o intensivo de extensões para trás, quando comentei com ela quanta responsabilidade ela tinha fora do intensivo. Enquanto muitos de nós tínhamos a liberdade de voltar para nossos respectivos quartos e deitar, Geeta tinha que cuidar de suas tarefas domésticas editoriais, sem nenhum tempo para descansar. Aqueles que a conhecem apenas por seus livros, aulas, terapêutica, além de seus “olhos de águia”, podem se interessar em descobrir que ela é cálida, gentil, compassiva, humilde, divertida e uma ótima contadora de histórias.
Você sabe, esta entrevista é sobre a prática. Gostaríamos de saber a história de como você começou a praticar, sua própria experiência. Então, como comecei. Certo. Vou te contar: esta é minha experiência, como comecei. Eu era uma 1 criança fraca. Depois de contrair nefrite, fiquei mais fraca, como um vegetal. Depois do intervalo de cerca de um ano, tive icterícia, então tive febre tifoide, malária e influenza. Deste jeito, sem parar. A fraqueza estava lá. Eu perguntei a Guruji, ‘o que eu devo fazer por causa desta fraqueza?’. Ele disse: “Nada. Apenas se concentre no seu śīrṣāsana e sarvāṅgāsana”. E percebi que fazendo isso pelo menos o dia transcorria bem. Eu não me sentia totalmente colapsada internamente. E foi assim que comecei a fazer yoga. Ele dizia: “Continue fazendo seus outros āsanas, bem como śīrṣāsana e sarvāṅgāsana”. Naquele tempo, o sequenciamento era-lhe desconhecido. Eu tinha apenas nove anos e Guruji estava ocupado com seu trabalho. Ele não estava tão livre. Mas ele disse: “Faça apenas os āsanas, e somente isso lhe dará alívio”. E disse: “Continue fazendo os āsanas. Se você não fizer os āsanas, você morrerá”.
1 Doença que consiste na inflamação dos rins e é responsável por metade dos
problemas renais (N.T.)
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Ele realmente disse isso? Sim, foi o que ele disse: “Você tem que se lembrar: fazer ou morrer”. E quando ele o disse, eu me tornei disciplinada e me agarrei a isso. Não há outra palavra que eu possa usar. No momento em que eu começava a praticar, costumava sentir-me melhor. Então avisava à minha mãe que iria ao andar de cima — havia um quarto no estilo de uma varanda no andar de cima — e praticava. Minha mãe sabia que, não importava a hora em que eu chegava da escola, mesmo se fosse depois das 18h, praticaria yoga, então desceria e comeria algo. Minha mãe viu que eu era disciplinada e contou para o meu pai que eu praticava todos os dias. Não havia livro para ler, nem álbum ilustrado para ver quando comecei, entre 1954 e 1955. Comecei fazendo o que quer que soubesse; estava apenas praticando. Minha saúde voltou, até certo ponto. Pelo menos eu conseguia sentar e fazer a lição de casa, e conseguia ler. Do contrário, você não pode imaginar como era cansativo para mim, o tempo todo. Então eu quis aprender novos āsanas. Guruji tinha preparado um álbum em 1951 ou 1954, mas não deixou ninguém o ver. As fotos de Guruji estavam no álbum e depois, quando eu pedi para vê-lo, ele disse: “Você deve
usar e colocar de volta no armário, e não deixá-lo largado por aí”. Então eu costumava ser bastante cuidadosa. Praticava quaisquer āsanas que estivessem no álbum. Lá estavam quase todos os āsanas, e outros, como virabhadrāsana IV, que ele não colocou no Luz sobre o Yoga. Ele queria colocá-lo no Luz sobre o Yoga, mas o editor disse que o manuscrito estava muito grande, e ele deveria tirar os āsanas menos importantes e apenas incluir os mais importantes. Assim, somente aquele álbum continha todos os āsanas. Eu era curiosa, ‘queria tentar este āsana, tentar aquele āsana’ que estavam no álbum. E, seguindo o que Guruji falava, praticava śīrṣāsana e sarvāṅgāsana com muita regularidade. Meu corpo era flexível e eu era magra, porque não acumulara gordura em nenhum lugar. Todo mundo, sempre que me via, dizia: “Ela está muito magra”, pois minha irmã mais nova, Vanita, estava com melhor aspecto. Eles percebiam que ela estava saudável e eu não. Foi assim que peguei os āsanas do álbum. Então veio o interesse e avancei mais. Há algum evento particular desta época de que você se lembre? Seria ter conseguido fazer algum āsana — ou qualquer recordação que aflore à sua mente? Bom, a primeira coisa que me vem à cabeça é que eu tinha restrições alimentares. Eu comia a comida que minha mãe preparava de acordo com as instruções do médico. Meu pai chegava em casa tarde, por volta das 20h, 20h30, 21h... Então ele não sabia o que havíamos feito durante o dia além de ir para a escola. Eu tinha uma lista de āsanas e costumava marcar num papel os āsanas que havia feito naquele dia para não me esquecer. Se não tivesse feito algo, haveria um “X” perto do āsana. No começo, fazia um pequeno intervalo, mas fora isso, praticava initerruptamente. Quando vi que havia praticado por trinta dias, contei para minha mãe, ‘mamãe, eu pratiquei por trinta dias sem pausa, mesmo no domingo que não tem escola’. Desta maneira, eu ficava feliz quando praticava. Então minha mãe contou para meu pai: “Agora ela está bastante regular e anota num papel o que ela fez”, e a primeira coisa que Guruji disse foi: “Não importa o que seja, apenas verifique se ela
comeu uma maçã por dia, pois alguma nutrição é necessária”. E foi assim que comecei a comer uma maçã por dia. Quando tinha sete anos, antes da nefrite, fiz uma demonstração com Guruji. Foi numa biblioteca pública em Pune, chamada Nagar Vachan Mandir. Guruji fez a demonstração e eu fiquei atrás dele, seguindo-o sem saber os nomes dos āsanas. Se ele estivesse fazendo tāḍāsana, eu faria tāḍāsana; se ele fizesse trikoṇāsana, eu faria trikoṇāsana; se ele fizesse ūrdhva dhanurāsana, eu me deitaria e me ergueria em ūrdhva dhanurāsana. E foi assim que demonstrei, mesmo Guruji tendo falado que eu deveria apenas ficar ali de pé caso eu não soubesse o āsana. Eu fiquei de pé em alguns deles, mas fiz vários āsanas naquela demonstração. De certo modo, talvez ali tenha sido um divisor de águas. Comecei a gostar de yoga a partir dos sete anos, mas por causa da fraqueza aos nove, e depois com a nefrite, tive que descobrir o que fazer, pois meu corpo estava completamente seco. Eu sentia meu corpo todo seco por dentro e tinha uma tremenda desidratação. Eu não tinha força para fazer meu trabalho, mas costumava fazer as tarefas de casa, pois todo mundo costumava dizer que eu era fraca. Então eu dizia, ‘não posso mostrar que sou uma pessoa fraca. Então deixe-me fazer o trabalho de casa’. Não importa o que fosse, eu costumava fazê-lo. E minha mãe também dizia: “Continue fazendo alguma tarefa, assim seu corpo e sua mente se mantêm ocupados e será melhor”.
ūrdhva dhanurāsana em Yoga: a Gem for Women 05
supta kūrmāsana em Yoga: a Gem for Women
Outro episódio foi quando tive icterícia. Naquela época, meu pai disse: “Faça muito jānu śīrṣāsana”. Assim que comecei a fazer jānu śīrṣāsana, compreendi que quando você fica num āsana por um longo período ou repete o āsana, isso muda o seu estado mental. Na icterícia você sente uma espécie de peso, então de alguma maneira jānu śīrṣāsana me ajudava. Não posso explicar como isso me ajudava, mas eu costumava fazer janu śīrṣāsana — direita, esquerda, direita, esquerda — continuando assim por cinco vezes, seis vezes, quantas vezes fossem possíveis para mim, e isso me dava um grande alívio. Então entendi que a repetição de um āsana ajuda a melhorar o āsana. E então comecei a repetir os āsanas. Por exemplo, eu fazia um kūrmāsana — certo, na segunda vez, deixe-me ver se o kūrmāsana vai sair melhor. E foi assim que comecei e em grande medida deu-se um aprimoramento. Um dia, fiz só kūrmāsana porque era um āsana difícil para mim. É um āsana difícil porque as mãos precisam ir para dentro, os braços para trás, ou você tem que cruzar as pernas para supta kūrmāsana etc. Então da maneira que me ocorreu, naquele primeiro kūrmāsana, aonde os braços apenas iam aos lados, sem mesmo ir para trás, senti que queria descobrir como poderia fazer ainda melhor. Isso veio a mim a partir da compreensão do que Guruji sempre disse: “Alongue, estenda”, esse tipo de palavras. Eu sentia que precisava pressionar meus braços com as coxas, e que pressionando-os eu obteria a postura. E quando eu os pressionava, minhas coxas e quadris erguiam-se. E no momento em que se erguiam, sentia uma leveza muito boa. Você sabe, é tudo experiência,
como a leveza surge. E quando consegui ficar leve, pude estender meu tronco à frente em kūrmāsana. Então era mais fácil levar os braços para trás, era mais fácil segurar os punhos nas costas em supta kūrmāsana e a partir daí meu cérebro começou a trabalhar no sentido de que, sim, às vezes realmente é preciso dar um nó no corpo daquela maneira. Se eu for clara, obtenho 2 liberdade e então é possível fazer o nó . Esta compreensão veio mais tarde, mas entendi que só é necessário mover os braços para cima e dar o nó, e então isso ocorreria gentilmente, como dar o nó em padmāsana ou em vīrāsana, e assim comecei a experimentar as aproximações. É o mesmo nas três posturas. Estes são os três estágios onde entendi isso. Então, enquanto Guruji lecionava, eu costumava observar o que ele dizia, o que ele explicava, e isso deu-me mais entendimento sobre isso. E isso foi quando você tinha nove, dez anos? Sim, com certeza. Eu lembro que a partir dos sete anos, deixe-me ver, então em 1960—61, aquela prática era muito boa. Luz sobre o Yoga veio mais tarde, depois de 1961. Então, a partir do livro comecei a compreendê-los e costumava verificar os nomes [dos āsanas] no livro. Guruji deu-me trabalho depois que o manuscrito ficou pronto. Antes de levar o manuscrito para ser publicado em Londres, ele fez com que eu e Vanita comparássemos as fotos originais com os números, nomes e fotos numeradas no manuscrito. Ele disse: “Verifiquem a contagem das fotos e os nomes dos āsanas. Se algo estiver faltando, avisem-me”. Ele já havia feito isso pouco tempo antes, mas queria que eu me sentasse e descobrisse. Então, realmente, eu peguei aquelas fotografias e verifiquei a contagem de todos os números. O segundo trabalho foi dar as instruções dos lados direito e esquerdo enquanto executava as posturas. Eu não sei se ele queria me examinar ou algo assim. “Você faz trikoṇāsana do lado direito e, enquanto explica tudo, usa a palavra esquerda. E quando fizer no lado esquerdo, você deve usar a palavra direita.” Ele fez-me conferir deste modo, e disso eu lembro-me bem. Fiz isso para o livro Luz sobre o Yoga. E foi assim que aprendi os nomes dos āsanas. 2 Em inglês: “to knot”. (N.T.)
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E, porque estava olhando para eles, isso a inspirou a tentar mais e mais āsanas? Este interesse esteve presente desde o começo. Eu tentava por conta própria, olhando para o álbum. Como ele estava fazendo paryaṅkāsana, parighāsana, onde estava a mão, você sabe, esse tipo de coisa. E assim com yogadaṇḍāsana, como ele estava fazendo, kandāsana, mesmo que não o conseguisse, ao menos tentaria para ver como ocorreria. E quando conseguia, é claro, era uma conquista.
B.K.S. Iyengar e Geeta Iyengar em pārśva kukkuṭāsana
Era um marco. Sim, com certeza. E por volta de 1962—63 fiz todos os āsanas do Luz sobre o Yoga. Em 1963 estava fazendo todos os āsanas que conseguia, mas estava fraca. Como você podia estar fraca e fazer todos os āsanas? Não consigo entender. Sim, depois minha saúde piorou, quando minha mãe morreu. Minha responsabilidade aumentou em diferentes direções. Até aquela época, enquanto minha mãe estava lá, minha recuperação tinha evoluído bastante. Com os 10, 12 anos de prática e tudo o que tinha conquistado depois daquela crise de saúde anterior, pude assumir todas as responsabilidades da família. Eu tinha 27 anos quando minha mãe se foi. 27? Eu tinha 27, 28, algo assim. Mas aquela era uma responsabilidade enorme. Porque todas as crianças ainda eram jovens e estavam na escola. Tínhamos que arranjar entre nós o que iríamos comer, quem cozinharia, quem asseguraria que não faltaria gás para a cozinheira, quem faria o pūjā na casa, pelo menos acender uma vela diante do Senhor. Vanita era casada, e então eu, Sunita e Sujita tínhamos que decidir como distribuir as tarefas de acordo com os horários escolares delas. Sujita ia para escola de manhã, Sunita ia à tarde, e eu tinha que ir para as minhas aulas. Desta forma nos ajustamos. A morte de minha mãe foi uma grande perda, não só física, mas mental.
