Marcel Duchamp

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Marcel Duchamp A Arte Como Contra-Arte


Título original

Marcel Duchamp: Art as Anti-Art Autor

Janis Mink Tradução para português

Zita Morais Design Gráfico

João Cacelas Impressão

Printer Portuguesa © 1994 para as ilustrações de Marcel Duchamp: Alexina Duchamp, Villiers-sous-Grez © 1994 para as ilustrações de Man Ray, Matisse e Picabia: VG Bild-Kunst, Bona © 2000 Benedikt Taschen Verlag GmbH Hohenzollernring 53, D-50672 Köln www.taschen.com isbn 3-8228-6132-4


Janis Mink

Marcel Duchamp A Arte Como Contra-Arte



Índice

Porque não espirrar?

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Um jovem na primavera

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O pensamento em movimento

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Libertação 44 Maiores realizações

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Porque n達o espirrar?


Visto sob a perspectiva actual, Marcel Duchamp parece ser o mais influente artista do século XX. A sua avaliação crítica das condições em que a arte foi criada e comercializada estabeleceu uma tendência que hoje continua actual. Foi Duchamp quem respondeu de forma mais radical às mudanças que foram impostas pela era industrial ao mundo da arte. E, no entanto, Duchamp é o menos espectacular dos artistas que este século produziu até agora. Apesar de a obra, devido à sua natureza artisticamente provocatória, ter recebido uma enorme atenção crítica, a sua vida esteve envolta na famosa «parede de silêncio» de Duchamp. A sua obra representa um quebra-cabeças para artistas e historiadores de arte e continua a ser um enigma para o grande público. Mesmo os adeptos mais dedicados de Duchamp se sentem, por vezes, baralhados. Quando Katherine Dreier lhe pediu para produzir um objecto para a irmã, Duchamp concordou desde que tivesse liberdade total. Porque não espirrar? (Why not Sneeze?) (1921, pág. 11) foi o resultado – um amontoado de cubos de mármore que parecem bocados de açúcar, um termómetro e um osso de choco dentro de uma velha gaiola rectangular para pássaros. Dorothea Dreier não quis Why not Sneeze? e devolveu-o a Katherine que o conservou na sua colecção de trabalhos de Duchamp até 1937, altura em que o vendeu, sem qualquer lucro, a um dos mais importantes coleccionadores de Duchamp. Walter Arensberg. Why not Sneeze? não foi um sucesso. Não foram muitas as pessoas que o viram, e aqueles que viram, acharam que era


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Marcel Duchamp · A Arte Como Contra-Arte

difícil de compreender, mas demasiado estranha para não ter algum significado. Era a espécie de objecto de transição que insuflou o espírito dadaísta nos pulmões do surrealismo que começava, na altura, a evoluir, Mais tarde, em 1936, Why not Sneeze? foi mesmo incluída numa exposição surrealista em Paris. Foi colocado numa vitrina ao lado de fétiches da Papuásia e de modelos de demonstração matemática do Instituto Científico Poincaré. Esta vizinhança pretendia incitar o espectador a retirar Why not Sneeze? de um contexto de peça de arte e a colocá-lo… onde? As próprias explicações de Duchamp não davam uma grande ajuda: Katherine Dreier na Galeria de Arte da Universidade de Yale

«Esta pequena gaiola está cheia de cubos de açúcar… mas os cubos de açúcar são feitos de mármore e, quando se lhes pega, fica-se surpreendido pelo seu peso inesperado. O termómetro destina-se a registar a temperatura do mármore»1. Why not Sneeze?, com todas as suas sugestões de peso (o mármore), a promessa de doçura (os falsos cubos de açúcar), a falta de calor (termómetro), poesia (o canto do pássaro), voo aprisionado (o osso de choco e a gaiola) e arte (o cubismo e a utilização do mármore), parece conter uma mensagem para as irmãs Dreier. O título irreverente é uma proposta. Porque não fazer qualquer coisa como espirrar, essa reacção catártica que cresce de uma cócega e acaba numa explosão climática não deixando senão traços húmidos? A assinatura de Duchamp nesta peça, o seu novo pseudónimo «Rose Sélavy», por vezes escrito «Rrose», aponta para uma alusão ao sexo: «Eros, C’est la vie». Contudo, após uma segunda observação de Why Not Sneeze?, o espectador tem pudicamente a tendência para evitar esta associação. Seria possível que a gaiola cheia, o monte de cubos brancos, o termómetro de vidro e o frágil osso de choco estivessem prestes a entrar em erupção?


Porque não espirrar?

Como é que espíritos sérios como as irmãs Dreier deveriam interpretar esta peça? Não havia muitos precedentes a esta espécie de trabalho no campo das artes visuais. Duchamp inclinava-se para olhar noutras direcções em busca de inspiração – para modelos científicos, para a indústria e para a literatura. Um historiador estabeleceu paralelos convincentes entre Why not Sneeze? e um poema da americana residente em Paris, Gertrude Stein. Duchamp conhecia bem a escrita de Stein, o seu papel como mecenas do cubismo e até a tinha visitado em

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Marcel Duchamp Porque não Espirrar Rose Sélavy? 1921/1964 Readymade: 152 cubos de mármore, com um termómetro e um osso de choco dentro de uma gaiola 12,4 x 22,2 x 16,2 cm Milão, Colecção de Arturo Schwarz


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Marcel Duchamp · A Arte Como Contra-Arte

companhia de Catherine Dreier em 1916. O poema, intitulado «Lifting Belly» (1915-1917), do qual Duchamp pode ter retirado elementos individuais2, não tem um sentido linear e é uma série de imagens e de sentimentos: «Erguer o ventre não é uma piada. Ainda menos depois de… espirrar. Esta é uma forma de dizer... Pára. Agradas-m...» «De facto, amo rosas e cravos... Uma publicação de levantar o ventre. Irmãs da excitação... Sabe, prefiro um pássaro. Que pássaro? Porquê um pássaro amarelo... Erguer o ventre é tão agradável. E tão frio.» «Erguer o ventre casado... Nós não encorajamos um rouMan Ray

xinol... Poderá ele pintar? Não, após ter conduzido um

Gertrude Stein

carro... Erguer o ventre é famoso pelas receitas. Que-

cerca de 1926 Fotografia a preto e branco A escritora americana Gertrude Stein (1874-1946) tornou-se uma personalidade avant-garde famosa em Paris, antes da Primeira Guerra Mundial. Coleccionava obras de Cézanne, Matisse e Picasso, entre outros. Em 1933, escreveu um bestseller acerca da companheira, com o título A Autobiografia de Alice B. Toklas (The Autobiography of Alice B. Toklas). Este livro premiado foi um grande sucesso e mostrou quão importante foi o papel que Gertrude Stein desempenhou na literatura parisiense e nos círculos artísticos. Matisse, Braque, Joyce e Hemingway eram visitas assíduas em sua casa. Em 1934, regressou aos Estados Unidos para dar uma série de conferências sobre literatura e arte, o que provavelmente terá influenciado Marcel Duchamp.

res dizer Genevieve... Erguer o ventre é açúcar. Erguer o ventre para mim...»3 Perante este poema, tal como perante Why Not Sneeze?, a audiência é confrontada com uma série de ideias que não permitem a sua leitura na lógica da narrativa. As possíveis referências de Duchamp ao poema parecem ser mais pessoais que rigorosas. Num certo sentido, o observador está perdido, ou fica entregue a si mesmo com a sensibilidade desconhecida, ou seja, a do artista – inseguro, ele busca pontos de orientação. O desafio que representa interpretar a obra de Duchamp provocou centenas e centenas de entrevistas, livros e artigos publicados em muitas línguas. Serviu mesmo como um ponto de partida para muitas outras obras de arte. Precisa-se apenas de virar o caleidoscópio da interpretação para descobrir que os fragmentos da vida de Duchamp e da sua obra, formaram um novo padrão. O próprio Duchamp aceitava calmamente todas

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Ugo Mulas Marcel Duchamp 1965

as interpretações da sua arte, mesmo as mais fantasiosas, pois interessavam-lhe como criações das pessoas que as formulavam, embora não correspondessem necessariamente a realidade.



Um jovem na Primavera


Em finais do século xix, a família de Duchamp vivia numa casa confortável da classe média, perto de Blainville, uma pequena cidade da Normandia. A Senhora Duchamp era filha de um agente de navegação que também era pintor e gravador. A residência Duchamp estava repleta da sua arte e ele era muito estimado tanto pela filha como pelo genro e, consequentemente, pelos netos. Dizia-se que tinha estudado com Charles Méryon, famoso pelas suas paisagens de Paris. Embora a Sra. Duchamp, a mãe de Marcel Duchamp, não tivesse herdado o talento do pai – ela desenhava cenas de rua de Estrasburgo e Ruão para decorar serviços de porcelana que nunca foram produzidos –, ela consagrou a sua vida adulta a dar

à

luz e a educar os seus sete filhos, seis dos

quais sobreviveram e apenas dois lhe eram ligados. O marido era um notário próspero que chegou a ser presidente da Câmara de Blainville. Ambos os pais encorajavam as actividades culturais. As crianças cresceram numa casa em que se jogava xadrez, se lia, se pintava e onde os membros da família tocavam instrumentos musicais e compunham música juntos. Porém, nem tudo era perfeito. Embora o pai fosse amável e indulgente, Marcel considerava a mãe irresponsável e indiferente e, aparentemente, isso fazia-o sofrer. Os dois filhos mais velhos eram rapazes, Gaston e Raymond. Um pouco mais de dez anos mais tarde e após a morte de uma menina de treze anos, nasceu Marcel (a 28 de Julho de 1887), seguiu-se Suzanne que foi a sua mais chegada companheira de


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Marcel Duchamp · A Arte Como Contra-Arte

brincadeiras. Cerca de cinco anos mais tarde, nasceram Yvonne e Magdeleine, as favoritas da mãe que vieram completar a família. Enquanto Marcel ainda estava na escola, os dois irmãos mais velhos desistiram dos cursos de Direito e Medicina para se consagrarem às artes. Os seus esforços foram, em grande parte, suportados pelo pai, que lhes foi, antecipadamente e de forma gradual, pagando as respectivas partes na herança da família. Gaston mudou-se para Paris, a fim de se dedicar à pintura sob o pseudónimo de Jacques Villon. Raymond passou a chamar-se a si próprio Duchamp-Villon e tornou-se escultor. Após terminar o ensino secundário, Marcel, então com dezassete anos, foi viver com os irmãos mais velhos no Outono de 1904, tendo-se fixado no atelier de Jacques Villon, em Montmartre. Também ele tinha começado a pintar e a desenhar, assim como Suzanne Duchamp. Enquanto à irmã a decência Marcel Duchamp

impunha viver na casa dos pais, Marcel e os irmãos foram enco-

Suzanne Duchamp Sentada

rajados pelo pai a tentar a sorte em Paris.

1903 Lápis de cor sobre papel, 49,5 x 32 cm Milão, Colecção de Arturo Schwarz

Suzanne Duchamp tornou-se artista e é conhecida actualmente sob o apelido do segundo marido, Jean Crotti, que também era artista.

Como seria de esperar, os primeiros trabalhos de Marcel Duchamp foram esboços e pinturas representando Blainville e a família, a que ele estava tão ligado. A encantadora Paisagem em Blainville de 1902, quando tinha apenas quinze anos, mostra influências de Monet, que ele conhecia através de livros e reproduções e que na época admirava profundamente. Outros desenhos, como Suspensão de Lâmpada de Gás (Bec Auer) de cerca 1902 ou os vários esboços de homens definidos pelas suas profissões, como o Trabalhador do Gás (1904-05, pág. 18) ou O Amolador (1904-05, pág. 18), não têm nada digno de nota mas mostram o interesse de Duchamp por temas que não proporcionam necessariamente «belas imagens», interesse este que mais tarde voltamos a encontrar na sua obra célebre A Noiva Despida pelos Seus Celibatários, mesmo (pág. 80/81), também conhecida como O Grande Vidro. Em Paris, Duchamp integrou-se imediatamente no círculo de artistas que gravitava a volta dos irmãos. Estudou Pintura na Académie Julian até ao Verão segunte. Como o irmão, Jacques


Um jovem na primavera

Marcel Duchamp Paisagem em Blainville 1902 Óleo sobre tela, 61 x 50 cm Milão, Colecção de Arturo Schwarz

Villon, que aumentava os proventos com desenhos para Le Rire e Le Courrier Français, também Marcel se tornou rapidamente cartoonista e começou a vender desenhos humorísticos, na maior parte dos casos provocadores e baseando-se muitas vezes em trocadilhos verbais e visuais. Um cartoon de 1907 mostra uma viatura de uma mulher cocheira (as mulheres condutoras eram um fenómeno novo na época), a qual tinha entrado para um hotel com um dos clientes, deixando o contador a funcionar

Marcel Duchamp

e cobrando duas vezes os serviços prestados.

Suspensão de Lâmpada de Gás (Bec Auer)

Em 1905, Duchamp foi chamado a cumprir o serviço militar, tendo-lhe sido atribuída uma classificação especial (que o dispensava, entre outras coisas, de participar em mano-

cerca de 1902 Carvão sobre papel, 22,4 x 17,2 cm Villiers-sous-Grez, Colecção de Mme Marcel Duchamp

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Marcel Duchamp · A Arte Como Contra-Arte

EM CIMA À ESQUERDA

Marcel Duchamp Trabalhador do Gás 1904-05 Pincel e aguarela sobre papel, 17,3 x 10,7 cm Milão, Colecção de Arturo Schwarz

bras militares) e o colocava ao serviço de um tipógrafo de Ruão. Durante esse tempo, aproveitou para reproduzir uma coleção de gravuras do avô que incluía vistas da cidade. Marcel adquiriu também experiência como tipógrafo, dado que imprimia textos junto das imagens. Para além do prazer de escapar ao exército, Duchamp terá também gostado de fugir à «grande arte» e penetrar no mais técnico e efémero mundo da reprodução

EM CIMA À DIREITA

Marcel Duchamp O Amolador 1904-05 Pincel e tinta-da-china sobre papel, 21 x 13 cm Villiers-sus-Grez, Colecção de Mme Marcel Duchamp

de imagens. Após regressar a Paris em 1906, Duchamp ficou a viver com Villon durante dois anos até se mudar para Neuilly, nos subúrbios de Paris, onde ficou até 1913. Em Paris, estes dois anos foram cruciais para o futuro da pintura: os fauves e os cubistas levaram a cor e a estrutura ainda mais longe que os


Um jovem na primavera

seus antecessores, os impressionistas e os pós-impressionistas. Os Fauves, entre os quais se distinguiu Henri Matisse usaram muitas vezes a pintura de uma forma independente do tema, pelas suas qualidades próprias, tanto de cor como de ritmo. A pintura tinha-se tornado para os fauves um produto industrial feito em série. Inspirados por van Gogh e Gauguin, pressionavam a tinta para fora dos tubos e aplicavam-na sem a preocupação de respeitar a natureza. Um pouco mais tarde, o cubistas reagiram contra as cores vivas dos fauves e concentraram-se na estrutura. Retomaram o ponto em que tinha ficado Cézanne, reorganizando a superfície do quadro em unidades geométricas. Como os fauvistas, também os cubistas puseram ênfase na intervenção do artista na «realidade»: os artistas começaram a recriar os seus temas, em vez de registarem as suas aparências.

Marcel Duchamp Mulher Cocheira 1907 Desenho a tinta e caneta, lápis e aguarela sobre papel, 31,7 x 24,5 cm Nova Iorque, The Mary Sisler Collection, Courtesy Fourcade, Droll, Inc.

