José Brandão
LIVRO DOS BICHOS (poemas)
Edições Barravento Bauru – 2016
Edição de José Carlos Mendes Brandão Capa de Sônia Brandão (sobre obra de Picasso)
Prêmio Jorge de Lima – U. B. E. – Rio – 2011 Livro dos bichos Prêmio Cassiano Nunes – Univers. de Brasília - 2009 poemas A gata, O Cachorro e O cavalo
“Saúdo-te apenas nesta alegria natural, contente por ter construído uma barcaça onde a nossa condição se encontrou.” Miguel Torga, prefácio do livro de contos Bichos, 1940.
A GATA
A gata me olha com seus olhos náufragos. Era como se o seu olhar viesse do outro mundo. Lançava com os olhos um grito silencioso, que gelava. Havia gigantescas ondas, monstros marinhos, corais, conchas e florestas submersas em seus olhos de âmbar e ouro líquidos, mal velando o abismo fundo. Neles boiava o sal da eternidade. Deus neles mergulhara na criação. Antes do choque imenso das estrelas, as entranhas da gata navegavam. A luz primeira Deus criou nos olhos da gata imemorial. O seu miado surdo traz ecos dos enigmas do homem diante do absoluto mar da origem.
O CAMELO
Atravesso o deserto com a areia nos olhos. É meu lar a noite fria, com suas sombras e com suas trevas. Vejo quem sou no espelho do deserto. A mim próprio carrego nas corcovas. Que viagem viajo? Que universo percorro? O meu tamanho no tamanho do espaço que demarco. Na memória do que sou, as estrelas e o retorno do escorpião. Eu sou escuro e concha. Se a mordida me fere o calcanhar, indigita-me o rumo, concludente. Estou aberto para a tentação: o delírio me cega e me ilumina. O deserto convoca as demais formas e eu escrevo na areia o poema-cinza.
O MACACO
A morte das estrelas fez nascer o meu corpo, as montanhas, os oceanos. A explosão das estrelas espalhou as entranhas no espaço sideral e criou o sistema solar e este macaco que questiona a sua origem. Sou um resto de estrela com consciência. O cosmo nasce da explosão do tempo. Serei a consequência inevitável de uma lei natural? Um acidente? Sou ou não necessário ao universo? Posso apenas medir? Existe um plano? Somos feitos do cosmo e estamos nele. A ciência busca Deus, concreto, físico. Antes do tempo, Deus guarda a existência e de mim mesmo sou um ancestral.
O CAVALO
O cavalo é perfeito como um deus. A sua forma lembra o absoluto: tudo contém e nada lhe é restrito. Desde o grito selvagem do relincho, tudo fulge e refulge nele como a luz que vem e vai de si e para si mesma. Luz que jorra do princípio para o fim da criação universal. O cavalo é beleza contemplada. O suor escorre de seu lombo largo, as patas levantadas para o sol em oblação ao eterno, com o sal. Eu cavalgo o cavalo para além da física. O meu corpo unido ao dele torna-se um outro corpo e o mesmo ser. Sinto Deus. Sinto o abismo, o delírio, o êxtase.
A NOVILHA ANFÍBIA
Na vereda da lua a novilha anfíbia dedilha cristais de grilos e caracóis. Os peixes dançam no ar com as estrelas, a noite como uma viola comovida. O ferreiro na forja martela os anéis da menina de suspiros negros na montanha. A língua da nuvem beija a menina ausente dedilhando cristais de vento e estrelas. A rosa baila no ventre sob as rendas, uma flauta de taquara busca a novilha esguaritada na invernada do abismo. A rosa perde as pétalas e a sombra, perde a roseira a forma primordial. As nuvens pastam cardumes de estrelas, mugem com as tranças desfeitas de medo e se alimentam do leite verde da novilha.
A TARTARUGA
A tartaruga vai tão devagar como se imóvel fosse – eppur si muove. Nasce na areia condenada à morte, só por um fio consegue escapar e, solerte, se apega tanto à vida que bem parece não morrer jamais. Essa é a lentidão da tartaruga. Move-se devagar porque o horizonte é sempre mais além de outro horizonte. Existir é memória. Um ovo ao sol cozinhando na areia ao som do mar. A sua casca é dura como a pedra e é o seu próprio corpo, pele e osso. A tartaruga pesa como o mundo. Leva nos ombros a beleza e a dor, o êxtase e o mistério de existir.