B.K.S. Iyengar, sua esposa Ramamani e seus seis filhos Suchita, Savita, Sunita, Vanita, Geeta e Prashant
A perda de uma mãe é a mais difícil... Sim, foi muito difícil. Então o Instituto foi criado. Em 1973 ela faleceu, em 1975 a edificação do Instituto estava pronta. Em 1974 a casa estava pronta, então as mudanças, os arranjos, tudo isso tomou certo tempo. O que aconteceu com sua prática nessa época? Eu praticava regularmente, mas a diferença é que, agora, se preciso ir desta porta para aquela, demoro cinco ou sete minutos. Mas naquele tempo, eu era rápida. Se tinha que fazer minhas posturas de equilíbrio, não demoraria mais do que vinte minutos para terminar de fazer todas elas. Da mesma forma, as extensões para trás levavam no máximo 30 minutos — viparīta daṇḍāsana, maṇḍalāsana, vṛścikāsana, todas. Todas as extensões para trás que Guruji fazia em suas sequências. Às vezes conto para as pessoas como era a sequência dele quando fazia extensões para trás. Meu corpo respondia rapidamente às variações de śīrṣāsana e sarvāṅgāsana. Fazer padmāsana em śīrṣāsana não era difícil para mim. Eu fazia padmāsana, virava para um lado, para o outro, 07
baixo em ūrdhva dhanurāsana. Aprendi ūrdhva dhanurāsana por acidente. É uma ótima história.
vṛścikāsana em Yoga: a Gem for Women
flexionava para baixo, tudo era possível. Naquele tempo aprendi a fazer muitas coisas lateralmente: pārśva piṇḍāsana, śīrṣāsana etc. Mas os problemas estavam lá. Quero dizer, cuidar da casa, pessoas indo e vindo, convidados em casa. Quando Guruji não estava presente, eu tinha que conversar com elas, você sabe, servir chá, café, refrescos, o que fosse necessário. E então também tinha que praticar e ensinar em minhas aulas. Minhas aulas naquela época eram no Instituto e na Academia de Defesa Nacional, para os cadetes. E foi assim. E mais uma história daquela época. Em 1955, Guruji ensinava na Academia de Defesa Nacional. Ensinava yoga aos cadetes e, por causa daquela experiência anterior, de quando eu tinha sete anos, Guruji pediu-me para demonstrar algo que não havia feito antes. Ele pediu-me para ficar de pé e ir para trás para ūrdhva dhanurāsana. Eu só sabia entrar em ūrdhva dhanurāsana a partir do chão. Eu nunca soube como ficar de pé e ir para trás. Como os cadetes estavam praticando na grama lá fora, Guruji pediu-me na frente deles para “mostrar a queda para trás em ūrdhva dhanurāsana”. E você não vai acreditar. Eu fiquei lá, levantei os braços acima da cabeça, caí para trás e mostrei ūrdhva dhanurāsana para eles. Como isto se deu? Eu mesma estava surpresa com como podia ir para trás sobre meus braços. E então quando fiz isso, adquiri coragem. ‘Agora eu posso ir para trás.’ Assim, quando voltei para casa, tentei ir para trás colocando um travesseiro embaixo da cabeça, ou com as palmas das mãos na parede para aperfeiçoar o āsana, e então tinha certeza de que levaria as palmas das mãos para 08
Eu era corajosa desde o começo, definitivamente. Como eu tinha coragem, eu não sei, mas era corajosa. Eu era corajosa física e mentalmente. Agora como você vê, pareço doente nesses últimos anos, e esta doença acabou comigo. Naquela época ela não existia. Embora eu não estivesse bem, os médicos também sabiam que esta doença provocaria mudanças em mim. Eles diziam que meus músculos começariam a falhar. Por isso avisavam-me para ser cuidadosa com meus músculos, mas nunca imaginei que fossem fracassar tanto. Quando estávamos no intensivo de extensões para trás e você estava com um problema nas costas, foi um divisor de águas o momento no qual suas costas começaram a incomodá-la? Sim, tive que aprender por mim mesma. Algumas vezes tive que reaprender os āsanas. 1962 foi um período muito ruim. Eu tinha aprendido tanto e, depois de 1963 ou 1964, meu equilíbrio ficou muito ruim. Comecei a perder aquilo que havia aprendido rápido. Tinha que tentar uma segunda vez para verificar se conseguia fazer todas as posturas de equilíbrio. Fazia, mas talvez esta tenha sido a época em que o corpo começou a ficar um pouco rígido. 1963—1964. Então você tinha apenas 20 anos? Isso apareceu aos 20 e novamente aos 25 anos de idade e em ambas as ocasiões a rigidez corporal estava lá. Então tive que me refazer para conseguir aquela liberdade. E foi o que fiz. As posturas
“Eu era corajosa desde o começo, definitivamente. Como eu tinha coragem, eu não sei, mas era corajosa. Eu era corajosa física e mentalmente.”
de equilíbrio, é claro, regrediram e aí as extensões para trás pioraram. Começaram a me causar dores depois que minhas irmãs se casaram e tiveram filhos; tudo isso aconteceu quando minhas costas não estavam bem. Eu costumava banhar os bebês. Mesmo atualmente eles gostam que eu os massageie ou dê banho neles. A caçulinha de Harit fica feliz quando eu a toco. Todos eles costumavam gostar que eu os banhasse e os massageasse. Mas quando eu tinha todas essas responsabilidades — ajudá-las no casamento, dar à luz, ou em certas celebrações que fazíamos depois do casamento, tudo isso cobrou do meu corpo. Certa vez, foi trazida ao Instituto uma jovem mulher que não conseguia andar. Ela não podia andar ou ficar em pé sem uma bengala. Guruji disse que ela estava muito mal e que o pai dela havia lhe pedido que levasse o caso dela para as aulas terapêuticas. Eu disse que não queria trabalhar com ela, porque senão minhas costas iriam piorar muito. Ele disse: “O que fazer? Somos professores de yoga e, portanto, sofremos e praticamos, mas devemos ajudá-los também”. Naquela época, sempre que a minha coluna baixa 3 era sobrecarregada, eu podia remover a dor nas costas por meio da minha prática. Mas depois isso se tornou difícil para mim. Eu simplesmente não conseguia eliminar a dor. Minhas costas começaram a deteriorar. E então os médicos disseram que isso não era apenas uma dor nas costas ou algo do tipo, mas meus músculos que estavam falhando. Eles disseram que este era um distúrbio no tecido conjuntivo causado pela nefrite. Os músculos externos são conectados aos ossos através do tecido conjuntivo. Isso foi quando, aproximadamente? Começou em 2003. Eu estava viajando fora da Índia em 2002 e 2003, mas comecei a sentir que algo falhava internamente. Então, quando fui ao Dr. Naik em 2003 para descobrir o que havia de errado comigo, eu disse, ‘um corpo que se move tão rápido, agora não se move e sinto uma rigidez’. Mesmo um simples svastikāsana às vezes era rígido, enquanto eu antes fazia padmāsana etc. Nas posturas que podia fazer com facilidade, agora eu sentia rigidez e também sentia que não as fazia facilmente. Então a deterioração come3 “lower back”. (N.T.) 4
Originalmente escrito “Mula Kandasana”, porém interpretamos como possível erro de edição, pois não encontramos este nome de postura em nenhuma referência. (N.T.)
utthita hasta padaṅguṣṭhāsana em Yoga : a Gem for Women
çou. Quando o meu ombro direito se deslocou, os médicos disseram: “Não, definitivamente isso é o tecido conjuntivo que está se entregando. Você precisa ter cuidado. Não pode esforçar-se. Nos dias em que se sentir cansada ou fatigada, descanse, não trabalhe, porque algo pode deslocar-se. Só aconteceu com o ombro direito, mas de agora em diante seja cautelosa”. Então Guruji fez-me fazer paripūrṇa matsyendrāsana, yoga daṇḍāsana, kandāsana e mūla bandhāsa4 na; meu corpo não estava respondendo de forma alguma a todos estes āsanas, e ele disse que os dedos, os tornozelos, tudo estava errado. Mesmo sentar em vīrāsana era difícil. Então colocou-me em vīrāsana, com tração para as minhas costas para descobrir o que estava acontecendo. Mais tarde minhas costas ficaram tão fracas que, agora, mesmo para caminhar sinto-me estranha. Mas o que se pode fazer? Digo, você não pode fazer nada quando suas costas estão afetadas deste jeito. Minha prática continua, mesmo em utthita hasta pādāṅguṣṭhāsana eu preciso que
dvi pāda viparīta daṇḍāsana em Yoga: a Gem for Women 09
eka pāda rajakapotāsana em Yoga: a Gem for Women
alguém me ajude. Não consigo levantar minha perna sozinha, então eu a ergo um pouco e peço para Sindhu ou Rajlakshmi ajudarem-me. Rajlakshmi estava esperando por mim; ela achou que eu viria hoje para a prática, mas havia tanta gente saindo, certificados para assinar, cartas para responder, havia todos esses problemas e não pude praticar esta manhã. E não acho que amanhã vá fazê-lo. Minha prática vai começar somente depois que eu voltar de Bangalore. E vou precisar de ajuda. Eu consigo deitar em viparīta daṇḍāsana, mas se precisar levantar, alguém precisa ajudar-me para que minhas costas não sofram um solavanco. Então, com a ajuda deles, faço minha prática. Faço śīrṣāsana nas cordas, sarvāṅgāsana na cadeira, viparīta karaṇi, extensões à frente como for possível — o que quer que seja possível, continuo fazendo. Mas não posso culpar ninguém. É simplesmente o meu destino. Não se pode culpar ninguém por isso. É o destino. Você pode se lembrar quando sua prática mudou de uma prática exterior para uma prática mais interior? Sim, isso começou perto do final dos anos 60. Algo depois de 66—67, pois já existia o livro de Guruji. Então, um pouco da arte da observação começou a surgir a partir de observar as posturas. Em eka pāda rajakapotāsana você pode simplesmente ir e agarrar o seu pé, mas olhar para as fotos deu-me uma pista de como resistir com o pé de trás etc; e então a cabeça tem que 10
alcançar o pé. Antes eu costumava puxar o pé em direção à minha cabeça em eka pāda rājakapotāsana ou rājakapotāsana. Aí veio a compreensão de que o pé deve apenas se manter onde está e a cabeça tem que se mover junto com o peito e as costas para alcançar o pé. Então quando comecei a praticar vālakhilyāsana, percebi que você tem que, literalmente, puxar a perna para trás para encostar no chão e o tronco tem que se estender para trás. Então estas fotos do livro começaram a dar-me pistas e, além disso, em 1962 Guruji começou a dar as aulas gerais em Pune. Até então, havia apenas instrução individual ou para três a quatro pessoas. Como o espaço era limitado, ele podia receber no máximo seis pessoas. Guruji costumava ensinar àquelas pessoas trikoṇāsana, pārśvakoṇāsana, o giro do peito, a absorção das nádegas etc. Nesta época, alguns estrangeiros começaram vir à nossa casa antiga. Então, naquele tempo, sempre que tinha tempo livre, pois naquela época eu estava na faculdade, eu prestava assistência quando Guruji ensinava. Quando ele explicava, entendia melhor o que significava a torção do tronco, o que as ações de flexão significavam etc. Suas explicações levaram-me a penetrar mais. Então direi que apenas por intuição tinha aquela sensação de ir para dentro, ou observar a postura. Esta tendência refinava-se ou ficava mais precisa nas aulas de Guruji. Nas aulas gerais, quando estava demonstrando na frente de todo mundo, eu tinha aquela sensação de que não deveria fazer incorretamente, então tinha que ter certeza de que minha perna não estava torta, meu joelho não estava flexionado e meu pé tinha girado completamente. Este tipo de coisa fez-me compreender com mais profundidade. Você sempre teve uma prática de prāṇāyāma? Eu sei que você tem uma prática de prāṇāyāma bem forte agora. *A resposta desta pergunta e o emocionante final da entrevista estão em: www.iyengar.com.br/artigos/a-forca-de-uma-yoguini
Essa matéria foi traduzida originalmente como material didático do Curso de Formação de Professores do Centro Iyengar Yoga São Paulo ministrado por Rosana Seligmann.