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Marcel Duchamp · A Arte Como Contra-Arte

A imagem literária do simbolismo na viragem do século continuou a manifestar a sua influência. Este simbolismo tinha surgido na escrita de autores como Stéphane Mallarmé, Edgar Allan Poe, Joris-Karl Huysmans, que expunham a tradição mística e visionária da arte. Os sonhos, o imaginário e o subconsciente orientavam a pintura de artistas como Gustave Moreau e Odilon Redon. Provavelmente, Duchamp absorveu o simbolismo na sua visão das mulheres como criaturas ameaçadoras e misteriosas. No início da sua carreira, quando lhe perguntaram se ele se tinha inspirado em Cézanne, diz-se que Odilon Redon

Duchamp terá respondido: «… se eu tivesse de dizer qual foi

Silêncio

o meu ponto de partida, diria que foi a arte de Odilon Redon.»4

1911 Óleo sobre gesso e papel, 54 x 54,6 cm Nova Iorque, The Museum of Modern Art, Colecção de Lilli P. Bliss

Redon não era apenas um pintor respeitado, mas também um artista gráfico inovador, que era venerado nos círculos avant-garde da época. As suas imagens misteriosas alimentavam-se de um mundo interior imaginário. Eram, contudo, muitas vezes também inspiradas pela ciência que, por assim dizer, dissecava o mundo sob o microscópio. Talvez o mais importante para Duchamp tenha sido a atitude de Redon perante

Marcel Duchamp

a sua própria arte, que não era gritantemente antiacadémica

Domingos

mas sim discreta e brilhantemente individualista. O quadro de

1909 Lápis e tinta-da-índia sobre papel, 60,3 x 48,6 cm Nova Iorque, The Mary Sisler Collection, Courtesy Fourcade, Droll, Inc.

Odilon Redon Silêncio de 1911 quase parece encarnar a atitude, que Duchamp manteve durante toda a vida, de não comentar as interpretações dadas à sua arte. Duchamp confrontou-se com os estilos da sua época e experimentou-os em busca do que mais se lhe adequava: «Entre 1906 e 1910 ou 1911, vacilei entre diferentes estilos e fui influenciado pelo fauvismo, pelo cubismo e, por vezes, também tentei coisas mais clássicas. Realmente importante para mim foi a descoberta de Matisse em 1906 ou 1907»5. Duchamp gastou os primeiros anos em Paris a pintar e a desenhar, assim como a divertir-se como sugere femme fatale que ele desenhou para um convite para um jantar de Natal no


Um jovem na primavera

seu estúdio, em 1907. Esboços de desenhos humorísticos, como

Marcel Duchamp

o sedutor Namoro (1907) e o fim da morte conjugal Domingos

Namoro

(1909), marcam bem os extremos entre os quais Duchamp situa a sua vida de jovem. Mesmo nos seus vinte anos, Duchamp já tinha reputação de celibatário, atraído pelas mulheres mas alérgico ao casamento. «Compreendi muito cedo que ninguém se deve sobrecarregar com demasiados pesos, com demasiadas ocupações, com uma mulher, crianças, uma casa de campo, um carro; felizmente compreendi-o a tempo. Esta é razão por que posso viver de forma muito mais simples como celibatário do que se tivesse de me ocupar de todos os problemas comuns da vida.»6 Durante estes primeiros anos, Duchamp participou em várias exposições. Dado que Jaques Villon pertencia ao pres-

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1907 Tinta-da-china, aguarela e lápis azul sobre papel, 31,5 x 45 cm Milão, Colecção de Arturo Schwarz

Namoro tem uma legenda baseada num trocadilho francês. Duchamp brinca com o termo francês para piano de cauda – «piano à quele» – e a frase «piano acuoso» – «piano aqueux», escrevendo: «Ela: Quer que lhe toque Sobre as Ondas Azuis? Verá como o piano dá bem a impressão sugerida pelo título. Ele (espirituoso): Não tem nada de surpreendente, menina, trata-se de um piano… aquoso.»


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Marcel Duchamp · A Arte Como Contra-Arte

tigiado Salon d’Automne, Duchamp teve a possibilidade de ali expor logo em 1908. Um ano mais tarde, expôs pela primeira vez no monumental Salon des Indépendants, um salão sem júri e sem prémios, que exibia milhares de obras de todo o género de artistas. Embora o Salon des Indépendants estivesse cheio de trabalhos de amadores e artigos decorativos, a sua reputação como um importante fórum para a avant-garde sobreviveu desde os tempos da sua fundação por Odilon Redon, Paul Signac e Georges Seurat. Mais tarde, Duchamp haveria de propagar o seu lema «Nada de júris, nada de prémios», nos Estados Unidos. Apesar do elevado número de participantes numa exposição deste género, Duchamp atraiu a atenção do poeta e crítico Guillaume Apollinaire durante a extensa crítica que formulou após a peregrinação ao longo dos 6000 quadros expostos no Salon de Indépendants em Março de 1910: Marcel Duchamp

«J. Crotti adoptou a teoria pontilhista, não para obter to-

Retrato do Dr. R. Dumouchel

nalidades puras, mas simplesmente para se distinguir

1910 Óleo sobre tela, 100 x 65 cm Filadélfia (PA), Philadelphia Museum of Art: Collection Louise and Walter Arensberg

É difícil dizer a razão pela Duchamp deu ênfase à mão do Dr. Dumouchel. O quadro pode conter uma primeira alusão à masturbação masculina que, eventualmente, se terá tornado um tema de O Grande Vidro.

dos outros, para chamar a atenção. Marinot busca efeitos decorativos. Citemos Pierre Dumont; os nus muito feios de Duchamp; Kantchalowsky que pinta com as botas; Lewitska, cujo quadro representa um par nu a dançar num parque, é bastante jovial; e passemos à Escola da Renovação Bizantina que inclui três pintores – três artesãos, mais exactamente – dois homens e uma mulher: Boitchouk, Kasperowitch e a Menina Segno.»7 Em 1910, Duchamp estava principalmente interessado na obra dos fauves, como prova o retrato do seu amigo de escola Dr. Dumouchel, acerca do qual ele comentou: «Recorda-me um dos coloridos violentos de Van Dongen e, em simultâneo, pormenores como o halo à volta da mão, indicam a minha definitiva intenção de acrescentar um toque de distorção deliberada. A composição não é


Um jovem na primavera

de forma alguma uma cópia servil do modelo e torna-se quase uma caricatura.»8 Talvez Duchamp tenha mesmo pensado no famoso retrato de Rembrandt do Dr. Tulp, cuja mão esquerda também parece ter uma qualidade eloquente e simbólica. O Dr. Dumouchel volta a aparecer como um nu feio no casal do Paraíso (1910-11). O doutor parece ignorar a mulher nua sentada junto dele, embora ele não pareça à vontade, pois esconde, envergonhado, o sexo, tendo menos a aparência de um Adão pecador que de

Marcel Duchamp Paraíso 1910-11 Óleo sobre tela, 114,5 x 128,5 cm Filadélfia (PA), Philadelphia Museum of Art: Collection Louise and Walter Arensberg

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Marcel Duchamp · A Arte Como Contra-Arte

um contemporâneo macilento e inadaptado. O modelo feminino para Eva era bastante corpulento, e Duchamp reproduziu-o mais ou menos fielmente. Contudo, em Rapaz e Rapariga na Primavera (1911), Duchamp traçou e idealizou as suas figuras, como se estivesse a desenhar pessoas muito jovens – eles parecem os esboços abstractos da irmã Magdeleine e os esboços e as pinturas de Jeanne Serre, um modelo que lhe deu uma filha. (Esta filha viria a conhecer o verdadeiro pai apenas dois anos antes da morte deste em 1968). De novo é representado o tema do Paraíso, aqui exactamente no momento antes de acabar. Ambas as figuras permanecem anónimas. A cabeça da mulher está inclinada para trás, pelo que apenas se lhe pode ver o vulto do seu crânio, enquanto as feições do homem foram omitidas privilegiando a sua linha do queixo. A identidade da mulher através do cabelo e a do homem através pelo queixo são predicados determinantes dos sexos que se podem identificar com clareza, embora não sejam enfatizados. De facto, ao primeiro olhar, ambas as figuras quase parecem idênticas e andrógenas. Estão de pé, sob uma árvore, cujos frutos eles tentam colher. O tronco da árvore separa-os e repete a verticalidade dos seus jovens corpos alongados. Até agora, nunca foi dada atenção ao facto de, pelo menos, cinco figuras se encontrarem no meio da pintura. Dentro do círculo do quadro está um grupo de bailarinos que parece dar as mãos, muito semelhante à pequena roda de bailarinos no meio do fundo da obra de Henri Matisse A Alegria de Viver (1905-06, pág. 26). A Alegria de Viver foi uma importante fonte de inspiração mesmo para o próprio Matisse que, a partir dela, criou outras composições de maiores dimensões, como A Dança, cerca de 1910 (pág. 26). Uma das figuras de Duchamp está sentada sob o círculo cujos contornos a negro se soltam e PÁGINA 25

Marcel Duchamp

descem sobre ela. Mais uma vez, os nus pastorais de Matisse

Rapaz e Rapariga na Primavera

podem surgir aqui interpretados. Duchamp deve ter usado

1911 Óleo sobre tela, 65,7 x 50,2 cm

muitos outros detalhes de Matisse, como sejam as linhas

Milão, Colecção de Arturo Schwarz

pretas segmentadas, a composição grosseiramente triangular



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Marcel Duchamp · A Arte Como Contra-Arte

em cima

Henri Matisse A Dança cerca de 1910 Óleo sobre tela, 260 x 391 cm Sampetersburgo, Hermitage À direita

Henri Matisse A Alegria de Viver 1905-06 Óleo sobre tela, 174 x 238 cm Merion (PA), Barnes Foundation, Merion Station


Um jovem na primavera

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Fotografia de Julian Wasser O jogo de xadrez no Pasadena Art Museum, a 18 de Outubro de 1963, durante a primeira grande retrospectiva dos trabalhos de Duchamp. Para além de ter sido uma paixão que o acompanhou ao longo de toda a vida, o xadrez foi também uma actividade simbólica para Duchamp. Durante a abertura da retrospectiva de Duchamp, em Pasadena, Califórnia, o artista deixou-se fotografar a jogar xadrez com uma anónima nua. O Grande Vidro central pode ser visto claramente ao fundo. Duchamp surge à direita, enquanto a mulher está sentada à esquerda, como acontece com as figuras em Rapaz e Rapariga na Primavera.

e o tecto formado pela copa da árvore. Mais tarde, na última obra da vida de Duchamp, Dados (Etant donnés), volta a ocorrer a ideia das figuras femininas de Matisse. Alguns dos torsos de Duchamp lembram a energia e a distensão das pernas dos bailarinos de Matisse, enquanto o último torso tridimensional de Etant donnés (pág. 96) fará recordar a pesada figura feminina «sem cabeça» que beija o par no canto inferior direito de A Alegria de Viver. O quadro de pequenas dimensões Rapaz e Rapariga na Primavera (pág. 25) é um pouco confuso, devido às manchas,

Marcel Duchamp Retrato de Jogadores de Xadrez

e difícil de decifrar. Estranhamente, o seu proprietário, Arturo

1911 Óleo sobre tela, 108 x 101 cm

Schwarz, que esteve ligado a Duchamp como dono de uma

Filadélfia (PA), Philadelphia Museum of Art: Collection Louise and Walter Arensberg

galeria e fez uma recolha da sua obra para o catálogo do seu trabalho, interpretou o círculo como tendo apenas uma única figura, opinião nunca contrariada. No entanto, a inclusão de uma roda de dançarinos sugerindo alegria seria muito lógica, já que Duchamp pintou Rapaz e Rapariga na Primavera para a irmã Suzanne, como presente de casamento e assinou-o «A toi ma chère Suzanne Marcel» («Para ti minha querida Suzanne Marcel»). A inclusão da Alegria de Viver teria sido um adequado (embora não inteiramente sincero) voto, que a pintora Suzanne Duchamp poderia identificar e apreciar, mesmo que o marido,


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Marcel Duchamp · A Arte Como Contra-Arte

um farmacêutico, provavelmente não o entendesse. Como um dos ritos familiares, o casamento da sua irmã mais nova terá sido uma experiência comovente ou difícil para Duchamp, embora ele nunca o tenha discutido. Pela mesma altura, inicia-se a preocupação de Duchamp com a transição, a mudança, o movimento e a distância. Por volta do fim de 1911, Duchamp visita os irmãos e František Kupka em Puteaux, do outro lado do Sena, a oeste de Paris. Ali, ele conheceu, jogou xadrez e discutiu arte com Fernand Léger, Roger de la Fresnaye, Albert Gleizes, Jean Metzinger, Juan Gris e Alexander Archipenko. Um dia, Raymond Villon-Duchamp pediu a alguns dos amigos, entre eles Duchamp, para pintarem pequenas obras para decorarem a sua cozinha. Como presente adequado para a cozinha, Duchamp pintou-lhe um pequeno Moinho de Café a moer (veja a seta), mas também a avariar-se e a espalhar o café; foi esta a sua primeira «máquina», um pouco desajeitada e a funcionar mal. Em 1911, também fez retratos de raparigas e mulheres, que reflectem o seu contacto vago e talvez não inteiramente respeitador com o grupo cubista, como Dulcineia. Dulcineia era uma mulher que permaneceu uma desconhecida para Duchamp, mas que ele observava, por vezes, a passear o cão em Neuilly. Ele representou-a despida em duas das figuras que, juntas, formam uma espécie de vaso Marcel Duchamp

facetado, onde os torsos sobressaem como troncos com capí-

Moinho de Café

tulos de flor. Embora sendo uma cena erótica, não há nada

1911 Óleo sobre cartão, 33 x 12,5 cm Rio de Janeiro. Colecção de Mme. Robin Jones

com aspecto erótico no produto final e, Dulcineia, apesar das suas idas e vindas, tornou-se como que uma natureza-morta. Duchamp estava claramente interessado no movimento como descrito pelas suas fases estáticas. Serviram-lhe de inspiração o cinema e a fotografia analítica do tempo (cronofotografia) de Marey, em França, e de Eakins e Muybridge nos Estados Unidos. O trabalho Jovem Triste Num Comboio, que fora pintado em Dezembro de 1911, é um auto-retrato de Duchamp no corredor


Um jovem na primavera

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Marcel Duchamp Dulcineia 1911 Óleo sobre tela, 146 x 114 cm Filadélfia (PA), Philadelphia Museum of Art: Collection Louise and Walter Arensberg

Eadweard Muybridge Locomoção Humana, Chapa 263 1887 Fotografia, 22 x 33 cm Nova Iorque, Colecção de Timothy Baum

O fotógrafo Eadweard Muybridge juntou uma série de imagens individuais, captadas separadamente, para tornar visíveis as fases do movimento. Muybridge permitiu que fosse possível a percepção do processo dinâmico dos humanos e dos animais, de uma forma que se aproxima da realidade.


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Marcel Duchamp · A Arte Como Contra-Arte

de um comboio, durante uma viagem de Paris para Ruão, para onde os pais e irmãs se tinham mudado em 1905. «Há dois aspectos a considerar nesta pintura: primeiro, é o movimento do comboio, e o outro é o jovem triste, de pé no corredor e andando para trás e para a frente, pelo que temos dois movimentos paralelos, cada um dos quais corresponde ao outro. Além disso, há a deformação da silhueta do jovem que eu costumo chamar de paralelismo elementar. É uma espécie de decomposição formal, um corte em lamelas que se sucedem paralelamente e que deformam o objecto. Assim ele fica alongado como se fosse elástico. As linhas seguem paralelas umas às outras e apenas se desviam suavemente para sugerir Marcel Duchamp

a forma desejada. Usei o mesmo método em Nu Descendo

Jovem Triste num Comboio

Uma Escada»9.

1911 Óleo sobre tela, fixado sobre cartão, 100 x 73 cm Veneza, Peggy Guggenheim Foundation

Nu Descendo Uma Escada (N.º2) foi o trabalho que mudou a vida de Marcel Duchamp. Como o jovem triste, este «nu» era uma versão mais radical e mecanizada das figuras anónimas de Rapaz e Rapariga na Primavera (pág. 25). A figura dificilmente parece nua, já que dificilmente parece humana. Quando Duchamp apresentou este trabalho no Salon des Indépendants, teve uma recepção fria. O pintor e teórico cubista Albert Gleizes, que pertencia à comissão de exibição, pediu aos irmãos de Duchamp, Jacques Villon e Raymond Duchamp-Villon, para o persuadirem a desistir «voluntariamente». Na sua opinião, este trabalho não estava de acordo com que o círculo cubista pretendia para a sua exposição que se desejava representativa. Parecia-lhes demasiado «futurista», visto que continha movimento. Com ar sério e embaraçado, os irmãos mais velhos pediram a Duchamp que cedesse, o que ele fez sem exaltações. Contudo, ficou magoado.


