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em foco

Entrevista Jorge Calado Zoom

Portugal

polémica Rivalidades fatais austeridade Viver com o FMI fenómeno O cão de Sócrates

34 mundo 36 inglaterra À caça de Harry 44 china O artista ativista

60 aldeias históricas

São nossas, históricas e apresentam-se repletas de encantos. Guia com tudo o que precisa de saber e uma sugestão, em fundo: um périplo de lazer e paz, para um fim de semana bem passado.

24 viver com o fmi

Mais cortes nos salários, despedimentos na Função Pública e emagrecimento das empresas públicas. Para todos, menos dinheiro no bolso e reduzir o consumo será a palavra de ordem.

78 entrevista

Lídia Jorge fala sobre o seu novo romance, A Noite das Mulheres Cantoras. Um livro que rasga os bastidores da sociedade do espetáculo, e confirma o estilete fino e a ternura perspicaz com que a autora olha para os seus personagens – que somos todos nós.

economia

52 combustíveis É tempo de contas 58 60 70 74 76

sociedade

Turismo Aldeias irresistíveis desporto O génio do Dragão sexo Porno no feminino lazer Aí vai praia

cultura 78 entrevista Lídia Jorge 84 cinema Perfilados de medo 86 música Adriana Calcanhotto opinião

10 Boaventura de Sousa Santos 32 José Carlos de Vasconcelos 50 Victor Ângelo 29 de abril de 2011 MAGAZINE 3


Curtas CGTP e UGT apoiam Toxo

As duas centrais sindicais portuguesas apoiam a candidatura de Ignacio Toxo, líder das Comissiones Obreras, de Espanha a presidente da Confederação Europeia de Sindicatos, que será em Atenas, de 16 a 19 deste mês. A secretária-geral candidata-se a francesa Bernardette Ségol, da federação de serviços Unieuropa.

Portas- jerónimo a abrir

Prestações mais caras Como a Euribor vai fazer «explodir» o seu empréstimo. Em apenas quatro meses, as taxas Euribor registaram subidas da ordem dos 40%, o que está a provocar subidas significativas nas prestações dos empréstimos para habitação, nalguns casos com acréscimos mensais superiores a cem euros. A Euribor a três meses passou de 1,001%, no início de janeiro, para 1,395% na passada segunda-feira, enquanto a de

seis meses cresceu cerca de 1,224% para 1,682% no mesmo período. Estes são os dois indexantes mais utilizados nos empréstimos para habitação. A escalada da Euribor poderá não ficar por aqui, pois o Banco Central Europeu já admitiu que poderá fazer uma nova revisão da sua taxa de referência, o que provocará maiores subidas na Euribor.

Os líderes do CDS/PP e do PCP, Paulo Portas e Jerónimo de Sousa, inauguram dia 6, na RTP, a série de debates televisivos com vista às eleições legislativas de 5 de junho.

Função pública pára

A Frente Nacional dos Sindicatos da Função Pública convocou para dia 6 uma greve contra as medidas de austeridade. Para esse dia estão marcadas provas de português do 4.º e 6.º anos, que o Governo diz que não serão afetadas.

Independente em tribunal

O julgamento do caso da Universidade Independente deverá arrancar no dia 9.

CONTAS Quanto vai pagar por cada dez mil euros As contas são fáceis de fazer. Por exemplo, uma pessoa que faça um empréstimo de 150 mil euros a 30 anos, com um spread de 1% e uma taxa de juro de 1,5%, o que equivale a uma TAN de 2,5% (TAN=Euribor+spread), terá de multiplicar 39,51€ por 15 vezes (39,1€x15=592,65€). Para ver quanto pagará a mais com uma subida de 0,5% da taxa, terá de fazer a mesma conta com a TAN de 3%, o que dará 42,16€=632,4€ de prestação mensal. 4 MAGAZINE 29 de abril de 2011

homenagem a juliano mer-khamis

Integrado na programação da «Guimarães Capital Europeia da Cultura», o Centro de Criação de Teatro e Artes de Rua apresentará então o espetáculo Jerusalém, em homenagem ao realizador e ativista árabe-israelita Juliano Mer-Khamis, morto há um mês, aos 53 anos, à porta do seu Teatro da Liberdade, em Jenim, na Cisjordânia ocupada.


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votam, devem saber como se posicionam os candidatos quanto a estes temas. E há quem use a linguagem científica para falar em termos que ninguém percebe. E aí, que ouve pensa «ah, este tipo sabe muito, nem eu o percebo». Não passar a mensagem é sintoma de ignorância. Por mais complicado que seja o assunto, é sempre possível explicá-lo. A função de um cientista também é comunicar.

Jorge Calado

É o presidente do Ano Internacional da Química. Qual o objetivo da comemoração?

‘A descoberta científica é libertadora. Tão boa como o sexo’ Professor, cientista, melómano, cinéfilo, Jorge Calado, 73 anos, acaba de lançar o livro Haja Luz! (editora IST Press). A história de tudo, com a Química como fio condutor. Uma obra iluminada, de um iluminista. Por Sara Sá A Química não tem muito boa fama…

As pessoas esquecem-se de que tudo é químico, feito de moléculas – a essência da Química. Muitos dos produtos ditos naturais também fazem mal. Durante a Revolução Industrial, os artistas iam visitar as fábricas. O lume e o fogo eram considerados belos, sublimes. Chegou a pensar-se que os gases, como o enxofre, podiam ser bons para a saúde, para a tuberculose, ou tísica. No Natal, as pessoas mandavam raios-X de prenda, como quem manda fotografias. A radioatividade era tida como a cura para muitas doenças. Lembro-me do slogan da água do Luso ser: «Uma das águas mais radioativas do mundo». Só no século XX é que surgiu a noção de que a Química é má, por culpa do nuclear. Os cientistas caem em si e percebem que nem tudo o que fazem é bom. A Ciência perdeu a inocência com a bomba.

Com todos os seus interesses, a Ciência sempre foi a sua grande paixão. O que o encanta? 6 MAGAZINE 29 de abril de 2011

A aventura. A obsessão do novo, dar um sentido a tudo o que nos rodeia. Em Portugal a grande evolução deu-se na minha geração, muito devido à Gulbenkian. Quando fui para Oxford, em 1966, não havia nada na minha área. Zero.

Foi isso que o fez voltar?

Em 1970, acabei o doutoramento e já se sentia que as coisas estavam a mudar. Voltei (para o Instituto Superior Técnico) e construí o meu laboratório, de raiz. Andei pelos ferros-velhos da zona do Beato, a comprar tubos de cobre. Dez anos depois tinha um dos melhores laboratórios do mundo.

Continua, no entanto, a haver um grande défice de cultura científica na sociedade portuguesa.

Esta deficiência não ocorre só entre a população pouco educada. Veja-se os políticos, por exemplo. A ignorância é uma coisa catastrófica. No mundo de hoje, cada vez mais as questões graves que se põem têm uma base científica. Quando as pessoas

Um deles é desmistificar os chavões à volta da Química. Tem coisas más? Sim. Mas também consegue resolver os problemas que cria. Está em tudo o que interessa a todos. Há um lado lúdico na Química, uma certa magia. Quer saber de que são feitas as coisas, mas também o que acontece quando se misturam duas substâncias. Podem aparecer coisas lindíssimas: um cheiro, cores, árvores de cristais. É um bom pretexto para brincar. Outro objetivo é realçar o papel da mulher. Faz cem anos que foi atribuído o Nobel da Química à Madame Curie – a primeira mulher a recebê-lo. Aqui está uma batalha ganha. Há mais mulheres do que homens em Química.

No seu livro, a Criação, no sentido divino, está muito presente. É crente?

Acredito na Ciência… (risos). Mas Deus e a Ciência estiveram sempre interligados. No princípio, a motivação principal para um cientista era dar graças a Deus, glorificá-lo. A Ciência é de tal ordem maravilhosa que nos pomos de joelhos quando estamos perante uma descoberta – nossa ou de outros. Há ali um momento de iluminação que é a experiência mais agradável que eu conheço. Tão boa como o sexo. É libertador.

Faz-se luz!

Exato. É a ideia do título. Para mim, a investigação é uma experiência mágica, espiritual e religiosa, entre aspas. É muito parecido com o que se sente a ver um quadro, a assistir a um concerto ou quando se olha para a pessoa por quem se está apaixonado. Toda a minha vida tentei mostrar isso.


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Deus salve o número dois Os políticos do Reino Unido podem dormir descansados. Desde 29 de abril, tudo se encaminha para que a sucessão no trono esteja assegurada por muitos e bons anos. Nesse dia, como todo o mundo voyeurista q.b. sabe, o neto da Rainha Isabel II e «n.º2» na ordem de sucessão, Guilherme (ou William, como agora se começou a dizer por cá, contra a prática usual), casou com Catarina (vulgo Kate), e os sinos da Abadia de Westminster repicaram alegremente. Dado que a Comunidade Britânica assenta no pressuposto de que o chefe de Estado de cada um dos antigos domínios é o soberano inglês, o futuro desta instituição tão sólida como a Torre de Londres não está, pois, minimamente ameaçado. Pro memoria, o beijo da praxe, com os noivos enquadrados pelas damas de honor.

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Boaventura de Sousa Santos

O desassossego da oportunidade Os desassossegos de Portugal são de longo e médio prazo, e só eles nos ajudam a entender o modo como damos resposta às crises de curto prazo. Durante o século XVIII, os barcos que traziam o ouro do Brasil aportavam a Lisboa, mas seguiam muitas vezes para Inglaterra para que a nossa dívida soberana fosse paga. Quem quiser ver paralelos com o que se passa hoje basta substituir barcos por internet e Inglaterra por credores sem rosto. Portugal é de longa data um país semiperiférico ou de desenvolvimento intermédio. No atual sistema mundial é muito difícil sair deste estatuto, quer para cima (promoção a país desenvolvido) quer para baixo (despromoção a país em desenvolvimento). As convulsões ou grandes transformações políticas criam oportunidades e riscos, e os países mudam de estatuto para melhor se aproveitarem as oportunidades e evitarem os riscos. Foi assim que no pós-guerra a Itália foi promovida a país desenvolvido. Portugal, devido ao fascismo e à guerra colonial, desperdiçou essa oportunidade. O 25 de abril e a entrada na CEE não acautelaram nem a agricultura e a pesca portuguesas nem as relações históricas com as ex-colónias. Por outro lado, os fundos estruturais e de coesão foram desbaratados no que constitui a história mais secreta da corrupção em Portugal. O euro, combinado com a abertura da economia europeia ao mercado mundial, foi a última machadada nas aspirações portuguesas, pois tínhamos

«A crise só deixa de ser destrutiva na medida em que se transforme em oportunidade nova para as classes sociais que mais sofrem com ela.» 10 MAGAZINE 29 de abril de 2011

têxteis e sapatos para vender mas não aviões nem comboios de alta velocidade. Os termos da integração foram-nos sendo mais desfavoráveis, o projeto europeu foi-se desviando das vontades originais e os mercados financeiros aproveitaram-se das brechas criadas na defesa da zona euro para se lançarem na pilhagem em que são peritos, agravando as condições do país muito para além do que pode ser atribuído à nossa incúria ou incompetência. Vivemos a hora dos grupos dominantes, cujo poder parece demasiado forte para poder ser desafiado. A democracia, que aparentemente controla o seu poder, parece sequestrada por ele. Vivemos um tempo de explosão de precariedade, obscena concentração da riqueza, empobrecimento das maiorias, e incontrolável perda do valor da força de trabalho. E se é verdade que todas as crises são políticas, não é menos verdade que não se politizam por si. A luta pela definição dos termos da crise é sempre o primeiro momento de politização e o mais adverso para os grupos socais que mais sofrem com a crise. Os grupos sociais que produzem as crises mantêm em geral, e salvo casos raros de

colapso sistémico, a capacidade de definir a crise de modo a perpetuar os seus interesses durante e depois dela. A crise só deixa de ser destrutiva na medida em que se transforme em oportunidade nova para as classes sociais que mais sofrem com ela. E, para isso, é necessário que os termos da crise sejam redefinidos de modo a libertar e a credibilizar a possibilidade de resistência, o que implica luta social e política. No nosso caso, a possibilidade da redefinição da crise é mais consistente que em outros países. Só por má-fé ou derrotismo se pode dizer que a situação da economia justificava os ataques especulativos de que fomos alvo. Basta consultar as estatísticas mais recentes (fevereiro) do Eurostat relativas à evolução da atividade económica no período analisado: Portugal foi um dos países da UE em que mais cresceram as novas encomendas à indústria. Se há país intervencionado que tem legitimidade para exigir a renegociação e a redução da dívida, esse país é Portugal. Esta legitimidade justifica a luta mas não a faz surgir. Para isso, é necessário que os cidadãos e os partidos inconformados transformem o inconformismo em ação coletiva de desobediência financeira.


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Curtas Estado reforma-se

Nos últimos cinco anos, segundo dados do Sindicato dos Quadros Técnicos do Estado, reformaram-se 120 mil funcionários públicos, muitos dos quais sem terem sido substituídos. Este ano, entre janeiro e abril, houve mais de 9 mil reformados do Estado, que conta, hoje, com 505 mil trabalhadores.

Derrapagem nos patrulhões O custo do primeiro navio de patrulha oceânica recebido pela Marinha pode ter sofrido um aumento entre 8 milhões e 18 milhões de euros em relação ao previsto. Com seis anos de atraso em relação aos prazos de entrega inicialmente estipulados, chegou na passada sexta-feira, 29, à base naval do Alfeite, o primeiro navio de patrulha oceânica (NPO) encomendado, em 2002, aos Estaleiros Navais de Viana do Castelo. Mas não foi apenas o cronograma da aquisição que derrapou. Com um custo inicial previsto de 32 milhões de euros, o navio Viana do Castelo terá custado entre 40 milhões e 50 milhões de euros. Ou seja, a derrapagem pode ir dos 25 aos 56 por cento. Entretanto, encontra-se em construção mais um navio e está projetada a construção de outros dois de combate à poluição marítima (NCP). Terão os três custos idênticos aos do primeiro. Desde que foi lançado, o processo dos «patrulhões» foi fustigado por várias tempestades. Tudo começou, em 2001, pela intenção de adquirir um NPO e um NPC, tendo havido uma fase – era Paulo Portas ministro da Defesa – em que se pretendia comprar oito NPO e quatro NPC. Em 2009, com Nuno Severiano Teixeira na pasta da Defesa, procedeu-se a uma reavaliação do projeto e redu-

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ziu-se e encomenda para os atuais dois NPO e dois NPC, além de oito lanchas de fiscalização costeira. Mas não foram essas alterações os principais motivos dos «deslizes». Com o casco lançado à água, em 2005 (quando se previa a primeira entrega), a construção do Viana do Castelo passou por várias peripécias, incluindo desentendimentos entre a Marinha e os estaleiros, o que chegou a ser reconhecido, no Parlamento, em 2007, pelo então ministro Severiano Teixeira. «Este programa correu muitíssimo mal, desde os aspetos financeiros até aos técnicos e políticos», avalia o arquiteto naval e antigo chefe do combate à poluição, Jorge Silva Paulo. Segundo este oficial da Marinha na reserva, um dos problemas foi o das alterações introduzidas no projeto, ao longo dos tempos: «Quem encomenda que ter sempre o melhor possível, só que isso tem custos.» Silva Paulo considera que, no caso dos navios para combater a poluição, ainda se está a tempo de parar para refletir e não cometer os mesmos erros, sob pena de se gastar dinheiro em navios inaptos para o combate, por exemplo, a uma maré negra.

estoril em conferências

De Larry King a Francis Fukuyama, passando por Mia Couto e Dominique Villepin, as Conferências do Estoril começaram ontem, dia 4, e terminam amanhã, dia 6, contam com um elenco de reputados oradores. Realizam-se no Centro de Congressos do Estoril, sob o tema Desafios Globais. O ministro Vieira da Silva encerra os trabalhos pelas 19 horas.

hino do psd

«Um coro de vozes a cantar/Está na hora de mudar/ Passos Coelho» é uma parte do refrão do mais recente hino do PSD que se transformou num sucesso na internet. A ideia da música é sugerir que, a bem do País, chegou a hora de mudar de primeiro-ministro, mas a verdade é que a forma como a letra e a música se entrosam, sugere que está na hora de mudar... Passos Coelho em vez de «com Passos Coelho». O vídeo está disponível no You Tube.

carteiros privados

Os Correios de Portugal estão a entregar a distribuição postal universal em algumas localidades do interior do País, como Vila Nova de Paiva, a privados. Noutros casos, em que o serviço não seja rentável, a empresa admite vir mesmo a encerrar estações ou abrir postos explorados por parceiros dos CTT.


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Rivalidades fatais

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Os conflitos pessoais, as birras, as zangas e as invejas têm mais influência do que se julga nos destinos do País. Duelos históricos, frases assassinas e prejuízos concretos: em que medida está a rivalidade a matar Portugal? Por Filipe Luís

O dinamarquês do FMI que aterrou, esta semana, no Aeroporto da Portela, bem podia apontar para a sua pasta de cabedal e citar Sigmund Freud, quando o pai da psicanálise desembarcou nos Estados Unidos: «O que vos trago aqui é a peste.» o próprio Freud teorizou sobre a «rivalidade fraterna», talvez a pior das rivalidades, desde Caim e Abel, quando o segundo ofereceu as suas ovelhas primogénitas a Deus e o primeiro, cego de ciúmes, o matou. E foi uma rivalidade entre irmãos, talvez gémeos, como frequentemente são designados PS e PSD, que conduziu à – ou, pelo menos, apressou a… – entrada do FMI em Portugal. Paul Thomsen, um veterano do Fundo Monetário Internacional que já conhece bem a Grécia e a Irlanda, há-de estar a interrogar-se sobre o sentido da última ideia forte do líder da oposição portuguesa, Pedro Passos Coelho, nos ecrãs da TVI: «O PSD até pode formar uma coligação pós-eleitoral com o PS, mas não com Sócrates». Caim volta a matar Abel. As ovelhas – ou o PEC IV –, que os deuses BCE, Merkel e FMI tanto pareciam apreciar, foram a gota de água que precipitou a tempestade.

