OraMortem

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Velha, n茫o. Entardecida, talvez Antiga, sim. Me tornei antiga Porque a vida, Tantas vezes, se demorou. E eu a esperei Como um rio aguarda a cheia (Mia Couto)

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SINOPSE

A memória é um novelo emaranhado o bastante pra ser desfiado. Melhor esquecer, que a vida sem ontem fica mais leve. E justo nessa hora ele aparece, desfilando futuros e acordando rubores. E essa agora?

OraMortem é um momento inesperado, um fragmento de sonho, um desarranjo do tempo, uma fração de loucura, disparados pelo encontro da Velha com o Menino. Trata a proximidade da morte como sintoma de vida. O corpo dela transborda e o espaço inundado está na iminência de derramar. A última gota, um delírio.


do impulso vital

Minha avó Maria de Lourdes é uma mineira de quase 90 anos. Usa vestidos engomados de cores sóbrias, com botões até o pescoço e de comprimento que ultrapassa os joelhos. Sua casa é enfeitada com os crochês e rendas cosidos por ela. Diariamente cuida dos altares de santos espalhados nos cômodos de sua casa. Viveu junto ao meu avô José durante 65 anos. Ele faleceu em 2011 devido a um enfisema pulmonar que o acompanhou por quase duas décadas. Logo após a viuvez, minha avó passou por uma cirurgia de catarata e, possivelmente devido ao uso de anestésicos somados às fragilidades emocionais daquele período, passou a ter delírios. Como numa brusca mudança de percepção do tempo, ela acreditava ser jovem. Preparava-se para o encontro com seu namorado, com todos os anseios peculiares de uma adolescente. Além disso, confiava que suas filhas eram, na verdade, suas irmãs e, desde então, começou a compartilhar intimidades de sua vida sexual nunca antes reveladas. Essa abertura disparou em mim a possibilidade de um olhar menos óbvio para minha avó. Além disso, passei a questionar com mais interesse as potencialidades do corpo como matéria para a criação artística. O processo de criação do espetáculo OraMortem é inspirado nesse momento de delírio e transbordamento dos afetos dessa mulher, minha avó.

Daniela Leite


Esta deveria ser a hora em que me recolheria como um poente no bater do teu peito mas a solidão entra pelos meus vidros e nas suas enlutadas mãos solto o meu delírio. (Mia Couto)

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do processo de criação

Em 2013, durante a residência artística “A Arte Secreta do Ator”, realizada em Brasília-DF com orientações do diretor teatral Eugenio Barba e da atriz Julia Varley, ambos do grupo dinamarquês Odin Teatret, experimentamos uma proposta de trabalho intitulada “A Arquitetura do Ocaso”, na qual nos dedicamos a preparar uma cena que relacionasse o tema da vida e sua finitude como beleza e matéria de criação. No ano seguinte, os atores Daniela Leite e Felipe Vicentim se encontraram na residência de criação oferecida pelo SESC Arsenal (MT) com a artista da dança Janaína Lobo (PI), durante o projeto “Leitura de Movimento”, que tinha como objetivo final a montagem de um experimento cênico com base em inquietações pessoais. Ambos pesquisavam temas relacionados às potências e limites do corpo e optaram por realizar juntos um processo criativo. Para isso convidaram Estela Ceregatti, Jhon Stuart, Luiz Gustavo Lima, Luis Segadas e Karina Figueredo para compor a equipe de criação. O espetáculo foi construído a partir do encontro destes sete artistas que, inspirados no delírio da Dona Lourdes, mergulharam num processo de experimentação, assumindo a tessitura de uma dramaturgia que entrelaça espaço, corpo, luz e música. Nos ensaios, realizados no ateliê do artista visual Luis Segadas, os criadores puderam testar, de acordo com suas competências, diversas possibilidades desse delírio. Optou-se pela não-hierarquização das funções e pela pluricentralidade das propostas. A partir da narrativa do delírio de Dona Lourdes, o coletivo de criadores gerou imagens que levaram à construção do espelho d'água de fundo negro como o lugar do acontecimento. Esse lugar foi o disparador de possibilidades para a composição da trama e de todos os corpos em cena. Os procedimentos criativos foram acessados em fluxo contínuo e em justaposição de camadas, nas quais as partes envolvidas, ou seja, o espaço, a luz, a música e a atuação retroalimentaram-se e influenciaram-se simultânea e constantemente. Os elementos do cenário, como a cortina, a cadeira de balanço, a janela e a ínsula- estrutura que suspende a personagem da água -, foram desenhados em escala reduzida para sugerir o desajuste da personagem em relação ao espaço e, assim, realçar o seu isolamento diante do que está a sua volta.