O ALBATROZ
“Le Poète est semblable au prince des nuées” L’albatros – Baudelaire
Não cabe ao poeta tudo realizar. A beleza e a verdade são seu fim, mas que são a beleza ou a verdade? O amor define o bem, mas o quê, quem define o amor? Ostento a dor e a glória de existir. Punge em êxtase o azul. Com a raiz na terra, busco os céus. O meu grito resvala no infinito. Como fugir ao nó-górdio ancestral com as asas feridas no moinho do tempo, cego e manco no convés? De que vale a minha obra aquém do sonho? Que vale a minha vida aquém da morte? O poeta precisa navegar contra a morte, nos mares do poema. Cabe ao poeta a sua obra realizar.
O BURRO
O burro carrega a carroça do caos sangrando nas pedras das ruas do mundo. Rumina palavras velhas entre os dentes digerindo a fome dos homens, absoluta. A quietude na memória verde, no fundo dos tempos. Carrega o sol no lombo, com o sal das lágrimas. Saber as coisas todas vãs, mudáveis. A nostalgia no espelho com astúcia me revela, nova, a minha própria face. O ofício de viver esconde a noite da rosa, no deserto da multidão. Quem sou é uma sombra sob a noite, só, em silêncio, ruminando o enigma. O burro lembra os rituais nas cavernas, a morte inútil justificando a vida.
O ELEFANTE
É preciso matar o elefante. A fábula da vida é muito breve, a viagem é longa, e pesa tanto. Giram os girassóis entre as montanhas e gira um sol só, no alto, atormentado. As madressilvas sangram com a dor do mundo. E o elefante, as patas no ar, ergue a tromba ao azul como um anzol de angústia. Chora sob um mar de lavas aos borbotões caindo sobre o mundo. São muitos os trabalhos da existência, muitos e inúteis. Para que sofrer? Por que viver? Por que mistério ansiar? Desci os sete círculos do inferno, devagar, carregando a minha sombra, e entoando a minha súplica: me matem!
O SAPO
O sapo veio da água, como a vida. Como chegou do caos até aqui? Que misteriosas sendas percorreu? As estrelas explodem no jardim, o bicho anfíbio busca a sua forma. A luta pela vida continua: o sapo caça a mosca com a língua, a coruja contempla-o com fascínio e gula, sob a noite iluminada. O sapo foi, com a sua feiura, o primeiro dos bichos do planeta. Supérstite da Idade do Carvão, carrega em sua pele dura a origem da existência. Que Deus conceberia, do nada, tal horrenda simetria? Somos filhos de uma ancestral vertigem?
O LEÃO
O leão ergue as garras contra as grades e ruge e urra, com a garganta seca da espera inútil. De onde vim, para onde vou? Mais nenhum destino, mais nenhuma porta. Sem perspectivas, eu caminho. O meu reino se estende ao horizonte, onde a terra se encontra com o céu. Vou quebrar os limites com o meu grito, vou quebrar os rochedos com o sangue do meu rugido. Vou romper a prata do infinito com as chamas dos meus olhos. Quem sou o céu traiu o sonho vão. Sou um cego na areia do destino. O mistério repousa em minhas fauces. No enigma do deserto e das estrelas, cavalgo impávido com Deus no lombo.
A GAIVOTA
Eu vi a gaivota morta sobre o rochedo e o seu grito ressoando ainda. A morte não mata o grito e o canto em seu anseio de infinito. A forma da árvore e a forma da montanha disputam a posse da praia com a areia. O menino de olhos arregalados e lágrimas do tamanho de um ovo. Um cansaço absurdo cai sobre as coisas. O mar chora no fundo do abismo, é uma serpente enrolando-se, enrolando-se e devorando a própria cauda na noite enorme. Eu vi a sombra de uma nuvem cinza chovendo sobre o mar e sobre a noite. Eu vi a gaivota coberta de espumas brancas e o sangue escorrendo sobre o rochedo.