Um jovem na primavera

Marcel Duchamp Nu Descendo Uma Escada (N.º2) 1912 Óleo sobre tela, 146 x 89 cm Filadélfia (PA), Philadelphia Museum of Art: Collection Louise and Walter Arensberg

«[Esta questão] ajudou-me a fugir completamente ao passado, ao meu próprio passado. Eu disse para mim mesmo: «Está bem, se é este o caminho que eles pretendem, então está fora de questão eu juntar-me a um grupo; cada um só pode contar consigo próprio, tem de se ser solitário.»10

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O pensamento em movimento


Em 1912, Marcel Duchamp tinha vinte e cinco anos e, estranhamente, estava perto de chegar ao fim da sua carreira como pintor. Durante esse ano, em que ocorreram grandes mudanças, ele começou a viajar mais, procurando inspiração fora dos círculos familiares dos artistas parisienses e até mesmo fora das artes visuais no seu todo. Vários escritores foram de especial importância, nomeadamente os que tinham comçado a fazer experiências na linguagem. Em Outubro de 1911, encontrou Francis Picabia no Salon d’Automne que o introduziu num novo estilo de vida, longe do círculo estático dos artistas profissionais de Puteaux. Picabia tornou-se um bom amigo que o acompanharia por toda a vida. Duchamp sentiu-se atraído a desenhar para este homem inovador, depois da desilusão tida com os dois irmãos mais velhos e com os cubistas estabelecidos. Em Junho de 1912, Duchamp assistiu a uma representação teatral com Picabia, a mulher deste – Gabrielle Buffet-Picabia – e Apollinaire. Foi uma experiência que viria a alterar decisivamente toda a sua arte: a adaptação teatral da novela de Raymond Roussel Impressões de África (Impressions d’Afrique), publicada pela primeira vez em 1910. Anos mais tarde, numa importante entrevista com James Johnson Sweeney, Duchamp disse: «Roussel também me suscitava um grande entusiasmo naquela época. Eu admirava-o, porque ele produzia coisas que eu nunca tinha visto antes. Isto desperta em mim a admiração do meu ser mais profundo – algo comple-


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Marcel Duchamp · A Arte Como Contra-Arte

tamente independente – nada tendo a ver com grandes nomes e influências. Apollinaire foi o primeiro a dar-me a conhecer a obra de Roussel. Era poesia. Roussel pensava que era filólogo, filósofo e metafísico. Mas manteve-se um grande poeta. Fundamentalmente foi Roussel o responsável pelo meu vidro A Noiva Despida pelos Seus Celibatários, mesmo (págs. 80/81). Foi ao seu livro Impressões de África que fui buscar a inspiração. Esta peça, que eu vi com Apollinaire, ajudou-me grandemente numa vertente da minha expressão. Vi de imediato que eu podia usar Roussel como influência. Senti que, como pintor, era muito melhor ser influenciado por um escritor do que por um outro pintor. E Roussel mostrou-me como. A minha biblioteca ideal deveria incluir todos os escritos Capa da novela de Raymond Roussel Impressões de África, primeira edição em 1910, Paris, Bibliothèque National Raymond Roussel (1877-1933) era poeta, actor, dândi e milionário. Nos seus romances ele combina temas radicalmente fantásticos, com um estilo distante e mórbido. Foi um importante precursor do surrealismo, graças ao método de (livre) associação que usou para escrever os seus livros.

de Roussel – Brisset, talvez Lautréamont e Mallarmé que era uma grande figura. Esta é a direcção que a arte deveria seguir: para uma expressão intelectual em detrimento de uma expressão animal. Estou farto das expressões parvo como um pintor – estúpido como um pintor.»11 A escrita de Roussel, carregada de imagens, é extremamente difícil de seguir, na medida em que a trama se enrola em si própria, tornando-se cada vez mais complexa. Poder-se-ia dizer que as suas histórias implodem, criando universos completos de pormenores. Roussel chega a estas ideias usando homófonas – palavras que têm o mesmo som mas significados e origens diferentes. Por exemplo, «empereur» (imperador) torna-se em três palavras «hampe» (haste), «air» (vento) e «heure» (hora), o que inspirou «o relógio de vento da região de Cocanha». Um outro exemplo: «étalon à platine», o que pode significar «medida padrão em platina» ou «cavalo não castrado dotado para o canto»12. Obviamente, isto podia levar a um imaginário surpreendente numa produção teatral, visto que Roussel usava a


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projecção fónica de uma frase para lançar uma imagem que ele tinha traçado e a que tinha dado uma nova identidade. Numa produção teatral da época, uma fotografia mostra os actores de Impressões de África durante o 3.º acto. Eles cercam uma gaiola de vidro que está sobre uma mesa. A legenda dizia: «Le ver de terre joueur de Cithare» (o que significaria «o verme da terra tocador de cítara»)13. Supostamente, as secreções do verme, que continham mercúrio, percutiam as cordas dos instrumentos, produzindo assim música – uma ideia arbitrária e absurda mas lógica sob o ponto de vista do grupo fonético. Evidentemente que sem as aliterações dos sons «erre», «eure» et «are», a imagem não teria razão de ser. Talvez na gaiola de vidro estivesse uma cobra em vez de um verme; Duchamp, pelo menos, recordou-se de ter visto uma: «Sobre o palco estavam apenas um manequim de montra e uma cobra que se deslocava lentamente; era absolutamente invulgar.»14 Uma das notas de Duchamp para O Grande Vidro sob o título «Notas gerais para o quadro hilariante» era «pôr toda a noiva sob uma caixa de vidro ou dentro de uma gaiola transparente.»15 Após ver a peça, as ideias começaram a juntar-se, o que faria, lentamente, criar a encenação da noiva e dos seus celibatários. Lado a lado com as figuras humanas, Roussel introduziu máquinas, parcialmente humanoides, que podiam fazer coisas como esgrimir e pintar. Entre elas, uma estranha e ágil máquina de esgrimir que «consistia numa espécie de roda trituradora accionada por um pedal que fazia mover todo um sistema de rodas, veios, alavancas e molas, formando um indecifrável emaranhado metálico; de um dos lados pendia um braço desmembrado que terminava numa mão segurando uma chapa metálica.»16 Esta descrição quase parece adaptar-se também ao jovem triste no comboio, que Duchamp tinha acabado de pintar. A maquinaria inventada por Roussel, as suas artificiais experiências científicas e a sua perversão do sentdo para criar novos significados contagiaram a imaginação de Duchamp. Além disso, ideias específicas dos livros de Roussel surgem perio-

Retrato de Raymond Roussel Foi o excêntrico milionário francês que esteve na origem da mudança radical que Duchamp fez na sua arte.


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Marcel Duchamp · A Arte Como Contra-Arte

Marcel Duchamp

dicamente na arte de Duchamp, como é caso de uma estátua

Caixa de 1914

aparentemente leve que depois se prova ser pesada (realizada

1914 Caixa em cartão com fac-símiles de 16 notas manuscritas e um desenho, 25 x 18,5 cm em cada Filadélfia (PA), Philadelphia Museum of Art: Gift of Marcel Duchamp

pelo escultor Montalscott em Locus Solus de Roussel (1914), um dispositivo capaz de criar trabalhos de arte, utilizando apenas efeitos meteorológicos combinados (a menina de Locus Solus) ou uma corporação formada para financiar um jogo de azar (em Impressões de África). Após ter visto Impressões de África, Duchamp começou a «escrever». Gatafunhava notas curtas para si próprio em bocados de papel ou no verso das facturas do gás, completando-as, por vezes, com esboços apressados. Estas ideias fragmentadas foram guardadas e viriam a servir para a concepção de O Grande Vidro (págs. 80/81). (Mais tarde, Duchamp pubicou as notas – ou pelo menos uma parte delas – sob a forma de fac-símile). Além disso, Duchamp continuou a inventar títulos


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maiores e mais enigmáticos que apontavam para além das suas próprias obras, embora não seja completamente claro para onde. Ironicamente, é a extensão dos títulos de Duchamp que leva a que actualmente sejam encurtados por razões de comodidade. Por exemplo, a sua obra mais importante, A Noiva Despida pelos Seus Celibatários, mesmo, é muitas vezes chamada simplesmente de O Grande Vidro. Após estar familiarizado com a obra de Roussel, Duchamp planeou uma viagem à Alemanha para visitar um amigo que ele tinha conhecido em Paris, dois anos antes. Passou a maior parte dos três meses da viagem em Munique. «Naquela época eu poderia ter ido para qualquer lado. A minha ida para Munique deu-se porque eu tinha conhecido um pintor de vacas em Paris – quero dizer, um alemão que pintava vacas, as vacas animais, naturalmente, um admirador de Lovis Corinth e toda essa gente – , e quando este artista disse: “Vai a Munique”, eu preparei-me e parti e lá vivi durante meses, num pequeno quarto mobilado. Havia dois cafés frequentados pelos artistas. O livro de Kandinsky Do Espiritual na Arte (Über das Geistige in der Kunst), publicado em 1912 em Munique, estava em todas as lojas, e podiam ver-se quadros de Picasso numa galeria da Odeonplatz.»17 Duchamp tinha aprendido alemão na escola e podia, pelo menos, perceber a língua. Houve uma vez em que chegou mesmo a mencionar uma frase em alemão nas suas notas, e um exemplar da primeira edição de Do Espiritual na Arte, com

Marcel Duchamp

anotações provavelmente feitas por Duchamp, foi encontrado

1914

na biblioteca de Jacques Villon. Duchamp nunca se serviu de Kandinsky, mas certamente terá concordado com a sua condenação do mercado da arte e da inflação na pintura. Kandinsky resume bem os problemas contra os quais Duchamp tinha começado a reagir:

Ter o Aprendiz ao Sol Tinta-da-china e lápis sobre papel de música, 27,3 x 17,2 cm Filadélfia (PA), Philadelphia Museum of Art: Collection Louise and Walter Arensberg

Um dos estudos que Duchamp reproduziu como fac-símile na Caixa de 1914


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Marcel Duchamp · A Arte Como Contra-Arte

Marcel Duchamp O Rei e a Rainha Rodeados por Nus Rápidos 1912 Óleo sobre tela, 114,5 x 128,5 cm Filadélfia (PA), Philadelphia Museum of Art: Collection Louise and Walter Arensberg

Uma das primeiras obras em que Marcel Duchamp começa a explorar a sexualidade com os movimentos das máquinas.

«Uma multidão vagueia pelas salas, acha as telas bonitas ou formidáveis. Aquele que poderia ter dito alguma coisa ao seu semelhante, nada disse, e o que poderia ter ouvido, não ouviu nada. Esta condição da arte é chamada l’art pour l’art (arte pela arte) … O artista procura ganhos materiais pela sua habilidade, as suas capacidades de criação e observação. O seu objectivo torna-se a satisfação da sua própria ambição e ganância. Em vez de uma colaboração profunda entre os artistas, há uma luta pelo lucro. Há queixas a respeito da competição e da superprodução. Ódio, preconceito, facções, ciúmes e intriga são as consequências desta arte materialista e sem objectivo.»18 Pouco se sabe do tempo que Duchamp passou em Munique mas, visto que o amigo tinha a intenção de lhe mostrar a cidade assim como introduzi-lo na vida nocturna, pode ter visto ou ouvido falar de outras produções teatrais, como as revistas de Frank Wedekind, um provocador que explorou a sexualidade nas suas obras. Wedekind abordava sistematicamente as jovens com a pergunta: «Ainda é virgem?» Ele terá mesmo chegado a urinar e a masturbar-se no palco19. Este era o espí-


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rito que terá eventualmente evoluído para a representação de Dada. Duchamp nunca referiu que tivesse sido influenciado por Wedekind, mas este era um ídolo da comunidade artística de Munique da época. Sabe-se que Duchamp visitou os locais de cultura de maior importância. Ele esteve na zona de Neufahrn, onde se situa uma igreja consagrada à Santa Wilgefortis, uma princesa virgem dos primórdios do cristianismo, que se terá recusado a casar e a quem, milagrosamente, terá crescido uma barba quando foi despida, como o foi Cristo, pelos seus executores20. Enquanto esteve na Alemanha, Duchamp terá certamente passado muito tempo nos museus, admirando particularmente os altos nus de Lucas Cranach. Talvez tenha mesmo visto algumas pinturas sobre vidro que eram uma forma especial da arte popular da Baviera que tinha inspirado Kandinsky e o seu círculo a pintar quadros semelhantes de menor tamanho. Em qualquer caso, foi em Munique que Duchamp começou a formular as suas ideias para a sua maior obra A Noiva Despida pelos Seus Celibatários, mesmo (págs. 80/81). Duchamp executou vários quadros importantes a óleo, que começaram a misturar sexualidade com transição e o movimento das máquinas. Um esboço preliminar de A Noiva Despida pelos Seus Celibatários

Marcel Duchamp Estudo para A Noiva Despida pelos Celibatários 1912 Lápis e guache sobre papel, 23,8 x 32,1 cm Paris, Musée National d’Art Moderne, Centre Georges Pompidou

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mostra uma figura no centro a ser atacada por duas outras figuras, uma à sua esquerda e outra à direita. As linhas sugerem um movimento agressivo e violento. Em seguida, Duchamp explorou a ideia de virgem em dois desenhos que ele transformou na pintura A Passagem de Virgem a Noiva, uma bela composição em cores de terra e carne. Um ser vertical mecânico, com cabeça, coluna dorsal, pélvis e pernas «move-se-» da esquerda para a direita numa cena poética e metafísica: «uma passagem na minha vida de pintor…»21 Duchamp pintou A Passagem de Virgem a Noiva parcialmente com os dedos e a sua superfície é aveludada e elegante, em tons quentes de castanho, ocre e coral em contraste com o fundo preto que dá à obra um ar dos «Velhos Mestres». Aparentemente, as pinturas religiosas alemãs da Idade Média e da Renascença tê-lo-ão impressionado e ele terá ido buscar os tons

Marcel Duchamp A Passagem de Virgem a Noiva 1912 Óleo sobre tela, 59 x 53,5 cm Nova Iorque, Museum of Modern Art


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de carne a Lucas Cranach. Novamente, se vê a estranha combinação de formas viscerais e mecânicas que era importante para Duchamp: colunas finas e longas ligando diferentes volumes e quebrando-se, formando tubos, charneiras e segmentos como para sugerir partes manufacturadas. Linhas como tubos com aproximadamente o mesmo comprimento, são repetidamente colocadas como acentos e forças directrizes. Após o regresso de Munique, em Outubro, Duchamp voltou a partir para outra viagem, desta vez de automóvel, com Francis Picabia, Gabrielle Buffet-Picabia e Guillaume Apollinaire. O grupo deslocou-se às montanhas do Jura, mas a viagem foi também intelectual e pode ser descrita, usando as palavras de Buffet-Picabia, como uma das suas «incursões

Man Ray

de desmoralização, que eram também incursões espirituosas

Francis Picabia

e de palhaçada… a desintegração do conceito de arte.»22 As notas que Duchamp escreveu durante este périclo, brincam com a linguagem. Ele evitou o sentido e a lógica, embora mantendo um tom absolutamente sério e mesmo didáctico. Convém transcrever aqui extractos extensos para ilustrar até que ponto Duchamp se distanciou do registo da realidade, tendo mesmo criado qualidades novas e «feias» como a repetição e a frustração. «O chefe dos 5 nus estende pouco a pouco o seu poder sobre a estrada Paris-Jura. Há uma pequena ambivalência: Após ter conquistado os 5 nus, este chefe parece aumentar as suas possessões, o que dá um falso significado ao título. (Ele e os 5 nus formam uma tribo para a conquista pela velocidade desta estrada Paris-Jura). O chefe dos 5 nus aumenta pouco a pouco o seu poder sobre a estrada Paris-Jura. A estrada Paris-Jura, por um lado, os 5 nus sendo um o chefe, por outro lado, são os dois termos da colisão. Esta colisão é a razão de ser do quadro. Pintar 5 nus, estaticamente, parece-me sem interesse, não mais que pintar a estrada Paris-Jura mesmo elevando a

1923 Fotografia a preto e branco

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interpretação pictorial desta entidade num estado inteiramente desprovido de impressionismo. O interesse no quadro resulta da colisão destes 2 extremos…»23 Noutros momentos, Duchamp quase parece interpretar as impressões visuais da sua veloz deslocação através do campo, numa hipótese absurdamente romântica: «Esta criança farol podia, graficamente, ser um cometa, que tivesse a cauda para a frente, sendo esta cauda um apêndice da criança farol, apêndice que absorve ao esmigalhar-se (pó de ouro, graficamente) esta estrada Paris-Jura… Este farol será o Deus-menino, mais como o Jesus dos primitivos. Ele será a florescência divina da mãe-máquina. Em forma gráfica, vejo-o como uma máquina pura comparada à mais humana mãe-máquina. Ele terá de estar RADIANTE DE GLÓRIA. E os meios gráficos para obter esta criança-máquina encontrarão a sua expressão ao usarem-se os metais mais puros para uma construção baseada… no conceito de um fuso sem fim… servindo para unir este farol Deus-menino à sua mãe máquina, 5 nus.»24 Não há forma de se saber exactamente o que é que Duchamp está a camuflar no seu bilhete de detalhes. A sua identificação com a criança farol foi sugerida anos mais tarde, quando ele exibiu um corte de cabelo, com um cometa em forma de estrela, rapado na parte de trás da cabeça, a cauda do cometa estando orientada para a frente. Este corte de cabelo deve ter sido interpretado como uma atitude excêntrica, pois, nessa época, o texto acima ainda não tinha sido publicado. Mas, como acontecia com Roussel, há uma regra invisível que comanda a produção de Duchamp. Por trás dos mecanismos esconde-se sempre sensibilidade, não contra-senso.