do processo de criação

A trilha sonora original foi composta durante os ensaios com a preocupação de criar paisagens e ambiências, o que potencializou a criação da partitura corporal dos atores. Em alguns momentos também se torna a materialização das perturbações internas, a voz, o suspiro dos personagens. Sendo assim, a intensidade, o volume, o tom e a textura da música ora acompanham, ora provocam a variação de estados pelos quais eles atravessam. A iluminação surgiu através da experimentação com elementos aos quais tínhamos acesso, tais como luminárias, lanternas, luzes de natal, mangueiras de LED e spot de estúdio de revelação fotográfica. Através do diálogo estabelecido entre a utilização desses objetos e suas variáveis com o espaço, a música e os atores, foram criados recortes, intensidades, tons e efeitos que propuseram diretamente os desenhos de algumas cenas. A construção da narrativa e das personagens se pautou em aspectos do teatro performativo. Optamos por não explorar a representação óbvia do que seria uma senhora de quase 90 anos e um jovem de 20 anos. Mas sim investigar estados de presença que surgiram das imagens que o contato com o delírio sugeria. Os elementos de figurino e cenário foram criados para potencializar essas imagens. O tecido acrobático, que compõe a dramaturgia do espaço do Menino, possibilita a inversão, o balanço, o alvéolo, a suspensão. Para ela, próteses de espuma e água, um vestido de renda, no cabelo um tule branco entrelaçado por luzes de natal, instauram um corpo outro na iminência de transbordar por conta da fragilidade desses elementos. A dinamicidade desse modo de criar arte interage criação, processo e formalização. A obra, pensada na via do work in process (Renato Cohen), é inteiramente dependente do processo, sendo permeada pelo risco e, sobretudo, pelas vicissitudes do percurso.


Tudo o que a muda a vida vem quieto no escuro, sem preparos de avisar. Guimar茫es Rosa

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in-Próprio Coletivo Como um instante de verdade quando os opostos se abraçam. A mais transparente é a imagem da velha, que a meus olhos é mulher e menina, os cabelos sensualmente soltos, mas encanecidos. Um quadro de coqueteria, vaidade e graça. Entretanto, bastava que olhasse um pouco enviesado para que o espelho me devolvesse um rosto murcho e marcado pelos anos. Eugenio Barba


do espetáculo

O que é possível ver pela fresta da memória? OraMortem é um exercício de projeção do que é recôndito. Trata a iminência da morte como um sintoma de vida. Absorta, a Velha é surpreendida pela presença do Menino, ora imaginário, ora presente. No encontro, ela derrama seu delírio na aridez da epiderme. Inundada, transborda o que não cabe mais em si e, assim, descobre aplicações e potências para o seu corpo que até então não havia experimentado. Dois personagens se fragmentam em reflexos e projeções para expor aquilo que não cabe, que é desajustado, que transborda das clausuras do espaço-tempo, que está fora do esquadro. OraMortem desarticula a noção de ficção e propõe fricções de presença entre os artistas e o público, não esconde as engrenagens técnicas, escancara a estrutura interna da criação, por isso a iluminadora/performer e os músicos manipulam seus instrumentos luminosos e sonoros dentro da cena. Manejam múltiplas linguagens, recursos e hibridizações para tecer a dramaturgia que é engendrada no fluxo de estímulos e contaminações proposto por todas as linhas envolvidas, como a luz, a música, o espaço e os atores. É um momento inesperado, fragmento de sonho, fração de loucura, desarranjo do tempo, a última gota, o delírio. O corpo dela já transbordou e o espaço inundado está na iminência de derramar.


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do coletivo

A atriz Daniela Leite convidou seis artistas a pensar e propor soluções para as estruturas técnicas do espetáculo OraMortem: luz, cenário e música. Na ocasião do convite existia somente uma célula inicial da pesquisa inspirada no delírio de sua avó, Dona Lourdes. Durante os primeiros experimentos de criação, a disponibilidade dos artistas para com o processo extrapolou a noção de execução mecânica, instaurando um exercício de pertencimento e apropriação, pois muito além de uma mera convocação de habilidades, o que ocorreu foi a abertura para o encontro que teceu OraMortem. Surgiu recentemente a necessidade de batizar esse modo de criação inerente e específico a esses artistas. Na busca de um termo que fosse coerente com os desdobramentos dessa experiência chegou-se à noção de coletivo, pois o processo OraMortem é um encontro de artistas com interesses e afetos aos quais se entregam reafirmando e transformando esse lugar de criação. O in-Próprio Coletivo... é irradiação de intensidade, um condensador, agregador de pessoas e ideias, em constantes aproximações, distanciamentos, adesões e desgarramentos. É assim, fragilmente delimitável pelos seus membros, suas áreas de atuação, influências e movimentos.


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ficha técnica

Concepção | Daniela Leite Atores criadores | Daniela Leite e Felipe Vicentim Criação e execução da trilha sonora | Estela Ceregatti, Jhon Stuart, Luiz Gustavo Lima Concepção e operação de Luz | Karina Figueredo Cenário | Luis Segadas e Daniela Leite Confecção de figurino | Adalgiza Barros e Jane Klitzke Fotografia | Rai Reis, Latitude Filmes, Fernanda Solon e Frank Busatto Contatos in-Próprio Coletivo in.propriocoletivo@gmail.com producaooramortem@gmail.com (65) 8105-2449 | 8112-0169



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