INSPIRAÇÃO
Pérolas de Geetaji ComPÉROLAS seu conhecimento DE GEETAJI profundo, precisão e clareza, qualidades que faziam dela uma grande professora, Geetaji inspirou seus alunos com suas frases repletas de significado. Selecionamos algumas aqui para inspirá-los também “Primeiro vocês colocam o alinhamento e depois o esforço. Não, Guruji primeiro colocou o esforço e o vigor e o alinhamento veio na sequência.” “Primeiro há leveza para depois haver luz.” "O conhecimento tem um início, mas não tem um fim." “Quando inspira, você está absorvendo a força de Deus. Quando você expira, isso representa o serviço que está prestando ao mundo.” “Não é uma questão de aprender yoga, mas sim de experienciar, pois yoga não tem fim; só tem um começo.” “O corpo e a mente são interdependentes. Eles são inseparáveis na arte da introspecção.” “O yoga não deve ser abordado de forma leviana, como se fosse um hobby. Yoga não é um divertimento e deve ser abordado seriamente com fé, entusiasmo, determinação, coragem, vontade e dedicação.” “Iyengar Yoga não é ficar nas áreas conhecidas. Você deve entrar no desconhecido e perguntar-se: ‘Por que eu não conheço isso?’ Saber não é seu dever?” “A prática diária deve ser acompanhada por um espírito de pesquisa para que o intelecto possa penetrar mais e mais profundamente.”
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Apoio:
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ESPECIAL CONVENÇÃO
FRESCOR no Sangue CLAREZA na Mente AMOROSIDADE no Coração Essa é Abhijata Sridhar Iyengar, neta de B.K.S. Iyengar e por ele escolhida para levar adiante o seu legado. Talentosa e sensível, Abhijata aprendeu a ensinar com devoção, dedicação e amor diretamente com a família Iyengar. Em seu tour 2019 pelas Américas, passou pelos Estados Unidos, México, Chile e Argentina espalhando conhecimento e emocionando cada praticante. Para finalizar o tour, chega ao Brasil pela primeira vez a convite da ABIY para a 3ª Convenção Brasileira em São Paulo para compartilhar os ensinamentos de Guruji e de Geetaji em sua forma mais pura. Acompanhe aqui os melhores momentos de sua presença nestes países e embarquemos todos na alma e no coração do sistema Iyengar
Abhijata S. Iyengar na Convenção Mexicana de Iyengar Yoga 2019 por Lourdes Christlieb
“É responsabilidade de cada um de nós levar adiante o legado de Guruji.” Abhijata S. Iyengar 14
Convenção Americana de Iyengar Yoga 2019 - Dallas
@iyengar_usa_2019
@beechwoodiyengar
@mokshayogaandwellnessllc
@iyengar_usa_2019
@iynaus
@iyengar_yoga_champaign_urbana
Convenção Mexicana de Iyengar Yoga 2019 - Cidade do México
Foto: Lourdes Christlieb
@yogizain
Foto: Lourdes Christlieb
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Fotos: Lourdes Christlieb
Convenção Chilena de Iyengar Yoga 2019 - Santiago
@yoga_iyengar_chile
“O āsana não é uma posição é uma situação.” Abhijata S. Iyengar 16
Convenção Argentina de Iyengar Yoga 2019 - Buenos Aires
@asociacionargentinayogaiyengar
Abhijata S. Iyengar na Convenção Mexicana de Iyengar Yoga 2019 por Lourdes Christlieb
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TRIBUTO
Flores para Geetaji As flores que Geetaji recebeu no final das comemorações do Centenário de Guruji não estão mais lá. Mas ela, sim. Geetaji continua viva mais do que nunca dentro de cada um de nós, que lhe oferecemos flores todos os dias Por Rosana Seligmann
“Rezo todos os dias para que na próxima vida Iyengar seja meu guru; para que eu aprenda mais. Não peço para que ele seja meu pai. Se for novamente meu pai e meu guru, maravilhoso. Mas como guru sei que é ele quem eu quero, porque ele é realmente um guru. Não é desses que se dizem gurus: ‘feche os olhos e imagine isso e aquilo’. Não, ele sempre nos fez ver de olhos bem abertos.” Foram essas as palavras de Geetaji em sua deslumbrante aula no RIMYI em 10 de agosto de 2018. Geetaji inúmeras vezes falou de seu enorme desejo de que Guruji completasse 100 anos de vida. Tirumalai Krishnamacharya, o guru de Guruji, faleceu aos 102 anos. Geetaji faleceu aos 74 anos, na manhã do dia 16 de dezembro de 2018, exatamente algumas horas após o final das comemorações do centenário de Guruji em Pune, que reuniu 1.200 pessoas vindas de 56 países. Nessa celebração, Geetaji ministrou aulas brilhantes, mesmo em seu estado bastante debilitado de saúde. A primeira aula que tive com Geetaji em Pune foi em 2005 e nunca me esqueço do impacto que isso teve dentro de mim:
“Ela nos joga para dentro da gente de tal forma que não temos a coragem, nem a possibilidade e nem o direito de sair de lá.” Foram estas mais ou menos as palavras que disse ao meu marido assim que saí da aula. Tal era a intensidade do seu ser, a absoluta generosidade de se entregar por completo para nos fazer tocar nossas camadas mais íntimas, tal a habilidade e experiência de ir alinhavando com sua voz e seu conhecimento inigualáveis o caminho para que pudéssemos tecer o que pode vir a ser o yoga. Durante anos e anos, Noah e David, meus filhos, nos acompanhavam nas viagens à Pune e sempre me tocou o desejo genuíno e espontâneo de ambos de ir ao Instituto para ouvir Geetaji cantando o mantra no início de suas aulas. Saíam de nosso apartamento, andavam cerca de 15 minutos, se sentavam nas escadas de onde se pode assistir as aulas e ouviam a invocação. Ao final do mantra, voltavam para o apartamento, simples assim. Não sei explicar em palavras essa ânsia de duas crianças ocidentais em organizar suas “agendas diárias em Pune” priorizando “a hora em que ela canta”, mas meu coração entendia esse desejo. Só estando lá, naquela sala com a força dessa mulher, para entender como ela sabia preencher nossos corações com sua presença. Foi uma vida completamente dedicada ao yoga, a 18
compartilhar o yoga, a nos fazer seduzidos, devotos e apaixonados pelo yoga. A partir de 2009, me recordo que ela começa a repetir inúmeras vezes em suas aulas que não está mais bem de saúde. A última vez que tive aulas com ela (e que aulas!), foi em 2018, quando ela andava com a ajuda de Raya, que a puxava muitas vezes com um cinto de yoga que ele enlaçava por trás dos quadris dela e ia puxando-a, com um cuidado que me emocionava. Neste ano, no início de uma das aulas para mais de uma centena de alunos russos em Pune, Geetaji falou que tinha uma doença degenerativa e que por isso estava naquelas condições e que não devíamos temer achando que se continuássemos no caminho do yoga ficaríamos como ela. Como ela mesma escreve na introdução de seu livro Yoga: A Gem for Women, além de uma série de doenças que lhe acometeram durante toda a infância, aos 10 anos teve uma crise grave de nefrite que foi quando os médicos comunicaram aos seus pais que não tinham muita esperança de que ela sobrevivesse. Esse foi um dos trampolins para que ela mergulhasse por inteiro na prática e nos estudos do yoga, sempre sob a luz de seu pai. Assim, pode-se dizer que teve uma sobrevida de 64 anos... Mesmo com um estado realmente muito debilitado de saúde, ministrava aulas, tal era não só sua generosidade, mas também sua compaixão e consciência sobre a urgência e a importância de compartilhar tudo o que sabia. Tinha a certeza de que, mais cedo ou mais tarde, não estaria mais nesse mundo e que precisava deixar o que fosse possível deixar, nas mãos, olhos e corações dos alunos mais afiados do Instituto. “Rajlaxmi, Abhi, Raya, vocês entenderam? Em breve não estarei mais aqui e vocês precisam entender isso” é o que ouvíamos em muitas das suas aulas, principalmente depois da morte de Guruji. Um dia, enquanto estava no hall do Instituto na fila para entrar para dar assistência nas aulas terapêuticas, vi meus filhos muito entretidos na frente de uma grande estátua de bronze de Shiva que fica bem no hall de entrada. Me aproximei e ouvi: - Noah, você acha que Guruji faz essa postura melhor do que Shiva? - Claro, David, Guruji faz melhor do que todo mundo. - É... Mas melhor do que Shiva não sei: olha quantos braços Shiva tem! Algumas semanas mais tarde, em um sábado de manhã, Guruji estava no canto da sala enquanto Abhi conduzia a aula das crianças. No final desta aula, enquanto Noah e David desciam as escadas saindo da sala, ouvi mais uma conversa: - Noah, você acha que Guruji é Deus? - Ele, David, é um tipo de Deus. (pausa)
Foto: Nobs Brandsch
- Ele é um Deus que morre.
Rosana e o filho Noah, com um ano e sete meses de idade, no RIMYI 19
Sim, Guruji é um Deus que morreu em seu corpo físico, mas que continua vivo mais do que os vivos, pulsando dentro de cada um de nós através de nossa prática diária, de nossos estudos, de nossa maneira de ser e de agir nesse mundo, iluminados pelo seu exemplo assim como pelo exemplo de Geetaji que, junto com Prashantji, continuaram e estarão sempre apontando com seus fachos de luz o caminho claro, nem sempre fácil, do autoconhecimento, do yoga. Foto: Renata Ventura
Cheguei em Pune três semanas depois da morte de Geetaji. E, envoltos em uma tristeza profunda, a pergunta que não calava era: quem vai carregar o legado de Guruji, ainda mais agora que Geetaji também não está mais entre nós? Geetaji durante o evento do Guru Pourmina em julho de 2018
“Esta é uma pergunta que me foi feita muitas vezes! Como vejo o legado de Guruji sendo levado adiante? Minha resposta tem sempre sido que não sou apenas eu que farei isso. Quando Guruji me ensinou, ele ensinou a todos nós. A imagem que me vem à cabeça quando me recordo de seus ensinamentos é aquela da chuva, isto é, da chuva de seus ensinamentos caindo sobre nós. Quem quer que tenha tido suficiente sorte para estar perto dele naquele momento, foi banhado pela chuva. Eu fui uma dessas pessoas. Quem vai levar adiante? Penso que é responsabilidade de cada um”, diz Abhijata Iyengar. Sim, é responsabilidade de todos nós, que tivemos a alegria e a sorte de nos banharmos nessa chuva de luz de Guruji e de Geetaji, de continuarmos regando e semeando seus ensinamentos e seus exemplos. Uma amiga de Nova Iorque que estava em Pune durante a celebração do centenário de Guruji me contou, emocionada, que na noite do dia 15 de dezembro de 2018, logo após o final das comemorações e algumas horas antes do falecimento de Geetaji, viu uma amiga e aluna antiga de Geetaji entregar-lhe flores dizendo: - Não estarei aqui no Natal, quero te dar um presente, então te entrego essas flores. Geetaji respondeu: - No Natal as flores estarão aqui, obrigada. Mas eu não estarei mais. Geetaji sabia o que dizia. Ela queria estar presente nos 100 anos de seu pai. Esteve e deu tudo o que tinha. Na manhã seguinte, se colocou em pavanamuktāsana e foi ao encontro de seu guru, de seu pai. Os grandes yogues, disse Desikachar, filho de Krishnamacharya, sentem, sabem, quando estão para partir. O mesmo tipo de diálogo teve Desikachar com seu pai, como narra ele em um de seus lindos livros. Suas flores, Geetaji, não estão mais lá. 20
Mas você, sim. Você continua mais do que viva dentro de nós, que lhe oferecemos flores todos os dias. Perguntei ao Arun, que acabara de chegar de Bangalore em São Paulo, e que sempre foi muito próximo de Guruji e de Geetaji, como ele sente a perda de ambos. Ele, com seu sorriso nos olhos, me respondeu com muita tranquilidade e integridade:
Arun colocou a mão no coração e continuou: - Guruji e Geetaji continuam vivos, não há dúvida. E faço das preces de Geetaji, as minhas:
Foto: Osnir Cugenotta
- Meus pais já não estão mais neste mundo, mas não posso dizer que eles morreram. O corpo deles já não está mais aqui, mas eles continuam muito vivos dentro de mim.