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Provavelmente, nesse mesmo ano, 1912, Fernand Léger relatou ter ido juntamente com Constantin Brancusi e Duchamp a uma exposição de tecnologia da aviação e que Duchamp ter-se-á virado para Brancusi e terá dito: «A pintura está condenada. Quem conseguirá fazer algo melhor que uma hélice? Diz-me, tu consegues?»25 Uma declaração destas ilustra claramente o dilema visual do artista quando confrontado com as realizações da idade industrial e a sua introdução na vida de todos os dias. Os quadros a óleo tinham-se tornado história. Após a sua viagem de automóvel com Duchamp e Picabia, Apollinaire escreveu: «Tal como os quadros de Cimabue eram expostos pelas ruas, o nosso século viu o aeroplano de Blériot, carregado com os esforços desenvolvidos pela humanidade durante o passado milénio, ser escoltado em glória para a Academia das Artes e das Ciências. Talvez um artista tão liberto de preocupações estéticas, um artista em busca da energia como Marcel Duchamp, venha a ter por tarefa reconciliar a arte com as pessoas.»26 E , de certa forma, Apollinaire tinha razão, pois Duchamp tinha começado a fazer a metamorfose da pintura num produto de estruturas vivas do século xx.

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Por volta do fim de 1912, Picabia usou a sua influência para conseguir para Duchamp um lugar de bibliotecário na Bibliothèque Sainte-Geneviève, onde ele trabalhou até Maio de 1914. Duchamp conseguiu ali não só um pequeno vencimento à hora, como pôde afastar-se dos círculos da pintura e introduzir-se no reino da erudição. Ele mergulha em temas como as matemáticas e as físicas, áreas em que tinham sido recentemente descobertas que tinham abalado os alicerces do pensamento científico. Estas eram animadamente discutidas nos círculos artísticos e intelectuais da época e eram compreendidas e aplicadas em vários graus de precisão. O autor que mais contribuiu para o desenvolvimento de Duchamp, foi o matemático e físico Henri Poincaré, que publicou vários livros teóricos durante a primeira década do século xx. Estes livros descreviam alterações de conceitos provocadas pela descoberta dos raios x, o fenómeno da radioactividade, o rádio e particularmente o electrão e a suas leis. No seu curto ensaio sobre Duchamp, o historiador de arte Herbert Molderings descreveu a importância de Poincaré para a sua época e para Duchamp, que começou a utilizar um ramo lúdico e céptico da física para desvalorizar a ciência racional: «Todos os pontos de vista, as suas estruturas e movimentos têm de ser revistos. As físicas entraram num estádio de desenvolvimento que Poincaré caracterizou como um «desmoronamento geral dos princípios», como um «período de dúvida» e uma «crise séria» da ciência. A essência


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desta crise não era tanto a desintegração das antigas leis e dos axiomas da física, mas mais a dúvida fundamental sobre a possibilidade do conhecimento científico objectivo. O materialismo, que tinha sido a base das ciências no século xix, era substituído pela filosofia do idealismo e do agnosticismo… A filosofia do agnoticimo, que iria predominar na ciência moderna, mesmo onde as massas da humanidade acreditavam encontrar certezas absolutas, constituiria o ponto crucial da nova arte de Duchamp.»27 A Bibliothèque Sainte-Geneviève em Paris, onde Duchamp trabalhou como bibliotecário em 1913.

Poincaré explicou que as leis que se supunham reger a matéria e o seu comportamento, tinham sido criadas exclusivamente pelas mentes que as «entendiam». Não existem teoremas que possam ser considerados exactos. «As coisas em si mesmas não são o que a ciência pode alcançar…, mas apenas as relações entre as coisas. Fora destas relações, não há uma realidade conhecida.»28 Embora Duchamp não o tenha dito, esta frase de Poincaré pode ser considerada como um lema para o resto da vida de Duchamp. Nenhuma obra de arte feita a partir desta altura foi concebida para estar isolada. Todas as suas obras ecoam, reflectem e se projectam umas às outras como os homofones de Roussel. O atormentado historiador de arte não pode atingir uma situação definitiva, porque não há uma posição final nas relações entre as coisas que Duchamp fez e disse. Várias das suas obras – caixas contendo réplicas exactas dos seus esboços e das suas notas desordenadas – visam exprimir a própria essência das ideias tecidas entre os comentários escritos. (A primeira caixa de réplicas de anotações foi publicada num edição de quatro ou cinco exemplares logo em 1914). Mais tarde, ele viria a fazer réplicas de muitas das suas obras importantes no formato reduzido de casas de bonecas, que depois empacotava em caixas desdobráveis, de forma a poderem ser manejadas e mantidas em contacto umas com as outras. Esta é uma alteração radical da ideia de obra de arte, que termina ao ficar pronta.


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Em 1913-14 Duchamp fez um estranho objecto que ficará como uma das suas obras favoritas e que marca a sua ruptura com a arte como ela era entendida até então: 3 Paragens Padrão (págs. 48/49). Não era nem uma escultura nem uma pintura. Era uma caixa contendo uma ideia, uma aplicação dessa ideia e a «lei» que daí resulta. Duchamp conduziu uma experiência usando três bocados de linha de coser vulgar, com um metro de comprimento. De uma altura de um metro, ele deixou cair as linhas sobre superfícies de tela pintadas. Onde elas aterraram por três vezes sucessivas, formaram-se linhas ondulantes tão graciosas como os contornos de um nu de Matisse. Duchamp colou-as com verniz sobre a superfície da tela monocromática pintada de preto-azulado. As tiras de tela foram fixadas a chapas de vidro, e ripas de madeira estavam cortadas ao longo de uma das orlas para repercutir a curva dos fios. As chapas de vidro e as ripas de madeira estavam montadas dentro de uma caixa de croquet. O título estava impresso a letras douradas em três pequenas etiquetas de couro coladas sobre o fundo negro das stoppages. Anos mais tarde, duas outras ripas de madeira foram acrescentadas por sugestão de Duchamp, aquando da apresentação da peça no Museum of Modern Art de Nova Iorque, em 1953. Duchamp parece seguir Poincaré quase literalmente, pois este apresentou uma «Escola de Linha» em quatro páginas de um capítulo sobre mecânica clássica29. As 3 Paragens Padrão tornaram-se ferramentas para medir e criar outras linhas, à semelhança do metro padrão em platina conservado no Bureau International des Poids et Mesures de Sèvres. Pode também pensar-se no Étalon à platine de Roussel. Evidentemente, as unidades de medida de Duchamp propunham variáveis humorísticas e padrões arbitrários, mas padrões elas eram de facto. Ele usou-as imediatamente para determinar distâncias e localizações de outras obras, como Rede de Paragens Padrão (1914, pág. 50). E esta, por sua vez, evoca directamente o trabalho futuro O Grande Vidro (págs. 80/81). Como se isto já não fosse suficientemente complicado, as Redes incorporam uma

PÁGINA 48/49

Marcel Duchamp 3 Paragens Padrão 1913-14 Conjunto: numa arca de croquet (192,2 x 28,2 x 22,7 cm) estão 3 linhas de coser com pelo menos 1 metro de comprimento, coladas a tiras de tela (120 x 13,3 cm), cada uma delas montada sobre vidro (125,4 x 18,4 cm). Cada uma das chapas de vidro está montada numa ripa de madeira, unindo as curvas da linha. Nova Iorque, The Museum of Modern Art: Katherine S. Dreier Bequest




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Marcel Duchamp · A Arte Como Contra-Arte

imagem inacabada do passado, nomeadamente uma versão aumentada de Rapaz e Rapariga na Primavera, de 1911 (pág. 25), que Duchamp tinha oferecido à irmã Suzanne como presente de casamento e que tinha sido influenciada por Matisse. Durante 1913, Duchamp começou a trabalhar nos primeiros verdadeiros planos para O Grande Vidro, alguns dos quais ele fez enquanto servia de «Pau-de-cabeleira» da irmã Suzanne durante uma viagem a Herne Bay, em Inglaterra. Eram esquemas confusos, cheios de números e linhas que lembram desenhos mecânicos e planos de arquitectura. Os seus estudos dos tratados históricos da perspectiva, assim como da geometria moderna e dimensões na Bibliothèque Sainte-Geneviève, ajudaram-no a determinar as proporções e a aparência da obra, que ele iria trabalhar de forma intermitente durante as quatro décadas que se seguiram. Talvez porque não tivesse mais nenhuma tela virgem à mão, Duchamp usou a da obra mais antiga e inacabada como fundo para a Redes de Paragens. No entanto, em vez de a repintar inteiramente, retirou apenas as margens à composição original para a reduzir às proporções de meia escala do vidro planeado. Um esquema de O Grande Vidro foi em seguida traçado a lápis por cima da pintura.

Marcel Duchamp Rede das Paragens Padrão 1914 Óleo e lápis sobre tela, 148,9 x 197,7 cm Nova Iorque, The Museum of Modern Art: Gift of Mrs. William Sisler and Edward James Foundation 1970


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Seguidamente, Duchamp inclinou a tela sobre um lado. Com a ajuda das ripas de paragem, desenhou linhas que começavam no canto direito em baixo e se ramificavam para cima e para a esquerda. Elas cobrem o que pode ser considerado as partes «masculinas» da tela: a zona da figura incompleta do rapaz da Primavera assim como o reino dos celibatários do futuro O Grande Vidro. Sob a árvore, a figura feminina da Primavera está posicionada na zona onde aparecerá a noiva. Aqui, nesta visão antiga do Paraíso, as áreas de masculino e feminino do vidro não estão completamente separadas. No próprio O Grande Vidro, as paragens serão limitadas à metade inferior, o reino dos celibatários. Os círculos e os números nas paragens marcam as localizações daquilo a que

Marcel Duchamp

Duchamp chama, nas suas anotações «nove modelos málicos»,

Triturador de Chocolate, n.º 1

enquanto as linhas propriamente ditas se tornaram em «nove tubos capilares».

1913 Óleo e lápis sobre tela, 73 x 60 cm Düsseldorf, Kunstsammlung Nordrhein-Westfalen

Uma outra imagem de 1913, o Triturador de Chocolate, n.º 1 era um estudo a óleo para outro dos elementos principais do reino dos celibatários. Duchamp tinha visto um triturador de chocolate em funcionamento numa montra de uma

Marcel Duchamp

loja de doces em Ruão e adaptou-o para os seus próprios fins,

Triturador de Chocolate, n.º2

colocando-o numa mesa baixa de pernas curvas. As conotações sensuais do chocolate acompanham a imagem mecânica, tornando-se para Duchamp, numa metáfora da masturbação. Uma segunda pintura a óleo do triturador (Triturador de Chocolate, n.º 2) inclui linhas cosidas à tela, numa execução de perspectiva exacta (1914). As linhas radiais, partindo do centro dos tambores de moagem, são semelhantes aos raios de uma roda de bicicleta. Duchamp tentava eliminar todas as qualidades pictoriais da sua produção. «Através da introdução da perspectiva exacta e de um desenho muito geométrico de uma trituradora bem definida como esta, eu senti-me definitivamente afastado da camisa-de-forças do cubismo. O efeito geral é como uma interpretação arquitectural e seca de uma máquina de moer chocolate purificada de todas as influências passadas. Este

1914 Óleo e fios sobre tela, 65 x 54 cm Filadélfia (PA), Philadelphia Museum of Art: Collection Louise and Walter Arensberg

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Marcel Duchamp · A Arte Como Contra-Arte

motivo devia ser colocado no centro de uma grande composição e devia ser copiado e transferido desta tela para O Grande Vidro30. Enquanto Duchamp estava a inventar o reportório de formas para este grande trabalho – a maquinaria e partes dos celibatários e noiva –, fez duas coisas estranhas. Montou uma roda de bicicleta num banco e deixou-a ficar no seu estúdio, fazendo-a girar ocasionalmente com a mão, apenas para ficar a olhar para ela. Ele negou qualquer motivo para o fazer, dizendo simplesmente: «Gosto de olhar para ela, tal como gosto de olhar para as chamas a dançarem na fogueira.»31 Modeladores reconheceram nela um tipo de dispositivo usado pelos físicos, para demonstrar os efeitos da dinâmica angular ou para provar as forças centrífugas sobre um eixo livre32. Existe certamente uma relação entre esta Roda de Bicicleta e o rotativo Moinho de Café Marcel Duchamp

(pág. 28) e com o Triturador de Chocolate de Duchamp, e também

Retrato da Mãe de Gustave Candel

com o círculo de bailarinas do Rapaz e Rapariga na Primavera

1911-12 Óleo sobre tela, 61 x 43,5 cm Milão, Colecção de Arturo Schwarz

(pág. 25). Por outro lado, a sua forma é fortemente antropomórfica; de facto, lembra um estranho retrato que Duchamp pintou em 1911 da mãe de Gustave Candel, onde um pedestal inerte está combinado com uma cabeça animada. A colagem fonética entre «roue» (roda) e «sellete» (banco) podia torná-la num «pequeno» retrato de Roussel. Nas suas notas, Duchamp refere-se várias vezes à noiva como «a árvore-tipo». Embora este termo se refira a árvores, tanto em francês como em inglês (ou em português), tem também um significado secundário que o associa com uma roda montada num eixo, que poderia ligar a Roda da Bicicleta directamente com O Grande Vidro (págs. 80/81). A segunda coisa estranha que Duchamp fez, foi comprar um suporte para garrafas numa loja, que também colocou no estúdio sem qualquer intenção de o usar para secar garrafas.

PÁGINA 53

Marcel Duchamp

Com a sua aparência banal e autónoma de objecto industrial,

Roda de Bicicleta

tem também uma presença simultaneamente feminina (saia)

1913

e fálica (picos).