O LAGARTO
O lagarto abana a cauda, as duas patas no ar sobre a sombra. Estende a língua vermelha lambendo o sol e o verde da paisagem. O olhar oblíquo colhe a vaga borboleta. A cigarra no bico do sanhaço ainda canta, na incisiva angústia. O grito estrídulo divide em duas a tarde clara, contra o mal da morte. O verde da paisagem nunca é o mesmo sobre a cerca da luz vária do dia. A relva resplandece sobre a terra. A formiga caminha contrita com uma folha na cabeça. O girassol sorri para o ouro das abelhas no universo do lagarto ao sol. Saboreio devagar e, consciente do que vejo e sinto, gravo a palavra e a imagem que a transcende.
O BODE
O bode sobe o monte, com os chifres em riste. Diadema de luz solar refulge nos seus símbolos reais. Os chifres coroaram reis antigos tornando-os poderosos, sábios, nobres. A montanha é um trono para o bode. Entre os rochedos, orgulhoso, ostenta o poderio do seu domínio estrito. Que é a vida? O que somos nós no pasto do existir? Que capim, que ossos roemos? O bode solta um grito nas alturas. O grito preto e branco, seco, quebra-se e, ricocheteando, reconhece o território do rebanho, grei e reino. O bode traz a unção de Deus no sangue. Impera sobre os seus limites.
O TIGRE
No labirinto, o tigre, prisioneiro, caminha com esforço, levantando as patas, uma a uma, tão pesadas. Tem uma rosa no focinho ardente e ergue o olhar ao azul do céu, ansiando pelo voo infinito, com as raízes plantadas no deserto solitário. O tigre segue a sua sombra trêmula. A terra é eterna para o tigre inquieto. Percorre-a como um mapa, mal evitando as armadilhas, uma à frente da outra. A dor sufoca-o. Sente-se morrer e revolta-se contra o seu desígnio. O tigre assassinado pelo tempo ensaia um desafio a Deus-abismo: quer rasgá-lo com as garras e com os dentes.
A CORUJA
No meu olhar o espelho do animal agonizante. Por que morrerei? O que farei da imagem perecível sem destino na noite do universo? De que me vale o olhar, preciso, inciso na carne, no íntimo do que me fiz? O que sou mais que imagem de uma imagem? A cor do ouro que vejo, e deixo ver, encanta e engana. A vida é cinza e sombra. O que resta de mim além da casca? Cai do relógio a música do efêmero, e cego com a luz, os estilhaços do cristal que me ferem e iluminam. O abismo dói. De que me vale o sonho, a beleza, o absoluto? Amanho o medo da dor que me alimenta e me assassina.
O TOURO
O touro é uma rocha na lua. As janelas floridas gemem na escuridão, os pássaros da noite farejam a dor queimando as asas doloridas. Quem conhece, da dor, a face e a foice? Os cães latem atrás das pedras em flor. O louco na estrada sufoca e grita contra a treva. É estar longe, mutilado nos mares da dor. A febre do pântano estrangula as meninas de névoa. A agulha do suicídio dói no ventre do mundo. A dor é um touro no trânsito, em silêncio profundo. O touro marcha devagar, construindo o seu caminho com as patas sangrando, cravejadas de espinhos. A nuvem oxida a rosa na escada, piche e cimento nos olhos profanados, antes da lava dos vulcões. Ainda se ouvem os cavalos, e o touro nos grilhões. Eu amamento a dor nos cascos do esquecimento.
OS PORCOS
Os porcos plantaram flores no mangueirão, um jardim de beija-flores e abelhas enluaradas. As estrelas deliram nos dentes das cabras fugindo das cobras de mourão a mourão. Os gansos marcham com facas no braço, cortaram ovos e olhos fritos em fatias. As frutas desfilaram nos olhos das tias brancos e frios como o mais duro aço. A menina destrincha a samambaia na água. Os porcos beijaram as flores de lama e mágoa seduzidos por uma lua delicada na barriga. O alecrim do campo na estrada ainda canta. A infância dança com os gaturamos de urtiga nos chifres e com um ribeirão azul na garganta. O menino que eu fui dança na luz dos lírios, no focinho dos porcos erguidos como círios.