PSD EM CHAMAS

Talvez tenhamos de recuar a agosto de 2007 para chegarmos ao bilhete de avião, com destino a Lisboa, entregue esta semana a Paul Thomsen. Àquela Festa do Pontal do PSD em que Marques Mendes, rival de Luís Filipe Menezes, na corrida à liderança do partido, foi achincalhado pela maioria menezista presente. O PSD,

partido onde as rivalidades e os baronatos mais emergem, começava uma penosa via sacra. Ficava bem claro que a única vitamina para manter uma liderança era a rápida conquista do poder, que Mendes não garantia, mas que o autarca vagamente populista de Gaia parecia assegurar. Durou pouco o consulado de Menezes. E Manuela Ferreira Leite falhou, também, o desiderato. Agora, Pedro Passos Coelho entendeu o recado: «Ou tens eleições no País, ou tê-las-ás no partido.», ter-lhe-á dito um conselheiro. E o líder chumbou o PEC IV. Teria o País, caso o não tivesse feito, escapado ao FMI? Provavelmente, não. Mas o certo é que Passos Coelho driblou, nem que seja apenas até às eleições, as rivalidades internas, para se tornar rival, de corpo inteiro, do primeiro-ministro. Mas será mesmo assim? Filipe Ribeiro de Menezes, historiador, professor na Universidade de Dublin, estudioso do século XX português, duvida: «Não sei se concordo com o pressuposto. Será rival de Sócrates alguém que chegou agora?»

FEROCIDADE E MANSIDÃO

Será que as rivalidades estão a matar Portugal? Foi por causa delas que chegámos a este ponto de penúria financeira, bloqueio político e raquitismo económico? Na política, na justiça, na economia, na cultura, no desporto, não faltam exemplos de pequenas birras, grandes zangas, disputas mesquinhas e violências várias. A rivalidade deixou de ser sinónimo de competição saudável e criadora, para se tornar destrutiva e autofágica. A última

Rivais à força

Há quem duvide de que um «challenger» recém-chegado seja um verdadeiro rival para quem governa há seis anos. Mas Passos Coelho procurou o combate e escapou, para já, à caça interna... operação policial em torno do jogo de futebol entre o Benfica e o Porto envolveu 800 polícias, dezenas de viaturas e um helicóptero: mais de 2 milhões de euros de custos em segurança. No momento em que o País não tem dinheiro para mandar cantar um cego, num ano de vários «clássicos» – eufemismo que, no futebol, designa estas putativas batalhas campais… –, é fácil de ver as implicações no défice e, sobretudo, nos orçamentos das forças de segurança. No léxico político entrou, no ano eleitoral de 2009, uma nova palavra, que rapidamente alastrou a outras áreas da sociedade: «crispação». A crispação, uma espécie de sucedâneo de «pancadaria», explica tudo: os «corninhos» de Manuel Pinho, na AR (fruto das rivalidades entre o Governo e o PCP para conquistar as boas graças dos mineiros de Aljustrel…), as discussões

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quinzenais dos deputados com o primeiro-ministro, o insulto, a atoarda, a rasteira, a canelada, o chiste e o boato. Se Sócrates não se mostra feroz, desilude. Francisco Louçã estranha a «mansidão». Mas os microfones captam a reação do primeiro-ministro: «Manso era a tua tia, pá!»

O CASO SOUSA FRANCO

Terá sido sempre assim ou parecido. Afinal, somos uma paróquia, como diz a historiadora Maria Filomena Mónica, especialista no período histórico da monarquia constitucional. As rivalidades já contribuíam para matar o País, durante o rotativismo liberal. Mas, apesar de tudo, garante Maria Filomena Mónica, «a classe política era incomparavelmente mais culta, detentora de uma apurada retórica, e cada deputado tinha, no Parlamento, uma personalidade própria». António Costa Pinto, investigador do Instituto de Ciências Sociais, adverte que «o conflito pessoal sempre marcou a vida das democracias». E isso, mais do que um fenómeno de rivalidade, insere-se na lógica da «conquista do poder». Por maioria de razão, em partidos menos ideológicos, as rivalidades tornam-se mais emergentes: «Se diminui a componente ideológica, aumenta o conflito pessoal.» Se a rivalidade mata o País, ela também pode matar pessoas, como aconteceu na lota de Matosinhos, a 9 de Junho de 2004. António Sousa Franco, cabeça de lista do

rivalidades gastas (e que gastam)

O último «clássico» entre Benfica e Porto, envolveu mais de 2 milhões de euros de custos em segurança

rivalidades lutas de galos

Na finança, na política e na justiça: os protagonistas engalfinham-se numa perpétua disputa Alta finança Dois bancos concorrentes envolveram-se numa luta de morte. Opus Dei contra a Maçonaria?

aperto de mãos... ...Ou talvez não. Carrilho deixou Carmona pendurado e a imagem foi captada pelas câmaras da SIC

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porto sentido Gaia e Porto andam de costas voltadas. Embora do mesmo partido, os seus autarcas nem se podem ver...

justiça coxa O sindicalista João Palma acusa Pinto Monteiro de falta de isenção. O PGR devolve a acusação, com juros

paredes de vidro A sucessão de Álvaro Cunhal deixou Carlos Carvalhas e Carlos Brito em campos opostos. E o PCP nunca mais foi o mesmo


PS às eleições europeias desse ano, foi apanhado no fogo cruzado de uma guerra que lhe era alheia, entre apoiantes de Narciso Miranda, durante anos «o senhor de Matosinhos», e Manuel Seabra, então eleito presidente da concelhia socialista. O antigo ministro das Finanças de António Guterres viu-se envolvido, no meio da multidão, numa luta entre fações. Depois de muitos apertões sentiu-se mal. Viria a falecer no Hospital Pedro Hispano. O País também morreu um pouco. Sousa Franco teria sido um bom representante nacional no Parlamento Europeu. E, entre muros, teria ainda muito para dar à política e à academia. Muito para dar à esquerda – ou, talvez, pelo menos, um Presidente da República – teria tido o PS, em 2006, quando a direita se uniu no apoio a Cavaco Silva. Mas uma rivalidade súbita entre Manuel Alegre e Mário Soares demonstrou duas realidades. Primeiro, que o PS cometeu um erro de casting ao repescar o antigo PR. Segundo, que uma questão pessoal era capaz de partir o eleitorado ao meio. A rivalidade ter-se-á mantido até à desforra de Mário Soares, se dermos crédito aos que apontavam meios soaristas como patrocinadores da candidatura de Fernando Nobre, em 2011. E olhem o que aconteceu a Alegre, na sua segunda tentativa… E o que dizer da oportunidade perdida pela direita, quando duas personalidades tão fortes quanto Marcelo Rebelo de Sousa (presidente do PSD) e Paulo Portas (seu homólogo no CDS) se desentenderam e estilhaçaram, numa névoa de recriminações mútuas, a nova AD? O País hoje reclama um governo forte, de maioria, que mereça a confiança dos mercados. Quem sabe se as rivalidades passadas não impediram que tivéssemos esse Governo há muito tempo…

JUSTIÇA BALCANIZADA

É possível que o FMI queira forçar Portugal a fazer a sua reforma da Justiça. Mas o pobre do dinamarquês Thomsen vai andar aos papéis, quando tentar perceber a intricada teia de relações, conflitos e equilíbrios entre os principais protagonistas da Justiça portuguesa. A começar pela rivalidade mortal entre o procurador-geral da República, Pinto Monteiro,

rivalidades Frases assassinas

«Quem é este gajo? Ele não tem currículo…» Mário Soares, sobre Cavaco Silva, depois de este ter rompido com o Bloco Central, em 1985

«Temos de ajudar o senhor Presidente da República a terminar o mandato com dignidade» Cavaco Silva,

primeiro-ministro, sobre o Presidente Soares, em 1994

«O comportamento do senhor Silva é causa «O protagonismo e o poder, de expulsão do partido» no PS, não são dinásticos» Alberto João Jardim, João Cravinho, sobre Cavaco Silva, depois de este ter criticado a propósito das ambições de João Soares no PS

Pedro Santana Lopes e o seu Governo, em 2004

«Só volto a reunir com o primeiro-ministro na presença de testemunhas» Pedro Passos Coelho, depois de o PSD ter aprovado o PEC 2, em 2010

«Não perco tempo com fait divers» Jaime Gama,

«Aquele é um jornal travestido!» José Sócrates,

«Lamento que o ministro Jaime Gama considere um fait divers a honra dos seus amigos» Mário Soares,

«Estamos a pagar a fatura de ter incomodado os boys do PS. Estamos a pagar a fatura do processo Face Oculta e de outros anteriores» António Martins,

MNE, depois de o governo angolano ter acusado Mário Soares de ser traficante, em 2000

em resposta

sobre o Jornal Nacional de sexta feira, da TVI, apresentado por Manuela Moura Guedes, 2009

presidente da Associação Sindical de Juízes, após o anúncio de cortes nos salários, 2011

«Estes colos sabem bem. O outro candidato prefere outros colos» Pedro Santana Lopes, sobre José Sócrates, numa reunião com mulheres apoiantes, campanha de 2005

e o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Noronha de Nascimento. Como ficou bem demonstrado no «caso das escutas», os vasos comunicantes estão inquinados pelo conflito pessoal, perdendo, com isso, a investigação, a celeridade e a credibilidade da justiça, do Ministério Público (MP) e dos tribunais. Ora, é precisamente dessa credibilidade, efi-

ciência, transparência e celeridade que dependem os investidores, nacionais e estrangeiros, para recuperar a economia. Se estas rivalidades não matam o País, o que o matará? Mas não é tudo: em agosto de 2010, a direção do Sindicato dos Magistrados do MP, liderada por João Palma, acusou Pinto Monteiro de não exercer de forma

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«independente» a sua função. Pouco antes, Pinto Monteiro dissera: «É preciso que se reconheça que o Sindicato dos Magistrados do MP é um mero lóbi de interesses pessoais que pretende atuar como um pequeno partido político.» Já não era uma questão laboral, mas um choque de personalidades. E quem pagava era a Justiça, que além de cega, se encontra cada vez mais coxa. O próprio presidente Cavaco aludiu, na abertura do presente ano judicial, a um clima de «conflitualidade e crispação» e acrescentou ser indispensável «ultrapassar tensões, que são visíveis, entre o poder judicial e o poder político». Foi com as alegadas pressões, no âmbito do processo Freeport, que o clima mais azedou. Ao clamor de alguns políticos contra a judicialização da política, respondem os magistrados com a recusa da politização da Justiça. Pelo meio, pequenos protagonismos pessoais e mediáticos, numa espécie de campeonato para ver quem tem mais influência ou presença nos media, vão contribuindo para a degradação do sistema. E a primeira vítima desta batalha de rivalidades foi o segredo de justiça…

POLÍCIAS FAZEM ‘CAIXINHA’

A própria investigação sofre de uma rivalidade histórica entre polícias. O facto de a PJ responder perante o Ministério da Justiça e a PSP e a GNR figurarem no organograma do Ministério da Administração Interna sempre funcionou como um fosso institucional, visível na falta de cooperação e partilha de informação entre estas corporações. Em julho de 2010, dois premiados investigadores da PJ e diretores dos departamentos de Lisboa e Aveiro – José Braz e Teófilo Santiago – publicaram, no Correio da Manhã, um violento libelo com afiadas críticas à PSP e à GNR, acusadas, por exemplo, de «aguardar que o crime aconteça». Este incidente criou um intenso mal-estar entre as direções das polícias, o que levou à aplicação de um processo disciplinar aos dois inspetores. A associação sindical da PJ repudiou esta decisão e frisou que «a maioria dos funcionários da PJ subscreveriam por completo» o referido artigo de opinião… Esclarecidos?

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Rivalidades intrigas HISTÓRIcas Amigos, amigos, políticas à parte. Conheça as rivalidades e intrigas mais marcantes da política portuguesa. Desinteligências políticas, reuniões misteriosas, amizades destruídas, vale de tudo, quando “interesses” mais altos se levantam.

Salgado Zenha contra Mário Soares Terá sido por desinteligências políticas na relação com Belém e Ramalho Eanes que os dois amigos se zangaram. Vai daí, Zenha enfrentou o fundador do PS, nas presidenciais de 1985.

Paulo Portas contra Marcelo Rebelo de Sousa Num programa televisivo de Herman José, Paulo Portas acusou Marcelo de lhe ter mentido, ao descrever-lhe uma inexistente reunião em Belém, onde teria sido servida uma vichyssoise… Durão Barroso contra Santana Lopes Nunca foi bem esclarecido a razão por que se zangaram os ex-colegas e amigos da Faculdade de Direito de Lisboa, Pedro Santana Lopes e Durão Barroso. Depois, firmaram um pacto de não-agressão. Manuel Monteiro contra Paulo Portas A rivalidade entre o antigo líder do CDS/PP e o seu sucessor, antes inseparáveis amigos, foi uma das mais surpreendentes inimizades fabricadas pela luta política. Paulo Portas rouboulhe a liderança, num memorável congresso.

Nas secretas, o panorama não é mais pacífico. Desde a reestruturação dos serviços de informações, em 2004, que se assiste a um crescendo das fricções entre o Serviço de Informações Estratégicas e de Defesa (SIED, o serviço de espionagem nacional) e os agentes da secreta militar, agora, a operar sob a designação de Centro de Informações e Segurança Militares (CISMIL, um organismo integrado no Estado-Maior-General das Forças Armadas). Com o envolvimento de forças portuguesas no exterior, a secreta militar tem destacado pessoal para missões de recolha de informações táticas. Só que a linha de delimitação entre o que são informações táticas e estratégicas (estas sob a alçada do SIED) é ténue e apresenta enormes zonas cinzentas. No SIED têm-se ouvido queixas de que o CISMIL tem invadido a sua coutada.

A MÃE DE TODAS AS RIVALIDADES

A rivalidade nacional, como se vê, não se esgota no conflito pessoal. Aliás, o já citado Filipe Ribeiro de Menezes considera-a acessória, «já que o problema é estrutural». E é aqui que entram as disputas entre instituições, grupos e corporações que, rivalizando entre si, se anulam uns aos outros – como acabamos de observar, no caso da investigação criminal. Mas o que separa, hoje em dia, os atores políticos está nos antípodas da rivalidade fundadora da nossa democracia. Mário Soares e Álvaro Cunhal tiveram uma verdadeira disputa política. A rivalidade, que também era pessoal, entre estes dois homens, tinha subjacentes modelos de sociedade que, em definitivo, os separavam. José Adelino Maltês, investigador e professor, destaca a diferença em relação aos dias de hoje: «A rivalidade entre Passos Coelho e Sócrates é entre iguais.» O politólogo defende que as rivalidades que realmente matam o País estão mais abaixo, na camada clientelar dos partidos. «É uma sociedade pós-autoritária e pós-revolucionária: eliminados os aparelhos de repressão, mantém-se o subsistema de medo. Domina o hipócrita, o manhoso, o ‘chico-esperto’. Dominam os ‘inquisitorialismos’. A rivalidade ganha mais dureza nos cavaquistões e nos


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círculos dos jobs for the boys». Alguns dos subscritores do documento dos 47, que veio agora apelar a entendimentos que salvem o País, tiveram de ultrapassar velhos diferendos. Ele congrega, por exemplo, e pela primeira vez, as assinaturas de três ex-presidentes da República. Ora, em pelo menos um dos casos, há aqui uma unidade de ação surpreendente. É que Mário Soares e Ramalho Eanes protagonizaram um conflito histórico que teve a expressão máxima na criação do PRD, partido que Eanes, ainda na Presidência da República, patrocinou para disputar o eleitorado do PS. Ficaram memoráveis os discursos de Eanes a criticar os governos liderados por Soares, um dos quais chegou a ser substituído por um governo de iniciativa presidencial. Eanes tinha um projeto para liderar a esquerda democrática. O resultado foi o mais inesperado: a emergência do…cavaquismo.

