Cosmologia - O fio da meada

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O fio da meada

J.R. Silva Bittencourt


O fio da meada Conta a lenda grega que Minos, rei de Creta, envolveu-se numa confusão com Poseidon, soberano dos mares, ao trair a sua confiança. Como uma forma de punição Pasifae, a mulher de Minos, veio a ter o Minotauro, filho com as características humanas mescladas com as de um touro. Minos mandou Dédalus construir um labirinto para prender a fera, no subsolo do seu palácio na cidade Cnossos, em Creta. Todo ano, sete moças e sete rapazes atenienses, feitos prisioneiros em batalha, eram mandados para lá para serem sacrificados. Teseu, um herói grego, apresentou-se voluntariamente para matar o Minotauro. Tendo conhecido Ariadne, filha de Minos, esta resolveu ajudá-lo na tarefa. Para isto, entregou-lhe um novelo de lã, que serviria para marcar o caminho a partir da entrada no labirinto, evitando perder-se quando tentasse retornar. Nosso herói aproveitou o elemento surpresa e matou o Minotauro, além de libertar os reféns. Para sair do local de onde outros não conseguiram, Teseu rastreou o caminho de volta fazendo uso do novelo de lã, entregue por Ariadne.


Esta lenda grega poderia ser adaptada para a moderna observação dos astros no céu noturno, especialmente no caso de estrelas e galáxias distantes. Sem a bravura do nosso herói Teseu e sem a metade do esforço despendido por ele, quando apontamos o nosso telescópio na direção de uma estrela, o Minotauro jaz morto ao nosso lado. Com a missão cumprida, precisamos agora sair do labirinto, o que não conseguiremos sem o auxílio do nosso novelo de lã. A astronomia moderna vem agregando à Física várias áreas do conhecimento, entre elas a Filosofia e a Química, o que nos tem permitido chegar a algumas conclusões curiosas. Ao afirmar que a velocidade da luz é constante no vácuo, sem depender de que a fonte ou o observador possam estar imóveis ou em movimento, Einstein revolucionou o campo das ideias. A primeira consequência desse postulado é a constatação de que o movimento absoluto não pode ser medido no vácuo; a segunda, que a luz não se desloca instantaneamente de um ponto a outro do espaço. Cada vez mais pessoas ditas leigas no assunto estão compreendendo, de forma natural, os desdobramentos desses achados.


Nenhuma informação sobre o universo distante chega até nós de forma instantânea, o que significa que estamos olhando para as estrelas como elas eram no passado, algumas delas com o aspecto que apresentavam há milhões de anos atrás. O físico Stephen Hawking, fazendo referência aos 8 minutos que a luz do Sol precisa despender para atingir a nossa posição, lembra que se ocorresse a morte súbita do Sol nós não veríamos o evento diretamente. Ou seja, se isto acontecesse durante o dia, o céu continuaria iluminado por mais 8 minutos. Ora, se não há informação acessível diretamente antes desses breves minutos se esgotarem, de qualquer modo a escuridão iria impor-se instantaneamente para nós no passado, colocando o vértice do cone de luz do futuro da estrela e o vértice do nosso cone de luz do passado virtualmente na mesma dimensão do tempo (presente). Assim, neste exato momento estaríamos separados do Sol apenas por uma dobra sutil do espaço, ou por uma inversão no sentido da seta do tempo. Costumo dizer que se a morte do Sol fosse um caminhão desgovernado, quando ele passasse por nós não teríamos tempo sequer para anotar a sua placa. Se pudéssemos acompanhar um fóton que foi


emitido neste instante por uma estrela distante, teríamos que inverter o pensamento que costumamos aplicar no caso da observação da imagem de outra estrela, cuja luz já chegou até nós. A visão relativística torna as coisas um pouco confusas porque, em relação a este fóton que está sendo emitido no momento presente da estrela, a nossa posição é que se encontrará no passado quando ele nos atingir, devido ao tempo que será despendido pela luz para superar a distância que nos separa. O espaço em torno da referida estrela parece ter alterado a sua geometria numa posição então colocada relativamente no futuro, permitindo que ela viesse a assumir secundariamente a sua enorme massa e pudesse, então, manifestar-se com atraso através da emissão de fótons. A luz que parte de lá neste exato momento estará se acomodando por dentro do cone de luz do futuro da estrela, até atingir a nossa posição. Qualquer evento em curso dentro desse cone abstrato não poderia ser aferido diretamente e, por isso mesmo, deixaria de existir por falta de acesso. O novelo de lã ainda não alcançou a posição onde o Minotauro aguarda para ser abatido. Quando isso acontece, lá no fundo do


labirinto do espaço e sobre um lindo planeta azul, apontamos os nossos telescópios na direção da imagem da estrela e vamos recolhendo, pouco a pouco, o novelo de lã da sua luz espalhada. Por isso, a exemplo de Teseu tentando escapar do labirinto, estamos rastreando a estrela a partir do passado, o que significa que tentaremos chegar até ela por um caminho fictício, que já foi anteriormente trilhado pela luz. Alguns astrônomos gostam muito de usar frases de efeito do tipo “somos formados a partir da poeira das estrelas”, ou “nossos átomos podem ser rastreados até o núcleo das estrelas e galáxias distantes”. Se realmente acreditam nisso, não deveriam esperar que a luz espalhada no passado da abóbada celeste estivesse chegando até nós por dentro do nosso próprio cone de luz, pois nesse caso ela não poderia ser rastreada pela nossa memória antes do seu aporte. Esta figura é muito representativa da nossa interação com a matéria escura: - Seja qual for a circunstância e sem depender do nível considerado da matéria, estaremos sempre olhando para o universo a partir do passado. Isto é, quando pudermos registrá-lo, ele não estará mais lá (pelo menos do modo como pode ser observado


agora). Santa Maria, RS, 30/03/2018.

(ExtraĂ­do do livro do mesmo autor: Imagens do Universo-Coletando indĂ­cios da bidimensionalidadeEditora Habilis, 2011).


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