- Rezo todos os dias para que na próxima vida Iyengar e Geetaji sejam meus gurus. Eles que nos fazem ver tudo de olhos bem abertos. E que essa mini gota que caiu sobre mim continue chovendo, pois sei que há uma infinidade de gotas mais para absorver, beber e para se banhar para poder aprender mais e cAUMpartilhar, sempre”. Flores a eles. Aums.
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Memรณrias de Geetaji
Fotos: Arquivo RIMYI
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Fotos: Copyright RIMYI, Pune, Photographs by Shael Sharma 23
Foto: Copyright RIMYI, Pune, Photograph by Shael Sharma
LUZ SOBRE GEETAJI
GEETAJI VIVE Presença Empatia Entrega Reverência Devoção Conhecimento e entusiasmo Assertividade Precisão Clareza Disponibilidade Exigência Coragem e determinação Compaixão Compromisso Disposição em ajudar qualquer pessoa Gentileza Firmeza Suavidade Generosidade Persistência Amor maternal Potência e força Firmeza e intensidade Amorosidade Fervor Responsabilidade Realização espiritual Sabedoria Olhar de águia Sorriso doce Mãos ágeis e precisas Visão mágica Língua afiada Intérprete da obra de Guruji Guardiã do yoga Protetora da pureza do método Iyengar Precursora do yoga para mulheres Coração do Iyengar Yoga Exemplo de força diante das dificuldades Geetaji vive em todos esses adjetivos, atributos e qualidades. Permanece pulsante em sua obra, ensinamentos e exemplo de vida. Continua também no coração de todos que tiveram a oportunidade de ter aulas com ela e de estar em sua marcante presença. Acompanhe aqui algumas dessas lembranças
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eetaji....
Foto: Arquivo pessoal
Por Sun Vaz
Confesso que demorei a entender a potência e a força dessa mulher, e porque ela era daquele jeito, com aquela firmeza e intensidade. Tenho uma ligação muito forte com Guruji por muitos motivos. Ele era como um avô para mim. Aprendi muito pelo seus exemplos. Prashant é minha inspiração, porque eu sinto na pele o que ele diz e como ele conduz a visão dele sobre Iyengar Yoga. Mas, Geetaji, uau... Muita intensidade... Como Abhijata disse: “Geeta é o coração do Iyengar Yoga realmente, porque pulsa, o mantém vivo, tem paixão em fazer com que todos entendam e penetrem no caminho”. Lembro do meu primeiro encontro com ela: muita intensidade no ensino, gritos e firmeza. Mas uma clareza da técnica, um olhar para todos e uma precisão impressionante. Era claro o extremo envolvimento dela para com todos e não deixava ninguém não estar naquilo que ela estava proposta a passar. A dimensão da prática para mulheres, o cuidado, e o refinamento da técnica são impressionantes. Geeta foi uma mulher que entregou a sua própria vida para manter a família de pé quando Ramamani, sua mãe, faleceu e, como a filha mais velha, segurou a estrutura de tudo para que Guruji continuasse seu trabalho. Puro amor e devoção ao yoga! Aliás, isso é algo que me toca, emociona e inspira: como a família Iyengar entregou tudo para tocar o legado. Lembro de momentos especiais. Um deles quando fui fazer uma aula e estava totalmente acabado, meio doente e, pela condução dela, caminhos da aula, dinâmicas, abordagem, entrei em um nível de compreensão da prática que mudou tudo para sempre. Totalmente “derrotado”, eu me levantei, consegui entrar e saí outra pessoa.
Lembro quando ela me viu lá de longe e ajustou meu bhujapīdāsana: - Ei, você! Seus joelhos estão muito baixos. Coloque-os tocando os ombros. Vamos, faça isso! Mais! Ah, agora sim! Lembro dela na prática pessoal sendo assistida por Raya e mais três professores, fazendo sua prática (nesse momento da vida ela já estava bem comprometida fisicamente) e eles ajustando fortemente, ela gemia, e dizia: - Mais, mais, gira, gira. Era uma sequência de torções. Ali foi também a demonstração da força e da luta contra essa dificuldade. Ela mesmo disse em julho de 2018 que na prática dela naquele momento (com as dificuldades dela), tinha que fazer cinco vezes ou mais cada āsana: uma vez com foco total só nas pernas; outra só no quadril; outra só no tronco; outra só nos braços etc., tamanha a dificuldade e também a dimensão de como o trabalho pode ser feito. Lembro dela dizer que os médicos já não queriam que ela desse aula, porque ela não conseguia não se envolver de tal forma, que ficava muito “brava” querendo que todos captassem o que ela queria passar; que ela gastava aquela pouca energia que tinha para dar tudo para os alunos. Mas, mesmo assim, ela ministrava as aulas e estava lá com toda aquela intensidade gritando para mover, doar, transformar, sempre passando do horário, querendo dar mais e mais. Pura devoção! 25
Em uma das últimas aulas em que eu estava presente, ela “brigou” muito com a Gulnaz (uma professora do Instituto), porque ela não estava ouvindo e fazendo o que ela havia dito (brigou feio, jeito indiano), mas depois conduziu tudo para mostrar que aquilo era apenas para remover a desatenção, a falta de conhecimento e mostrar a relação aluno/professor, sem o envolvimento pessoa/pessoa (ego), deixando claro que ela amava a Gulnaz, que eram muito amigas fora da sala de aula, mas ali, através do yoga, o ponto era para transformar aquilo que não estava acontecendo, o ponto fraco, visando a liberdade. Tive a sorte de ficar um mês sentado ao lado dela na aula médica em Pune olhando tudo. Raya chegou para mim e falou: - Não venha ajudar, sente do lado “daquela mulher”, sinta e veja como ela é (incrível), veja como ela olha, como ela faz, como tudo acontece. Não perca essa oportunidade. E foi isso que eu fiz. Agradeço para sempre e levarei esses momentos para a vida toda inspirado nesse amor, nessa devoção para com o yoga e este caminho. Seguirei meus passos para poder compartilhar ainda mais (sem descanso) inspirado nesse fervor do coração pulsante. Todo amor, Geetaji, e que você continue nos guiando de onde você estiver...
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Foto: Arquivo pessoal
Lembro de uma aula de prāṇāyāma na qual nunca ri tanto com Geetaji. Ela estava ensinando bhastrikā digital e kapālabhāti e ninguém estava fazendo direito e ela imitou uma pessoa fanha (todos rimos muito) para mostrar que tinha que ser nas narinas e não na garganta. Inúmeras vezes ela demonstrava, repetia e fazia a “piada”. Foi incrível, rimos muito. Ela também tinha esse lado muito amoroso e engraçado e quando ela sorria era um presente (ela tinha fama de brava).
Por Renata Ventura
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ma das experiências mais especiais que tive na presença de Geetaji aconteceu no Guru Pournima de 2017, quando ela dividiu abertamente conosco sua história e dharma de vida. Contou-nos desde a sua infância doente, quando Guruji dizia a ela “faça yoga ou morra", até quando ela levou os ensinamentos do pai e guru a sério, dedicando sua vida ao yoga. Nesse discurso, ela parecia se despedir de todos nós. Contou trajetórias da sua vida, passagens da família e mostrou-nos o quanto Guruji considerava seus alunos como seus filhos. E, com todas as palavras, disse-nos que não sabia até quando estaria conosco. Lembro que saí com a sensação de que ela estava se despedindo, como se seu dharma estivesse cumprido. Mas não. Ela já estava se preparando para o seu momento de passagem; entretanto, fez-se presente e forte até o fim da comemoração do centenário de B.K.S. Iyengar. Foi quando, de fato, doando toda a sua energia para a nossa comunidade, sentiu seu dharma atingido e uniu-se ao seu pai. Como todo grande mestre, ela sabia o momento de sua passagem. Sinto-me abençoada por ter tido a oportunidade de estar aos seus pés.
Foto: Arquivo pessoal
Em 2017, quando cheguei no Instituto, minha primeira aula foi com Geetaji. A frente da plataforma estava vazia, alguns poucos praticantes indianos nas pontas apenas, mas ninguém tomava à frente, então estendi meu tapete e pensei: - Estou preparada para passar um mês na frente de Geetaji.
Por Karina Grecu
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primeira vez que vi Geetaji ela estava dando aula no grande salão verde do Instituto. Ela parecia absolutamente presente a qualquer movimento da sala; ela podia ver todos e qualquer um, até mesmo quem estava apenas assistindo a aula, como eu. Ela era enérgica, corrigia desde os alunos até a assistente. E quando pedia um prop para a turma logo gritava: - Vão, vão, peguem logo!
Infelizmente, ela só pode dar aulas por 10 dias, mas em todas elas eu estava lá recebendo suas correções em meu corpo de mente aberta. Ela sempre me olhava nos olhos com gentileza, por mais firme que fossem suas palavras, e eu sempre estava grata por receber tudo que ela quisesse me dar. Na comemoração do centenário do Guruji em dezembro de 2018 ela estava brilhante! Sua condução, precisa! Ela sabia o que queria oferecer a cada um dos 1300 praticantes e eu dei graças à vida por poder ver seus olhos generosos pela última vez. Jaya Geetaji! Muito, muito, muito obrigada!
Eu fiquei amedrontada. Era como se não estivesse preparada para estar com ela e tivesse muitos julgamentos a respeito de como minha professora idealizada “deveria ser”.
Foto: Copyright RIMYI, Pune, Photograph by Shael Sharma
Ao longo dos anos, fui voltando ao Instituto e vendo Geetaji trabalhar, percebendo que ela era incansável e tudo o que ela queria era que todos pudessem “sentir a postura”. Tudo o que ela queria era quebrar a ignorância de cada um. Ao longo dos anos, fui percebendo que o problema era eu! O anseio do ego de receber o ensinamento do jeito como eu achava que seria didático ou polido. Ao longo dos anos fui percebendo que cada um distribui seu amor pelas vias que possui, e que se Deus em mim estivesse aberto, eu poderia receber o conhecimento pelo Deus do outro da maneira que fosse!
Centenário de Guruji em dezembro de 2018 27
Foto: Arquivo pessoal
Por Mel Vieira
H
á cinco anos viajo à Índia para participar das atividades de férias do Ramamani Iyengar Memorial Yoga Institute, que acontecem todo janeiro. Em algumas aulas de aperfeiçoamento tive a oportunidade de encontrar com Geeta Iyengar e maravilhar-me com sua presença e interesse em dar aula com tanto vigor, fazer-se assertiva e ao mesmo tempo cuidadosa, mesmo com todas as suas limitações físicas. Enquanto mulher, percebo que admirar sua postura como discípula do Guruji é ter ainda mais convicção da força e da presença de Geeta junto ao seu próprio pai, dos ensinamentos do yoga e, principalmente, de sua postura inovadora de abrir caminhos para que as mulheres pudessem se apropriar do yoga como sujeitos. Só tive a dimensão da tamanha importância de Geeta em 30 de dezembro de 2018. Fazia poucos dias que ela havia feito a passagem. Era visível no olhar de seus discípulos e dos professores do Instituto que a alma do Iyengar Yoga havia partido. Uma recordação, uma lembrança afetiva que guardo de Geeta na minha memória é que um ano antes de sua passagem fiz uma breve apresentação de berimbau no aniversário do Instituto, e ela estava lá me assistindo e admirando. Trocamos olhares e, por alguns instantes, nos conectamos; senti toda a força de uma mestra pulsando no meu ser. Honro a possibilidade de tê-la conhecido.
Por Camila de Lucca
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eetaji, grande guardiã do Guruji e do yoga. Mulher forte, de olhos penetrantes, sorriso doce e língua afiada, cuja presença cortava todos os egos! Carrego lembranças dela que guardo em um lugar especial. Uma das primeiras vezes que estive em sua presença, durante a aula, Geetaji começou a ensinar a uma pessoa ao meu lado, que estava se recuperando de um acidente de carro, variações interessantíssimas de como fazer vīrāsana. Claro que eu estava prestando a maior atenção no que ela ensinava, com a cabeça virada para o lado, olhando atentamente o que era passado e, antes de terminar, Geetaji olhou com seus olhos faiscantes e disse: - Não é para ficar olhando para os lados e vendo o que se passa com os outros! Você tem que se concentrar em você! Faça o mundo ao seu redor ficar escuro e seu mundo interno claro. Nós estamos sempre fazendo o oposto: colocamos a luz para fora e deixamos escuro dentro!
Foto: Arquivo pessoal
Que ensinamento...
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“Faça o mundo ao seu redor ficar escuro e seu mundo interno claro.”