DO PORTO, COM DES(AMOR)

A economia nacional ressente-se, sistematicamente, das guerras paroquiais entre autarquias, como tem sido demonstrado pela cíclica formação de novos concelhos – sem a extinção de outros – o que leva ao aumento da despesa e do pessoal político. Pela construção de piscinas, polidesportivos ou quartéis de bombeiros, só para não ficar atrás do vizinho. Depois, chamem, o FMI… Ficaram célebres as guerras entre Crestuma e Lever, por causa do nome de uma barragem. Ou a que ainda movimenta os

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habitantes de Canas de Senhorim, na sua pugna de se tornarem independentes de Nelas. Mais graves são os conflitos entre os autarcas do Litoral Alentejano e o Ministério do Ambiente. Embora recorrente, a rivalidade pela gestão do litoral teve um episódio de monta, com a aprovação recente do Plano do Litoral Alentejano, com os autarcas a queixarem-se de falta de diálogo. É sempre a mesma coisa: ter mais ou menos projetos turísticos, mais ou menos receitas, mais ou menos construção. Eis um bom exemplo de um caso que, se não for gerido com pinças, pode ajudar a matar Portugal – ou, pelo menos, uma das suas regiões mais preservadas. As rivalidades autárquicas e regionais, sobretudo quando personalizadas em políticos locais, também contribuem para a morte do País. Ou, então, para a sua falta de saúde, desenvolvimento, visão estratégica e progresso. Por muitas pontes que se construam, a melhor forma de unir Porto e Gaia é… de avião. Foi assim na última edição da Red Bull Air Race, em que as duas autarquias decidiram colaborar na organização de um evento que juntou milhares de pessoas de ambas as margens do Douro. Mas o exemplo é caso raro, para não dizer único. Desde que Rui Rio e Luís Filipe Menezes estão à frente das duas autarquias, têm sido mais as vezes em que as cidades estão de costas voltadas. Rui Moreira, amigo de Rio e de Menezes, não tem dúvidas de que «se poderia ganhar muito, desde logo em articulação de políticas de promoção no exterior, até para efeitos de turismo, em estraté-

gias integradas, em sinergias». O líder da Associação Comercial do Porto considera mesmo que também Matosinhos deveria ser incluído nessa grande urbe que, «no fundo, é o coração do Grande Porto.» Também Lisboa já sofreu com as desinteligências entre protagonistas políticos. Em março de 1999, João Soares insurgia-se contra João Cravinho e já nessa altura o motivo, ou melhor, a gota de água, era a construção do novo aeroporto de Lisboa, que o então presidente da Câmara queria manter na Portela e o ministro do Equipamento teimava em transferir para longe. A rivalidade tinha uma raiz política. Cravinho era um dos mais ativos e desafiadores elementos do grupo dos sampaístas, os ex-MES e ex-GIS (movimentos de esquerda do pós-revolução que disputavam ao PS a primazia naquela área política) e que integraram, sob a égide de Jorge Sampaio, o PS, ainda e sempre dominado por Mário Soares. Confusos? Nós também. Mas Cravinho e João Soares não se reuniam. A Junta Metropolitana esteve sem executivo mais de um ano. E cristalizou-se a disputa pela zona ribeirinha, que João Soares queria para a cidade e Cravinho mantinha sob a alçada do Porto de Lisboa. E eram do mesmo partido…

OPAS E PAREDES DE VIDRO

Quando o que está em causa é uma guerra entre banqueiros numa OPA hostil, é o próprio sistema financeiro que corre riscos e se fragiliza perante o apetite de bancos estrangeiros. Podemos especular o que teria acontecido se a OPA dirigida


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COMO A RIVALIDADE DESTRÓI O PAÍS: TRÊS EXEMPLOS

Submarinos

Estádios do EURO 2004

Aeroporto da Ota

Causa Uma das razões que explicam a compra dos submarinos é a rivalidade entre ramos militares, com as pressões da Marinha a falarem mais alto. Consequência Esta dispendiosa aquisição, mais de mil milhões de euros, refletiu-se no défice português e foi agravada pela compra de blindados para o Exército. Ambos os casos estão envoltos em investigações judiciais.

Causa A rivalidade entre Benfica e Sporting impediu que fosse construído um único grande estádio na capital, capaz de acolher ambos os clubes, como acontece noutras grandes cidades, caso de Milão, onde Inter e AC Milan partilham o Giuseppe Meaza. Consequência Em vez dos cerca de 100 milhões que a solução custaria, foram gastos 97,6 milhões em Alvalade e 114,2 na Luz.

Causa Os autarcas oestinos perderam contra os rivais da margem sul, na localização do novo aeroporto. Consequência O Governo prometeu ao Oeste investimentos megalómanos que incluem dois novos hospitais, uma agência ambiental, a requalificação urbana de oito municípios, a expensas do Poder Central, e a abertura de cinco novos postos da GNR e uma esquadra da PSP.

há meia dúzia de anos pelo BCP de Paulo Teixeira Pinto ao BPI de Artur Santos Silva tivesse sido bem-sucedida. Será que tínhamos hoje um grupo financeiro português mais forte, resistente e internacionalizado do que aqueles que existem? O que sabemos é que a questão rapidamente se transformou numa guerra violenta, de onde nem a Maçonaria nem o Opus Dei terão estado ausentes. Um dirigente do BPI reagiu, então, com a frase da Passionária: «Não passarão!» Os antecedentes familiares maçónicos de Santos Silva apimentaram a disputa, desencadeada por um banco então tido como dominado pelo Opus. Nos antípodas da lógica dos banqueiros, nem o PCP, partido que diz reger-se pelo coletivo, escapa a episódios destes. Conforme bem ilustra Carlos Brito, no seu livro «Álvaro Cunhal, sete fôlegos do combatente», o próprio Cunhal não disfarçava os ciúmes dos camaradas mais brilhantes, a quem admoestava o protagonismo. Mas é quando escreve as lutas pela sucessão

do líder histórico comunista que se sente a rivalidade latente do autor com Carlos Carvalhas, uma espécie de «Marcelo Caetano do PCP», que não conseguiu fazer a transição mas que, fica a supor-se, Carlos Brito encetaria, se fosse ele… Perdeu o PCP? Terá, então, perdido o País – veja-se a falta de alternativas credíveis que temos à esquerda…

gastos de que ainda hoje não recuperou. Será que algo teria sido diferente? Mário Nogueira, da Fenprof, protagonizou o combate dos professores, com Maria de Lurdes Rodrigues. A falta de diálogo demonstrada por ambos sobreviveu às tentativas de pacificação de Isabel Alçada e culminou na recente suspensão da avaliação dos professores, tendo-se regressado à estaca zero e perdido quatro anos. Quanto custará isto ao País? A 12 de março, a manifestação protagonizada pela «geração à rasca», trazia a semente de uma rivalidade entre gerações que a participação transversal de gente de todas as idades atenuou. Mesmo assim, subsiste a incómoda sensação da existência de uma espécie de complexo de Édipo dos «precários», ansiosos por «matarem o pai.» Freud também teorizou sobre isto. E o dinamarquês do FMI, Paul Thomsen, depois de algumas semanas a tentar entender Portugal, bem pode vir a precisar de ir ao psicólogo.

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FALTAVA A GERAÇÃO À RASCA…

Os casos sucedem-se: por causa da censura de Sousa Lara ao livro O Evangelho segundo Jesus Cristo, impedido de se candidatar ao Prémio Literário Europeu, o País pode não ter ganho um importante galardão cultural – e Saramago autoexilou-se em Lanzarote. A Casa Museu agora ali inaugurada, que angaria verbas e prestígio, estaria hoje em Portugal. Carrilho recusou-se a apertar a mão a Carmona Rodrigues, em direto, na SIC, e terá perdido aí as eleições. Entretanto, Lisboa não foi poupada a uma sucessão de casos de corrupção e dinheiros mal


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Viver com o FMI

Mais cortes nos salários, despedimentos na Função Pública e emagrecimento das empresas públicas. Para todos, menos dinheiro no bolso e reduzir o consumo será a palavra de ordem Por Cesaltina Pinto

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CONTA-ME COMO FOI… EM 1977/79 E EM 1983/85 As duas vezes em Portugal foi intervencionado pelo FMI, teve como medida principal a desvalorização da moeda, algo impossível de fazer com a moeda única. Os salários mantiveram-se, o que criava nas pessoas a ideia de não terem sido diretamente afetadas, mas o dinheiro valia menos, devido à inflação entretanto verificada. Em termos político-partidários, em ambas as ocasiões o FMI impôs uma maioria parlamentar de apoio ao Governo, para que o programa passasse no Parlamento. Em 1977-78, negociou-se uma maioria PS-CDS. E, em 1983, fez-se o Bloco Central, com maioria do PS-PSD, que durou o tempo suficiente para a vigência do acordo. Da segunda vez, uma das metas era a integração de Portugal na CEE, o que veio a acontecer em 1985, com a assinatura do tratado de adesão.

‘Violámos a disciplina do euro – fomos o sobrinho pobre que foi viver com a tia rica (alemã) e achámos que o dinheiro dela (e a taxa de juro que ela cobrava) também era nosso, porque ela nos emprestava o que lhe pedíamos. Como a tia acreditou que o sobrinho era sério, e porque tinha dinheiro para o ajudar, entrámos num mundo de fantasia’ Joaquim Aguiar, economista 29 de abril de 2011 MAGAZINE 25


um país à rasca

Cerca de 300 mil pessoas estiveram na manifestação organizada pelo movimento Geração à Rasca, em Lisboa e no Porto

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Diário do cão de Sócrates O suposto diário da alegada mascote de São Bento está a fazer furor. O cão de Sócrates vende que se farta e a sua fama já transpôs fronteiras… Por Filipe Luís Aterrou como um OVNI nas livrarias e provocou o mesmo tipo de estupefação que um homenzinho verde, vindo diretamente de Marte, causaria. De repente, só para dar um exemplo, chegou ao «top Bulhosa» de vendas. E jornais como o Corriere della Sera (Itália), The Times (Grã-Bretanha), ou El Mundo (Espanha) deram-lhe quase tanto destaque como às obras de José Saramago. Com dois meses de vendas, a 15 euros, a editora Esfera dos Livros já vai na terceira edição – e pode não parar por aqui. O Cão de Sócrates (da autoria de António Ribeiro, um pseudónimo), bem poderia ser um dos seus assessores – ou um dos seus ministros – desejosos de se vingarem de alguns maus tratos, ou, simplesmente pelo gozo do interdito. Ou então, um opositor interno do PS, um membro da oposição que não quer aparecer, um jornalista que recusa dar o flanco, um blogger anónimo mas atento à atualidade. Seja como for, o cão de Sócrates, uma presumível mascote, «colega» do famoso Bo, de Barack

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Obama, constrói um diário impiedoso do dia-a-dia de São Bento, percorrendo, uma a uma, e um a um, as incidências e os acontecimentos da política doméstica, do Freeport à Cimeira da NATO. E, se nenhuma outra pista houvesse – e é que as há – o autor, que justifica o anonimato por não querer «voltar ao canil municipal ou a São Bento», ter-se-ia denunciado numa única frase: «Naquela manhã, assim que soube que o dr. Passos Coelho ia lá a casa, tratei de me posicionar estrategicamente na sala de jantar que dá acesso direto à sala de audiências.» Trata-se de alguém, portanto, que, ou recebeu instruções precisas sobre a geografia de São Bento ou então conhece a residência oficial como a palma da sua mão…

OS JORNALISTAS

O cão confessa-se: «Estava de castigo e maldisposto. Tinha mordido um jornalista, aqui em São Bento.» E avisa: «Aprendi a rosnar com convicção e a morder impiedosamente. E aprendi tudo

um animal feroz

O cão de Sócrates aprendeu a rosnar com convicção e a morder impiedosamente ao observar o dono nos debates televisivos e na Assembleia da República isto a observar o meu dono nos debates da televisão ou na Assembleia da República.» Mais tarde, recebe das mãos do dono, clandestinamente, um pacote de bolachas para cães: «Sabes cão, aquilo é que foi uma boa dentada! És tão feroz como eu, pá!»

CAVACO SILVA

Inquieto, o cão interroga-se: «Teria este tal Presidente um cão? Se tivesse, pelas rígidas regras do protocolo do Estado, o cão do Presidente seria mais importante que o cão do primeiro-ministro. (…) Os meus receios aumentaram quando, aqui pelos corredores da casa, ouvia muitas referências ao ‘animal de Belém’.» Mas as impressões do cão são coloridas quando vê Cavaco pela primeira vez: «Nada tenho contra o sr. Presidente, mas não tenho culpa de que a sua cara seja terrivelmente parecida com o rosto do guarda do primeiro canil municipal que frequentei e que, mesmo quando sorria (o que era raro), parecia estar a chorar. Gabava-se do facto de nenhum cão à sua guarda ter fugido do canil. Era um ho-


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angela merkel

Nem a chanceler alemã escapa aos incisivos caninos do cão de Sócrates, cujo instinto canino entra em alerta sempre que a avista. Uma mordida que lhe vale um ataque de vómitos mem sonso, falso, cabotino e calculista. Ainda hoje tenho pesadelos com ele.»

O DIPLOMA

Habituado a roer despachos e orçamentos do Estado, sem nada de especial lhe acontecer, o cão de Sócrates haveria, porém, de cometer um erro. Ele, que fora ensinado a destruir à dentada todos os exemplares do semanário Sol que encontrasse, desta vez, fez asneira e da grossa. «Mas como podia eu saber que aquele pedaço de papel que rasguei e comi era tão especial para o meu dono? (…) Este era fininho, uma folha apenas, estava cheio de números e de letras e tinha um emblema no topo da página. Uma coisa aparentemente rasca, sem valor, mas que afinal era valiosíssima. Como é que eu ia saber que aquilo era o certificado de habilitações do meu dono, do seu curso de engenheiro?»

o pessoal do meu partido, o sr. Presidente da República e a comunicação social. Eu também, porque assim ganho tempo para ir fazendo os contatos realmente importantes, pá!»

FORMAÇÃO DO GOVERNO

«Sabes, cão, ganhar as eleições sem maioria absoluta é como sobreviver a um acidente de avião, mas ficar a boiar num mar infestado de tubarões: a alegria por termos sobrevivido passa depressa quando percebemos que muito dificilmente vamos chegar ao fim do dia vivos!» Depois de comparar os jornais deste período com os desportivos, no defeso, que anunciam grandes contrata-

COM OS OUTROS LÍDERES

Após as eleições de 2009, Sócrates recebe os líderes partidários. A reunião com Manuela Ferreira Leite «seguiu os padrões: passados cinco minutos de estarem a sós na sala, e como nunca comunicavam entre eles, já estavam os dois a dormitar». Com os outros, foi diferente: «Falaram do tempo que fazia, puseram as séries da Fox e do AXN em dia, trocaram telefones de restaurantes, beberam um cafezinho e saíram (…) Nem sempre os bastidores da política são complexos, tortuosos ou hipócritas: ‘Sabes, cão, assim todos ficam satisfeitos. Os senhores da oposição,

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o livro

O Cão de Sócrates António Ribeiro (pseudónimo) Esfera dos Livros

ções para os clubes e acaba tudo na vinda de sul-americanos desconhecidos, e de testemunhar que o primeiro telefonema é sempre para António Vitorino, o cão conclui: «O meu dono foi descendo as expectativas até acabar a compor um Governo da mesma forma que uma equipa de futebol do fim da tabela arranja jogadores: com os emprestados, os lesionados, os que mais ninguém quis e os que estão em fim de carreira.»

ANGELA MERKEL

«Por alguma razão, o meu instinto de cão dá sinais de alerta assim que vejo a senhora Merkel.» Com a cauda pisada pela chanceler alemã, o cão descreve: «Abri os olhos e vi que o objeto que me pisava era a perna esquerda da senhora Merkel. Uns segundos depois, tomei a consciência de que ainda tinha os dentes ferrados na perna da chanceler alemã. Não sei se foi dos comprimidos ou de a perna não estar depilada, mas sofri um ataque de vómitos.» No final do dia, já com Merkel pelas costas, e depois do comentário televisivo do prof. Marcelo, a lembrar que «o cão mais não fazia do que imitar o dono, pois o primeiro-ministro também é dos que filam pelas canelas», Sócrates, «visivelmente satisfeito», apaga a televisão. «Por instantes, fez-se silêncio e os olhos de todos focaram-se em mim. Um primeiro aplauso fez eclodir uma saraivada de ‘vivas’ e ‘hurras’ e todos os assessores correram para mim para me fazerem festas e levarem ao colo.» Um final feliz, portanto.


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josé carlos de vasconcelos

Entendimento, um dever patriótico A partir do chumbo do PEC 4, o recurso ao FEEF e ao FMI tornou-se inevitável. José Sócrates (JS), tantas vezes acusado de mentir, falou verdade quanto às consequências do chumbo. Tal facto, e o ter-se batido contra esse recurso - amargo remédio para debelar no imediato um mal, mas que só agrava o estado geral do doente -, não exclui, porém, as suas, e do Governo, responsabilidades. Suas e de outros, muitas e variadas. Imputá-las, de forma exclusiva ou predominante, ao PSD por aquele chumbo, é absurdo e constitui um erro, até do ponto de vista eleitoral do PS. A menos que JS demonstre que com o PEC 4 os dirigentes europeus se comprometeriam a estabelecer uma «linha vermelha» que nos livraria do FMI; e que Pedro Passos Coelho (PPC) o sabia. Como, porém, poderia sabê-lo se, dizia, Sócrates só lhe dera conhecimento do PEC pelo telefone, na manhã em que o apresentou em Bruxelas? Mas, de repente, o próprio PPC vem revelar que afinal fora na véspera e num encontro pessoal, a pedido de JS. Então porque é que JS não o revelou ele, antes? Estaria a guardar esse trunfo para a campanha eleitoral? E porque é que PPC só o disse, mas disse-o, agora: terá sido para o evitar? E se JS lhe quis «comunicar» o conteúdo do PEC 4, de viva voz, isso não teria implícito querer saber a sua opinião? Porque é que PPC não a deu e se colocou depois numa posição irredutível quanto a propostas de alteração e de irremediável chumbo? Há nisto e noutras coisas, que agora aqui não cabem, muito jogo, muitas sombras e incógnitas. Ora, os portugueses têm direito a, pelo menos, ter a certeza de que os dois maiores partidos do País e os seus líderes, chegados onde chegámos e obrigatório que é o entendimento entre ambos, colocam o interesse nacional acima de questões partidárias, conflitos pessoais ou

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estados de alma. Sócrates, incensado ou ungido num congresso que foi quase (quase, graças a Jaima Gama e poucos mais) só um grande comício, não pode continuar a ser incapaz de diálogo à esquerda e à direita; PPC não pode pôr como condição para uma solução com o PS que ela não passe pelo líder socialista. E exige-se que pelo menos a agressividade esteja ausente da próxima campanha eleitoral.