Readymade: roda de bicicleta, diâmetro 64,8 cm, montada sobre um banco, 60,2 cm de altura, original desaparecido Milão, Colecção de Arturo Schwarz

Entretanto, a pintura rejeitada pelos cubistas em 1912, Nu Descendo Uma Escada N.º 2, tornou Duchamp o mais famoso




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dos artistas modernos nos Estados Unidos. Tinha sido seleccionado para o Armory Show, que se realizou em Nova Iorque no edifício do 69.º Regimento de Armamento, que incluía 1500 trabalhos de artistas americanos e europeus. A secção internacional atraiu a maior atenção. Os visitantes ficaram surpreendidos e desconcertados com as obras modernas que violavam o seu conceito de arte. O quadro mais escandaloso foi o «Nu» de Duchamp. O público, exasperado, não conseguia ver qualquer nu e atribuía as mais variadas interpretações ao que julgava reconhecer nele, como fosse uma explosão numa fábrica de tijolos ou uma pilha de clubs de golfe. Os críticos troçaram da exposição e encorajaram o público a visitá-la como se fosse ao circo. A secção internacional da exposição foi de tal modo controversa que depois viajou para outros dois locais, um em Chicago e outro em Boston. Embora o público, em geral, não fosse capaz de entender as novas obras, uma elite de americanos ricos e cultos acolheu com avidez a ruptura dos europeus com a arte académica e tradicional. Picabia, que era suficientemente rico para viajar até ao Armory Show, ficou encantado com a venda de 300 dos seus quadros, assim como com a boa recepção que lhe foi dispensada. Também Duchamp vendeu os quatro quadros enviados à exposição, o que lhe rendeu dinheiro suficiente para

Desenho humorístico da época Rude Descendo Uma Escada sobre a exposição Armory Show, por J.F. Briswold, publicado no The New York Evening Sun, de 20 de Março de 1913 Nova Iorque, Museum of Modern Art

A exposição Armory Show foi o primeiro encontro do público americano com as modernas criações da arte europeia, afastando-se da pintura como representação de objectos reconhecíveis. A contribuição dada por Duchamp com Nu Descendo Uma Escada, N.º2, foi fortemente atacada e alvo de caricaturas.

lhe financiar uma viagem aos Estados Unidos em 1915. Depois de a Primeira Guerra Mundial ter sido declarada em 1914, Paris tornou-se um local pouco aprazível para Duchamp, que não era nem nacionalista nem politico. Os irmãos e muitos dos amigos, incluindo Apollinaire, estavam no exército. Duchamp, que tinha ficado livre do serviço militar por razões de saúde, decidiu emigrar para os ainda neutros Estados Unidos. Quando Duchamp chegou a Nova Iorque, ficou surpreendido ao descobrir que era um homem famoso. Imediatamente após a sua chegada, encontrou Walter e Louise Arensberg que se tornaram nos seus maiores patronos e coleccionadores. Duchamp ficou a viver com eles durante várias semanas

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Marcel Duchamp Suporte de Garrafas 1914/1964 Readymade: suporte de ferro galvanizado para garrafas, original desaparecido, 59 x 37 cm Colecção de Diana Vierny


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Marcel Duchamp · A Arte Como Contra-Arte

e, após duas mudanças, instalou-se num apartamento no mesmo edifício em que os Arensberg moravam e ali viveu durante dois anos. A renda paga por Duchamp viria a ser O Grande Vidro (págs. 80/81), cuja propriedade foi eventualmente transferida para os Arensberg. Foi o princípio de uma amizade que durou uns quarenta anos e durante os quais Duchamp ajudou Walter Arensberg a formar uma representativa colecção de arte moderna que incluía os numerosos trabalhos de Duchamp que, actualmente, se encontram no Philadelphia Museum of Art. Gabrielle Bufett-Picabia, esposa de Picabia, descreve os Arensberg como «mecenas das artes, generosos e inteligentes, onde a qualquer hora da noite se podia estar certo de encon-

Marcel Duchamp com Louise e Walter Arensberg, em Hollywood, 1936 Filadélfia (PA), Philadelphia Museum of Art: Collection Louise and Walter Arensberg


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O apartamento de Louise e Walter Arensberg, em Nova Iorque, cerca de 1918 Fotografia de Charles Sheeler Filadélfia (PA), Philadelphia Museum of Art: Collection Louise and Walter Arensberg

Os Arensberg tentaram juntar uma colecção, tão completa quanto possível, de obras de Duchamp. Hoje esta colecção constitui o cerne da obra de Duchamp no Philadelphia Museum of Art.

trar sanduiches, jogadores de xadrez e uma atmosfera livre dos preconceitos convencionais. Os Arensberg mostraram uma curiosidade bem-intencionada, não inteiramente livre de inquietude, face às ideias mais extremas e face às obras que violavam todas as noções aceites da arte em geral e da pintura em particular.» E ela continua: «Encontrámos Marcel Duchamp completamente adaptado ao ritmo violento de Nova Iorque. Ele era o herói dos artistas e intelectuais e das senhoras jovens que frequentavam estes círculos. Abandonado o seu isolamento quase monástico, entregou-se a orgias de bebedeira e todos os outros excessos… No que respeita à arte, ele estava interessado em encontrar novas fórmulas para com elas assaltar a tradição da imagem e da pintura; apesar do pessimismo impiedoso da sua mente, deliciava-se com as suas ironias. A abdicação de tudo, mesmo de si próprio, que exibia de uma forma encantadora, entre duas bebidas, os seus jogos de palavras elaboradas, o seu desprezo por todos os valores, mesmo os sentimentais, não eram um motivo menor para a curiosidade que despontava e a atracção que ele exercia tanto nos homens como nas mulheres.»33

Marcel Duchamp, Gabrielle Bufett-Picabia e Francis Picabia em Coney Island, Nova Iorque, 1917 Milão, Colecção de Arturo Schwarz


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Marcel Duchamp · A Arte Como Contra-Arte

O escritor Henri Roché descreveu uma noite em que esteve com Duchamp num baile: «Eu estava a contar com mais uma noite de solidão, mas começaram a chegar casais, jovens mulheres que se libertavam e se sentavam no chão à volta de Marcel Duchamp; não tardou a serem uma dúzia que, pouco depois, eram imitadas pelos acompanhantes. Duchamp pediu a duas senhoras que se ocupassem de mim, e passado pouco tempo ouvi o seguinte: há três anos, eu pintei um quadro para o Armory Show, chamado Nu Descendo Uma Escada. Este quadro foi considerado por metade da América como uma obra do Diabo, enquanto a outra metade a considerava como uma obra-prima pioneira. Nesta época, Marcel Duchamp era o Man Ray

mais famoso francês de Nova Iorque, logo a seguir a Napoleão e

Auto-Retrato 1924

Sarah Bernhardt.»34

Fotografia a preto e branco

Duchamp era um sucesso. Contudo, nada podia persuadi-lo

Paris, Musée National d’Art Moderne, Centre Georges Pompidou

a voltar a pintar, pois ele já estava a planear o seu O Grande Vidro

Extraído da biografia de Man Ray: «Duchamp pediu-me para ir ao apartamento da pessoa que se propunha fundar um novo museu, para discutirmos o projecto. Assim que cheguei, uma empregada conduziu-me a uma sala coberta de livros e pinturas modernas, na maior parte expressionistas. Aqui e ali havia peças de escultura sobre pedestais. Em seguida chegou Duchamp; pouco depois, entrou a anfitriã: Katherine S. Dreier. A Sra. Dreier abriu a sessão, declarando que antes de mais se devia encontrar um nome para a nova aposta. Após algumas sugestões, eu tive uma ideia. Eu tinha deparado, numa revista francesa, com uma frase que me tinha intrigado: Société Anonyme, que eu julgava significar sociedade secreta. Duchamp riu-se e explicou-me que esta era uma expressão usada para grandes empresas de responsabilidade limitada. E acrescentou que na sua opinião era um nome perfeito para um museu moderno.»

10 000 dólares por ano por toda a obra que ele criasse. Duchamp

(págs. 80/81). Nem mesmo quando uma galeria lhe ofereceu pode ter sentido que a sua obra corria o perigo de cair no sensacionalismo. É interessante notar que, pela mesma época, P.T. Barnum também ofereceu a Sarah Bernhardt exactamente o mesmo montante em dinheiro pela sua perna gangrenada que, caso tivesse de ser amputada, ele pretendia exibir.35 Apesar da sua fama inicial, Duchamp desapareceu rapidamente no seio da família fechada dos intelectuais de avant-garde. Entre os artistas americanos com quem Duchamp travou de imediato conhecimento, estava Man Ray, que muitas vezes o fotografou a ele e à sua obra e que colaborou com ele em vários projectos. Manter-se-iam amigos durante toda a vida, e a autobiografia de Man Ray revela até que ponto as ideias de Duchamp o influenciaram e o guiaram. Um pouco mais tarde, Duchamp também conheceu Katherine Dreier que viria a ser a sua outra grande mecenas e com quem ele e Man Ray fundaram a Societé Anonyme, uma organização para coleccionar e expor a arte moderna. Embora Duchamp desse algumas lições de


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Francês e negociasse obras de arte na base da comissão, foram os mecenas ricos que asseguraram a sua sobrevivência em Nova Iorque. Embora fosse um convidado muito disputado, Duchamp fixou-se na sua obra O Grande Vidro, uma tarefa que o iria ocupar intermitentemente até 1923, quando a obra foi oficialmente declarada inacabada. Em 1915 comprou a chapa rectangular de vidro, deitou-a horizontalmente sobre suportes de madeira e começou a marcar as silhuetas das imagens mecânicas e dos objectos que ele tinha desenhado para a peça. A figura da noiva foi a primeira. Duchamp definiu os contornos com arame de chumbo que fixou com verniz ao vidro pelo lado de trás. Ele trabalhava apenas a superfície do reverso do vidro, partindo do princípio que deveria ser visto pelo lado liso.

Man Ray

Uma das ideias que o motivou a trabalhar sobre o vidro, foi o

Plano Cinematográfico: Adão e Eva

aspecto higiénico, visto que o vidro se destinava a proteger as imagens de alterações provocadas pelo contacto com o ar. Neste contexto, é também interessante referir que, durante algum tempo, Duchamp teve uma banheira no meio do estúdio e, se chegava alguém enquanto tomava banho, podia abrir a porta através de um sistema de roldanas. (Uma ideia semelhante já tinha sido utilizada por Buster Keaton num dos seus filmes). Foi só depois de ter gasto algum tempo a trabalhar no vidro em Nova Iorque, que Duchamp começou a reajustar as suas ideias a respeito da Roda de Bicicleta e do Suporte de Garrafas que ele tinha deixado em Paris. Numa carta à irmã Suzanne, datada de 15 de Janeiro de 1916, Duchamp pediu-lhe para ela lhe fazer a mudança das coisas que tinha deixado no seu estúdio em Paris. Ela cuidaria dos seus pertences e guardaria a sua arte. Duchamp queria que Suzanne escrevesse alguma coisa acerca do Suporte de Garrafas e explicou-lhe porquê: «Agora, quando subires as escadas, tu vês a roda da bicicleta e um suporte de garrafas no meu estúdio. Comprei-os como uma escultura já acabada mas eu tenho uma

(Marcel Duchamp e Brogna Perlmutter-Clair) 1924 Fotografia, 11,5 x 8,6 cm Nova Iorque, Colecção de Michael Senft


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Marcel Duchamp · A Arte Como Contra-Arte

O atelier de Marcel Duchamp durante o período de 1917-18, West 67th Street, Nova Iorque Milão, Colecção de Arturo Schwarz

ideia a respeito do suporte de garrafas. Ouve: Aqui em Nova Iorque comprei alguns objectos de estilo semelhante e chamei-lhes readymade. Tu sabes suficientemente inglês para perceberes o significado de «já acabado» que eu atribuí a estes objectos – assinei-os e coloquei-lhes uma inscrição em inglês. Vou dar-te alguns exemplos: comprei uma grande pá de neve, na qual escrevi Em Antecipação ao Braço Partido… Não faças um esforço demasiado para entenderes isto de uma forma romântica, ou impressionista, ou cubista, pois não tem

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Marcel Duchamp

nada a ver com isso; um outro readymade chama-se

Em Antecipação ao Braço Partido

Emergência a Favor de Duas Vezes… Todo este preâmbulo

1915

tem uma razão de ser: Vai buscar o suporte de garrafas.

Readymade: pá para neve, madeira e ferro galvanizado, 121,3 cm New Haven (CT), Yale University Art Gallery: Gift of Katherine S. Dreier for the Collection of Société Anonyme, 1946

Estou a fazer dele um readymade à distância. Na parte de dentro do arco inferior tu irás escrever a inscrição, que te envio no fim, em letra pequena pintada com um pincel



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Marcel Duchamp · A Arte Como Contra-Arte

e tinta branca prateada e com a mesma letra assinarás Marcel Duchamp.»36 Infelizmente, a página da carta com os pormenores da inscrição desapareceu e, décadas mais tarde, Duchamp disse que já não se lembrava do seu teor. Assim, não há forma de saber se Suzanne Duchamp realmente chegou a escrevê-la antes de tanto o suporte de garrafas como a roda da bicicleta terem desaparecido na limpeza do atelier deserto de Paris. Apesar do Suporte de Garrafas (pág. 54) estar agora datado de 1914, o ano em que Duchamp o adquiriu numa loja de Paris, e o conjunto da Roda de Bicicleta (pág. 53), de 1913, em termos de concepção, estes dois objectos só se tornaram «readymades» em Marcel Duchamp Quatro Readymades 1964 Litografia, 32 x 23,2 cm Milão, Colecção de Arturo Schwarz

1916, enquanto ele estava a trabalhar no O Grande Vidro. O primeiro readymade a ser chamado como tal, foi a pá para neve de 1916 a que Duchamp faz referência na carta acima. Este estava pendurado no tecto do desarrumado estúdio. O título Em Antecipação ao Braço Partido é confuso, sugerindo algo mutilante e misterioso. A pá pendurada partilha a verticalidade da Roda de Bicicleta e do Suporte de Garrafas, mas quando considerada no contexto do O Grande Vidro (págs. 80/81) – também lembra a noiva. Como mostra o desenho de Corpo Feminino Pendurado, uma versão antiga da noiva, tinha no centro uma pá. A anotação que acompanha esta figura diz: «Em A, terminando a vara, uma espécie de entalhe (procurem o termo exacto), seguro por uma taça e permitindo o movimento em todas as direcções da vara agitada pelas correntes de ar.» Duchamp substituiu esta ideia pelo movimento do véu da noiva. A pá torna-se em três superfícies portáteis que lembram aquilo a que Duchamp chamou «esboços de pistões» ou «redes», onde também há pequenos eixos a partir do qual eles pendem. Da mesma forma, o Suporte de Garrafas tombado sobre a sua


Libertação

Marcel Duchamp Cilindro Sexual (Vespa) 1934 Lápis sobre papel, 31 x 27 cm Milão, Colecção de Arturo Schwarz

coroa de picos, parece reaparecer num outro esquema para a noiva, servindo de modelo para o Cilindro Sexual (Vespa). Martin Kunz reconheceu outros aspectos de readymade no O Grande Vidro, por exemplo, o próprio material – o vidro – tem já, em si, um fundo acabado, e o mesmo acontece com o pó amarelado que colora as «peneiras» no reino dos celibatários.37

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Marcel Duchamp · A Arte Como Contra-Arte

Os readymades de Duchamp foram geralmente estudados em separado de O Grande Vidro, visto que eles tomam forma espontaneamente como objectos autónomos, enquanto O Grande Vidro era o culminar de um trabalho de muitos anos. Contudo, os primeiros readymades parecem ter sido escolhidos pelas suas potencialidades para servirem de protótipos para elementos de O Grande Vidro, ou, pensando noutro sentido, para transpor as ideias de O Grande Vidro para o espaço tridimensional do estúdio de Duchamp. (Esta ideia faz as pinturas do triturador de chocolate parecerem um readymade que Duchamp não podia comprar). É interessante que Duchamp tenha exibido alguns dos primeiros readymades, em 1916, simplesmente pendurados no bengaleiro da galeria de arte, estabelecendo-se assim uma Marcel Duchamp numa exposição retrospectiva da sua obra no Pasadena Art Museum, ladeado pelos seus readymades Los Angeles, 1963

associação destes à ideia de roupas e corpos, assim como à noiva suspensa. Há algumas evidências de que os primeiros readymades constituíam um conjunto espacial. Fotografias do estúdio/sala de estar de Duchamp mostram alguns dos readymades suspensos do tecto, pregados ao chão ou colocados num canto. Um deles, a Escultura de Viajar, é uma escultura desdobrável feita de tiras coloridas recortadas de toucas de banho de borracha. Armava-se no espaço em linhas abstractas com movimento, lembrando o auto-retrato de Duchamp como Jovem Triste Num Comboio (pág. 30), que ele descreveu como sendo quase «elástico». Tais afinidades visuais sugerem que O Grande Vidro tinha sido concebido para reflectir uma dimensão totalmente livre de emoção, de um universo muito pessoal.