Outra vez, anos mais tarde, durante um dos estudos do Bhagavad Gīta que Geetaji ministrava no último domingo de cada mês (preciso abrir um parêntesis, pois era incrível o conhecimento que ela tinha do sânscrito; ela traduzia cada palavra), estávamos estudando o Capítulo 5, que fala muito de renúncia. Sempre gostei de ficar bem pertinho dela nessas ocasiões, sentindo a sua presença. Geetaji estava sempre vestida de branco, com um sari simples de algodão e, nesse dia, eu tinha me preparado toda, colocado uma roupa indiana, tomado um banho e passado um creme indiano novo no rosto... Eis que, durante a aula, começou a me dar uma baita coceira no rosto. Me concentrei muito para não ficar o tempo todo coçando, mas, mais rápida do que um relâmpago, Geetaji disse: - Como é que você quer chegar a Krishna se não consegue renunciar nem a uma coceira!? Bingo! Quanta presença e assertividade! Por essas e muitas outras, sentiremos sua falta, querida Geetaji. Que sua luz continue brilhando onde quer que você esteja!
Por Pedro Pessoa
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eetaji segue como uma estrela brilhante e alva em nossa prática. Distante, nesse imenso e misterioso universo, ela nos toca com a sua luz frágil, porém sem oscilar.
- Você acha que eu não estou com dor, sentada aqui ensinando, você acha que eu não tenho problemas? O que você acha que vai melhorar fazendo nas cordas? Eu pedi desculpas e fui me afastando para o meu lugar sem lhe dar as costas. Quando me instalei nas cordas, bastante apreensivo, ela gritou furiosa da plataforma: - Ei, não fique com os braços pendurados! Isso não vai melhorar em nada o seu pescoço. Segure com as mãos as cordas e gire os ombros para tracionar o pescoço. Como você acha que vai sair da sua dor sem fazer nada!? Se você acha que pode vir aqui e fazer como quiser é melhor ficar em casa! Nesse dia fui para casa com muitas questões. Como lidar com a dor? Como a Geeta, cheia de problemas e dores, segue se doando para melhorar a vida dos outros? Qual é o verdadeiro sentido de conforto? No dia seguinte, novamente estava na sala sob os ensinamentos de Geetaji. De repente, ouvi ela gritar da plataforma para aquelas cento e tantas pessoas: - Ei, você do pescoço ruim! Venha aqui. Vamos fazer sālamba sarvāṅgāsana. Sim, era eu! Ela chamou o Raya e a Abhi, que me colocaram de diversas formas, puxando para lá e para cá, enquanto ela explicava o que deveria ser feito e como, até que, após meia hora, aparentemente satisfeita com o que ela queria, disse:
Em uma das vezes que fomos para Pune, depois de uma longa viagem com três crianças, bagagens etc., fiquei com um baita torcicolo.
Foto: Arquivo pessoal
Fui para o Instituto e minha primeira aula foi com Geetaji. No momento do śirṣāsana, me aproximei da plataforma, com o maior respeito, para lhe dizer que iria fazer a postura nas cordas, pois estava com dor no pescoço. Ela olhou para mim e, com os olhos flamejantes, disse:
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Nesse dia eu voltei para casa com o coração cheio de um sentimento de profundo respeito. Uma outra vez, estava acompanhando as aulas médicas e, como a Maria, minha filha, não pode ir nesse dia, fiquei atrás da Geetaji como uma sombra; onde ela ia eu ia atrás. Uma hora ela parou e perguntou: - O que você está fazendo? Não me importa que você esteja aqui, mas você deve aprender a olhar; se quiser continuar me seguindo, olhe as minhas mãos; eu posso ser velha e me mover devagar, mas as minhas mãos ainda são ágeis. Um novo universo se abria, pois mesmo que ela falasse enquanto ajustava, eu tinha meus olhos em suas mãos, além de ver a beleza delas com aqueles dedos finos e longos, que eram frágeis e fortes ao mesmo tempo. Suas mãos pareciam ter uma inteligência própria. Tocavam as pessoas de uma forma muito peculiar. Em geral, ela começava com as pontas de seus dedos que se moviam como se tivessem magnetos buscando o local problemático. Quando achava o local, movia-se de uma forma precisa, às vezes usando as unhas, outras empurrando, puxando, girando, batendo, dependendo da pessoa, do local e do problema. Tempos depois, pude observar essa mesma inteligência em outros de seus alunos mais próximos. Entendi que essa inteligência se desenvolve através da prática e da observação. Geetaji sempre foi extremamente exigente, não apenas com a execução dos āsanas, mas principalmente com a atitude que um aluno deve cultivar. Em uma das últimas aulas em que tive a oportunidade de praticar com ela, era uma sexta-feira, aula de prāṇāyāma; ela falou insistentemente que a vida é um casamento e que temos que escolher com quem iremos nos casar! Ela falou de duas esposas: ou citta se casa com prāṇa ou com vāsanā, a imaginação. Disse que os acontecimentos de nossas vidas irão depender da escolha desse casamento. Ela dizia que a prática do prāṇāyā30
ma esculpe o caráter do sādhaka de dentro para fora. Nesses últimos tempos, mais do que nunca, ouvi ela dizer o quanto deve haver respeito entre aluno e professor e vice e versa. E que a prática do prāṇāyāma é fundamental nessa relação. A Geetaji sempre foi uma inspiração para todos, e continuará a ser, pois estará sempre viva através de nossas lembranças.
Foto: Arquivo pessoal
- Espero que você tenha entendido!
Por Rodrigo Miró de Cordova
C
onheci a Sra. Geeta Iyengar em 2008. Cheguei a Mumbai no dia 29 de novembro desse mesmo ano, apenas três dias após o desastroso atentado terrorista no aeroporto internacional da cidade, que causara muitas mortes e feridos. A tristeza que assolava o país era quase tangível. Sentia-se o clima tenso, e muitas das personalidades famosas e políticos do país mantinham-se escoltadas por guarda-costas. Pune é relativamente perto de Mumbai, a 147 km. A fim de proteger a Sra. Geeta, seus amigos e estudantes do Ramamani Iyengar Memorial Yoga Institute mantinham-se constantemente a seu lado,
À medida em que se passaram os dias, desfezse a atmosfera de tensão, e esse clima de desconfiança foi passando e acalmando-se até que chegou o aniversário do Instituto em 17 de janeiro. A data foi comemorada com um almoço oferecido pela família Iyengar, palestras e apresentações de danças típicas do estado de Maharashtra, além de āsanas feitos por crianças. Foi nesse clima festivo em que tive a oportunidade de aproximar-me da Sra. Geeta. À época, eu não me comunicava com confiança em inglês, mas percebi que ela me entendia, apesar da limitação linguística. Vi que ela me entendia com seus olhos, que percebia minha admiração, reconhecimento e respeito pela yogini que estava diante de mim. O olhar da Sra. Geeta funcionava como se me “escaneasse”. Ela sabia tudo sobre mim: minha mente, corpo e espírito – incluso, sabia as respostas às minhas dúvidas. No decorrer das aulas, percebi, de forma cada vez mais clara, como ela, com sua didática perfeita e seu grande conhecimento, me ajudava e me ensinava. Minha admiração e respeito cresciam a cada aula. Era costume que ela desse, no último domingo do mês, uma palestra sobre algum tema da filosofia do yoga. Ela geralmente comentava algum sūtra e sua explicação era clara e recheada de sabedoria. Ela tinha a capacidade, com sua vasta experiência, de transformar uma frase ou sūtra em pura luz de entendimento. Permaneci por dois meses no Instituto, frequentando a biblioteca, praticando nas aulas e assistindo as aulas médicas. No último domingo em que teria a oportunidade de assistir à sua palestra, cheguei cedo e sentei-me bem na frente, pois sabia que não voltaria a vê-la, ao menos durante aquela viagem. Queria oferecer-lhe algo, mas não sabia exatamente o quê. Queria oferecer-lhe algo em troca de todo aquele
maravilhoso conhecimento que adquiri com ela. Decidi-me por uma oferenda. Assisti à sua palestra, de uma hora e meia, em padmāsana, sem que trocasse o cruzamento das pernas. Após uns trinta minutos comecei a sentir muito desconforto, mas queria vencê-lo e entregar à Sra. Geeta toda minha dedicação. Assim que a palestra terminou, acreditava que não poderia andar, mas esperei que as sensações e os movimentos retornassem. Continua na página 44.
Foto: Arquivo pessoal
formando uma espécie de barreira, principalmente contra pessoas desconhecidas. Isso aconteceu em todos os dias de aula, mas, principalmente, no dia do aniversário de seu pai, o Sr. B. K. S. Iyengar, em 14 de dezembro. Ao presenciar esse comportamento, percebi o quanto era ela amada por seus alunos e discípulos. De fato, eles tinham a mais completa devoção por ela e por sua vida.
Por Nicôle Bartosik
E
stive em Pune em diferentes fases da minha vida. Nessas ocasiões, houve algumas ações e assuntos que Geeta estava ensinando durante o mês ou semana que provocaram mudanças significativas em mim. Tanto pode ter sido a compreensão de uma determinada ação no āsana, que realmente estava sendo consolidada, quanto a verdadeira compreensão do que Geeta falava. Cada uma dessas vezes deu início a oportunidade de mudança para uma nova fase da minha vida. 31
Durante a minha primeira visita ao RIMIY, depois de um intenso momento de mudança de vida que envolveu um divórcio e minha imigração para o Brasil, me sentia um pouco nervosa antes da aula que eu estava prestes a participar. Aquela seria a minha primeira aula com Geeta, e haviam me dito que ela sempre gritava e, frequentemente, estava irritada. Entretanto, no início da aula houveram mais momentos de silêncio que apenas eram interrompidos por ela dizendo: - Adho mukha śvānāsana... (longa pausa silenciosa) ... adho mukha virāsana... (longa pausa silenciosa) adho mukha śvānāsana... (longa pausa silenciosa) ... uttānāsana... adho mukha vṛkṣāsana… E, então, começou: - Algumas pessoas podem vir para o palco (ela disse aumentando o tom de voz) .... Ei, você! Por que você está esperando aí? Por que você não faz o que eu estou dizendo? Venha para o palco e faça! Ei, você de camiseta laranja! O que você está fazendo aqui se você não consegue fazer adho mukha vṛkṣāsana? A “gritaria" havia começado…. A “gritaria” converteu-se numa cachoeira de explicações sobre o que significa ser um professor. Um dos pontos que ela estava enfatizando era o de que nós devemos saber os problemas que uma pessoa pode apresentar, enxergar o que está sendo feito incorretamente para, assim, ajudar e corrigi-lo. Ela disse: - Quando vocês ensinam não há comunicação; vocês mencionam as partes do corpo, mas não olham para elas; seus olhos nem mesmo vão em direção às partes do corpo que são mencionadas! Ela mostrou a realidade atual, abriu meus olhos e me fez compreender o que estava acontecendo e como deveria ser. Então, eu não vivi a experiência da “gritaria” como “gritaria”. Ela simplesmente me sacudiu e, por conta disso, me fez “cair na real”, mas ela também me levantou novamente com seu 32
“Ela mostrou a realidade atual, abriu meus olhos e me fez compreender o que estava acontecendo e como deveria ser.” doce jeito maternal de dizer: - Você compreendeu? O tom da sua voz me perguntando “você compreendeu?”, depois do seu jeito persistente e confrontante de falar, continha o som de pura compaixão pela ignorância em que todos nós vivemos. Admiração, amor e humildade se estabeleceram em mim. Como uma criança inocente, fui a Pune pela primeira vez, mas depois da "sacudida" de Geetaji minha prática evoluiu para a sādhanā e eu havia me tornado mãe pela segunda vez, só que dessa vez de gêmeos. A leitura de Yoga: a Gem for Women, de Geetaji, me permitiu praticar com compreensão, tornando possível carregar os bebês durante os nove meses da gravidez. Minha segunda vez em Pune foi um grande desafio. Eu ainda estava amamentando os bebês que estavam com 17 meses e, inicialmente, estávamos adaptando-nos ao jetlag, ao viajar de um continente para outro. Contudo, o “toque" de Geeta me impulsionava para frente, de forma a sustentar meu caminho. Na terceira visita a Pune, mais uma vez, em outra fase da minha vida, surgiu a oportunidade de ir sem as crianças. Quando entrei na sala, já havia várias pessoas instaladas em seus tapetes. Eu escolhi me posicionar no meio da sala, mais ou menos na terceira fila. Como a primeira fila central ainda estava vazia, os professores do RIMYI, que estão sempre presentes nas aulas de Geetaji, insistiram que avançássemos para preencher os espaços vazios. Como eu havia me posicionado bem no meio da fila, seria eu que, sem dúvida, iria praticar aos pés de
Puxei meu tapete para a frente e lá estava eu, em baddha hasta uttānāsana bem perto dos seus pés. Em adho mukha śvanāsana, olhava para os seus pés enquanto empurrava a coluna torácica para dentro.... Ela “gritava”: - PUSH, PUSH, PUSH.