DOCUMENTO DOS 47

Creio, de resto, que a grande importância e o grande significado de que se reveste o «documento dos 47» sobre a si-

«Os portugueses têm direito a ter a certeza, pelo menos, de que os maiores partidos e seus líderes, colocam os interesses nacionais acima dos partidários»

tuação portuguesa, publicado no último Expresso, subscrito pelos três anteriores Presidentes da República, pelos reitores das principais universidades, líderes das maiores fundações, destacados artistas, cientistas, empresários, etc., reside em mostrar como é possível haver convergência, mesmo acordo, sobre alguns princípios e pontos essenciais para o futuro próximo de Portugal entre cidadãos de muito variados setores ideológicos e do pensamento, além de geracionais e profissionais. E mais do que possível, como é indispensável que isso aconteça.

FERNANDO NOBRE

A anunciada polémica candidatura de Fernando Nobre às próximas legislativas como n.º 1 da lista do PSD por Lisboa, e depois à presidência da Assembleia da República (AR) tem um aspeto positivo e outro negativo. O positivo será o de representar abertura do partido a quem não lhe pertence e a uma eventual renovação política. «Será», se tal se vier a confirmar com outros candidatos. Se não vier, fica só o negativo: o aproveitamento eleitoralista de quem nas presidenciais teve 600 mil votos, mas mostrou muita impreparação política. Aproveitamento no próprio tempo de revelação da candidatura, e que assenta num equívoco. Nobre conquistou tantos votos por estar à margem dos partidos e ser crítico da sua lógica. Ora, além de ninguém ser dono dos votos, ao aceitar encabeçar uma lista partidária, cujo programa estará muito longe do seu, de imediato os perde – e perde a própria credibilidade. E, por fim, só por ingenuidade não terá ocorrido ao respeitável criador da AMI que mesmo o PSD ganhando as eleições, o mais provável é ele não ser eleito presidente da AR. Porque tal eleição exige maioria absoluta e é por voto secreto. Ora, por boas e más razões, nem sequer todos os deputados do PSD votarão nele...



Curtas o ‘playboy’ do f-40

Líbia A guerra suja A Aliança Atlântica é acusada de tentar eliminar Kadhafi, ilegalmente. ONU saiu de Trípoli. O ataque aéreo ao complexo residencial da família de Muammar Kadhafi, em Trípoli, sábado à noite, na sequência do qual morreram um dos seus filhos e três dos seus netos, levou a acusações de que a NATO está a exceder o mandato que recebeu das Nações Unidas e provocou reações «populares», incluindo a pilhagem de várias embaixadas. Os doze funcionários da ONU que ainda se encontravam na capital foram evacuados. Tratou-se do segundo ataque em apenas sete dias a alvos diretamente ligados ao coronel e do quarto desde que as operações militares começaram. «As afirmações dos representantes da Aliança de que os ataques na Líbia não têm por objetivo a destruição física de Kadhafi levantam sérias dúvidas», disse o ministro russo dos Negócios Estrangeiros. Sergeui Lavrov, que alertou para a «desproporção» dos meios utilizados no conflito. A Rússia pediu, aliás, como a China, um cessar-fogo imediato. As Nações Unidas autorizaram a criação de uma zona de exclusão aérea, com o intuito de proteger civis. Mas uma ten-

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tativa de matar Kadhafi seria contra o Direito Internacional e estaria «claramente para lá» dos objetivos do mandato, e ainda mais sem uma declaração formal de guerra, observa Micah Zenko, do Council of Foreign Relations. O primeiro-ministro britânico, David Cameron, pareceu defender-se das acusações, ao dizer que, para prevenir a perda de vidas civis não se pode eliminar apenas «tanques e armas», é preciso eliminar também as estruturas de «comando e controlo» do poder líbio. O assassínio do coronel foi, no entanto, abertamente defendido nos Estados Unidos: «Onde quer que Kadhafi se encontre está-se perante um ato militar legítimo», disse o senador Lindsey Graham à cadeia televisiva Fox News. «É um assassino e não um líder estrangeiro», justificou, quando lhe lembraram a ilegalidade de tal ato. A eventual eliminação de Kadhafi, pedida, aliás, pelos rebeldes, imediatamente a seguir à notícia da morte de Bin Laden, poderia trazer, segundo observadores, uma solução rápida para um conflito que de outra forma ameaça arrastar-se.

Saif al-Arab, 29 anos, o sexto e um dos menos conhecidos filhos do líder líbio, foi a enterrar na segunda-feira, perante uma multidão de 2 mil pessoas mas sem a presença do pai. Saif viveu em Munique, enquanto estudante, onde era tido como um playboy que passava a vida em festas e incomodava os vizinhos com o escape livre do seu Ferrari F-40. Foi investigado várias vezes pela polícia germânica, por causas tão variadas como excesso de velocidade, rixas nas ruas e tráfico de armas. Na Líbia, tinha a seu cargo a divisão militar encarregada de suprimir os protestos em Bengazi. Os três netos do ditador líbio, todos com menos de 12 anos, foram sepultados na mesma ocasião.

Suíça congela depósitos

Cerca de mil milhões de dólares dos ditadores norte-africanos Hosni Mubarak (Egito), Zine Al-Abidine Ben Ali (Tunísia) e Muammar Kadhafi (Líbia) foram congelados pelas autoridades suíças. Encontraram-se contas no valor de 415 milhões, no caso líbio, e de 410 milhões e 60 milhões nos casos egípcio e tunisino, respetivamente.

VIAGRA PARA VIOLAÇÕES

O procurador do Tribunal Penal Internacional (TPI) Luis Moreno Ocampo assegurou, na segunda-feira, 2, ter «provas sólidas» de que crimes contra a Humanidade foram cometidos na Líbia, nomeadamente o assassínio deliberado de civis, torturas e sequestros. o TPI está a investigar, também, acusações de que as tropas de Kadhafi estão a usar a violação como arma de guerra, a ponto de, alegadamente, terem sido distribuídos comprimidos de viagra.


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À caça de Harry São jovens, impiedosas – e em busca de um príncipe. Viagem ao interior do mais recente fenómeno social de Londres: as jovens americanas que buscam o mais pretendido dos solteiros britânicos Por Richard Dennen

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‘Harry tem aquele magnetismo descuidado e o sorriso maroto’ Jerramy Fine, escritor norte-americano

Harry e chelsy davy

Apesar de ter uma namorada ofícial, o príncipe continua a ser perseguido em todos os locais de Londres

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jennie jerome

A mãe de Winston Churchill foi uma das primeiras americanas a tentar caçar um príncipe inglês — foi amante de Eduardo VII

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wallis simpson

O precedente mais espetacular da «Caça a Harry». Por causa desta americana divorciada, Eduardo VII abdicou do trono inglês


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Sucessão Primeiro as senhoras O governo inglês iniciou uma operação, em contrarrelógio, para alterar a lei de sucessão ao trono inglês: tentar aprovar, entre todos os países da Commonwealth, a regra que o primeiro filho do casal William e Kate, que casam a 29 de abril, seja o herdeiro do trono britânico, independentemente de ser menino ou menina. Atualmente, vigora ainda a lei do filho primogénito: o rapaz, mesmo que seja o último a nascer, tem sempre direito ao trono. Segundo o jornal The Times, a rainha Isabel II, que só herdou a coroa do seu pai Jorge VI porque não existiam herdeiros masculinos, é uma apoiante confessa desta mudança na lei, que o governo de David Cameron vai agora propor aos seus aliados, a tempo de poder ser aprovado na cimeira de chefes de governo da Commonwealth, em outubro, na Austrália. A mudança na lei necessita da aprovação formal por parte dos parlamentos dos 15 países onde a rainha de Inglaterra é chefe de Estado, e o consentimento por parte do resto dos 54 países da Commonwealth. 42 MAGAZINE 29 de abril de 2011


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O artista ativista Ai Weiwei é tão célebre pelas suas críticas às autoridades como pela sua arte provocadora. Agora em detenção, tornou-se o símbolo de uma repressão preocupante. Por Austin Ramzy/Pequim

Quando as pessoas escrevem, em sítios web chineses, que «adoram o futuro», esse poderia ser um sentimento bem acolhido pelo Governo. Afinal, as autoridades de Pequim têm insistido com os seus cidadãos para aderirem às brilhantes perspetivas económicas do país. Mas, ultimamente, «adorar o futuro» assumiu um novo significado. Na net, as pessoas começaram a usar a frase, que se pronuncia «ai wei lai», em mandarim, como código para o artista e ativista

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político Ai Weiwei, cujo nome se tornou demasiado sensível para ser introduzido ou procurado em muitos sítios web chineses, após a sua detenção pela polícia, a 3 de abril. Ai é o artista moderno mais conhecido do país, com uma exposição atual de 100 milhões de sementes de girassol, de porcelana, na Tate Modern, de Londres. A sua coleção de cabeças de animais, de bronze – réplicas das que foram saqueadas do Palácio de Verão de Pequim por

tropas francesas e britânicas em 1860 –, deverá ser exposta no Central Park, em Nova Iorque, em maio. Filho de Ai Qing, um estimado poeta revolucionário cujas palavras o primeiro-ministro Wen Jiabao consegue recitar de memória, Ai Weiwei, participante ativo online, com 78 mil seguidores no Twitter, emergiu, em 2008, como um dos mais destacados críticos do Partido Comunista, chamando a atenção do público para alguns dos acontecimentos mais


Protestos

As sementes de girassol de porcelana, em exposição na Tate Modern (Londres), têm servido de palco a centenas de apoiantes de Ai Weiwei, onde estes têm tirado fotografias com mensagens a exigir a libertação do artista por parte do Governo chinês

trágicos da China. Depois do terramoto de Sichuan, em 2008, Ai começou a perguntar quantas crianças morreram nas escolas que ruíram. Nessa ação, acabou por organizar grupos de voluntários que percorreram as cidades de montanha a enumerar a vítimas: contaram quase 6 mil crianças mortas. Ai produziu, igualmente, um documentário acerca de um homem que matou seis polícias de Xangai, aparentemente como vingança pelos abusos que sofrera

na prisão. Mais recentemente, começou a interessar-se pelo caso de Qian Yunhui, um chefe de aldeia da província de Zhejiang, que algumas pessoas, na China, suspeitam ter sido assassinado por ordem de funcionários corruptos. Agora, ao fim de anos a levantar questões delicadas e a twittar praticamente todas as suas ações e pensamentos, Ai ficou curiosamente calado. Tem sido mantido incontatável em local não revelado de Pequim, enquanto a polícia o investiga por suspeitas de crime económico. O seu silêncio levanta uma pergunta sensível: quantos – se é que algum – dissidentes chineses estará o Governo disposto a tolerar?

UM REBELDE SUBTIL

Ai nasceu em Pequim, em 1957, durante a primeira vaga da campanha anticonservadora de Mao, quando centenas de milhares de intelectuais foram perseguidos pela sua suspeita oposição às reformas económicas radicais. A sua família foi exilada na região ocidental de Xinjiang, onde o seu pai era obrigado a limpar latrinas.

A família voltou a Pequim em 1976, e, poucos anos depois, Ai foi para Nova Iorque, onde começou a pintar, a tirar fotografias e a produzir trabalhos subtilmente rebeldes, como um violino com um cabo de pá. Entrou em greve de fome após a repressão de 1989, em Tiananmen, mas continuou fora da China até à débil saúde do pai o levar de volta a casa, em 1993. «Este é o teu país», disse-lhe o pai, no leito de morte, aconselhando-o: «Não sejas delicado.» Ai Weiwei pouco precisava de incentivo. Um dos seus trabalhos mais famosos desse período foi uma série de fotografias intitulada Estudo de Perspectiva, que o mostravam a revirar monumentos culturais e políticos como a Casa Branca ou a Praça do Povo (Tiananmen). Outra série mostrava-o a largar uma urna da dinastia Han, para simbolizar a destruição da História da China. Organizou a elaboração de mapas do país, sobre madeiras de velhos templos, esculturas construídas com bicicletas e imensos candelabros que imitavam a ostentação

29 de abril de 2011 MAGAZINE 45


dos funcionários comunistas. O tema unificador era «fazer perguntas através de objetos», diz Philip Tinari, um especialista em arte chinesa, residente em Pequim. E, depois, Ai começou a fazer ele próprio cada vez mais perguntas. Inicialmente, a sua proeminência parecia conferir-lhe um grau de proteção de que outros ativistas não gozavam. Ai não foi punido por denunciar publicamente os Jogos Olímpicos de Pequim, em 2008, como um espetáculo de propaganda. Mas essa ilusão de segurança desapareceu em 2009, quando foi atacado por polícias, em Chengdu, ao tentar assistir ao julgamento de Tan Zuoren, um ativista que o ajudara a inventariar os alunos mortos no terramoto. Mais tarde, em consequência disso, Ai seria sujeito a uma cirurgia intracraniana, em Munique, para debelar uma hemorragia interna. Mas este problema pouco fez para aplacar a sua vontade de criticar. «Todos temos preocupações, mas ser assustado não ajuda», disse ele à revista Time, no ano passado. «É preciso mais gente a falar e a participar para que a mudança social seja possível.»

ONDA REPRESSIVA

Agora o ativismo de Ai embateu contra uma ampla repressão da dissidência na China. Depois das revoluções populares na Tunísia e no Egito, uma declaração anónima, num sítio web estrangeiro em

46 MAGAZINE 29 de abril de 2011

língua chinesa, anunciou que os protestos iriam chegar ao Império do Meio. Isso terá sido o suficiente para desencadear a repressão, mas é preciso olhar para outros fatores. Em especial para o facto de a liderança do país ir mudar, no próximo ano, e os funcionários não quererem ser vistos como demasiado contemporizadores. Os ativistas e advogados são considerados particularmente em risco, diz Eva Pils, professora de Direito na Universidade Chinesa de Hong Kong. «Existe uma percepção de que são ameaçadores», diz Pils. «E, nos últimos dois anos, a fação política, dentro da liderança, que quer tratar deles de maneira muito repressiva, ganhou.»

A China passou por muitos períodos politicamente tensos, nos últimos anos, como o 20.º aniversário, em 2009, do massacre de Tiananmen ou os meses que se seguiram à conquista do Prémio Nobel da Paz pelo dissidente aprisionado Liu Xiaobo. Mas a atual repressão é preocupante, diz Renee Xia, diretor internacional dos Defensores dos Direitos Humanos Chineses, pois os seus alvos incluem pessoas que evitaram apelos diretos à mudança política e eram geralmente toleradas no passado. «Não são propriamente militantes políticos», diz Xia. «Os detidos e desaparecidos são artistas, ativistas da sociedade civil e cidadãos que chamam a atenção para problemas sociais e económicos.» Desde meados


Info:

213. 111. 400

29 de abril de 2011 MAGAZINE 47


Tragédia

Ai Weiwei com a lista das crianças que morreram nas escolas, no terramoto de Sichuan, em 2008 de fevereiro, as forças de segurança de todo o país colocaram pelo menos 200 ativistas sob qualquer forma de detenção ou prisão domiciliária e prenderam formalmente 26 pessoas, enquanto outras 30, incluindo sete advogados, desapareceram, segundo Xia. Ai Weiwei foi um dos últimos a ser apanhado. Foi detido quando se preparava para embarcar num voo para Hong Kong, e o Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês anunciou, passados quatro dias, que ele era suspeito de «crimes económicos» (o que muitas vezes significa evasão fiscal). Pouco mais foi tornado público. A mãe de Ai, Gao Ying, garante que a família não foi informada da detenção. «Como poderia uma mãe não estar preocupada?», pergunta ela. «Queremos contatar com as autoridades, mas nem sequer sabemos onde ele está.» «Podem,

48 MAGAZINE 29 de abril de 2011

efetivamente, não saber como prosseguir com o processo de Ai», diz Joshua Rosenzweig, gestor da Fundação Dui Hua, um grupo de Direitos Humanos, com sede em Hong Kong. «Uma coisa é certa: dizer que é suspeito de crimes eco-

‘Os detidos e desaparecidos são artistas, ativistas da sociedade civil e cidadãos que chamam a atenção para problemas sociais e económicos.’ Renee Xia, diretor internacional dos Defensores dos Direitos Humanos Chineses

nómicos destina-se a impedir acusações daqueles que querem ver isto como uma perseguição por motivos políticos.» A detenção de Ai fixou os holofotes globais na atual vaga de repressão. Os EUA, a UE, Austrália, Grã-Bretanha, França e Alemanha referiram-se ao caso, e o embaixador cessante dos EUA na China, Jon Huntsman citou Ai, especificamente, no discurso de despedida de Xangai. «Como resultado, as pessoas compreendem que a China pode fazer desaparecer cidadãos, subitamente», diz Alison Klayman, um jornalista e realizador que está a produzir um documentário sobre o artista, intitulado Ai Weiwei: Never Sorry. «Foi o que ele disse, e agora as pessoas podem entendê-lo.» Uma ironia que Ai haveria de apreciar: as suas críticas ao Estado chinês podem ser tanto mais ouvidas quanto ele não pode ser escutado.