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Marcel Duchamp Escultura para Viajar 1918 Escultura variável, borracha colorida e cordel, dimensões ad lib, original destruído Cópia por Richard Hamilton por ocasião da retrospectiva de Duchamp na Tate Gallery (Londres), em 1966 Milão, Colecção de Arturo Schwarz



Maiores realizações


Os readymades – a elimininação de Duchamp da qualidade manual e individual da arte – mudaram de carácter, assumindo as suas próprias qualidades separadamente de O Grande Vidro, mas não do próprio Duchamp. Eles foram quase sempre uma referência autobiográfica; contudo, o elemento do humor foi-se tornando ainda mais forte. O Com Barulho Secreto (1916) é um novelo de cordel apertado entre duas chapas. Dentro do novelo de cordel, Walter Arensberg colocou um objecto desconhecido para Duchamp, que, por sua vez, inscreveu nas chapas de latão duas frases cujo sentido foi ocultado a Arensberg através da supressão de letras. O objecto chocalha mas permanece secreto. O Dobrável de Viagem (1916, pág. 69) era uma capa flexível de uma máquina de escrever Underwood – um objecto de arte prático para se levar em viagem, assim como uma referência pessoal e maliciosa a Beatrice Wood, que era na época amante de Duchamp e a quem ele gostava de ensinar palavrões em francês. O Readymade Infeliz (1919, pág. 69) devia ter sido executado pela irmã Suzanne, por ocasião do seu segundo aniversário de casamento com Jean Crotti: ela deveria pendurar um manual de geometria da parte de fora da varanda da sua casa, de forma a que o vento fizesse virar as páginas e escolhesse os problemas que o tempo se encarregaria de destruir. Provavelmente desfez-se, mas Suzanne documentou-o através de um quadro. Duchamp fez um presente para Walter Arensberg, 50 Cm3 de Ar de Paris (1919, pág. 70), que consistia de uma ampola de vidro que tinha contido um


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Marcel Duchamp · A Arte Como Contra-Arte

remédio e tinha sido aberta, para lhe ser retirado o líquido. Marcel Duchamp Com Barulho Secreto 1916 Readymade ajudado: novelo de cordel entre duas chapas de latão ligadas por quatro parafusos, 12,9 x 13 x 11,4 cm Filadélfia (PA), Philadelphia Museum of Art: Collection Louise and Walter Arensberg

Esta foi depois reparada por um farmacêutico de Paris, pelo que o seu conteúdo passou a ser ar de Paris. A um postal ilustrado com a Mona Lisa foi acrescentado a lápis um bigode e uma pêra e legendado com L.H.O.O.Q. (1919, pág. 71), o que em francês se lê foneticamente «Elle a chaud au cul» (Ela tem calor no rabo). Mas, aquele que foi, de longe, o mais divertido


Maiores realizações

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Marcel Duchamp Dobrável de Viagem 1916 Readymade: cobertura de máquina de escrever da marca «Underwood», altura 23 cm Nova Iorque, The Mary Sisler Collection, Courtesy Fourcade, Droll Inc.

e mais destrutivo readymade de todos era a célebre e extremamente polémica Fonte (1917, pág. 72). Em 1917, foi fundada em Nova Iorque a nova Society for Independent Artists que tinha por modelo o Salon des Indépendants de Paris. Qualquer pessoa que pagasse seis dólares podia apresentar dois trabalhos. Duchamp era um dos directores do grupo, mas como ele não gostava da organização, decidiu provocar os responsáveis pela escolha e exibição dos objectos, ao apresentar a Fonte sob pseudónimo. A Fonte era um urinol de porcelana de um modelo que, quando montado numa casa de banho pública, só poderia ser usado por um homem a urinar de pé. Sem qualquer dúvida, a comissão de selecção dos trabalhos teve de imediato a visão de um homem a urinar ou outras hipóteses picantes, quando se viu confrontado com o objecto. Duchamp limitou-se a comprar o urinol e a coloca-lo simplesmente sobre o lado plano, pelo que ficava «erecto». Assinou a base, logo a seguir ao buraco do cano: R. Mutt. Embora a assinatura fosse inspirada em Mutt e Jeff, personagens de histórias aos quadradinhos, e o «R» significasse «Richard», o que em sentido familiar, em francês, quer dizer «pessoa rica», a comissão pensou que se tratava de uma partida de mau gosto. Mas Duchamp estava também a brincar com

Marcel Duchamp Readymade Infeliz 1919 Readymade: manual de geometria. Original destruído, dimensões desconhecidas Fotografia a preto e branco


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Marcel Duchamp · A Arte Como Contra-Arte

o verdadeiro nome da empresa de Nova Iorque onde ele adquiriu o urinol, a «Mott Works», alterando ligeiramente a ortografia, como era tão típico nele. A Fonte nunca foi exposta (o primeiro problema que se punha era a embaraçosa questão da altura de colocação), apesar de R. Mutt ter pago os seis dólares, a peça nem tão-pouco foi mencionada no catálogo. Estranhamente, Katherine Dreier, que estava familiarizada com outros readymades de Duchamp e que também era membro da comissão de selecção, não se apercebeu de quem estava por trás do pseudónimo38. Houve reclamações, e Walter Arensberg, que teve conhecimento da «partida», propôs-se a comprar a Fonte para ajudar o artista, mas não se conseguiu encontrar o objecto. Passado algum tempo, foi descoberto atrás de um tabique onde tinha estado enquanto durou a exposição. Convenceram Alfred Stieglitz a tirar uma fotografia quase dignificante da Fonte, que veio a sair no segundo número da The Blind Man, uma revista publicada por Duchamp, Beatrice Wood e Henri Pierrre Roché, onde Marcel Duchamp

o caso R. Mutt foi defendido com um ar falsamente inocente:

50 cm3 de Ar de Paris 1919 Readymade: âmpola de vidro, diâmetro 6,35 cm, altura 13,3 cm Filadélfia (PA), Philadelphia Museum of Art: Collection Louise and Walter Arensberg

«A Fonte do Sr. R. Mutt não é imoral, é absurda, tem tanto de imoral como uma banheira. É um objecto que se vê todos os dias nas montras dos canalizadores. Se o Sr. Mutt fez a Fonte com as suas próprias mãos ou não, isso não tem qualquer importância. Ele ESCOLHEU-A. Pegou num artigo corrente da vida, colocou-o de forma que faz desaparecer o significado utilitário sob o novo título e ponto de vista – deu-lhe um novo sentido.»39

PÁGINA 71

Marcel Duchamp

Estranhamente, após tudo isto, foi o próprio Arens-

Reprodução de L.H.O.O.Q., a partir de Caixa em Mala

berg quem extraviou o original do urinol. Tal como a Roda

1919

de Bicicleta (pág. 53), o Suporte de Garrafas (pág. 54), Em

Readymade ajudado: lápis sobre uma reprodução da Mona Lisa, 19,7 x 12,4 cm Filadélfia (PA), Philadelphia Museum of Art: Collection Louise and Walter Arensberg

Antecipação ao Braço Partido (pág. 61) e outros readymades, foi substituído por réplicas. Foi o sentido e não o objecto que foi salvaguardado.




Maiores realizações

Por volta de 1920, os readymades tornaram-se mais compli-

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cados. Em vez de comprar objectos manufacturados para

Marcel Duchamp

os rotular e assinar, Duchamp passou a fazer (ou a mandar

1917/1964

fazer) várias construções e montagens. A Viúva Impudente ou Viúva de Fresco era um pequeno modelo do que os americanos

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Fonte Readymade: urinol de porcelana, 23,5 x 18 cm, altura 60 cm Milão, Colecção de Arturo Schwarz

chamavam «French window» (janela à francesa). Um carpinteiro construiu-a para Duchamp. Tinha a moldura e os caixilhos em verde-azulado e telas de couro preto a fazer de vidros.

Marcel Duchamp Viúva Impundente 1920 Janela em miniatura: madeira pintada de azul e oito rectângulos de couro polido, 77,5 x 45 cm, sobre uma placa de madeira, 1,9 x 53,3 x 10,2 cm Nova Iorque, The Museum of Modern Art: Katherine S. Dreier Bequest


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Marcel Duchamp · A Arte Como Contra-Arte

Marcel Duchamp A Briga de Austerlitz 1921 Janela em miniatura: óleo sobre madeira e vidro, 62,8 x 28,7 x 6,3 cm Estugarda, Staatsgalerie Stuttgart

O trocadilho é evidente. Uma janela semelhante era A Briga de Austerlitz (1921), cujos painéis, fazendo de vidraças, ainda apresentavam as marcas do vidraceiro que eram afinal as iniciais de Suzanne Crotti, a irmã de Duchamp, em casa de quem ele estava em Paris aquando da sua produção. O trabalho Viúva Impudente ou Viúva de Fresco – um jogo de ver ou não ver, de abertura feminina fechada, de morte alegre – foi o primeiro que Duchamp assinou com o seu segundo eu


Maiores realizações

Man Ray Duchamp como Rrose Sélavy cerca de 1920 Fotografia a preto e branco Milão, Colecção de Arturo Schwarz

feminino, Rose Sélavy, que ele tinha inventado em Nova Iorque em 1920. De certo modo, Rose Sélavy tornou-se uma obra de arte, mesmo não sendo a bonita rapariga que um travesti podia ter tentado criar. Duchamp vestiu-se de mulher para a fotografia que Man Ray lhe tirou como «Rose». Esta exploração da feminilidade não foca o corpo, mas apenas a indecifrável expressão do rosto e das mãos de Duchamp. Este mandou imprimir um cartão de visita para Rose que dizia: «Oculismo de precisão Rose Sélavy Nova Iorque/Paris Pêlos e pontapés de todos os géneros»

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Maiores realizações

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Sempre houve sinais andrógenos na obra de Duchamp. O primeiro de todos pode ter sido o desenho de Leo Tribout, a mulher de um dos mais antigos amigos de Duchamp, representada como um jovem rapaz. Seguiram-se o jovem par em Rapaz e Rapariga na Primavera (pág. 25), o nu nas escadas (pág. 31), o próprio Suporte de Garrafas (pág. 54) com as suas curvas e saliências, e, seguramente, a Mona Lisa com bigode (pág. 71). A escolhe do nome «Rose» podia mesmo ser uma referência indirecta ao círculo poético das rosas criado pela famosa lésbica judia Gertrude Stein. De qualquer forma, Rose/Eros Sélavy tornou-se uma personificação emblemática desta tendência andrógena. Numa entrevista a Pierre Cabanne, Duchamp disse: «Eu desejava mudar a minha identidade e, primeiramente, eu pensei adoptar um nome judeu. Eu era católico, e esta passagem de uma religião para outra já significava

Marcel Duchamp

uma mudança. Mas não encontrei nenhum nome judeu

Você para Mim

de que gostasse ou que despertasse a minha fantasia e, de repente, tive uma ideia: Porque não mudar de sexo? Era muito mais fácil!

1922 Etiquetas para mala impressas para Rrose Sélavy, 6 x 12 cm New Haven (CT), Beinecke Rare Book and Manuscript Library, Yale University Library

E foi assim que surgiu o nome Rrose Sélavy. Hoje soa muito bem, porque mesmo os nomes mudam com os tempos, mas naquela altura era um nome parvo. Os dois «R» têm a ver com o quadro de Picabia Œil Cacodylate, que estava pendurado no bar “Le Boeuf sur le Toit”… e que ele queria que todos os amigos assinassem. Penso que escrevi “Pi qu’habilla Rrose Sélavy” [foneticamente “Picabia l’arrose c’est la vie»].”40

página 76

Marcel Duchamp Procura-se, Recompensa de $2000

O jogo de palavras «Eros c’est la vie» (Eros é a vida) ou «arroser la vie» (beber à vida) indica um ponto de vista subjacente à obra de Duchamp. Não sendo O Grande Vidro e os seus readymades abertamente sexuais ou eróticos, é surpreendente o recuo a este interesse latente. Contudo, Rose ou Rrose Sélavy não fez apenas obras de arte. Ela também escreveu cartas espi-

1923 Readymade rectificado: fotocolagem sobre cartaz, 49,5 x 35,5 cm Milão, Colecção de Arturo Schwarz

Cartaz para a Retrospectiva no Pasadena Art Museum, em 1963. Serviu de inspiração a Andy Warhol para realizar a série Most Wanted Man


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Marcel Duchamp · A Arte Como Contra-Arte

rituosas, trocadilhos e jogos de palavras que foram ocasionalmente publicados e que eram, por vezes, bem explícitos. Michel Sanouillet e Elmer Peterson dedicaram-lhes um capítulo inteiro do livro Comerciante de Sal – Escritos de Marcel Duchamp (Salt Seller – The Writings of Marcel Duchamp).41 Exemplos: «Rrose Sélavy trouve qu’un incesticide doit coucher avec sa mère avant de la tuer; les punais sont de rigueur.» (Rrose Sélavy acha que um incesticida deve dormir com a mãe dele antes de a matar; os percevejos são exigidos) «Question d’hygiène intime: Faut-il mettre la moelle de l’épée dans le poil de l’aimée?» (Questão de higiene íntima: Será necessário meter a medula da espada no pêlo Francis Picabia

da amada?)

Retrato de Cézanne

«Abominables fourrures abdominales.»

cerca de 1920 Já não existe. Impresso por Cannibale Paris, 25 de Abril de 1920 Uma obra perdida de Picabia usando um macaco de pelúcia, com o símbolo tradicional do pintor como imitador da natureza numa mão, e na outra, o vício e o pecado. Este trabalho, simultaneamente natureza-morta e retrato, não é exactamente uma lisonja para os artistas em questão e marca a ruptura da nova vaga de artistas, liderada por Duchamp, com a arte do passado.

(Abomináveis peles abdominais) Ou em inglês: «My niece is cold because my knees are cold.» (A minha sobrinha é fria porque os meus joelhos estão frios) A sexualidade de Rrose Sélavy leva-nos a fazer a análise das duas maiores obras de Marcel Duchamp, A Noiva Despida pelos Seus Celibatários, mesmo (1915-23, págs. 74/75) e Dados: 1.º A Queda de Água, 2.º O Gás de Iluminação (Etant donnés: 1.º la chute d’eau, 2.º le gaz d’éclairage) (1946-66). Estas duas obras, com os seus extensos títulos, foram executadas ao longo de muito tempo. A primeira permaneceu incompleta, enquanto a existência da segunda só foi divulgada após a morte de Duchamp, em Outubro de 1968. Hoje, encontram-se no Philadelphia Museum of Art, assim como muitas outras obras de Duchamp, o que o torna o museu com a mais importante colecção da sua arte. A Noiva Despida pelos Seus Celibatários é demasiado frágil para poder viajar tendo em vista exposições e foi já recons-


Maiores realizações

truída várias vezes. Um dos homens que a construíram, o artista Richard Hamilton, escreveu um claro e conciso relatório sobre a criação e execução de O Grande Vidro, que resultou das suas tentativas para o compreender e reproduzir.42 Esta é uma leitura recomendada para todos os que busquem uma recapitulação ponto a ponto de cada pormenor. No capítulo dedicado a O Grande Vidro, Robert Lebel sugere que Duchamp não se prendeu a um conceito inflexível mas foi sempre fazendo reparações ao trabalho, pelo que, algumas vezes, os significados se sobrepõem43. Para facilitar a nossa compreensão de algumas das suas intenções, pelo menos um pouco, Duchamp publicou três caixas de réplicas das suas anotações ao longo dos anos, as quais dizem respeito a O Grande Vidro assim como aos readymades e aos Etant donnés. Cada caixa tem o seu próprio título e de cada uma foi produzida uma edição semelhante a uma

Marcel Duchamp

obra gráfica ou um livro (a Caixa de 1914, pág. 36, a Caixa Verde

Anotações sobre o Grande Vidro

e a Caixa Branca). As três caixas com estas anotações foram reimpressas no livro de Sanouillet e Peterson, mencionado acima. Eles sugerem ideias e imagens, anulando outras, e tecem uma rede de coordenadas para localizar os impulsos que estão por trás da noiva, dos celibatários, da sua maquinaria e das suas testemunhas. Quando o observador olha para A Noiva Despida pelos Seus Celibatários, mesmo talvez devesse meditar no conselho que Duchamp uma vez deu à própria noiva, quando ela lhe perguntou qual o significado da obra de arte que Picabia lhes oferecera como presente de casamento: «Um artista exprime-se com a alma, e é com a alma que deve ser assimilado. É ela que o conta.»44 A crença de Duchamp na poesia continuou claramente viva após o seu desinteresse pelas formas de arte sem espírito. O Grande Vidro tem aproximadamente o tamanho de uma fachada de loja e refere a mudança da utilização do vidro e do metal na arquitectura da época. No entanto, Duchamp emprega-o como uma superfície sem referencial, sobre a qual alguns dos

1934 Londres, Tate Collection

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Marcel Duchamp A Noiva Despida pelos Seus Celibatários ou O Grande Vidro 1915-23 Óleo, verniz, folha de chumbo, fio de chumbo e pó sobre dois painéis de vidro montados em molduras de alumínio, madeira e aço, 272,5 x 175,8 cm Filadélfia (PA), Philadelphia Museum of Art: Bequest of Katherine S. Dreier

componentes isolados, como o triturador de chocolate e o desliPÁGINA 81

zante, são mostrados numa perspectiva convincente e meticu-

Marcel Duchamp

losa. É recordada a realidade desencarnada que as montras das

O Grande Vidro

lojas reflectem. De facto, uma anotação datada de 1913 e contida

1915-23 Montagem no Philadelphia Museum of Art

na Caixa Branca trata exclusivamente das montras das lojas e termina com o comentário:



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Marcel Duchamp · A Arte Como Contra-Arte

Barbara Dilley, Gus Solomons Jr., Carolyn Brown, Marcel Duchamp e Merce Cunningham, David Berhmann e Sandra Nils na primeira representação de Cunningham Walkaround Time. Palco concebido por Jasper Johns inspirado na obra de Duchamp O Grande Vidro, Búfalo, Nova Iorque, 10 de Março de 1968.