Foto: Arquivo pessoal
Geetaji…
Ela ordenou que ficássemos em tadāsana e continuava a instruir-nos a “mover” a torácica para dentro. Então ela disse: - Ūrdhva hastāsana! Foi quando, de repente, enquanto ela gritava para o resto da sala, eu a escutei sussurrar com uma voz muito suave e doce: - Coloque os seus braços atrás das orelhas. E gritava novamente para o resto da sala algo que precisava ser corrigido. Eu busquei seus olhos, porque tinha uma dúvida: eu realmente havia escutado aquilo? Estaria ela falando comigo? Ela percebeu a expressão duvidosa do meu rosto e enquanto se dirigia em voz alta para os demais, ela repetiu as mesmas palavras, sussurrando, docemente, mas de forma mais clara e um pouco mais insistente: - Coloque os seus braços atrás das orelhas. E virou-se novamente para os meus colegas, conferindo pelo canto do olho se eu estava fazendo o que tão suavemente havia me dito para fazer. Foi a forma com que ela disse aquilo, o tom da sua voz, juntamente com o seu olhar penetrante e o amor maternal que ela me transmitiu que levaram meus braços a se mover para trás, algo que eu, até aquele momento, nunca havia conseguido fazer. Eu experimentei uma nova compreensão dos meus ombros naquele momento de intimidade que tive com ela. Esse novo entendimento me permitiu entrar numa nova fase da minha prática e da minha vida. Continua na página 44.
Por Fernando Sanchez Lynn
N
ão foram muitas as vezes que interagi com nossa querida Geetaji, mas com certeza cada oportunidade deixou uma impressão forte marcada em meu coração. A primeira vez que a vi foi em maio de 2002, no tour europeu que ela fez. Naquela época, estava fazendo o Curso de Formação de Professores no Instituto de Iyengar Yoga de Amsterdã, portanto foi algo muito especial ter a visita dela naquele momento. Só o fato de saber que iria encontrá-la inspirou-me a praticar mais e, assim, aprimorar minha prática para honrá-la. Nesta primeira vez em que tive aula com ela, ficou registrada de forma indelével a importância das ações básicas e do domínio de tais ações nos āsanas simples do programa para iniciantes. A ênfase não era tanto nos āsanas, quanto nas ações! Por exemplo: as ações do braço de ūrdhva hastāsana e ūrdhva baddhānguliyāsana deveriam ser verificadas no braço de utthita pārśvakoṇāsana e até de ūrdhva dhanurāsana! O que mais me assombrou do seu ensino foi a habilidade para conseguir a permanência dos alunos nos āsanas. A sequência de instruções, as palavras e o ritmo da voz dela faziam você ficar e ficar nos āsanas com maior percepção, controle e estabilidade de forma 33
direta e sem tanto esforço.
- O QUE É QUE VOCÊ ESTÁ FAZENDO???
A seguinte vez em que a vi foi em dezembro de 2006, quando fui pela primeira vez ao RIMYI. O primeiro contato com ela foi no salão de prática principal. O encontro foi bem casual, inocente e próximo. Como era a primeira vez que praticava na sala principal, após a aula de Prashantji, decidi ficar afastado do local onde Guruji costumava praticar para ficar próximo da entrada perto da estátua de Patañjali, sem saber que em poucos momentos iria ter uma grande surpresa. A minha prática acontecia de frente para o palco central e de costas para o janelão e foi entre uma mudança de āsanas que virei para trás e a vi em pé junto a mim. Ela tinha acabado de entrar no salão e estava se preparando para começar a sua prática. Fiquei um pouco perplexo, pois tinha tanta admiração e respeito por ela que, na simplicidade de seu cotidiano, estava tirando a saia e arrumando o seu tapete com o pé. Enquanto seus assistentes começavam a arrumar seu material de prática, eu ofereci minha ajuda para guardar a sua saia. Ela me agradeceu com um sorriso que encheu meu coração.
Ocorreu que um aluno tinha decidido ir até o chão. Então, ela deu uma palestra filosófica por 15 ou 20 minutos sobre a falta de atenção e asmitā (ego). Depois disso, a aula continuou normalmente, porém com um compromisso maior dos alunos.
Durante essa semana aconteceu a minha primeira aula regular com ela. A impressão foi completamente diferente daquela última vez do tour europeu. Na sua “casa” o nível de prática e exigência era maior! Realmente, devíamos estar 100% alerta durante o tempo todo da aula. Esse era o calibre do seu ensino. E o mais notável era que ninguém fugia à sua percepção. Naquela época, ela ainda andava durante a aula e percorria todo o salão bem ligeiro olhando para cada uma das pessoas, que às vezes chegavam ao número de 100! Ainda lembro muito bem quando mandou fazer a preparação de kapotāsana. Ela instruiu-nos a fazer uṣṭrāsana de costas contra a parede e depois pediu para estender os braços acima da cabeça e tocar a parede de modo que os braços ficassem paralelos ao chão e NÃO mais baixos do que o nível do quadril. Enquanto todo o grupo, de 80 pessoas aproximadamente, estava fazendo a postura, enquanto ela andava e observava, de repente, se escutou um forte grito que silenciou todo o salão: 34
Durante as aulas ela sempre ficava preocupada com a falta de dedicação das pessoas e recorrentemente se perguntava como era possível que apesar de explicarem tudo de forma tão detalhada nos cursos e de escreverem tantos livros bem claros sobre o método e a execução dos āsanas, as pessoas não faziam sua prática de forma apropriada. Então, ela questionava a linhagem (paraṁparā), ou seja, qual era a conexão de tal aluno com o RIMYI, porque a tradição de mestre/discípulo para a transmissão do conhecimento deve preservar a pureza dos ensinamentos vivenciados pelo mestre através da vivência fiel de tais ensinamentos, em conteúdo e forma, e não apenas executar a prática de maneira casual, supérflua ou intelectual, contrariando os fundamentos da escola. Assim, quando alguma pessoa ficava desatenta durante a aula, ficava sem seguir as instruções, ou fazia errado por falta de entendimento ela imediatamente perguntava pelo professor dessa pessoa. Dessa maneira, através da prática das pessoas, é que sabia sobre o desenvolvimento do método no país delas e nas diferentes partes do mundo! Continua na página 44.
Por Deborah Weinberg
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stava eu em aula com a Geeta, em uma das primeiras vezes que fui à Pune, quando ainda não era costume chamá-la de Geetaji. Fiel a seu pai, ela era muito exigente, incisiva e séria, e eu, que sentia um temor reverencial por ela, me dedicava ao máximo em “acertar” as posturas – e em não chamar a atenção, diga-se de passagem. Em determinado momento, escutamos sua firme voz de comando: "Tadāsana". Eu me esforcei ao máximo para apresentar a melhor postura, integrar todas as ações e me concentrar. Ela chegou bem na minha frente e ordenou, em voz alta e firme: "RELAX". Eu nem consegui entender. Então ela começou a batucar no meu esterno até que ele cedesse, e depois na minha barriga, repetindo: "RELAX, RELAX". Quando finalmente tudo relaxou dentro de mim, ela me olhou com um sorriso furtivo e um olhar tão terno que, de meu temor reverencial, restou apenas um amor reverencial.
G
eeta S. Iyengar, Geetaji, como ela é carinhosamente chamada pelos residentes de Pune, traz muitas coisas à nossa mente. A primeira e mais importante yogini do mais alto nível (sobre a qual uma pessoa do nível júnior como eu evitará falar), uma professora de altíssimo calibre, a última e a mais proeminente, que abre o caminho entre alunos como eu e o primeiro e único Guruji. Este empenho em escrever um tributo a ela ficará limitado aos seus dois últimos papéis mencionados. Quando Cyntia, minha esposa, me pediu para escrever este depoimento para a Associação Brasileira de Iyengar Yoga para prestar uma homenagem a Geetaji, dei-me conta que referir-me a ela usando o pretérito é muito triste e deprimente. Como a conheci é uma história fascinante. Conheci primeiro a voz dela e depois ela. Até então, eu nunca a tinha visto pessoalmente, embora tivesse ouvido muito sobre ela. Em um dia de junho de 2006, no início do ano letivo no Instituto em Pune, quando comecei a frequentar as aulas intermediárias nível 1 no salão superior, ouvi uma voz afiada e forte e algumas instruções precisas estavam sendo dadas a alguns alunos, mas eu não podia vê-la. A voz vinha de uma aula médica, a qual estava sendo ministrada às quartas-feiras à noite. Isso despertou em mim uma grande curiosidade e, em uma das semanas seguintes, vi uma senhora vestindo uma camiseta
Foto: Arquivo pessoal
Foto: Arquivo pessoal
Por Harish Deshpande
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branca e shorts verde sentada em uma cadeira que havia sido colocada junto à escada. Ela estava guiando um paciente, porém desta vez sua voz estava cheia de compaixão e empatia. Eu fiquei completamente maravilhado. Nos próximos dias e semanas desenvolvi o hábito de chegar cedo para observá-la. Devo confessar que nunca entendia o que ela dizia detalhadamente, pois eu era novato. Porém o que ficou em mim foi a voz dela, as suas instruções, sua paixão e domínio pelo nosso assunto. Foi somente então que decidi que queria aprender com ela. A chance de observar a sua aula veio a mim nos próximos dias. Mas chegou na forma de um DVD. Acontece que minha amiga Cyntia, hoje minha esposa, começou a frequentar as aulas para mulheres que ela ministrava. Tive acesso a um DVD que ela havia comprado, o qual era de uma aula de posturas em pé. Foi impressionante. Foi a minha introdução a ela como professora. Além disso, Cyntia costumava falar sobre ela e muito sobre suas aulas. Isso aumentou a minha curiosidade.
tornou-se a ponte entre Guruji e diversos alunos como eu. Ela interpretou a obra de Guruji para nós. Isso ficou muito claro através de seus ensinamentos, livros e palestras. Seus livros em marati e em inglês são um grande exemplo disso. Uma vez que você lê os livros, imediatamente entende a interpretação da obra dele de forma muito lúcida.
Até então eu ainda não a conhecia pessoalmente. Mas um belo dia isso mudou quando Cyntia e eu decidimos nos casar. Cyntia pensou que Geetaji deveria ser a primeira pessoa no Instituto a saber desta união. Ela tinha a lógica dela sobre isso, então escreveu para ela e pediu que eu lhe entregasse esta carta. Eu levei a carta e ela estava sentada em sua cadeira na sala do meio escrevendo. Entrei, entreguei-lhe a carta e prostrei-me diante dela. Ela leu a carta e eu vi seus olhos penetrantes e sorridentes quando finalizou a carta. Pude perceber que ela estava feliz e abençoou-me. Este foi meu primeiro e único encontro com Geetaji. Foi um tanto diferente, pois a maioria das pessoas a encontra em aula como seu aluno. Foi um pouco engraçado para mim, porém eu estava muito feliz e extasiado.
Continua na página 46.
Para alguém como eu que era completamente novo ao assunto, Geetaji foi a primeira e a melhor razão para sentir-me atraído pelo tema Yog. Foi ela quem despertou em meu cérebro a curiosidade desde o dia em que ouvi a sua voz. Sou um aluno de Iyengar Yoga que nunca estudou sob a tutela de Guruji e Geetaji 36
Mais tarde, após um ou dois anos, comecei a frequentar as suas aulas. Eu estava muito feliz. Nesse meio tempo, ela deu-me uma oportunidade de observar a sua aula de sábado e eu costumava prestar alguma ajuda também. Suas aulas eram sempre precisas e focadas; eram muito informativas e inteligentes também. Sua paixão e amor pelo nosso assunto e reverencia pelo Guruji eram nitidamente visíveis. Mas o que eu me lembro vividamente são seus olhos de águia; ela tinha essa visão mágica para perceber o menor movimento de uma longa distância. Sua empatia pela pessoa que estava sofrendo também era sempre visível.
Foto: Arquivo pessoal
direção sobre como prosseguir.