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victor ângelo

Para além da guerra

O editorial sobre a Líbia, que os presidentes dos EUA e da França, o primeiro-ministro britânico, publicaram há uns dias não tem merecido a atenção que deveria. Na minha leitura, trata-se de uma maneira moderna, bem embalada num conjunto de motivos nobres, de fazer o que os grandes Estados sempre fizeram: impor ultimatos e declarar a guerra. Estamos, no entanto, perante apostas de alto risco. Houve, no passado recente, outros ultimatos, nem sempre bem-sucedidos. Lembro-me, depois da farsa eleitoral de 2002, que Blair e outros europeus deram um prazo a Mugabe, para que deixasse o poder. A verdade é que o velho ditador continua a dar cartas. As nações ocidentais acabaram por ter de encontrar uma plataforma de acomodação com o regime. Receio que o mesmo venha a acontecer com o Coronel. Não creio ser possível sustentar a operação da NATO por muito tempo. Por outro lado, a intervenção atual não é suficiente para o fazer cair. Para tal, seria necessário destacar tropas estrangeiras para o terreno, uma hipótese impensável. Fico com a impressão de que a posição

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dos três líderes é de consumo corrente, para eleitor ver e pouco mais. Ou seja, como se tornou hábito, fazem-se grandes declarações, hoje, na base de princípios humanitários, sem uma estratégia para amanhã. É a política em alta velocidade e de memória curta. Quem não entende esta maneira de fazer as coisas é Aznar. Na conferência que acaba de pronunciar na Universidade de Columbia, o antigo primeiro-ministro espanhol refere-se a Kadhafi como sendo um amigo do Ocidente. Acha, por isso, que atacar o homem de Trípoli é um erro. Aznar mostra viver em tempos idos, quando os ditadores eram poupados, por serem aliados do Ocidente. Hoje, com as redes de comunicação social a fazer pressão, nenhum líder ousa

«Quanto ao diálogo entre culturas, o objetivo é promover a liberdade de expressão, incluindo a religiosa, e combater os preconceitos.»

invocar esse tipo de argumentos. Como se pode ver na peça assinada por Obama, Sarkozy e Cameron, a argumentação assenta, agora, na referência às Nações Unidas e a valores universais. Afora o imediato, interessa saber qual será o impacto das transformações políticas que estão a decorrer no mundo árabe sobre as relações internacionais. E, no nosso caso, sobre o relacionamento da Europa com os países da margem Sul do Mediterrâneo. Já começou, nas instituições europeias, um início de reflexão sobre o assunto. O Conselho da Europa, através do Centro Norte-Sul, deverá organizar um fórum internacional sobre a matéria, em Lisboa, nos inícios de Novembro. Convém aprofundar esta reflexão sobre o futuro. Haverá que pensar em termos políticos, bem como de desenvolvimento e de diálogo entre culturas. Do ponto de vista político, as questões mais salientes têm que ver com o futuro da Palestina, a segurança de Israel, a normalização das relações com o Irão e o acompanhamento da transição democrática da região. Que papel deve a Europa desempenhar em cada uma destas áreas? E que mudanças de atitude, na maneira de ver o vizinho Sul, deverão ter lugar? Quanto ao desenvolvimento, penso que é contraproducente falar de um Plano Marshall, financiado pelo exterior. O repto é o de canalizar os enormes recursos existentes na região. Para diversificar as economias, investir na formação profissional e no emprego, preparar a fase pós-petróleo. A emigração será certamente um tema central, mas que não se resume à multiplicação dos guarda-fronteiras. Quanto ao diálogo entre culturas, o objetivo é promover a liberdade de expressão, incluindo a religiosa, e combater os preconceitos. Como diria o outro, há muita matéria em que pensar, para além da guerra.


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É tempo de contas! Com a gasolina acima dos 1,5 euros e o gasóleo a ultrapassar o patamar dos 1,4 euros, será que ainda compensa comprar um carro Diesel? Ou, em face destes preços, a melhor solução é optar pelas novas tecnologias como os híbridos ou os 100% elétricos?

As simulações realizadas pela Leaseplan, empresa líder no mercado da gestão de frotas, mostram os custos com diferentes veículos familiares de gama média e compreendem uma utilização de 20 mil quilómetros, durante um período de 5 anos.

Por Paulo M. Santos

VW golf vi

ford focus

1.4 TSi Confortline 1.4 122 Cv

1.6 TDCi Trend 1.6 115 Cv

€ 24 380

€ 25 920

Despesas anuais IUC (imposto único de circulação) Manutenção Pneus Combustível Total Total (5 anos) Preço do carro + despesas (5 anos) Valor de retoma Gasto líquido com o veículo

Veículo a Gasolina 52 MAGAZINE 29 de abril de 2011

196 409 174 2 132 2 911 14 555

38 936 7 203 31 732

Despesas anuais IUC (imposto único de circulação) Manutenção Pneus Combustível Total Total (5 anos) Preço do carro + despesas (5 anos) Valor de retoma Gasto líquido com o veículo

Veículo a Gasóleo

157 316 305 1 334 2 112 10 599

35 518 9 678 26 151


ao ritmo da crise

O aumento da carga fiscal e os tempos de austeridade estão a levar os portugueses a repensar a aquisição de automóvel novo

Vendas de veículos ligeiros de passageiros 14 579

jan/10

15 436 23 860 16 202

fev

mar

19 232

26 032

20 291

11 931

13 918

15 347

18 579

28 142

13 226

13 413

mai

jun

jul

ago

set

out

nov

dez

jan/11

fev/11

abr

fonte: ACAP

nissan leaf

toyota prius

1.8 Sol 1.8 99 Cv

Leaf 109 Cv

€ 29 219

€ 30 850

Despesas anuais IUC (imposto único de circulação) Manutenção Pneus Combustível Total Total (5 anos) Preço do carro + despesas (5 anos) Valor de retoma Gasto líquido com o veículo

236 241 246 1 066

Despesas anuais IUC (imposto único de circulação) Manutenção Pneus Combustível

0 355 151 0*

1 789 8 946

Total Total (5 anos)

506 2 530

38 165 7 535 30 630

Preço do carro + despesas (5 anos) Valor de retoma Gasto líquido com o veículo

33 380 6 166 27 214

* O custo da eletricidade está incluído na manutenção

Veículo Híbrido

Veículo Elétrico 29 de abril de 2011 MAGAZINE 53


gasóleo à frente Ainda compensa comprar um veículo a gasóleo? A recente escalada do preço do petróleo está a tornar a fatura dos combustíveis demasiado dispendiosa para os bolsos dos portugueses. O preço médio da gasolina já atingiu €1,559, enquanto o do gasóleo está nos €1,407. O diferencial entre um combustível e outro é de apenas 10,8%, quando, há dois anos, era superior a 13 por cento. Perante esta evolução, levanta-se cada vez mais a questão de decidir qual o tipo de motor a escolher. A conta não é fácil de fazer. Existem muitas variáveis para analisar. Afinal, o consumo de combustível é só uma das componentes do custo de um veículo. O que se gasta com a aquisição, o valor da retoma, os quilómetros que se percorrem por ano, o preço da manutenção, o imposto de circulação, o desgaste das peças, entre outros, são fatores que podem desequilibrar a balança. Apesar de o combustível ser mais caro, os veículos a gasolina continuam a ter a vantagem de serem mais baratos. Para um condutor que faça muitos quilómetros por ano, a diferença tende a esbater-se, ao fim de dois ou três anos. Mas, para um automobilista que não percorra mais de 10 mil quilómetros anualmente, o retorno do investimento num carro a gasóleo só será conseguido ao fim de dez ou mais anos. Os Diesel têm, em contrapartida, como grandes vantagens, o menor consumo e o combustível mais barato. Além disso, tendem a ser mais valorizados na altura da revenda. E é neste fator que reside, ainda, a grande compensação para muitos dos portugueses que optam por estes motores. Mas será que o diferencial entre o preço da gasolina e do gasóleo se manterá? «Dentro de poucos anos, os dois combustíveis estarão ao mesmo preço. Desde que os Diesel passaram a ser mais vendidos, a tendência das petrolíferas vai no sentido de aproximarem os preços respetivos», diz uma fonte do sector.

CHEGARAM OS ELÉTRICOS

Mas, mais do que o diferencial entre os preços do gasóleo e da gasolina, o que preocupa os portugueses é o custo atual dos combustíveis. Por causa disso já olham de

54 MAGAZINE 29 de abril de 2011

Os carros com motor diesel continuam a ser os preferidos dos portugueses. No entanto, os novos sistemas híbrido e elétrico, começam a ganhar peso

Vendas de ligeiros de passageiros por tipo de combustível 2003

30 000

diesel

87 750

gasolina

104 455

híbrido

102

elétrico

1

60 000

90 000

120 000

150 000

2004 diesel

114 589

gasolina

85 174

híbrido

471

elétrico

0

2005 diesel

74 127

gasolina

131 590

híbrido

759

elétrico

7

2006 diesel

126 751

gasolina

67 207

híbrido

731

elétrico

0

2007 diesel

139 714

gasolina

60 148

híbrido

1 914

elétrico

0

2008 diesel

147 897

gasolina

63 764

híbrido

1 692

elétrico

0

2009 diesel

107 181

gasolina

52 263

híbrido

1 151

elétrico

0

2010 diesel

149 016

gasolina

72 014

híbrido

1 484

elétrico

18

2011 * diesel

18 667

gasolina

7 771

híbrido

170

elétrico

14 * janeiro e fevereiro fonte: ACAP


Paris

Florença

Tecnologia HD Traffic™ A forma mais rápida de evitar o trânsito no seu país e no estrangeiro com as informações de trânsito mais detalhadas e actualizadas para o seu percurso. Receba a maior, mais detalhada e precisa cobertura do trânsito e chegue tranquilamente e a horas ao destino com o TomTom HD Traffic™. Memoriza e desenha o seu percurso, por mais complexo que seja, para que o possa repetir novamente.

29 de abril de 2011 MAGAZINE 55


outra forma para as várias opções. Os híbridos têm registado uma grande procura nos últimos anos. Trata-se de uma tecnologia que alia um motor elétrico a um motor a gasolina e que possibilita uma grande redução do consumo. O Toyota Prius, por exemplo, o primeiro híbrido a ser colocado no mercado, regista consumos médios de 3,9 litros, ou seja, um valor abaixo dos diesel do mesmo segmento. As opções não se esgotam, porém, nos híbridos. Desde o início deste ano, Portugal passou a contar com veículos 100% elétricos. A Mitsubishi, com o MiEV, e a Nissan, com o Leaf, foram os primeiros a lançar modelos neste novo segmento de mercado. O MiEV, um veículo citadino, está a ser vendido a partir de €29 675. O Leaf, um carro familiar, custa 30 850 euros. Ambos os preços incorporam já o subsídio estatal, de 5 mil euros. Também a Peugeot e a Citroën começaram a comercializar os seus modelos elétricos. No entanto, estes automóveis são versões adaptadas do MiEV. A Mitsubishi já vendeu 12 unidades e prevê fechar o mês com 20 carros elétricos transacionados. As estimativas da marca apontam para que, até ao fim do ano, existam 100 MiEV a circular em Portugal. A Nissan já conseguiu vender 15 unidades do Leaf e espera vender mais cerca de 1 500 até ao final de março do próximo ano. A grande desvantagem desta nova tecnologia é a autonomia: uma carga de bateria só dá para percorrer 160 km. Os elétricos estão concebidos para serem usados em pequenas distâncias, como nas deslocações entre casa e trabalho.

OS SENHORES QUE SE SEGUEM

Para ultrapassar este problema, a General Motors desenvolveu outro conceito: um carro elétrico que usa um motor a gasolina para fornecer carga às baterias. Ou seja, este motor funciona como um gerador de corrente. O Ampera terá uma autonomia de 80 quilómetros, com uma única carga, e, a partir daí, poderá percorrer mais 400 quilómetros, recorrendo ao gerador. Este veículo deverá entrar no mercado português no final deste ano. O preço deverá rondar €42 900, sem o incentivo do Estado incluído. A General

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Opel Ampera

O primeiro carro elétrico que usa um motor a gasolina para fornecer carga às baterias

MAIS & MENOS O CARRO IDEAL PARA SI

Enquanto não surge o combustível perfeito, estas são as principais opções:

Gasolina

Vantagens Preço Performances Desvantagens Consumo Preço de combustível

Gasóleo

Híbrido

Vantagens Vantagens Consumos Preço do combustível Menos poluente Maior durabilidade Desvantagens Preço Preço de revenda Performances Desvantagens Preço Custo da manutenção

Motors considera que o seu grande trunfo é a potencialidade deste modelo para se tornar o primeiro carro do agregado familiar, devido à sua autonomia. Antes disso, chegarão ao mercado dois veículos da Renault, o Fluence, um familiar médio, e o Kangoo, um comercial, ambos elétricos. O primeiro custará 22 mil euros, mas o cliente não adquire a bateria. Essa será paga em leasing, e custará cerca de €75 por mês. Se a bateria se desgastar ou avariar, a marca substitui-a por uma nova, sem custos adicionais. O preço do carro é mais baixo, mas o cliente fica obrigado a pagar uma renda mensal.

Elétrico

Vantagens ‘Combustível’ Ecológico Desvantagens Preço Dificuldade de abastecimento Autonomia limitada

gpl

Vantagens Combustível Menos poluente Desvantagens Dificuldade de abastecimento Investimento adicional Proibido em recintos fechados

Praticamente todas as marcas de automóveis estão a desenvolver os seus veículos 100% elétricos, dentro dos mais variados segmentos – dos pequenos citadinos aos modelos de gama alta. A Hipogest, do empresário Hipólito Rodrigues, importador da Saab para Portugal, quer trazer para o nosso país a BYD, já em 2012. Trata-se de uma marca chinesa empenhada no desenvolvimento de veículos elétricos. Com os preços da gasolina e do gasóleo a subir, os elétricos afirmam-se como uma alternativa cada vez mais forte para contornar os custos dos combustíveis.


29 de abril de 2011 MAGAZINE 57


Curtas

vodka fraturante

Pela identidade, filmar Jovens de bairros problemáticos realizam curtas-metragens sobre as suas vidas. O resultado passará na RTP2. «Façam o filme à vossa maneira. Só não podem ultrapassar os três minutos». Liberdade criativa é coisa que abunda em B.I., uma mistura feliz, composta de cinema, programa de televisão, formação, concurso e responsabilidade social. O resultado desta confusão de géneros poderá ser visto aos sábados à noite, pelas 21 e 30, na RTP2. Em 13 episódios de 25 minutos, B.I. mostra como correram os workshops de cinema em bairros multiculturais do País (Bela Vista, em Setúbal; Ingote, Coimbra; Apelação, Loures; e Casal da Mira, Amadora). E como os teenagers e jovens adultos, dos 13 aos 20 anos, aderiram com enorme entusiasmo. «A ideia de pertença tinha de ser posta em causa», explica Filipa Reis, a coordenadora do projeto, justificando a escolha dos locais. Depois da formação, os rapazes e raparigas foram desafiados a contar uma pequena história, de câmara ao ombro. E os resultados surpreendem: Sara mostra como é ser a única branca no meio dos seus amigos cabo-verdianos; Wilson

58 MAGAZINE 29 de abril de 2011

projeta os sonhos em sombras, numa parede; Arcelindo conta o dia-a-dia de uma vizinha cega… Mas nem todos os 32 filmes produzidos poderão ser vistos na íntegra, naquele canal de televisão. É que, no final da semana de trabalho, o grupo decidia quais seriam as três curtas, por bairro, com direito a passar no pequeno ecrã. E dessa, a equipa de realização escolhia uma para chegar à final. O 13.º programa será diferente. A jornalista Paula Moura Pinheiro modera um debate sobre identidade, o tema central deste projeto. Ao mesmo tempo, irão a concurso os quatro filmes finalistas, um de cada bairro problemático, e o vencedor será escolhido por um júri. O processo começou há um ano, na Bela Vista, durante as férias da Páscoa, e só foi retomado no descanso escolar do verão. Filipa Reis está feliz com os frutos de tão longa produção. «Estivemos todos disponíveis para a partilha e, por isso, recebemos bastante dos jovens. Acima de tudo, despertámos para um respeito profundo pelo outro, apesar da sua diferença.»

A nova publicidade da marca russa de vodka Moskovskaya promete dar que falar. Através do circuito Ócio, da Rede Postalfree – postais de distribuição gratuita presentes em bares, lojas e discotecas de todo o País –, foi lançada uma campanha, no mínimo, provocadora, para divulgar a bebida. Os claims (ou frases) da irreverente ação de marketing são, como se vê na foto, o velho agitprop no seu melhor.

a caminho da extinção?

A fé em Deus vai morrer em, pelo menos, nove países – diz um estudo de investigadores americano. Analisadas as respostas sobre crenças aos censos dos últimos cem anos, e usando um modelo matemático de dinâmica não linear, a equipa concluiu que a fé organizada se está a extinguir na Austrália, na Áustria, no Canadá, na Finlândia, na Holanda, na Nova Zelândia, na República Checa, na Suíça, e, até, na Irlanda. Dos nove Estados, o menos «crente», atualmente, é a República Checa, onde 60% da população diz não ter qualquer inclinação religiosa. Em breve, com os censos de 2011, saberemos o que se passa connosco.

43%

Percentagem de doentes com asma, em Portugal (correspondente a mais de 400 mil pessoas), que não estão a ser controlados – deixando claro que a patologia ainda é mal compreendida e tratada de forma insatisfatória, apesar das avançadas opções terapêuticas atualmente disponíveis.