«Nenhuma obstinação, ad absurdum, de esconder o coito através de um vidro com um ou mais objectos da montra da loja. A penalização consiste em cortar a vidraça e em sentir pesar, logo que a possessão é consumada. Q.E.D.» E também: «I – Montra com vidros deslizantes – coloque alguns objectos FRÁGEIS dentro. – Inconveniência-estreiteza-redução de espaço, isto é, a forma de ser capaz de experimentar em três dimensões como se opera sobre planos em geometria plana.» O Grande Vidro tem sido chamado uma máquina de amor, mas na verdade é mais uma máquina de sofrimento. Os seus domínios superior e inferior estão separados para sempre um do outro através de um horizonte designado como as «roupas da noiva». A noiva está suspensa, talvez por uma corda, numa


Maiores realizações

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gaiola isolada, ou crucificada. Os celibatários mantêm-se na zona inferior, abandonados à única possibilidade de uma masturbação repetida e angustiada. Duchamp inventa as partes funcionais destas duas máquinas sexuais, que são tão arbitrárias e absurdas como a maquinaria de Roussel que lhe serviu de inspiração. Os seus mecanismos são tão complicados que normalmente são acompanhadas de um diagrama que deixa o observador um pouco perplexo. Num ensaio artístico sem pontuação, alguém chamado «davidantin» escreveu: «agora duchamp pega em fragmentos de ciência a sua relação com a ciência é a de um varredor entra-se dentro e diz-se «que bonito jogo de arames» e puxa-se por eles e se se sobreviver diz-se «que interessante que é»… duchamp pega em toda a espécie de leis físicas são leis físicas no sentido em que são articuladas como tal isto faz isto de um forma como os cilindros fracos actuam no motor do desejo a gasolina do amor na verdade não se sabe do que é que ele está a falar…»45 Continua a ser necessário dar aqui um resumo breve do seu «funcionamento». Algumas ideias adicionais para a maquinaria nunca chegaram a ser postas em prática e apenas existem, em potência, nas anotações. A noiva compõe-se de várias partes que se supõe trabalharem juntas como os componentes de um motor. Este motor funciona a gasolina de amor auto-segregada, certamente inspirado no verme da gaiola de vidro de Roussel, que fazia música com as suas segregações metálicas. Apesar da sua mecanização, a noiva também é chamada «tipo árvore», relembrando a jovem sob as árvores do quadro de Duchamp, Rapaz e Rapariga na Primavera, de 1911 (pág. 25). A figura suspensa, ou «Pendu femelle», deriva da pintura feita em Munique da Noiva. Ela tem um halo que se estende por uma tira de cor de carne e de coral com um toque de verde. Esta corresponde à cauda da

Marcel Duchamp, Henri Marceau e um operário durante a montagem de O Grande Vidro, no Philadelphia Museum of Art, em 7 de Julho de 1954


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Marcel Duchamp · A Arte Como Contra-Arte

Capa da revista Vogue de Julho de 1945, por Erwin Blumenfeld Na sua edição de Julho de 1945, a revista Vogue publicou um artigo sobre o Museum of Modern Art, onde O Grande Vidro esteve em exposição durante um período de três anos (1943-1946). Depois da Segunda Guerra Mundial, o Museum of Modern Art pôde retomar a sua actividade normal e O Grande Vidro tornou-se, transitoriamente, uma das vedetas da colecção. A noiva suspensa de Duchamp parece ter sido substituída pelo modelo muito mais terreno da Vogue, que olha pudicamente para baixo na direcção dos celibatários.

criança «farol» da viagem feita por Duchamp, em 1912, através da montanha do Jura, nomeadamente à sua interpretação do funcionamento do farol como se fosse um cometa com a cauda, estranhamente, virada para a frente. Aqui, o halo em forma de véu parece-se projectar-se da fronte da noiva. A criança farol era do sexo masculino: Duchamp compara-a a Jesus, como uma floração divina da sua mãe, com quem ele devia estar ligado, assim como com Deus. Dado que, nas anotações,


Maiores realizações

o despir da noiva é referido como uma floração cinemática, um halo e uma via láctea, é evidente que há uma mistura de ideias, como também há nos sexos da noiva e da criança farol. O protuberante véu cor de carne adquire qualidades explicitamente masculinas. Os três quadros flutuantes, que assim se assemelham à superfície lisa da pá de neve do Em Antecipação ao Braço Partido (pág. 61), foram concebidos com a ajuda de bocados de tecido de cortina que Duchamp pendurou metro a metro sobre um radiador e que fotografou como modelos. Embora tivessem ficado leves com um véu, ele chamou-lhes «pistões de corrente de ar», o que também tem conotações masculinas quanto ao seu funcionamento mecânico. É difícil dizer o que é que a noiva está a fazer, para além de pendurada e potencialmente desejada até ao limite permitido pelos seus «fracos cilindros» (anotações). Contudo, ela tem a possibilidade de comunicar através das inscrições. Uma vez mais, não nos podemos impedir de pensar nos readymades.

Marcel Duchamp

Uma, por assim dizer, caixa de letras do alfabeto serve de char-

Noiva

neira entre as partes verticais e horizontais da noiva. Ali se podem encontrar as letras para formar uma inscrição em movimento ao longo dos pistões em direcção ao único rasto dos celibatários dentro do domínio da noiva, nomeadamente aos furos feitos na zona vazia do lado direito do painel. O domínio dos celibatários é ainda mais complicado. Eles são nove, encostados uns aos outros para a esquerda e por trás de uma estrutura. Parecem artigos de vestuário pendurados; apenas um deles tem uma pequena cabeça em forma de roda inclinada para trás. Duchamp chama-lhes «moldes málicos» («málicos» em vez de «másculos») atribuindo-lhes profissões no seu «cemitério de uniformes e librés» e diz que eles devem ser enchidos com gás de iluminação. Eles estão ligados ao resto da máquina pelas suas ejaculações que se deslocam em forma de gás das regiões da cabeça ao longo de «linhas capilares». Estas linhas foram adoptadas da Rede de Paragens Padrão, (pág. 50), tendo sido ligeiramente alteradas, de modo a poderem

1912 Óleo sobre tela, 89,5 x 55,25 cm Filadélfia (PA), Philadelphia Museum of Art: Collection Louise and Walter Arensberg

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Marcel Duchamp · A Arte Como Contra-Arte

ser mostradas em perspectiva. Dentro das «linhas capilares», o gás transforma-se num sólido que se fragmenta em agulhas curtas que, por sua vez, ascendem através das «peneiras» em forma de cone. Estas peneiras estão coloridas pelo pó que se acumulou nas suas superfícies de vidro, durante os meses em que estiveram pousadas no chão do estúdio de Duchamp. Uma fotografia famosa de Man Ray documenta a «criação do pó» . Duchamp fixou o pó com verniz. Durante a passagem Man Ray

pelas peneiras, as «palhetas» ejaculadas passam ao estado

Criação de Pó

líquido e caem em espiral num grande esguicho, o orgasmo.

1920 Fotografia a preto e branco, 24 x 30,5 cm Paris, Musée National d’Art Moderne, Centre Georges Pompidou

Paralelamente, a estranha estrutura chamada «carruagem», «deslizante», «trenó» e «corrediça» desliza para trás e para a frente, nos seus carris, accionada por uma queda de água


Maiores realizações

invisível que faz girar um moinho de água. O lado direito

Marcel Duchamp

da estrutura está fixado a duas barras dispostas em tesoura

9 Moldes Málicos

que abrem e fecham o movimento da «carruagem». O triturador de chocolate, colocado sobre uma mesa redonda com as pernas curvas («chassi Luís xv»), está ligado ao eixo das ameaçadoras tesouras. Não parece haver aqui nenhuma passagem de energia. Como Duchamp sugeriu nas suas anotações, o celibatário tem de triturar ele próprio o chocolate. As «testemunhas oculistas» à direita do domínio dos celibatários, personificam o observador. Muitas questões se mantêm em aberto, de entre elas e não a de menor importância, é a razão pela qual a noiva tem tantos celibatários e não um único marido. A passagem do tempo também não é clara, agora que, após os tiros que furaram o domínio da noiva, eles deixaram de se ouvir. Embora a maquinaria da noiva e dos seus celibatários tenha capacidade de movimento, não é mais possível ver acontecer

1914-15 Óleo, verniz, arame de chumbo, folha de chumbo sobre vidro, entre duas chapas de vidro 66 x 101,2 cm, réplica por David Hamilton, 1966 Milão, Colecção de Arturo Schwarz

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alguma coisa. Duchamp chamou ao trabalho um «atraso em vidro», o que é condizente com a atmosfera de espera e de imobilidade. O título completo também é um enigma. Em francês, o título termina com a palavra «même», que é sempre traduzida por «mesmo». Como tem sido muitas vezes noticiado, foneticamente poderia também significar «m’aime», ou seja, que a noiva «me ama». (Esta interpretação serviu de suporte a uma teoria sobre uma relação incestuosa entre Duchamp e a irmã Suzanne). Duchamp parece ter acrescentado o «même» ao título, após a sua chegada Estados Unidos da América, em 1915, quando ele estava a ensinar Francês a americanos e experimentava a sensação de ouvir a língua francesa mal pronunciada. Se «même» era entendido como um adjectivo (Duchamp disse que era um Man Ray

advérbio), poderia significar «o mesmo», como «c’est la même

Suzanne Duchamp

chose» (é a mesma coisa), «c’est moi-même» (sou eu próprio)

1925 Fotografia a preto e branco

ou «quando plusieurs verbes ont um même sujet» (quando vários verbos têm o mesmo sujeito). Em qualquer caso, parece possível que Duchamp tenha querido indicar que a noiva e os celibatários podiam ser aspectos divergentes de uma única pessoa que os inventou. Ninguém está em condições de afirmar quais os acontecimentos que determinaram a modificação psicológica de Duchamp. Para o historiador de arte, o aspecto mais decisivo para a sua concentração na sexualidade foi o seu potencial de comunicação como uma experiência humana universal. A sexualidade era para Duchamp um elemento primordial e essencial – essa legitimidade existencial que todos os artistas progressistas buscavam no início do século xx. Lawrence Steefel, historiador de arte, ouviu-o dizer um dia: «Eu quero agarrar as coisas com a minha mente, como a vagina agarra o pénis.»46 Steefel escreveu: «Para se distanciar das suas próprias fantasias, Duchamp encontrou a forma de converter o patético em prazer, e a


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emoção em pensamento. O seu mecanismo de conversão era estranho, mas no essencial consistia em inventar um “jogo de deslocação” que projectaria os conflitos e destilaria as excitações transformando-os em objectos e construções sem os quais o seu equilíbrio mental não poderia ter sido mantido.»47 E, certa vez, Duchamp disse a Steefel: «Eu, de facto, não amo a máquina. Mas é melhor fazê-lo a máquinas do que a pessoas, ou fazê-lo a mim próprio.» E Steefel acrescentou: «Deixando sofrer as máquinas e os mecanismos de forma abominável, Duchamp podia concentrar as suas energias para sobreviver e continuar na busca da poesia.»48 A poesia de Duchamp continua a não ser falada, como uma atmosfera «entre linhas»; ela não cessa de se recriar através da mistura e sobreposição das formas, ideias e emoções. O Grande Vidro (págs. 80/81) pertenceu originalmente a Walter Arensberg, mas, quando este se mudou para a Califórnia, passou para a colecção de Katherine Dreier, pois a travessia do país foi considerada demasiado arriscada para o vidro. No entanto, em 1926, acabou mesmo por ser deslocado para Brooklyn, e ambos os painéis se partiram durante o transporte de regresso. Duchamp aceitou os danos calmamente, e ele próprio fez as reparações, pondo-se a amar os arcos aleatórios que atravessaram o seu imaginário como se fossem uma encarnação das 3 Paragens Padrão (págs. 48/49). A sua relação com O Grande Vidro foi-se perdendo o suficiente para que ele não viesse a terminá-lo; simplesmente deixou de trabalhar nele em 1923. Depois disso, diz-se que se terá dedicado principalmente a jogar xadrez com pequenas incursões superficiais no mundo das artes. De 1935 a 1940 executou réplicas das suas obras para o «museu portátil» contido em caixas, o que significava juntar

Marcel Duchamp Belle Haleine 1921 Fotocolagem para o rótulo de Belle Haleine, Eau de Voilette, 29,6 x 20 cm Milão, Colecção de Arturo Schwarz

Duchamp como Rose Sélavy


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Marcel Duchamp · A Arte Como Contra-Arte

Katherine Dreier e Marcel Duchamp no apartamento desta, com O Grande Vidro como pano de fundo

fotografias e supervisionar as reproduções do seu trabalho. As imagens sobre o vidro foram impressas em folhas de plástico transparente, e três cópias em miniatura de readymades foram também executadas. Duchamp pode muito bem ter-se inspirado, novamente, em Gertrude Stein, que tinha regressado aos Estados Unidos, após muitos anos em Paris, para fazer uma série de conferências que foram uma sensação. No seu ensaio Pictures (1934) ela, declarou: «Houve, porém, um momento em que me interroguei se os Courbet não seriam uma pintura mas sim um boca-


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do do país em miniatura visto através de um vidro repetitivo. Sempre se gosta de coisas pequenas. Gosta-se dos modelos de peças de mobiliário, de pequenas jarras de flores, de pequenos jardins, de penny peep shows, de lanternas mágicas, de fotografias, de cinema, dos retrovisores dos automóveis porque eles reproduzem as imagens em pequeno e ainda por cima nas cores naturais como a objectiva de uma máquina fotográfica. Como eu já disse, gosta-se naturalmente das coisas em miniatura, é simples, tem-se tudo de uma vez…» Após concentrar todo o seu trabalho e enfatizar a inter-relação das suas partes individuais dentro do microcosmo da

Marcel Duchamp

caixa, em vez de parar, Duchamp estava pronto para algo novo.

Miniatura da Fonte

A sua última obra, um peep-show, que tinha por título

1935

Dados: 1.º A Queda de Água, 2.º O Gás de Iluminação, começou a ser concebida em grande segredo, em Nova Iorque e arrastar-se-ia por um período de vinte anos. (A pessoa que sabia do seu trabalho e o ajudou, foi a mulher com quem casou em 1954, Teeny Duchamp). O título surgiu de uma das suas anotações de trabalho publicadas na Caixa Verde. Apesar de esta obra ter brotado na mesma fonte de ideias de onde tinha saído O Grande Vidro e os readymades, ela é tão chocante e imediata como O Grande Vidro é hermético e distante. Neste último trabalho, Duchamp quis assegurar-se de duas coisas: que o erotismo escondido de O Grande Vidro se tornava em sexualidade aberta, e que o observador seria de uma forma mais agressiva desafiado a abandonar o seu ponto de vista de receptor passivo e a tornar-se consciente da ameaça da sua sensibilidade. Etant donnés é um diorama cujo tema é muitas vezes comparado a um peep-show. Contudo, ele tinha mais em comum com uma vitrina de um museu de história natural, onde uma espécie selvagem está empalhada e é mostrada numa exposição tridimensional representando o seu ambiente natural tendo por trás um fundo pintado.