Por Cyntia Carvalho
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o ano de 2008, cheguei pela segunda vez ao Instituto para participar das aulas intermediárias no salão superior. Ao final de uma aula, consegui me dirigir a Abhijata para falar sobre um desconforto muito grande na parte inferior do meu abdômen/região das virilhas, que só melhorava após as invertidas. Ela me disse que falaria com Geetaji e depois me informaria. Passados alguns dias, durante a prática pessoal no salão principal, enquanto fazia supta pādāṅguṣṭāsana lateral, fui surpreendida por ouvir Geetaji chamar por meu nome. Foi um susto! Meu coração batia rápido.... Ela me perguntou qual era o meu problema e falei sobre meu abdômen. Ela disse para que eu voltasse para o supta pādāṅguṣṭāsana que eu já fazia e que a almofada lateral que eu havia colocado não estava fazendo muito efeito e, assim, a partir de um novo suporte com um rolo feito com o próprio tapete colocado próximo a região do quadril/coxa, me conduziu a estender a virilha de maneira que tive o alívio necessário à região. Em seguida, me disse para fazer supta koṇāsana com o topo das coxas apoiado no cavalo. Saí da prática extremamente agradecida pela oportunidade que havia recebido e que me deu uma importante
No ano seguinte, participei pela primeira vez das aulas com Geetaji no salão principal. Foi transformador. Nunca me senti tão internalizada, atenta e quieta, graças a sua forte presença e condução clara e precisa. Foram aulas definitivas para que eu pudesse perceber que a tensão que estava desenvolvendo era por conta da pressão exagerada ao compactar as pernas e não conseguir fazer a elevação e dar o espaço suficiente na área abdominal. Foi um grande alívio praticar posturas como uttānāsana, adho mukha śvanāsana e paścimottānāsana com as pernas na distância do tapete. Entendi o que era espalhar ou alargar o abdômen horizontalmente e o quanto isto me influenciava fisicamente, mentalmente e emocionalmente. A partir daí, minha relação com meu abdômen mudou completamente. Percebi que preciso do espaço horizontal e da elevação vertical. No livro A Árvore do Ioga, Guruji fala que a postura deve ser repensada e reajustada para que os vários membros e segmentos corporais sejam posicionados em seus devidos lugares na ordem certa e a sensação seja de descanso e apaziguamento. A partir de Geetaji, pude perceber como me dirigir com mais qualidade na execução da postura. Graças a esse processo, em junho de 2011, durante um novo período de aulas com Geetaji, senti que não deveria ir muito adiante em paścimottānāsana e, sim, precisaria ficar com a coluna mais erguida e côncava na região torácica, pois havia “algo” ou “alguém” na parte inferior do meu abdômen. Senti que eu poderia estar grávida. E era isso mesmo! Eu estava bem no início de uma gravidez. Foi benção redobrada perceber esse presente durante a aula de Geetaji. Harish e eu já havíamos comunicado à Geetaji sobre o nosso relacionamento e casamento. Uma relação entre um estudante local e uma estudante estrangeira ainda é motivo de muita surpresa e curiosidade e então sabia que deveríamos ir na direção dela antes de qualquer pessoa. 37
Pratiquei nas aulas médicas até a 25ª semana e, depois, voltei ao Brasil. Quando nosso filho Arjun estava com 7 meses, retornamos ao Instituto para apresentá-lo à Geetaji. Ficamos muito felizes com o encontro. Harish estava segurando o Arjun dentro de um canguru, aquelas mochilinhas de carregar o bebê. Geetaji disse-nos que as pernas penduradas daquele jeito não era bom para ele, mas que devia-se segurar as pernas na direção do quadril. Pelo que entendemos, deixamos de usar o canguru e passamos a usar apenas o sling de tecido, dando mais suporte para a parte de trás das pernas, que assim não ficariam penduradas. Falei para Geetaji o quanto minha rotina tinha mudado e o quanto estava cansada. Ela disponibilizou seu tempo e seus ouvidos para me ouvir. Conto isso, pois muitas vezes ao nos referirmos a Geetaji, falamos sobre suas aulas firmes e precisas e até mesmo sobre seus gritos. Sim, ela ensinou-nos a não desperdiçar seu tempo e tão pouco o nosso tempo com comportamentos que não nos conduzem na direção de uma mente yóguica. Lendo uma Revista Yoga Rahasya (Vol. 24, No.3, 2017), ela fala sobre como equilibrar trabalho, família e prática e o quanto esta pergunta chegava até ela. Eu fui uma destas. Mas tenho aprendido com o tempo a me organizar juntamente com minha família e compreender como todos podemos ganhar se cada um fizer sua tarefa. Foi muito triste receber a notícia de que Geetaji havia nos deixado. Mas assim teve que ser e temos que aceitar. Ela desempenhou todas as suas funções de forma honesta, excepcional e brilhante e já dava-nos sinais de que estava cansada e concluindo seu trabalho. É uma grande falta. Meu contato com Geetaji não foi longo, mas tenho dentro de mim a energia luminosa que guia meus passos. Recorro a seus livros, textos e aulas com frequência para manter a direção correta no processo. Me inclino diante de Geetaji e sigo com coragem e determinação, mesmo diante das adversidades. Porque vale muito a pena! 38
ANUNCIE AQUI! 10,5cm x 14,8cm
Contato: comunicacao@iyengar.com.br
Foto: Copyright RIMYI, Pune, Photograph by Shael Sharma
LUZ SOBRE CITTA
Tradução: Régis Mikail Abud Filho Revisão: Karla Vasconcellos
Bhakti como Objetivo da Atitude Mental Ao comentar sobre os papéis do yoga da ação na atenuação das aflições e na conquista do samādhi, e sobre a percepção da distinção entre a mente e a alma na cessação do pensamento em relação a natureza do Ser na brochura Mobility in Stability (Mobilidade na Estabilidade, sem tradução para o português), Geeta Iyengar esmiúça os desdobramentos de citta para explicar a estabilidade no pensamento e as intenções que precedem as ações. E conclui dizendo que, quando estas são executadas de maneira consciente, a estabilidade e a mobilidade compõem o caminho da autocorreção no yoga e a atitude de devoção (bhakti)
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No segundo pāda, com referência a kriyā yoga (yoga da ação), Patãnjali diz: samādhi bhāvanārthaḥ kleśa tanū karaṇārthaśca (II.2) A prática de yoga reduz as aflições fazendo com que se possa conceber a ideia de samādhi, a sensação de samādhi. O indivíduo poderá não alcançar samādhi subitamente, mas uma inteligência emocional madura deve ser adquirida e concebida. Mais tarde, quando discute yama e niyama, ele diz: vitarkabādhane pratipakṣabhāvanam (II.33) Os pensamentos contrários aos princípios de yama e niyama devem ser rebatidos com o conhecimento do discernimento. O mundo externo, as questões terrenas, as pessoas ao nosso redor e o nosso ambiente influencia-nos em todos os níveis. Dentre outros, esses fatores refletem o comportamento, caráter, trabalho e reflexão do indivíduo. Sob a influência do desejo, raiva, ganância, paixão, orgulho e ciúme, o indivíduo perde o equilíbrio físico, mental, emocional e intelectual. Neste estado desequilibrado, o indivíduo perde o controle de si. O pensamento dá errado, então a ação dá errada. Aqui, então, o indivíduo precisa da inteligência do cérebro e da sabedoria do coração. Isso é bhāvanam. Finalmente, no quarto pāda, ele indica como você deve se livrar do apego emocional: viśeṣadarśinaḥ ātmabhāva bhāvanānivṛttiḥ (IV. 25) Para aquele que percebe a distinção entre citta [consciência, composta por três aspectos: manas (mente), buddhi (inteligência) e ahaṁkara (ego)] e ātmā (alma, si mesmo, puruṣa, aquele que vê), a razão da separação entre ambos desaparece. O ātmabhāva (a existência da alma) é também uma sensação. Apegamo-nos com facilidade, muito naturalmente. De fato, ātmabhāva deveria estar na alma, mas infelizmente ātmabhāva se encontra em anātman (não alma). Todos os apegos são externos e, por isso, o ātman (sinônimo de ātmā) é esquecido, negligenciado. É uma sabedoria virtuosa remover esses apegos e direcioná-los à alma. A ātmabhāvanā (a manifestação da alma) em “anātma” é a indesejada bhāvanā (manifestação), ao passo que ātmabhāvanā em ātma é a emoção desejada. É um apego puramente emocional. As palavras escolhidas, tais como arthabhāvanam (contemplação do significado), pratipakṣabhāvanam (cultivo do oposto; ir contra os sentimentos, tendências e pensamentos errados), samādhibhāvanam (percepção do samādhi) e ātmabhāvābhāvanam (percepção da existência da alma) são muito significativas expressando o processo de busca da estabilidade emocional com esforços dinâmicos e maturidade intelectual. Conforme eu disse anteriormente, os esforços indicam mobilidade e a maturidade indica estabilidade. Embora esses sūtras apareçam em pādas distintos, há uma sequência. Vamos examiná-la.
“Os esforços indicam mobilidade e a maturidade indica estabilidade.” 40
A natureza humana é como um depósito de pensamentos bons, ruins, maldosos, justos, injustos, puros, impuros, auspiciosos e não auspiciosos. Se os pensamentos são corrigidos, as ações são corretas. Os pensamentos vêm primeiro e, então, a ação ocorre. Portanto, é preciso que se corrija a reflexão. Antes de agir, o pensamento por trás da ação deve ser verificado. A intenção por trás da ação tem um papel fundamental. A ação pode ser boa, mas a intenção por trás da ação pode estar errada. Assim sendo, a intenção deve ser corrigida. A mente deve ser modificada cuidadosamete. Isso é pratipakṣa bhāvanam. Se eu fizer mal a alguém, outra pessoa me fará mal. Qual será o estado da minha mente se eu tiver machucado? Por que eu deveria machucar alguém? Minha motivação egoísta está me levando a fazer mal a alguém? Essas são as questões envolvidas em pratipakṣa bhāvanam. Isso permite que se faça um autoquestionamento e deliberações mentais, conduzindo o indivíduo ao caminho certo. Portanto, pratipakṣa bhāvanam é primordial, pois corrige o karma (ação). Em seguida vem samādhi bhāvanam, se o caminho yóguico for adotado para corrigir a si mesmo. É preciso entender que se pratica yoga para atingir samādhi, embora esse não possa ser alcançado de imediato. Portanto, a intenção de chegar ao samādhi deve ser concebida. Deve-se anunciar a meta final da vida. Isso conduz a jñāna (conhecimento). A partir desse ponto, deve-se proceder rumo a arthabhāvanam. Em conexão com Īśvara praṇidhāna (entrega de todas as ações a Deus, devoção ao Senhor) e japa sādhanā (prática contínua, repetida), Patañjali traz o seguinte sūtra: tajjpaḥ tadartha bhāvanam (I.28) Você deveria ter devoção em sua mente, bhakti (devoção, amor) em relação a Deus. O coração é o depósito da devoção. Se você tem que entregar-se ao Senhor, a Deus, a Īśvara, faça o japa (repetição) do āuṁ; conheça o significado do āuṁ. E, então, você deve guardar o conceito de āuṁ no seu coração como um bhāvanā. Patañjali não diz que estabilidade emocional significa eliminar as emoções que o perturbam ou fazem emergir as emoções que não o perturbam. Não é um nível zerado de emoções. Pelo contrário, ele pede que você dirija a sua energia emocional, seu poder e sua força àquela entidade eterna que é permanente e pura, que lhe dá alegria permanente. Estas emoções precisam ser nutridas para que floresçam. Isso é bhakti.
“O coração é o depósito da devoção.”
(N.T.). As seguintes fontes foram utilizadas para a pesquisa dos significados dos termos que aqui aparecem em sânscrito: 1. Core of the Yoga Sutras. B.K.S. Iyengar (2013) 2. Light on Prāņāyāma. B.K.S. Iyengar (1993) 3. Apte – The Sanskrit English Dictionary – http://dsal.uchicago.edu/dictionaries/apte/ 4. Monier Williams – Sanskrit-English Dictionary – https://www.sanskrit-lexicon.uni-koeln.de/scans/MWScan/tamil/index.html 5. https://www.estudesanscrito.com.br/dicionario-sanscrito/
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CANTINHO DO ASSOCIADO Pensando em fortalecer cada vez mais a comunidade Brasileira de Iyengar Yoga, a ABIY firmou parcerias com diversos eventos ao longo de 2019 para oferecer-lhes descontos especiais como associados. Para aproveitar este benefício, você deve estar em dia em relação as suas obrigações para com a ABIY. Caso não esteja, regularize já a sua situação enviando um e-mail para tesouraria@iyengar.com.br e desfrute destes excelentes eventos nacionais e internacionais com desconto de 10% e 15%, respectivamente. Veja os flyers dos eventos nessa seção, programe seus estudos e aproveite essa vantagem que a ABIY oferece a você que pertence a esta comunidade que cresce cada vez mais!