29 de abril de 2011 MAGAZINE 59


12 irresistíveis aldeias São nossas, históricas e apresentam-se repletas de encantos. Guia com tudo o que precisa de saber e uma sugestão, em fundo: um périplo de lazer e paz, para um fim de semana bem passado. Por Rita Montez

60 MAGAZINE 29 de abril de 2011


O cheiro da lenha a queimar nos fornos acaba por se misturar no ar com o doce odor das bolas e folares, tão enraizados nos hábitos dos aldeões das Beiras, desde tempos ancestrais. São paisagens que, há uma década, passaram a ser anunciadas em cartazes turísticos, através do programa de recuperação e dinamização das aldeias históricas, cujo objetivo é evitar o desaparecimento deste património vivo, que estava demasiado envelhecido e praticamente deserto. Entre as 12 aldeias já classificadas como históricas, que se confundem com as origens de Portugal, existe um elo de ligação, o respeito pela traça dos edifícios e pelo património imaterial. Cada uma delas vive, porém, de uma forma totalmente distinta, entre paisagens recortadas nos vales ou no topo de serras, mas sempre protegidas por cercas defensivas ou castelos. Conheça esse mundo – ao pormenor.

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1 | Marialva Paisagem única

Do alto da povoação, uma enorme cerca de contornos irregulares, dado o relevo do terreno, e um castelo anunciam esta pequena aldeia que luta para preservar intocáveis as suas casas de dois andares, construídas com a pedra da região. Lá do alto, observa-se uma paisagem única, de campos a perder de vista até à fronteira com Espanha. Dentro das muralhas, encontram-se, ainda, vestígios da antiga alcáçova, do tribunal e da cadeia. O interior acaba por se organizar em torno de três ruas, que ligam as três portas da cerca ao largo central. O casario, esse, está hoje quase deserto. Por isso, são os monumentos como o castelo, o pelourinho e a igreja de S. Tiago, com altares de talha barroca, que continuam a atrair as atenções. A vida comunitária há muito que se mudou para fora da cerca, na chamada «devesa», onde, aliás, a população ergue a sua feira, desde o século XVIII. Localização Concelho de Mêda Onde dormir Casas do Coro (www.casasdocoro.pt) – tel.: 91 755 2020. Casa de Manuel Brígida – tel.: 279 859 422. Onde comer Casas do Coro. Quinta da Paiola – tel.: 279 858 016.

2 | Castelo Rodrigo Depósito de História

Ocupada por mouros e romanos, e palco de uma famosa batalha entre as tropas portuguesa e espanhola, em 1664, a vila de Castelo Rodrigo conserva, ainda hoje, bem visíveis, ricas heranças patrimoniais e culturais. Ergue-se no topo de uma colina, que contrasta com o planalto que se estende até ao vale profundo por onde corre o rio Douro. Do foral concedido em 1508, por D. Manuel, encontra-se intacto o pelourinho, no centro, onde se encontram as casas dos habitantes. As lendas da região contam que a vila chegou a acolher S. Francisco de Assis, durante uma peregrinação. Destaque-se, ainda, o palácio, a cisterna, a igreja do Reclamador e o Convento de Santa Maria de Aguiar. Localização Concelho de Figueira de Castelo Rodrigo Onde dormir Casa da Cisterna e Mikwëh (www.wonderfulland.com/cisterna) – tel.: 271 313 515. Hospedaria do Convento (www. hospedariadoconvento.pt) – tel.: 271 313 819. Onde comer As Piscinas – tel.: 271 311 234. O Cantinho dos Avós – tel.: 272 312 643.

62 MAGAZINE 29 de abril de 2011

3 | Trancoso Legados ao alto

Palco de momentos marcantes na História de Portugal, a vila medieval de Trancoso foi construída a 800 metros de altitude, desenvolvendo-se sobre uma superfície plana. Conta-se que, em 1385, um importante confronto, em que o exército português derrotou o espanhol, terá antecipado o resultado da Batalha de Aljubarrota. No século XIV, albergou um núcleo habitacional judaico, posteriormente devassado por ordem do Tribunal do Santo Ofício. Deste período, restam, ainda, vários legados como a Casa do Gato Preto, um edifício do antigo bairro judaico. Trancoso cresceu rodeada de muralhas, reunindo um conjunto significativo de monumentos históricos, como as igrejas de Santa Maria, de S. Pedro e da Misericórdia, a Casa dos Arcos e o pelourinho. Localização Concelho de Trancoso Onde dormir Hotel Turismo – tel.: 271 929 200. Casa do Pintor – tel.: 96 513 2477. Residencial D. Dinis – tel.: 271 811 525. Onde comer Área Benta – tel.: 271 817 180. Marisqueira Queda de Água – tel.: 271 812 977. O Marquês – tel.: 271 811 040. O Museu – tel.: 271 811 810. Quinta da Cerca – tel.: 271 829 200.


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4 | Almeida Vestígios da nação

Convertida, em 1640, numa das maiores praças fortes do reino de Portugal, Almeida foi, ao longo de muitos séculos, uma peça importante na defesa do território, pela sua posição geográfica, próxima das margens do Rio Côa e de Espanha. A sua povoação é, no entanto, bem mais antiga, guardando ainda vestígios anteriores à ocupação romana. Mas é mais tarde que conquista importância. Em particular, durante os cercos da Guerra dos Sete Anos (no século XVIII) ou da terceira Invasão Francesa, em 1809. Nos últimos anos, os seus monumentos têm sido recuperados, com destaque para as muralhas e o antigo picadeiro. E o comércio tradicional ganhou novo fôlego. Localização Concelho de Almeida Onde dormir Hotel Parador (www.hotelparadordealmeida.com) – tel.: 271 574 283. Casa do Cantinho – tel.: 271 574 224. Casa Pátio da Figueira – tel.: 271 571 133. A Muralha – tel.: 271 574 357. Residencial Morgado – tel.: 271 574 412 Onde comer A Muralha – tel.: 271 574 357. A Tertúlia – tel.: 271 574 134. O Granitus – tel.: 271 574 834. Pousada Senhora das Neves – tel.: 271 574 290

5 | Castelo Mendo Paixão medieval

Com uma muralha classificada como património nacional, Castelo Mendo divide-se em dois núcleos habitacionais. Um, mais antigo, formado pelo castelejo, a igreja de Santa Maria, a cisterna e a Casa da Câmara. E um outro, de ruas medievais, traçados irregulares e casas construídas em torno das igrejas de S. Pedro e S. Vicente. Da Idade Média, sobreviveram quatro das seis portas de entrada na vila. A sua proximidade das margens do rio Côa conferiu-lhe um importante papel na defesa das populações e do território, ao longo de muitos séculos. Dentro da muralha mais inferior, na antiga porta de D. Sancho II, destacam-se as figuras lendárias de Mendo e Menda, cravadas nas paredes de pedra. Uma história de amor com diferentes versões, mas que coincidem quanto a ter-se tratado de uma paixão eterna. Localização Concelho de Almeida Onde dormir Sem alojamento Onde comer Sem restauração

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6 | Linhares Regresso ao Futuro

No coração da Beira Alta, esta antiga aldeia medieval é hoje um ex-líbris da conciliação do passado com o presente. Reanimou-se, na última década, quando se concretizaram, ali, programas para a prática de parapente. No seu interior, os visitantes encontram várias sepulturas romanas, parte de uma calçada, bem como de um edifício da mesma época, agora rebatizado como Fórum de Linhares. Do castelo, mandado construir por D. Dinis, avistam-se os extensos campos e outros monumentos da localidade, como a igreja de origem românica que conserva três pinturas de Grão Vasco, o pelourinho, a Casa da Câmara e os solares Corte Real e Brandão de Melo. Localização Concelho de Celorico da Beira Onde dormir INATEL Linhares (www.inatel.pt) – tel.: 271 776 081 Casa da Pissarra – tel.: 271 776 180 Onde comer Taberna do Alcaide – tel.: 271 776 578/93 948 9693


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7 | Belmonte Em busca de um herói

Terra natal do descobridor Pedro Álvares Cabral, Belmonte preserva a história da família do seu herói, visível em diferentes pontos. Há uma janela recortada na muralha, ostentando o escudo dos Cabrais, e o panteão da família, construído ao lado da igreja romano-gótica de S. Tiago. O primeiro foral foi concedido à povoação por D. Sancho I, em 1199, e alguns documentos dão conta que, pelo menos, em 1258, já existiam a torre de menagem, as muralhas e os baluartes. No século XV, fixou-se aqui, fora das muralhas, num espaço que ficou conhecido como Bairro de Marrocos, uma comunidade judaica, foragida de Castela. Ainda hoje são visíveis os símbolos das profissões destes judeus – como a tesoura dos alfaiates –, gravados nas ombreiras das portas de suas casas. Localização Concelho de Belmonte Onde dormir Convento Nossa Senhora Esperança – tel.: 275 910 300. Hotel Belsol (www.hotelbelsol.com) – tel.: 275 912 206. Casa da Chandeirinha – tel.: 91 317 7514. Onde comer Brasão – tel.: 275 912 065. Casa do Castelo – tel.: 275 181 675.

8 | Sortelha Património ‘zen’

Protegida, há oito séculos, por uma extensa muralha, a pequena aldeia de Sortelha sobrevive graças ao turismo. Construída a 760 metros de altitude, avista-se da sua muralha uma paisagem de campos a perder de vista e as serras da Malcata e da Estrela. O casario surge quase que apinhado, num movimento que se acentua, devido ao relevo irregular do solo. As ruas, empedradas e estreitas, levam-nos a descobrir, casa após casa, diferentes realidades e vestígios que chegam à Idade do Ferro e do Bronze. Grande parte do património está devidamente sinalizado e interpretado. Praticamente desabitada, Sortelha recebe os turistas que lhe dão vida nas suas casas de pedra. Estas foram recuperadas e o pequeno comércio tem florescido. A população há muito que optou por se mudar para fora das muralhas, construídas com pedras gigantescas. Localização Concelho do Sabugal Onde dormir Casa do Campanário – tel.: 271 388 198. Casa da Calçada – tel.: 271 388 116. Casa da Vila – tel.: 271 388 113. Onde comer Celta – tel.: 271 388 291. D. Sancho – tel.: 271 388 267.

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9 | Castelo Novo Vaidade e vinho

Localizada numa das encostas da serra da Gardunha e muito próxima das nascentes das águas do Alardo, esta aldeia, mantém, ainda hoje, a sua estrutura original bem conservada. As ruas, de pedra, atravessam antigos solares, que repartem a vizinhança com as casas mais modestas dos aldeões. Estas são de pedra e têm pequenas varandas de madeira, vaidosamente embelezadas pelos seus habitantes. São vários os pontos de interesse a visitar, a par dos já esperados castelo, pelourinho, igreja e Casa da Câmara. Perto do casario, destaca-se uma construção escavada na rocha em forma de concha, a «lagariça», que, durante séculos, foi utilizada para o fabrico do «vinho de todos». À saída da aldeia, encontra-se o Cabeça da Forca, zona de execução dos condenados. Localização Concelho do Fundão Onde dormir Casa de Castelo Novo – tel.: 275 561 373/91 963 6032. Casa Petrus Guterri – tel.: 275 567 274. Quinta do Ouriço – tel.: 275 567 036. Onde comer O Lagarto – tel.: 275 567 406


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10 | Piódão No rasto de Zé do Telhado

Fugindo à regra das suas irmãs históricas, Piódão encontra-se semiperdida num vale da serra do Açor, paredes-meias com a serra da Estrela. A sua localização, que a votou, durante muito tempo, a um isolamento profundo, acabou também por ser responsável pela sua enorme riqueza, não só patrimonial como cultural. Ao longo dos séculos, a aldeia foi cenário de histórias rocambolescas de fugas de criminosos, como a do famoso Zé do Telhado. As casas de xisto e telhados de lousa foram desenhando uma espécie de anfiteatro, disposto num terreno íngreme, com ruas estreitas, até desembocarem numa praça central, onde se encontra a igreja matriz. Esta disposição e a imagem criada pela luz artificial, à noite, deram origem ao apelido de «aldeia presépio». Outra curiosidade prende-se com a cor das casas, azul, estando a explicação da escolha longe de ser consensual. Localização Concelho de Arganil Onde dormir INATEL Piódão – tel.: 235 730 100/101. Casa da Aldeia – tel.: 235 731 424. Casa da Padaria – tel.: 235 732 773. Onde comer INATEL Piódão. O Fontinha – tel.: 235 731 151. Piódão XXI – tel.: 96 753 7491. A Gruta – tel.: 235 732 771. Lourenço – tel.: 235 731 287. Solar dos Pachecos – tel.: 235 731 424.

11 | Monsanto Inspiração esculpida

Monsanto cresceu num relevo íngreme e sinuoso, o que lhe confere uma imagem única. Toda a aldeia foi esculpida no granito de um vasto cabeço rochoso – as casas, altares e sepulturas nasceram agarradas aos rochedos em estado bruto. É neste cenário agreste que se guarda um infindável repertório de histórias e lendas, muitas delas ainda da tradição moura. O adufe, por exemplo, apenas deve ser tocado pelas mulheres. E ali viveu e exerceu medicina o escritor Fernando Namora. Há, ainda, solares, igrejas e uma fortaleza medieval. Localização Concelho de Idanha-a-Nova Onde dormir Casa da Maria – tel.: 96 562 4607/96 644 3663. Casa do Chafariz – tel.: 91 693 1120/91 425 3793 Onde comer Restaurante Jovem – tel.: 96 679 4412. Petiscos e Granitos – tel.: 96 420 0974.

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12 | Idanha-a-Velha Visigodos, muçulmanos e cristãos

Rica em tradições, sobretudo pascais, como a encomendação das almas, a ceia dos 12 ou a procissão corrida, Idanha-a-Velha conseguiu recuperar grande parte do seu património graças ao apoio do programa das aldeias históricas. Um antigo lagar de azeite encontra-se hoje recuperado e alberga o museu, onde está exposta uma pequena coleção epigráfica luso-romana. A aldeia situa-se a 15 quilómetros da cidade de Idanha-a-Nova, perto do rio Pônsul. Já foi uma importante urbe romana e sede de diocese, durante o período visigótico. Preserva, ainda, um batistério, que se pensa pertencer ao paço episcopal do tempo dos visigodos. A catedral, essa, originalmente datada daquele período, foi depois transformada numa mesquita, até chegar à forma atual, de templo cristão. Localização Concelho de Idanha-a-Nova Onde dormir Sem alojamento Onde comer Sem restauração


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Cultura, capacidade de risco e portismo a rodos. André Villas-Boas levou o FC Porto ao título e apagou o Benfica na Luz. Qual a receita do novo herói do Dragão? por Miguel Carvalho

Como aconteceu a alguns portugueses ao longo da História, o talento de André Villas-Boas começou por ser reconhecido, primeiro, além-fronteiras. Não faltaram hipérboles. O Wall Street Journal chamou-lhe o novo pequeno génio do futebol português, estávamos em outubro. Tendo apenas ganho a Supertaça, no início da época, ele foi notícia de destaque no diário espanhol Marca e no britânico Independent. Os meses passaram com os adeptos do Liverpool, do Manchester City, da Roma, do Inter, do Génova e outros clubes europeus a salivar, nas redes sociais, pela sua contratação, contagiando dirigentes. E agora, como vai ser? Pinto da Costa anunciara para esta época «uma equipa à Porto, digna da história e dos pergaminhos do clube». André recorria à sua ascendência britânica, gosto pelo vinho e nariz grande para chutar imitações baratas para canto e garantir: «Incompetente é que eu não sou. Em

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circunstâncias normais, seremos campeões. Em circunstâncias anormais… também.» Por cá, talvez ainda houvesse desconfianças em relação ao seu talento. Mas ao sagrar-se campeão, em pleno Estádio da Luz (1-2), com a única equipa ainda sem derrotas em toda a Europa, o jovem treinador do FC Porto atirou para as trevas a suposta incapacidade de resistir à pressão, a alegada falta de experiência e as comparações com Mourinho. «Só quem não o conhece faz essas analogias. Tem uma personalidade e um caráter completamente diferentes, juntando a isso um dom único na organização e na relação com os jogadores», explica José Eduardo Simões, o presidente que se arriscou a contratar André para a Académica de Coimbra, em finais de 2009. Manuel Sérgio, sumidade nacional na área da formação desportiva, escreveu-lhe, por essa altura, uma carta a elogiar o seu talento de exceção. Villas-Boas devolveu o gesto

com um telefonema: «Gostava de saber por que me vê com um futuro brilhante. É que eu sinto que ainda tenho tanto para aprender…» Viu-se.

ANDRÉ NOS BASTIDORES

Longe vão os tempos em que jogava à baliza, no campo do Ramaldense, com os amigos. Da escola não era grande fã e vivia para a bola, já ferrenho do FC Porto e admirador do Barcelona. Ainda miúdo e pelo Natal, subia uns andares do prédio onde morava, na Avenida da Boavista, para entregar uma garrafa de vinho do Porto a Bobby Robson, então técnico portista, e ficar à conversa. No elevador, mostrou a sir Bobby a razão pela qual deveria jogar com Domingos (atual treinador do Sp. Braga) no ataque. Não tardou que o treinador britânico começasse a desafiá-lo para assistir aos treinos e a dar-lhe boleia, no regresso a casa. Ele, no banco de trás, e Mourinho ao lado de Robson, que guiava um Honda Civic.