PÁGINA 92/93

Marcel Duchamp Caixa em Mala 1935-41 Caixa de cartão com réplicas em miniatura, fotografias e reproduções a cores da obra de Duchamp, 40,7 x 38,1 x 10,2 cm Edição de 300 cópias não numeradas Paris, Musée National d’Art Moderne, Centre Georges Pompidou




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Marcel Duchamp · A Arte Como Contra-Arte

PÁGINA 85

Marcel Duchamp Vista frontal da instalação: Dados: 1.º A Queda de Água, 2.º O Gás de Iluminação 1946-66 Conjunto multimédia: uma porta antiga de madeira, tijolos, veludo, madeira, couro esticado sobre uma moldura de metal, galhos, alumínio, ferro, vidro, plexiglas, linóleo, algodão, luz eléctrica, lâmpada a gás, motor, etc., 242,5 x 177,8 x 124,5 cm Filadélfia (PA), Philadelphia Museum of Art, Gift of the Cassandra Foundation

Apesar das suas dimensões, pode bem passar-se por Etant donnés sem o ver. O visitante que percorre a colecção do Philadelphia Museum of Art, chegará a uma sala que parece vazia. Numa parede existem duas velhas portas de madeira, sem maçaneta, contornadas por tijolos vermelhos. Só se o observador se aproximar mais para admirar a patine da madeira, ou se ficar curioso por as portas estarem fechadas, irá aperceber-se da existência de dois pequenos buracos ao nível dos olhos. Um breve olhar através dos orifícios prende o observador, fazendo despertar nele um sentimento de alarme e de desespero. Ali, mesmo na sua frente, está um corpo nu de mulher, deitado de costas. Uma mulher pesada ou parecendo inchada, cujo cabelo louro e longo lhe cai para a cara, escondendo a sua identidade. Ela foi abandonada numa clareira para morrer. No entanto, ela consegue segurar uma lanterna a gás acesa, com a única mão que se vê. As pernas estão afastadas com um dos pés tão perto do observador que parece sair do diorama. É esta perna estendida para o observador que lhe atrai os olhos para o entrepernas da figura. Duchamp dispensou os pêlos púbicos e os órgãos genitais, não lhe deixando senão uma fenda entre as coxas. Embora não haja dúvidas de que se trata de uma mulher, ela é estranhamente assexuada e parece ter sido violada, embora não se vejam quaisquer contusões. O fundo é constituído por uma paisagem com um curso de água que faz lembrar a atmosfera de Mona Lisa e sugere um canto distante e deserto do

Modelo desdobrável de cartão de Etant donnés, parte das instruções de Duchamp para a instalação

mundo – uma fonte mas não pura ou inequívoca. (Duchamp tinha recentemente reabilitado a pintura da Renascença, ao «barbear» a Mona Lisa). Não há nenhum precedente na obra de Duchamp a esta representação brutal da realidade, embora alguns elementos pareçam familiares, como, por exemplo, a mulher nua que acompanhou a sua obra desde Dulcineia (pág. 29), ou a lâmpada a gás Bec Auer, esboçada por Duchamp quando ainda era um rapaz. Os dois dados – a queda de água e a iluminação a gás – têm também o seu papel em O Grande Vidro. Em 1958,




Maiores realizações

Duchamp fez-lhes novamente referência na capa da edição de luxo da monografia que Robert Lebel lhe consagrou: Água & Gás em Todos os Andares (pág. 99) era uma espécie de readymade imitando as chapas de esmalte fixadas nas caixas das escadas dos edifícios de apartamentos, em França, nos finais do século xix. Deve ter sido divertido para Duchamp fazer esta alusão à sua obra secreta Etant donnés então ainda inacabada, usando este «omnipresente» readymade, um gesto talvez semelhante à sua exibição de readymades no bengaleiro de uma galeria de arte em 1916. Duchamp volta a fazer uma alusão a Etant donnés numa estranha gravura executada no ano da sua morte (pág. 101). O desenho da gravura mostra quase exactamente tanto da figura feminina de Etant donnés quanto o observador pode ver através

Marcel Duchamp

do buraco feito na madeira. Contudo, na gravura a mulher

L.H.O.O.Q., Barbeada

não está sozinha. O ombro direito e a parte de cima do torso

1965 Cartão de visita, 21 x 13,8 cm

estão encobertos por um vulto masculino nu. O par faz lembrar

Nova Iorque, The Museum of Modern Art

as duas figuras a beijarem-se, que se vêem na parte de baixo, à direita, do quadro de Matisse A Alegria de Viver (pág. 26). Na gravura de Duchamp, o homem repousa a cabeça no abdómen da mulher e as mãos estão cruzadas atrás da cabeça. Porém, ao contrário do que sucede com o casal de Matisse, há aqui uma sensação de distanciamento entre as figuras de Duchamp, como se um homem particular se descontraísse contemplando uma mulher qualquer que se mantém sem reacção, ou mesmo dormente. A imagem é, evidentemente, também humorística, pois a lâmpada a gás Bec Auer corresponde a outro elemento da composição implicitamente erecto, que o observador não pode nem deve ver. A gravura parece mostrar uma correspondência ou uma união entre as duas figuras, embora não se trate da habitual união erótica ilustrada por Matisse. Contudo, se o observador completar mentalmente a linha do desenho de Duchamp, encontra um círculo que se alonga para os braços do homem que sobe para a lâmpada, que vira em direcção ao sexo erecto

página 96

Vista através da porta da instalação: Dados: 1.º A Queda de Água, 2.º O Gás de Iluminação 1946-66

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Etant donnés visto por trás A última grande obra de Duchamp foi realizada no maior segredo. Ele trabalhou nela durante um período de cerca de vinte anos, tendo continuamente feito melhoramentos. O mundo da arte tinha pensado que Duchamp tinha mais ou menos desistido de fazer arte. O conjunto foi feito manualmente de uma forma complexa e altamente pormenorizada. Por exemplo, a figura feminina está coberta de couro fino para dar à pele uma aparência tão real quanto possível.

(imaginado) e volta ao ponto de partida no centro da imagem, formada pela mancha escura da cabeça do homem. A parte de trás da cabeça do homem e o sexo da mulher estão curiosamente alinhados. As costas da figura masculina impedem o público de entrar na imagem, tornando claro que quem olha a gravura é o voyeur. No diorama Etant donnés, a metade masculina desta união foi retirada. O observador volta a ser surpreendido no papel de voyeur (e o autor considera que esta é uma situação muito amarga para o público feminino!) Duchamp viola o corpo feminino, ao utilizá-lo de uma maneira manifestamente metafórica. Em 1916-17, em Nova Iorque, Duchamp deparou-se com um pequeno anúncio numa placa esmaltada à marca de tinta


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Sapolin, ao qual ele deu um ligeiro retoque, transformando-o no readymade Apolinère Esmaltado (pág. 100). Duchamp modificou os dizeres e não conseguiu resistir à tentação de pôr a menina sobre o vidro, desenhando a lápis o reflexo da sua cabeleira no espelho por cima da cómoda. Uma outra referência à Noiva está contida no título, que faz lembrar a pá da neve do readymade Em Antecipação ao Braço Partido (pág. 61) quando se pronuncia em americano o nome Apolinère, isto é, «A pole

Marcel Duchamp Água & Gás em Todos os Andares 1959 Readymade imitado: chapa esmaltada (15 x 20 cm) sobre a capa da edição de luxo do livro de Robert Lebel Sur Marcel Duchamp Paris, Colecção de Jean-Jacques Lebel

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Marcel Duchamp

in air» (uma estaca no ar). Duchamp terá certamente apreciado

Apolinère Esmaltado

as insinuações sexuais da imagem do anúncio, de uma menina

1916-17 Readymade rectificado, pintura sobre anúncio publicitário esmaltado, 23,5 x 12,5 cm Filadélfia (PA), Philadelphia Museum of Art: Collection Louise and Walter Arensberg

inocente serenamente pintando a cabeceira da cama com o seu pequeno pincel humedecido. Como a legenda no canto direito em baixo sugere, ela tem algo a ver com «any act red» (qualquer acto vermelho), significando talvez a cor, a paixão ou a legibilidade, ou o que é mais provável, qualquer coisa entre todas estas possibilidades. O Apolinère Esmaltado foi também dedicado ao poeta e crítico parisiense que lhe tinha consagrado um capítulo do seu último livro acerca dos pintores cubistas. No entanto, no Apolinère Esmaltado não falta apenas no colchão, mas também o homem anunciado pelo título. Duchamp ilustra um ausente. Da mesma forma, ao publicar pela primeira vez a versão em gravura de Dados


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(Etant donnés) que incluía uma figura masculina. Duchamp chamou a atenção para a sua omissão no diorama, o qual só foi tornado público após o seu próprio desaparecimento físico deste mundo. De um certo modo, a mulher abandonada de Etant donnés é Duchamp, visto como um leito vazio, ou melhor, Rrose, a feminilidade que ele pretendia atingir. Entre outras coisas, Apollinaire escreveu em 1913 que Duchamp estava a tentar criar uma arte «orientada para retirar da natureza não generalizações intelectuais, mas formas colectivas e cores, a percepção do que ainda não é conhecido49.» Embora já não fosse um pintor cubista preocupado com formas e cores, no fim da sua vida, Duchamp parece não se ter afastado do seu objectivo. Apesar de rejeitar o corpo da arte, ele manteve

Marcel Duchamp

o seu espírito poético. Ele tentava encaixar o indefinido, para

O Bec Auer

usar este mundo na busca da sua projecção no próximo, para explorar a iluminação do erotismo. Em outras palavras, porque não espirrar?

1968 Gravura sobre papel feito à mão, 50,5 x 32,5 cm Milão, Colecção de Arturo Schwarz

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Henri Cartier-Bresson Marcel Duchamp e Man Ray Paris, 1968 Fotografia a preto e branco Duchamp com o seu amigo de uma vida, Man Ray, no ano da sua morte.


Notas

1 «Marcel Duchamp»: Marcel Duchamp, The Museum of Modern

13 Revista Le Théâtre, volume encadernado exibido numa caixa

Art and Philadelphia Museum of Art, Anne d’Harnoncourt and

de vidro na exposição acima, pág. 23 (1912?)

Kynaston McShine, eds. (uma colecção de vários ensaios e o catálogo da colecção Duchamp do Philadelphia Museum of Art) pág. 295.

2 Thomas Zaunschirm, Beiretes Mädchen/Ready-made, Klagenfurt,

14 Veja nota 5, acima, pág. 56 15 Veja nota 11, acima, pág. 30

1983, pág. 127 f.

16 Raymond Roussel, Impressions d’Afrique, Paris, 1910

3 Excertos do poema Lifting Belly, 1915-1917, Gertrude Stein,

17 Marcel Duchamp, entrevista com Russell, publicada como Exile

reimpresso totalmente em: Zaunschirm (veja nota 2, acima),

at Large em: The Sunday Times, Londres, 9 de Junho

também em: The Yale Gertrude Stein, New Haven London, 1980

de 1968, pág. 236

4 Walter Pach. Queer Thing Painting, Forty Years in the World of Art,

18 Wassily Kandinsky, Über das Geistige in der Kunst,

Londres, 1938, pág. 163

Insbesondere in der Malerei, Munique 1912. Citado aqui de Du

5 «Marcel Duchamp» em: Ingénieur du temps perdu. Entretiens avec Pierre Cabanne, Paris, 1967, pág. 34

spirituel dans l’art (et dans la peinture en particulier), Paris, 1954, pág. 56

19 Rose Lee Goldberg, Performance – Live Art 1909 to the Present,

6 Ibidem, pág. 9

Nova Iorque, 1979, pág. 34

7 Guillaume Apollinaire, «Watch out for the Paint! The Salon des

20 Veja nota 12 acima, 1 de Julho de 1912

Indépendants – 6,000 Paintings are exhibited», em: Apollinaire on Art: Essays and Reviews 1902-1918, Leroy C. Breunig, ed., Nova Iorque, pág. 71

8 Veja nota 1, acima, pág. 245 9 Veja nota 5 acima, pág. 49 10 Ibidem, pág. 52 11 Marcel Duchamp, entrevista com James Johnson Sweeney, in: Salt Teller – The Writings of Marcel Duchamp (Marchand du Sel), Michel Sanouillet e Elmer Peterson, eds., Nova Iorque, 1973, pág. 126

12 Veja o catálogo da exposição de Marcel Duchamp no Palazzo

21 Ibidem, 7 de Agosto de 1912 22 Gabrielle Buffet-Picabia, «Some Memories of Pre-Dada: Picabia and Duchamp» (1949) em: Robert Motherwell, ed., The Dada Painters and Poets: An Anthology, Nova Iorque, 1951, pág. 127

23 Veja nota 12, acima, pág. 34 24 Ibidem, pág. 36 25 Veja nota 11, acima, pág. 160 26 Guillaume Apollinaire, Les Peintres Cubistes, Paris, 1913

Grassi, Veneza 1993, Efemérides de Marcel Duchamp e Rrose

27 Herbert Molderings, Marcel Duchamp – Parawissenschaft, das

Sélavy, 1887-1968, compilado por Jennifer Gough-Cooper e Jacques

Ephemere und der Skeptizismus, Frankfurt a. M./Paris, 1987,

Caumont, datado de 10 de Junho 1912

págs. 35-37. Citado aqui de «Objects of Modern Scepticism» em:


The Definitely Unfinished Marcel Duchamp, Thierry de Duve,

45 davidantin, «Duchamp and Language» em: Marcel Duchamp, veja

Cambridge (MA) e Londres, 1991, págs. 244-245

nota 1, acima, pág. 112

28 Ibidem

46 Marcel Duchamp a Lawrence D. Steefel, Jr., citado em: Arturo

29 Veja nota 27, acima, pág. 246 30 Veja nota 1, acima, pág. 272 31 Ibidem, pág. 270 32 Veja nota 27, acima, pág. 248 33 Veja nota 22, acima, pág. 260 34 H.-P. Roché, «Erinnerungen na Marcel Duchamp» em: Robert Lebel, Duchamp – Von der Erscheinung zur Konzeption, Colónia, 1962, págs. 168-169

35 Roger Shattuck, The Banquet Years – The Origins of the Avantgarde in France 1885 to World War I, Nova Iorque, 1968, pág. 7

36 Marcel Duchamp citado em: Dieter Daniels, Duchamp und die Anderen, Colónia, 1992, págs. 168-169

37 Martin Kunz, Marcel Duchamp – Wirkungsgeschichte des «Readymade» zwischen 1913 und 1919, Basileia, 1975, págs. 12-13

38 Dieter Daniels, veja nota 35, acima, pág. 178 39 The Blind Man, n.º 2, Maio de 1971, Nova Iorque 40 Veja nota 5, acima, pág. 111 41 Veja nota 11, acima, pág. 103 42 Richard Hamilton, The Large Glass, veja nota 1, acima, pág. 57 43 Robert Lebel, veja nota 33, acima, pág. 93 44 Veja nota 12, acima, 8 de Junho de 1927

Schwarz, The Complete Works of Marcel Duchamp, Londres/Nova Iorque, 1969, pág. 114

47 Lawrence D. Steefel, Jr., «Marcel Duchamp and the Machine», em: Marcel Duchamp, veja nota 1, acima, pág. 70

48 Ibidem, pág. 71 49 Veja nota 26, acima, pág. 245



Índice Remissivo 3 Paragens Padrão 47, 89

N Nova Iorque 47, 55, 57, 59, 60, 69, 70, 75, 91

A

Nu Descendo Uma Escada 30, 52, 58

A Alegria de Viver 24, 27, 97 Walter Arensberg 9, 56, 67, 70, 89

O O Grande Vidro 16, 35, 36, 37, 47, 50, 52, 56, 58, 62, 64, 67, 77, 79,

D

83, 89, 90, 91, 97

Katherine Dreier 9, 58, 70, 89 Marcel Duchamp 15, 16, 30, 33, 43, 57,

P

58, 62, 78

Paris 16, 18, 28, 30, 37, 41, 52, 55, 59, 62, 67, 74

Suzanne Duchamp 16, 27, 62

Francis Picabia 33, 41

E

R

Em Antecipação ao Braço Partido 60, 62, 70

Rapaz e Rapariga na Primavera 24, 27, 30, 50, 52, 77, 84

Etant donnés 27, 78, 94, 97, 98, 101

Odilon Redon 20, 22, 79 Roda de Bicicleta 52, 59, 62, 70

F

Raymond Roussel 33

Fonte 69, 70

S I

Rose Sélavy 10, 75, 77, 78

Impressões de África 33, 34, 36

Gertrude Stein 11, 77, 90 Suporte de Garrafas 59, 60, 70, 77

J Jacques Villon 37

T

Jovem Triste Num Comboio 28, 64

Triturador de Chocolate 51, 64, 80, 87

L

V

Robert Lebel 79, 97

Jacques Villon 16, 30

M

W

Man Ray 58, 75, 86

Why not Sneeze? 9, 10, 11

Matisse 19, 20, 24, 27, 47, 50, 97, 98 Mona Lisa 68, 77, 94



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