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Continuação do depoimento de Rodrigo Miró de Cordova (p.30) Alegrei-me com meu pequeno esforço, embora ele fosse irrisório perto daquele que havia sido empreendido pela Sra. Geeta. Sua vida foi inteiramente dedicada aos seus estudantes, à prática de yoga, à cura e ao bem-estar de todos aqueles que frequentavam o Instituto. Sei que o que pude oferecer a ela foi muito pouco... Mas me alegro em saber que ofereci algo meu, do meu corpo, do meu ser, do meu caminho no yoga. A Sra. Geeta morará sempre no lado esquerdo do meu peito. Sinto por ela o mais profundo agradecimento, por todas as aulas que tive a sorte de fazer e de assistir durante minhas idas à Pune. Entre tantos aprendizados, tenho especial lembrança de uma de suas aulas sobre anuloma e pratiloma. Sua genialidade ao ministrá-la marcou toda a minha prática de prāṇāyāmas. Ela explicou que estes são um controle da respiração que, além de erradicar todas as enfermidades, tornam o corpo mais ágil, trazendo paz mental e serenidade ao sistema nervoso. A prática de prāṇāyāmas proporciona ao discípulo um duplo benefício: bhakti sādhanā e japa sādhanā. Esta é a prática de respiração que, como um mantra, repete as sílabas sagradas hamsaḥ. Ham significa eu, saḥ significa ele. Juntas significam eu sou ele. A alma individual repete constantemente esse “mantra” por meio da respiração. Na expiração ham, na inspiração saḥ. Essa repetição, como uma oração inconsciente, que se repete a vida inteira, chama-se ajapahamsa vidya: o conhecimento da oração inconsciente. Durante o bhakti sādhanā, o discípulo entra em contato com a energia cósmica 44
e com o si mesmo na inspiração; e, na expiração, entrega o si mesmo individual ao si mesmo universal. Esses conhecimentos, do bhakti sādhanā e do japa sādhanā, transformaram minha prática em uma prática mais rica, profunda e espiritual, conectando-me com o prāṇa e com o Universo. Conferiu, também, ao prāṇāyāma, um significado mais abrangente. Agradeço, do mais profundo do meu ser, pela oportunidade que tive de conhecer essa pessoa ímpar, esse ser iluminado, que irradiou tanta luz no meu caminho do yoga e, tenho certeza, também no caminho de muitas outras pessoas. Continuação do depoimento de Nicôle Bartosik (p.31) No ano passado, em julho de 2018, os praticantes brasileiros tiveram o privilégio de participar de um curso de dez dias com tradução simultânea no RIMYI. Nós permanecemos por lá por um mês, mas aqueles dez dias nos tiraram do ritmo diário de Pune como nós o conhecíamos. As aulas matinais do Instituto, ministradas exclusivamente para mulheres às quarta-feiras, foram realocadas para o Vardhaman Hall, onde os visitantes regulares daquele mês se juntaram a nós. Nessa ocasião, em um determinado momento, Geetaji colocou os professores do nosso grupo (entre oito e nove pessoas) na frente e o restante das pessoas (aproximadamente cem) sentadas em upaviṣṭa koṇāsana. Geeta, obviamente, pediu-me para fazer ūrdhva hastāsana. Ela me disse: - Abra o peito. Aquelas palavras, que podem ter soado de uma maneira simples, atuaram como uma força
energética na minha coluna torácica, empurrando-a para frente para um lugar onde ela nunca antes havia estado. Ela a reposicionou, e eu testemunhei internamente. Pela primeira vez eu realmente senti meu peito e que ele estava se abrindo. Um acontecimento significativo que me permitiu realmente experimentar o movimento das minhas costelas posteriores. Entrei novamente em outra fase da minha vida, a pré-menopausa, com Geetaji me presenteando com uma mão de apoio nas costas, que até hoje eu posso sentir. Fui abençoada por ter estado na presença de uma mestra que, através do conhecimento de Patañjali, do conhecimento de seu pai, seu guru, e do conhecimento obtido através de sua própria sādhanā, transmitiu um legado para a humanidade, mais especificamente para as mulheres. Agradeço-lhe, Geeta, por transmitir tudo isso, por explicar tudo isso. Está claro para mim. O único que eu preciso fazer é praticar (tudo isso) ... É simples assim.
Continuação do depoimento de Fernando Sanchez Lynn (p.33) Nas aulas médicas era realmente um deleite vê-la “auscultar” os novos pacientes. O primeiro encontro do aluno/paciente era literalmente uma consulta ao médico. Os assistentes instalavam um escritório para ela e sua assistente pessoal. Os novos alunos faziam uma fila. Uma por vez, as pessoas se sentavam na frente dela e relatavam com detalhe tudo o que sentiam e ela perguntava sobre as atividades cotidianas relacionadas à doença, lesão ou mal-estar.
Logo pedia para a pessoa fazer tāḍāsana e algum outro āsana. Assim, a partir da observação de umas poucas posturas ela já identificava os desequilíbrios físicos, fisiológicos e mentais, bem como as zonas fracas do corpo, e reconhecia tanto os motivos das doenças, que surgiam das perguntas, como a sequência necessária para corrigir os desequilíbrios e fraquezas e fortalecer o organismo para a cura/correção do paciente. Era realmente uma delícia ficar próximo observando a mestra tratando as pessoas através da arte, ciência e filosofia do yoga. Aprendia-se muito! O profundo conhecimento do corpo e da mente humanos que possuía para desenvolver a inteligência e a consciência do indivíduo era evidente e fluía nela. E, precisamente, essa é a maneira que ela sempre enfatizou para aprender a arte de transmitir o yoga: ficar, como aprendiz, próximo do mestre observando o seu trabalho. Os últimos três encontros com ela foram muito significativos para mim. O primeiro desses três foi na ocasião da reunião internacional de associações organizada por Geetaji e Prashantji para tratar sobre o tema dos cursos de formação e o processo de certificação nos diferentes países do mundo. Representando a ABIY, fomos Deborah Weinberg, Pedro Pessoa e eu. Foi uma experiência incrível vivenciar a magnitude da obra de nosso Guruji, seu pai, através do relato dos membros de cada associação. E o que foi realmente admirável foi vivenciar o compromisso de nossa querida Geetaji para preservar a pureza do método desenvolvido por seu pai ao longo de 80 anos de prática. Incitou-nos, a comunidade mundial de Iyengar Yoga, a ser honestos em nossa sādhanā, a parar
com discussões negativas surgidas de interesses pessoais e ser fiéis aos ensinamentos de Patañjali para o desenvolvimento da consciência humana através da experiência e realização de nosso guru. Jamais esquecerei a aula pessoal de trikoṇāsana que me deu no seguinte encontro com ela, na frente de todos os praticantes estrangeiros que estavam no RIMYI. Acontece que após a mencionada reunião ela começou a promover encontros, palestras e debates com os praticantes estrangeiros do método e também com dirigentes de associações, para esclarecer a posição e compartilhar a visão do RIMYI a respeito de como divulgar o método e formar professores. Então, em fevereiro de 2017, os praticantes estrangeiros foram convidados a participar de uma reunião com a Dra. Geeta Iyengar. Ela começou falando da evolução da prática de Guruji e como o ensino dele evoluiu devido à profundidade da experiência da prática. O ensino deve estar baseado na prática e para evoluir na prática é preciso se auto-observar, sentir, perceber e corrigir os desequilíbrios. O progresso não acontece fazendo ações de forma mecânica, ela dizia. Portanto, durante o ensino, as instruções devem surgir da observação das necessidades do aluno. Para exemplificar chamou alguém para demonstrar utthita trikoṇāsana diante dela. Levantei a mão e fui lá. A vivência do seu ensino me marcou profundamente. Fui testemunha da profundidade do seu olhar. Ela soube de problemas estruturais do meu corpo pela simples observação do meu trikoṇāsana. Em 5 minutos, indicou as ações necessárias para aliviar e curar os desequilíbrios que tinha no quadril há anos e, assim, conse-
gui executar trikoṇāsana e permanecer na postura com um vigor renovado nunca vivenciado até então. Ela continuou a palestra a partir da conclusão de que a observação, a experiência subjetiva e a compreensão objetiva do tema são indispensáveis na hora de transmitir uma instrução. Ela falava sobre observar a simetria do corpo das pessoas em cada postura e trabalhar em função da harmonia dos lados, da administração justa das energias e da intenção apropriada para alcançar o equilíbrio da dualidade. A seguinte e última vez em que a vi foi no ano passado quando tive a honra de traduzir o seu ensino para o grupo de brasileiros e portugueses que foram a Pune para celebrar o centenário de nosso Guruji. Como tradutor experiente da ABIY, foi a maior exigência que eu já tive devido à rapidez e profundidade de suas instruções e conceitos. A capacidade de dar resposta a qualquer situação expressava a profundidade de sua experiência. Jamais tinha estado tão perto de uma mestra realizada e interagir com ela foi uma benção! Embora ela não tivesse filhos, sabia muito bem o que era ser uma mãe, já que tratava todos nós como seus próprios filhos. As suas aulas eram SEMPRE esclarecedoras. Transmitia-nos o conhecimento de maneira simples, mas exigente, muitas vezes com rigor, mas sempre com a compaixão de uma mãe para que seus filhos fossem bem educados e corretos, conforme as escrituras. Ela sempre se baseava nos Yoga Sūtras de Patañjali ou no Bhagavad Gītā conforme a visão e a experiência de seu pai. O respeito e o amor pela obra dele fizeram com que sua missão fosse a de preservar e proteger a pureza do 45
método desenvolvido por nosso guru. Ela sempre dizia: - Sou simples por escolha; não gosto de cosméticos nem de aparências. Devido a isso, muitas vezes, não compreendia o comportamento das mulheres em relação a seus corpos e a contracepção e irritavase muito quando a mulher não conhecia seus ciclos ou não sabia se cuidar. Contudo, sempre estava disposta a ajudar qualquer pessoa. Sua compaixão era tão grande que até nas aulas para mulheres ela permitia homens! E fazia questão que os homens ficassem a par dos ciclos e particularidades ginecológicas das mulheres já que todos nós saímos de dentro de uma mulher, dizia ela. Finalmente, a maneira como partiu é um claro exemplo da qualidade de realização espiritual que ela tinha. As pessoas que frequentavam Pune sabiam que a condição da sua saúde estava debilitando-se. Nos últimos anos ela costumava escolher os momentos para dar aula e se preparava para os grandes eventos. Como principal defensora da metodologia desenvolvida por seu pai para a prática do yoga, se propôs chegar forte e plena à celebração do centésimo aniversário de seu guru. O último Yogānuśāsanam foi uma verdadeira lição de vida para qualquer calibre de praticante. Durante o curso, várias vezes mencionou a morte como se estivesse avisando que a sua missão no mundo estivesse próxima do fim. Prostro-me diante de ti, amadíssima Geetaji. Tua obra ficará para sempre no coração de todos os sinceros praticantes de Iyengar Yoga. Namaskar!
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Continuação do depoimento de Harish Deshpande (p.35) Muitos de nós falamos sobre seus gritos, pois ela nunca tolerou meias medidas. Sua insistência era para que aprendêssemos o assunto da forma correta e com foco de atenção. Para ela o assunto Yog e o respeito por Guruji eram de prima importância e ela tinha esta mesma expectativa sobre todos nós. No final da aula, os alunos costumavam carregar consigo uma imensa quantidade de conhecimento e felicidade, como se as aulas fossem concebidas para eliminar os nossos problemas. Nunca vi ninguém sair da aula triste ou sombrio, mesmo as aulas sendo difíceis, físicas mas também intelectuais. Para ela, Luz sobre o Yoga de Guruji era sua bíblia sagrada, seu alcorão sagrado. E eu tive uma experiência pessoal em relação a isso. Percebi que, durante a tradução de Luz sobre o Yoga para marati, o editor havia esquecido de colocar uma imagem de sarvāṅgāsana, e eu apontei isso para Sunitaji. Geetaji, que estava sentada ao lado dela, curtiu e disse jocosamente que ela estava feliz em saber que algumas pessoas estavam lendo e estudando o livro. Vindo dela, este comentário me fez feliz e humilde. Humilde porque como ela não está mais entre nós eu preciso prestar mais atenção ao assunto e entendê-lo à sua maneira. A sua passagem criou um enorme vazio para todos nós e eu não sou uma exceção. Agora existem muito poucas pessoas que nos guiarão neste caminho do yoga, mostrando as complexidades do Guruji, mas ninguém tem aquele fogo, energia, conhecimento e entusiasmo dela e, por isso, permaneço agradecido a ela. Ela era essa
luz para mim e milhões como eu. Para lembrar dela e prestarlhe reverência, fiz algumas mudanças em minha vida atual. Coloquei uma foto dela no meu quarto e me cerquei de muitos livros e DVDs dela somente para trazer luz aos meus estudos e ao meu caminho yôguico. Geetaji era para mim este farol de luz e sempre será.