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De resto, se alguém ainda duvida que uns bons anos a jogar Sensible Soccer ou Championship Manager podem fazer por um geniozinho, é melhor pensar duas vezes. Formado em Inglaterra e na Escócia, André fez grande parte do seu percurso no FC Porto, Chelsea e Inter de Milão, na sombra de Mourinho. E que sombra! «Olhos e ouvidos» do Special One no terreno dos adversários, os seus relatórios detalhados demoravam quatro dias a preparar. Incluíam DVDs e dados pormenorizados, mas em termos simples para os jogadores. André, de resto, junta a vertente digital e psicológica com grande mestria. Esta temporada, quando chegou ao Dragão, mandou instalar LCDs em zonas de acesso restrito. Começou por passar imagens da festa do Benfica, na época passada, mas, com o tempo, os aparelhos serviram para passar outras mensagens motivadoras, incluindo imagens dos jogos na neve e à chuva, e notícias provocadoras, recortadas dos jornais. Tudo para fazer despontar o Braveheart que há em cada atleta. A sua receita inclui, também, uma relação muito próxima com os jogadores. A liderança aberta e frontal, sem afrontas, vai ao ponto de lhes permitir uma opinião válida sobre a própria gestão do grupo, suas ambições e conflitos. A blindagem do balneário e a postura de André permitiram resolver, pelo menos, um caso que se poderia ter tornado problemático: Fucile. O uruguaio chegou impante do Mundial e julgava ter vários convites para sair. Fez birra e amuou, mas a experiência do ex-jogador Pedro Emanuel e a sensatez de André resolveram o problema. O brasileiro Walter é o único caso bicudo: por mais que se lhe explique as regras nutritivas de um atleta de alta competição, o jogador ainda não percebeu que a diferença entre o seu passado e um eventual futuro no clube está à distância de… vários quilos. No resto, as capacidades de André e da sua equipa técnica ficaram bem demonstradas na cobiça de que hoje são alvos Sapunaru e Guarín, por exemplo. Mas ele também não renega saberes que desconhece: amigo de Moncho Lopez, técnico de basquetebol do FC Porto, André vai,

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FESTA

André Villas-Boas é levantado pelos jogadores do FC Porto, após a vitória no Estádio da Luz, que confirmou a conquista do campeonato. por vezes, assistir aos treinos do colega e vice-versa. Uma relação próxima e cúmplice que até já deu para fazer apostas mútuas, no Euromilhões.

UM PORTO DE NOVA VAGA

A personalidade e a atitude de André venceram, inclusive, resistências entre os adeptos. Carlos Tê, o autor de Porto Sentido e de um célebe «voar como o Jardel sobre os centrais», desconfiou da escolha, mas hoje rende-se. «Trouxe disciplina e solidariedade. E deu uma lição ao mundo fora do futebol: aos trinta e poucos anos já se pode ser bom e liderar equipas», comenta o escritor que nunca esquecerá o apagão da Luz. «É um momento que fica em stock por muitos anos, a render juros para as picardias com os benfiquistas.» O FC Porto já era um excelente cartão-de-visita nas viagens de João Fernandes, diretor do museu de Serralves e adepto

portista, pois «as vitórias da equipa e o prestígio do clube são importantes nos contatos» que, por vezes, tem de fazer no estrangeiro. Agora, diz, Villas-Boas «acrescenta a esta componente cosmopolita, capacidade de risco e cultura à Porto, além de exibir uma postura com mais civilidade do que a de Mourinho, por exemplo». Heldér Pacheco, historiador da cidade, realça «a cultura e o conhecimento» do novo herói do clube. «O Porto sempre foi tradição, identidade e inovação. Clube e cidade precisam de solavancos. O André, como ferrenho portista que é desde pequeno, juntou isso ao sonho de criança.» O futuro parece, pois, risonho. O menino fez-se homem. E com barba de três dias. Talvez as comparações tenham terminado e o BI apareça, enfim, sem referência a qualquer mentor. Como afirmou André, um dia, «só uma pessoa sem caráter imita os outros». Quem o desmente?


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Marca Como na farmácia A Lust é um conjunto de sites onde há de tudo – filmes, aplicações, livros, loja e projeto de investigação. Algumas referências: O filme Cinco Histórias Para Ela (2007). Premiado em Barcelona, Berlim, Nova Iorque e Toronto.

Porno no feminino

A realizadora Erika Lust explica uma tendência crescente – a de filmes hardcore feitos por mulheres e para mulheres Por Clara Soares «Fazemos amor, não pornografia.» O lema é de Erika Lust, 34 anos, sueca e formada em Ciências Políticas. Ela é pioneira de um movimento que se autodesigna como pornografia feminista. E Lust é a marca da sua produtora independente, fundada em parceria com o companheiro, Pablo Dobner, com quem vive há 11 anos. Ambos residem em Barcelona e são pais de duas meninas (uma de 3 anos e meio e outra de 6 meses). No seu blogue e no Facebook, a realizadora, argumentista e autora esclarece: «Produzimos filmes adultos, revistas e livros eróticos que excitam a mente. Sexo, luxúria e paixão, com um ângulo feminino, estético e inovador.» E explícito, claro, como um filme hardcore deve ser. Em conversa connosco (trocar depois por nome da revista), pouco antes de iniciar novo round de filmagens, Erika define-se como uma mulher de negócios a quem interessa chegar às pessoas, sem ter de passar pelo circuito tradicional da indústria porno, dominada por homens e pouco criativa. «No que faço, a mulher não se resume a um acessório para o orgasmo masculino», diz. «Toma, antes, a iniciativa e assume o seu próprio

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prazer.» A realizadora prefere falar em sexo urbano e moderno, com erotismo em cenários ditos «normais» e também alternativos, mas sem os estereótipos do costume, «seja o nerd com tesão, a dona de casa desesperada, o condutor de camiões musculado, ou o mafioso rico e poderoso». Erika tem sentido resistência a afirmar a sua estética e valores, mas não está sozinha. «Somos umas 15 a fazer este tipo de filmes – em que o porno pode ser erótico e vice-versa – e vamos conquistando prémios (em festivais da especialidade) e públicos.»

CONCEITO COM ESTILO

A receita é simples: um bom argumento, cenários à altura, e um casting incansável. «Procuramos pessoas saudáveis e

‘Nos nossos trabalhos, a mulher toma a iniciativa e assume o seu prazer’ Erika Lust

O documentário Barcelona Sex Project (2008). Viagem às vidas privadas de três homens e de três mulheres. O livro Boa Pornografia – o Guia da Mulher (2010). Publicado em oito línguas. Obra de culto Ama-me Como Me Odeias (2000). Guia, em livro e filme, para principiantes em fetichismo, elaborado em coautoria com a atriz Venus O’Hara. com boa aparência, amadoras – geralmente casais, na vida real –, e, alguns profissionais.» As histórias com a chancela Lust passam-se de forma apaixonada, emocional e realista: mulheres que se entregam ao desejo de explorar fantasias com outras mulheres, homens que se reconciliam no meio de uma discussão sobre o fim da relação, casais com filhos e fartos do tédio conjugal, envolvendo-se em cenas hardcore. Há jogos de sedução, vingança e intimidade. E ménages à trois, fetichismo e sexo clandestino. E há, sobretudo, novos públicos, destaca a realizadora: «Os homens representam 60% dos compradores, mas muitos adquirem os filmes para agradar às mulheres, e conseguem-no! Também temos, por sinal, clientes portugueses.» O esforço de Erika parece estar a valer a pena: tem tido convites para palestras em universidades, e filmes e livros seus são usados por sexólogos, como terapia para compreender e ultrapassar a falta de desejo. Participa, ainda, numa investigação em curso, na net, sobre os usos da pornografia. E continua a espantar-se: «Um casal de 65 anos apareceu no nosso show room, assumindo-se como fã!»


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Projeto

Aí vai praia É artificial, em Mangualde, e promete, no interior do País, algo de parecido com o melhor do Algarve

A LiveBeach vai ter um simulador digital da linha do horizonte (em pormenor à direita), restaurantes, um palco para concertos, organizados pelo produtor músical Luís Jardim e inúmeras festas pela noite dentro, com DJs nacionais e internacionais.

Por Sara Rodrigues Primeiro, regressemos ao passado. Estamos no verão de 2005, na Margem Sul do Tejo, mais exatamente em Corroios, concelho do Seixal. Pela primeira vez, um derby entre Benfica e Sporting, em futebol de praia, é transmitido em direto pela televisão. O organizador do evento, Rui Braga, quis assinalar a data com uma imagem. Vai daí, pediu emprestada, aos bombeiros, uma escada magirus (autoescada com cesto na extremidade) e subiu a uns bons metros de altura. Tirou as fotografias que queria e, ao contemplar o cenário de dez jogadores a correr no areal – num local onde nem sequer existe praia –, passou-lhe uma ideia pela cabeça: «Só falta a água.» Durante cinco anos, bateu a várias portas – leia-se bancos – com o objetivo de pedir financiamento para o projeto que imaginou. Qual? Fazer uma praia artificial no nosso país. De volta ao presente. Mesmo tendo des-

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coberto que «uma boa ideia não basta, se ninguém acreditar nela», Rui Braga, hoje com 35 anos, não desistiu. Ou melhor, insistiu. Já na qualidade de sócio da empresa Live it Well Events, contatou com mais algumas capelinhas. Teve, finalmente, luz verde da banca, em 2010, e arranjou, ainda, patrocínios – do BES e da Portugal Telecom. Com um milhão de euros no bolso, faltava apresentar o projeto às autarquias - «Do interior, claro, nunca me passou pela cabeça fazer uma praia junto da costa.» A ideia passou por Viseu, no ano passado, depois por Braga e, por fim, por Mangualde. À terceira foi de vez. A primeira praia artificial da Europa tem abertura marcada para 15 de junho próximo. «A densidade populacional e os acessos rodoviários foram os aspetos primordiais», nota Rui Braga. «Além disso, durante o verão, a população daquela zona

aumenta muito, devido aos emigrantes em férias.»

‘VERY TYPICAL’

As condições foram negociadas. A autarquia cedeu o terreno de 22 500 metros quadrados (equivalente a dois campos de futebol) e comprometeu-se com a construção dos esgotos e o fornecimento de água, energia elétrica e limpeza do espaço. À Live it Well Events cabe tudo o resto. O mesmo é dizer: erguer a LiveBeach, o nome da praia (ver caixa). «A estrutura é de caráter permanente. Temos um contrato de três anos, renovável por

‘Para o ano, quero estar em Espanha, a negociar’ Rui Braga, da Live Beach


mais três, mas o que fizermos fica para sempre», diz Rui Braga. A empresa pediu a uma consultora um estudo de impacto económico e o resultado foi um retorno financeiro de 13 milhões de euros para a região. Com uma frequência estimada em 2 400 pessoas/dia, de acordo com outra análise de viabilidade, pensa atingir o break-even no fim do segundo ano ou no início do seguinte. Na génese da LiveBeach não está a conhecida praia artificial do mundo – a Ocean Dome, no Japão. Neste recinto coberto, parecido com um estádio de futebol, foram gastos 1,5 mil milhões de euros em tecnologia de ponta para que até a temperatura do ar seja artificial e digna de uma praia das Caraíbas – 30 graus –, a somar às ondas de dois metros, para surfistas, e a um espaço que pode acolher 10 mil pessoas dentro de água. Já no caso de Mangualde, como nas ou-

Menu Caderno de encargos A Live Beach de Mangualde vai funcionar de 15 de junho a 30 de setembro. Conheça-a por antecipação . Piscina de água salgada com 60 metros de comprimento por 20 de largura (1,5 m de profundidade) – em 2012, terá ondas . 6 500 toneladas de areia . Simulador digital de linha do horizonte . Chapéus-de-sol e camas para alugar . Playground infantil . Restaurantes . Palco para concertos . Área VIP . Vendedores de gelados, bolas-de-berlim e línguas da sogra . Preço dos bilhetes: €5, individual; na compra de dois, oferta do terceiro; entrada gratuita a partir das 19 horas.

tras praias nacionais, o sol é em direto, haverá bolas-de-berlim, gelados e línguas da sogra à venda no areal, nadadores salvadores de serviço e aluguer de chapéus para quem quiser ficar à sombra. E a água será salgada. Porém, ao invés de roubada ao mar, vai ser filtrada com sal. Mas nem só do dia viverá esta praia. À noite, a festa é outra. Concertos – a programação está a cargo do produtor musical Luís Jardim – e performances com DJs nacionais e estrangeiros prometem animação até às seis da manhã. E quanto ao futuro? «Para o ano, pretendo estar em Espanha, a negociar», diz, assertivo, Rui Braga. Em Portugal, «talvez possa construir mais uma praia», no Alentejo. «Mas temos de examinar muito bem os acessos rodoviários existentes.» Nessa altura, é provável que não precise de voltar a pedir emprestado um helicóptero para… estudar a paisagem.

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‘Escreve-se com o instinto de fazer um objeto que comova’ Trinta anos depois da publicação do seu primeiro livro, Lídia Jorge regressa com novo romance, A Noite das Mulheres Cantoras – lançado hoje, 24, na Casa Fernando Pessoa, em Lisboa. Um livro que rasga os bastidores da sociedade do espetáculo, e confirma o estilete fino e a ternura perspicaz com que a autora olha para os seus personagens – que somos todos nós Por Sílvia Souto Cunha

A escritora que dissecou um Portugal enredado nas memórias coloniais ou num realismo semeado de sonhos, em livros como O Dia dos Prodígios (1978), Notícias da Cidade Silvestre (1984), A Costa dos Murmúrios (1988), O Vento Assobiando nas Gruas (2002), ou Combateremos a Sombra (2007), foi assombrada por uma primeira imagem: «Cinco mulheres comandadas por uma, alguém que exigia tudo, o sentimento de poder. Esse diálogo entre uma que dá tudo, outra que aproveita tudo, sem haver nada que dizer contra nenhuma delas.» A Noite das Mulheres Cantoras (D. Quixote, 318 págs.) é um livro surpreendente, menos denso, mais aberto à contemporaneidade e a temas delicados como a sida. Cinco retornadas formam uma banda musical efémera, em 1987. O reencontro dá-se, 20 anos depois, numa «Noite Perfeita»: um revivalismo televisivo. A fama desejada pagou-se caro.

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lĂ­dia jorge

escritora

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Um crime aconteceu, a consciência também foi assassinada. É um retrato do Portugal dos vencedores e vencidos: alguém que tem a noção da perda, da palavra, da dignidade, da memória, e um outro rosto que sacrifica tudo ao futuro. Trata-se do regresso de Lídia Jorge, depois de quatro anos, interrompidos por alguns volumes de ensaio, contos e literatura infantil. A celebrar 30 anos de publicação do primeiro livro, e a sentir o afeto de uma programação dedicada à sua carreira, em Loulé, a autora algarvia, nascida em Boliqueime há 65 anos, abre o seu álbum de memórias.

A ação de A Noite das Mulheres Cantoras começa num palco de um programa televisivo, com a reunião de celebridades menores. O que lhe interessou neste universo?

O que me atraiu, aqui, foi a dimensão dramática do mundo contemporâneo em que tudo vive em torno da aparência, do palmómetro (dipositivo medidor de palmas), do que é mensurável do ponto de vista superficial. E, sobretudo, a impostura apresentada como verdade. Estamos vivendo um ponto culminante dessa mise-en-scène, que é, ao mesmo tempo, uma mise en abyme do nosso desejo de ser História. Algo que me toca: uma espécie de desejo ardente de sermos todos História, nem que seja por um minuto. Significa a vingança que o homem e a mulher comuns têm em face do esmagamento de certas figuras que tomam conta da cena. A questão do «Império-minuto» é isso.

A cena inicial inclui uma barca em palco. Em face da glória das caravelas dos Descobrimentos, estas luzes e palmas são o que nos resta?

Sim, é uma quinquilharia enorme. Como percebem que não há outra saída, todos se entregam a isso: cantores, princesas… Antes de O Contrato Sentimental (ensaio sobre Portugal, publicado em 2009 pela Sextante), pensei se valia a pena escrever este livro. Corria o risco de oferecer uma tal parábola sobre o que estávamos a viver que não haveria distância para perceber que existia um afastamento dessa realidade. Mas um livro não se faz só pelo seu momento: também se cria para, de-

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pois, avaliarmos como somos testemunhas de uma época. Este livro talvez tenha um tom melancólico, porque gira em torno de um sentimento de perda. Se alguém me pedisse para o classificar, diria que é um livro de aprendizagem: Solange faz uma aprendizagem em relação à sua civilização e aos seus sentimentos. É a voz lúcida que escolhi para falar sobre o seu grupo e sobre como se perderam: foram até à morte. Pior, foram à abjuração, à ocultação de um crime. Uma estratégia de sobrevivência em que, à superfície, tudo é natural. Tudo justifica tudo.

Como as rimas de uma canção, em tudo se encaixa…

Para ficar a toada perfeita. Por baixo, está tudo escondido, o percurso desaparece… Na nossa sociedade, esse é o tema mais importante e isso tem a ver com a nossa incapacidade de fazer justiça. Em Portugal, o tribunal é um massacre: não se vai lá para se fazer justiça, vai-se lá cantar ao desafio. Há um sistema que não funciona, que deixa uma população indefesa, e que tem dado cobertura a isto: é um país que tem extraordinários escândalos em que, por cima da mesa, se coloca a toalha branca. E quando alguém clama por justiça, vai-se buscar a última palavra

A minha geração é a primeira geração de liberdade. E nem todas nós a conquistámos por direito. Houve pessoas que foram presas, que enfrentaram o regime, que foram sacrificadas – e que irão ficar esquecidas. Eu fiz pouco: só desejei muito a liberdade. Lídia Jorge

dos Lusíadas: diz-se que tem inveja. Esta tornou-se um biombo extraordinário para tudo, uma forma de reduzir o sentido de justiça a um defeito mesquinho. Já não posso ouvir falar nisso.

Quis fazer justiça, portanto?

Esse é precisamente um dos temas da contemporaneidade: tudo é tão visível, transmissível, comunicável, que pareceria ser transparente. Mas existe opacidade. A ficção é um dos grandes meios que a desmonta, a há vários escritores portugueses que o fazem. Não comecei o livro com essa dimensão metafórica: segui o percurso dessas cinco personagens que se encontram nessa Noite Perfeita, vinte e um anos depois, despojadas de tanta coisa, a tentarem manter a aparência de algo que não existe, e havendo quem vença com essa aparência. Foi uma imagem que me comoveu tanto… Mas quando se começa a escrever, é com esse instinto de fazer apenas um objeto que comova. Cada pessoa tem o seu imaginário. E uma parte do meu imaginário é social – por mais que eu não queira, ele aparece. Veja-se Combateremos a Sombra, um livro muito mais político.

Pode olhar-se para este livro como uma parábola sobre a fama?

Pode dizer-se isso, mas é parcelar. Pela primeira vez, a fama é algo do mundo inteiro e simultânea. Só que os destinatários não a aguentam: há uma desproporção entre emissores e recetadores. O individuo fica esmagado diante de tanta fama em simultâneo, acaba por desvalorizar tudo. Aqui, elas nunca chegam a ser famosas. O que o livro persegue é o impulso que leva à fama, uma anatomia dos detalhes de como se vai vendendo tudo, de como se vai sendo assaltado até ao mais recôndito da alma, na tentativa de fazermos mitos de nós mesmos.

A exposição comemorativa O Dia dos Prodígios – Lídia Jorge 30 Anos de Escrita Publicada, em Loulé, revela os seus objetos pessoais: cadernos, fotos, cartas, os lápis (os seus e os do seu pai) usados até ao fim… Que retrato fazem de si?

Escolheram uma frase que utilizei numa entrevista à Maria João Seixas: «Sou uma


mulher do mundo que nasceu no campo.» E, de facto, é o que eu sinto. Nasci numa família que não era comum: gostavam de livros. Tínhamos dicionários em casa. Aos 7 anos, encontrei uma caneta de tinta permanente verde, no meio das alfarrobas do caminho. Ia a andar e via. Ficou-me como um símbolo. O meu pai, passados uns tempos, ofereceu-me uma caneta: uma Parker 21, a primeira de três. De facto, há objetos que nos guiam como se fossem seres vivos. O meu pai, caixeiro-viajante, era uma pessoa ausente: qualquer coisa sua tinha um valor alto. Para uma filha nessas condições, o pai é um grande amante. Fica emoldurado, com uma aura extraordinária. Ele era uma pessoa encantadora, cheia de dotes que foram muito desperdiçados. Escrevia com enorme correção, pintava admiravelmente… Os cadernos com que fiquei

são provas disso. A última coisa que ele fez foi ter queimado os seus diários. Podia-os ter guardado para mim…

Solange descreve o pai como o «dono da narrativa da minha vida. A admoestação vinha pelo lado da mãe». É autobiográfico?

Sim. Não fui uma jovem fácil, e a minha mãe teve de assumir os dois papéis, às vezes, a relação era tensa. Ela desconfiava que eu ia partir, para ser uma mulher perdida. Tive uma educação exigente, com um rigor monástico, por parte da minha mãe e da minha avó. Eu era muito inventiva, elas vigiavam-me. Até porque eu comecei, muito cedo, a ler livros que não eram para a minha idade…

Onde ia buscar esses livros?

Foi uma história de família inacreditável.

Não se sabe como, o meu bisavô materno Ribeira, um camponês e tanoeiro pobre, era um homem letrado. Lia e escrevia, pôs os filhos todos na escola (à exceção da minha avó que aprendeu com o pai) e construiu uma pequena biblioteca. Quando o meu bisavô morreu, relativamente jovem, a minha bisavó – que tinha passado fome e que achava que cada livro que entrava em casa era um pedaço de pão roubado aos filhos – fez uma fogueira à porta de casa com os livros. E foi a minha avó que apanhou parte dos livros dessa fogueira e os guardou dentro de uma caixa. Passaram quase cinquenta anos. Eu era uma criança irrequieta, muito sozinha, sem vizinhos nem irmãos. E, a certa altura, a minha avó deu-me essa caixa de livros do seu pai. Comecei a ter uma relação com aquele fantasma benigno, um homem parecido com os afegãos:

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rosto cavado, sulcado de rugas, bigode. E com um lenço. Pensam que ele pertencia à Carbonária – que, na altura, se desenvolveu muito, no Algarve. Nessa caixa, havia livros sobre como medir os terrenos, sobre agricultura, geografia, História de Portugal… E livrinhos que se vendiam porta a porta, como o João de Calais e A Princesa Magalona…

Maio, do Zeca Afonso, durante o intervalo. O reitor foi chamado, chamou-me a mim e disse-me que não podia ser. Ele também me chamava por causa da roupa: era do mais decente que se possa imaginar mas havia umas transparências cá atrás, na blusa…

Como se dá o salto entre essa menina, caída na caixa de livros como numa toca do País das Maravilhas, e a Lídia que vai dar aulas para Angola e Moçambique?

Completamente diferente. Tinha mais melancolia sobre a realidade, ainda que aqui, em Portugal, estivesse a acontecer uma alegria enorme. Eram tempos áureos da democracia, o Mário Soares chegara. Vemos agora as revoltas nos Estados árabes, e é impensável acreditar que tudo será rápido…

Não foi um salto abrupto. Saí da casa no meio do campo, sem nada, só com árvores e animais, para Faro, onde estudei e completei o ensino secundário. Já escrevia…tontarias. E, com uma bolsa de estudo, fui para a faculdade. A minha mãe permitiu-o, mas a coisa esteve tremida. Havia a ideia de que uma rapariga fora estava sem rédea. Mas ela percebeu que eu gostava de estudar, estava entre as melhores alunas. Depois, através do meu primeiro casamento, fui para África.

Teve medo de ir para África, experiência que, depois, escreveu em A Costa dos Murmúrios?

Não tive medo, mas foi um choque. Era uma miúda de 22 anos e entrei no clima da guerra colonial, em 1969. Estamos sempre nus diante do futuro. Ao desembarcar em África, senti que tudo era novo. Lembro-me de olhar para a cor da terra. Foi maravilhoso o encontro com gente diferente. No lar, em Lisboa, vivia com raparigas de África, entre elas a Maria Amélia Mingas, irmã do Rui Mingas (cantor, atleta e ex-ministro angolano). Em África, amei muito as pessoas. Descobri nelas uma maneira de olhar o mundo parecida com a minha. Encontrei o sítio perfeito para a minha experiência pessoal, apesar de historicamente ser uma catástrofe: já não devíamos estar lá.

Foi o seu despertar político?

Não. O despertar político foi na Faculdade de Letras. Eu vivia então num lar de raparigas, o Domus Nostra. As freiras eram seres cândidos, desempoeirados e progressistas. Punham-nos nas mãos livros do Sartre e do Camus, faziam con-

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A mulher de 25 anos que desembarca em Lisboa, em 1974, é diferente da que partiu?

O seu primeiro livro, O Dia dos Prodígios, marcou esse período. Começar a publicar foi uma forma de tudo fazer sentido?

o livro

A Noite das Mulheres Cantoras Lídia Jorge D. Quixote ferências sobre educação sexual… Mas, depois, eram cautelosas em demasia. Ficaram furiosas e castigaram-nos quando a Pide lá foi, de madrugada, remexer tudo. Houve colegas perseguidas. Tínhamos feito um teatro, montando uma manifestação de estudantes, algumas de nós representavam polícias a fumar… As freiras acabaram com tudo. A mim, disseram-me que podia ficar sem a bolsa de estudo se me comportasse assim.

Tudo tinha de ficar debaixo das tais toalhas brancas?

Sim. Os rapazes faziam-nos serenatas à janela, vinha a Pide e levava-os. Era de um ridículo extraordinário. Na praia, as estrangeiras podiam usar biquíni, nós não. Lembro-me que havia um basbaque qualquer que tinha uma fita métrica para medir os nossos fatos de banho. Eu era muito frontal, mas as pessoas achavam-me uma certa graça e nunca fui muito molestada. Lembro-me de, quando dava aulas, ter posto a tocar as Cantigas do

A ansiedade que tenho é de ser testemunha de um tempo, é dizer: «quando estive viva, passei por aqui e o mundo era assim». Os futuros leitores podem não achar que sou esse interlocutor. Mas eu escrevo pensando que sou. Suficientemente lúcida para saber que o valor literário é que determina isso. Para se reconstituir a vida de hoje, também se pode ler jornais. Mas vai faltar-lhes sempre a dimensão do sonho, do desejo de como se queria que a vida fosse. Isso, só a ficção, a literatura, a poesia, o teatro, é que dão.

Tem uma obra premiada, reconhecida. Alguns dirão que é difícil penetrar no seu universo. É-lhe importante a questão de ser lida e amada?

É muito importante, e diz-me que não foi em vão, que há uma parte do meu projeto que se cumpriu. Uma das coisas que mais custa é perceber que se cria uma assimetria vergonhosa: que as pessoas que nos amam mereceriam uma resposta maior do que essa de escrever outro livro. Ao mesmo tempo, isso dá-me a ideia de um arco incompleto. O reconhecimento é algo que faz a pessoa perguntar: e será merecido? Não pelo que se fez, mas pelo futuro. O futuro vai confirmar ou desmerecer? O melhor é aceitar, e fazer de conta que tudo foi uma festa.


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Perfilados de medo... … e de humilhação e coragem. Em 48, Susana Sousa Dias devolve voz àquilo que é mudo. Por trás das fotografias da PIDE, pressentem-se gritos de tortura Por Ana Margarida de Carvalho Tem mais ou menos o efeito Polaroid, mas aplicado ao som. Se se abanar e aguardar, um lento fade in auditivo vai-se ouvindo, gradualmente, até a mudez se tornar sussurro e os murmúrios se tornarem vozes e os rumores palavras, cada vez mais nítidas e claras. Foi isto que a realizadora Susana de Sousa Dias fez no documentário 48, com as fotos de cadastro de 16 resistentes (na sua maioria do PCP), presos e torturados, durante quase meio século de fascismo em Portugal. Em 2000, Susana «caiu» nos arquivos da PIDE para fazer Enfermeiras do Estado Novo e Natureza Morta (2005). Nunca mais de lá saiu. Nem quer. Centenas de rostos, alguns deles muito jovens, de olhar frontal, a três quartos e de perfil: «Um mundo fantasmático». Quis descobrir o que havia por detrás daqueles olhares, o que eles revelam, e escondem.

O PODER DE NÃO FALAR

Todo o filme, 93 minutos, é construído através da montagem de diversas filmagens das fotos de cadastro, acompanhadas de depoimentos dos protagonistas, na atualidade, que nunca aparecem, apenas se lhes escutam as vozes, as palavras, as lembranças, e, sobretudo, os silêncios, as pausas, aquelas pequenas reticências que chegam antes de uma recordação difícil. Aparentemente, só aparentemente, o filme é a negação do cinema. A imagem parece estática mas há pequenos movimentos de câmara, quase impercetíveis, numa slow motion cal-

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culada, para manter a atenção do espetador e criar um efeito quase hipnótico. Primeiro, aquelas imagens que surgem do escuro. E antes da voz, o som do silêncio (o paradoxo é possível) que começa a formar o espaço cinematográfico. Os pequenos rumores da presença física, de quem está do outro lado e observa aquelas fotos com desconforto e tem de se expor a experiências dolorosas e traumáticas, um inspirar mais profundo, um «ai», um choro reprimido, um suspiro, um esfregar de olhos ou de testa que se adivinha… As imagens não competem com o som, antes se irmanam e fundem numa sintonia desconcertante. As histórias vão surgindo, ora de jorro ora a conta gotas, e cada palavra ganha uma dimensão avassaladora. Como se atrás dela se perpetuasse um eco. O «nojo e a revolta» que uma das torturadas sentia pelos algozes da PIDE. A camisa que daí a nada se cobriria de sangue. O «casaquinho branco» com que mulheres eram forçadas a limpar as próprias necessidades e a menstruação que escorria para o chão, perante o gáudio dos agentes: «Pareço um cão à beira da estrada, morto e a cheirar mal.» A voz de Dias Lourenço, entretanto falecido (18 anos de prisão), que, nas suas fotos de cadastro, «usava» sempre uma expressão desafiadora: «A mim não tinham a alegria de me ver com cara de torturado.» E a idade a avançar nos rostos e nas rugas dos resistentes. Com mais de uma semana de tortura do sono em cima («a

tortura do sono é a morte lenta»), com mais uma dezena de anos de clausura, mais cabelos brancos nas mulheres, mais entradas na cabeça dos homens… Por vezes um riso inusitado, a intromissão do absurdo, como a história do preso que foi levado de elétrico e ainda queriam que pagasse o bilhete… Mas depressa se regressa ao horror da tortura, dos choques elétricos, da estátua, do medo de falar e comprometer camaradas, da pancada, do sono, do desejo da morte. «Como é possível estar 18 dias sem dormir e o coração não parar?» Quando a morte deixa de ser medo, e se torna desejo. O choro de uma mãe a quem ameaçam matar o bebé. O relato de um pai a quem a filha pequena estranha quando o vê «inteiro» numa visita presencial: «Pensava que eu não tinha pernas», sempre o vira a meio corpo, no parlatório. As alucinações da privação do sono, os pelos azuis que alastravam nos corpos, as «rendas lindas» nas paredes de cima a baixo, os pássaros pretos que saltavam no chão de madeira. E as descrições tremendas dos presos moçambicanos (nem tinham direito a foto) que recordam os gritos lancinantes e o som do chicote na carne, «o cavalo marinho suporta-se, mas os cabos de aço levam a pele agarrada». E a morte, sempre atenta. «Mas ela nunca vem quando mais se deseja.» E, para muitos, a única corda de liberdade a que se podiam agarrar, na voz de Domingos Abrantes: «Nós tínhamos um poder único, que era o de não falar.»


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Quando em maio, Adriana Calcanhotto subir aos palcos do Centro Cultural de Belém (6 e 7) e Casa da Música (9) vamos estranhar a ausência de um violão nas suas mãos. Não é opção, é obrigação: a música tem uma lesão num tendão da mão direita, de lenta recuperação. Adriana vem, pois, só cantar as canções do novo disco O Micróbio do Samba (e outras, certamente…). O que já não é pouco. E que «micróbio» é este? Uma coleção de 12 sambas, todos com um estilo próprio bem marcado pela voz de Calcanhotto, escritos «por aí… um aqui, outro ali, em várias cidades». O último a ser composto foi Deixa, Guei-

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5 discos da vida de... Adriana Calcanhotto Cantora e compositora 45 anos

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Baden Powell

Caetano Veloso

Chet Baker Sings

Chet Baker

É preciso explicar alguma coisa? Eu sou uma ouvinte de discos no sentido de «álbum», com um alinhamento, uma ordem… Conhecia Chet Baker, mas só o lado instrumental. Ouvir este disco inteiro com ele cantando daquela maneira, com aquela entrega, foi uma revelação. E ouvindo Chet Baker passei a entender tanto do canto do Caetano e de João Gilberto…

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Estrangeiro

Um Violão na Madrugada

Um dos primeiros discos do Baden Powell. É um vinil que era do meu pai, e que hoje está lá comigo. Não era nenhuma tentativa de ser um disco infantil, nada disso, mas para mim tinha um apelo tão forte, que eu ouvia e reouvia – como as crianças ouvem música. E quanto mais eu ouvia, mais tinha coisas para ouvir… Quando gravei o primeiro disco da Adriana Partimpim, comecei precisamente com uma música tirada desse disco: Lição de Baião.

3

xa, elaborado em Oslo, em novembro do ano passado; e o que está a alojar-se – qual micróbio benigno – nos ouvidos dos portugueses é logo o primeiro, Eu Vivo a Sorrir, que dá o mote ao resto do disco. Antes de apresentar esta sua escolha, não hesita em dizer «isso não se faz!» – e sorri- «Estes são os cinco discos desse dia; noutro dia, podiam ser outros cinco… Um dos critérios que usei foi escolher discos que eu ouvi muito, muito em loop…» No fim, talvez para se livrar de pesos na consciência, ainda revela qual seria o sexto disco, se coubesse nesta página: Drama, de Maria Bethânia.

Sempre gostei do Caetano, foi um dos meus ídolos, apontou-me caminhos… Mas o Estrangeiro é um caso à parte. Eu vi esse show no Canecão, tinha acabado de chegar ao Rio (Adriana cresceu em Porto Alegre), ainda antes do disco sair. Foi uma loucura! Não conseguia parar de ouvir, viajei para a Europa com o Estrangeiro no meu walkman. Tornouse a banda sonora da minha vida. E não conseguia entender a produção daqueles sons, como eles tinham conseguido aquilo… Incrível.

Máquina de Escrever

Moreno + 2

O impacto que tive com este disco, eu já não esperava mais ter. É o tipo de impacto arrebatador que temos na adolescência – que eu tive com a Maria Bethânia, com os Stones… Depois de estar a trabalhar com música, do lado de cá, eu já não esperava sentir mais isso. Mas senti com este disco. E também pensei. «Como é que estes meninos conseguiram? Como é que eles fizeram isto, que eu daria tudo para conseguir fazer mas nem saberia por onde começar?» Uma inveja boa.

Love and Theft

Bob Dylan

Qualquer disco do Bob Dylan tem esse sentido de álbum que me parece incrível. Mas este tem uma canção, que eu acho das mais lindas à face da Terra: Sugar Baby. Seguramente ouvi muito mais vezes essa música do que o disco todo. Gosto muito, também, do Modern Times, mas por causa dessa canção escolho o Love and Theft.


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