A ÁGUIA
Nasci no cume-empíreo da montanha entre as nuvens e as pedras duras: do alto contemplo o mundo, voo além-abismo e me encontro a mim mesma, diminuta. Sou o início do ser, a forma-origem. Deus lançou-me do espelho para o mar, azul contra azul, vidro vil em chamas. Quem me vê como eu vejo, com as garras inúteis no ar? Quem sou? Por que interrogo, o ser, ou nada, quando o sei linguagem? Abro as asas e fecho: quero o sangue e mergulho do espaço para o pó. Cego no espelho do meu ser de sombra, o cristal fere-me de solidão. Deixo no céu distante a minha força e voo devagar ao rés do chão.
AS CADELAS
As cadelas pastavam o meu sonho, era tarde e ninguém sangrava o dia. Não sei onde a vigília cisne ponho, não sei em que água a fábula se fia. Desde o começo vinha vindo o lenho, cruzando o sangue negro do oceano, fervendo na derrota de onde venho e onde gargalha abutre desumano. Eu sei qual é a forma elementar da angústia universal, de seu minério mal incrustado numa pedra de ar. As cadelas lambiam o meu livro, e incendiavam o ser com que hoje privo. Eu aprendi o nome do mistério. Eu não conto a ninguém o meu caminho, quem bebe do meu sangue como vinho.
O URSO
O urso me abraça com sofreguidão. De tal modo ficamos abraçados que não se sabe, confundidos, quem é o urso, quem o poeta. Quem seremos? Quem é o homem? O bicho? O que distingue um e outro? Qual razão? Que alma imortal? Eu me vejo no bicho refletido, com a morte nos olhos, como espelho. A terra nos atrai. E somos árvores com as raízes, múltiplas, crescendo dentro da dor. A mesma pele, frágil, nos veste. Sob o mesmo céu sofremos. De nós nada sabemos. Tudo é caos. A vida é um enigma entre as estrelas da noite cega que nos fere e mata. Somos ferozes por temer o abismo.
O GAVIÃO
Cai, disse o gavião, cai de joelhos diante da teia da árvore da aranha. O menino jaz morto na montanha, todos os sonhos morrem ou são velhos. O rio leva as pétalas da rosa, as ondas me rebentam os pulmões. O galo ergue o estandarte, os esporões armados, a garganta explode a aurora. A serpente me morde a língua. Cismo. O escorpião me morde o calcanhar. O cavalo relincha sobre o abismo. As garras me sufocam a jugular. Eu sou filho da dor e da memória, mas quem me contaria toda a história? Cai, disse o gavião. A mão de Deus ainda ordena o mundo. Olha os céus.
O AVESTRUZ
O avestruz, por um triz ou por um truz, não é uma ave, sendo, por brutal conformação. Um piano e um candelabro vigiam as passadas do avestruz, medidas, compassadas, rumo ao largo horizonte, no arco-íris encantado. Qual é o teu destino? Olha o espelho: tens o enigma na face estampado e o inefável silêncio, iniludível. Quem somos? Quem seremos? E por quê? O dia cai. O cutelo nos espera: nós vestimos a mesma solidão. Nas pastagens do enigma, sob o sol e outras estrelas de um curral restrito, com a garganta, a língua e os olhos secos de angústia, o relógio devoramos.
A CABRA
A cabra pasta a estrela na montanha. Bem mais nova que o lago e que o pinheiro na encosta, o seu balido como um guincho é um grito perplexo contra o abismo. A cabra é negra como o carvão negro das entranhas da terra, funda, seca. Cega, a cabra resiste digerindo as pedras do caminho. A cascavel é um alarme contra o espaço exíguo no infinito da tarde. Uma águia vê, de cima, a solidão da cabra, a lâmina da dor nos cascos, com a luz, que quebra, de chofre, a árida terra, de metal, com sua pétala esculpida em pânico. A cabra fende em duas a montanha, alta e lívida, sob o sol do eterno.
O CACHORRO
O cachorro me olhou com o silêncio lacrimejante das janelas-enigma, sempre fechadas, sem palavras, sangue e sal diluidor, e latiu forte para a árvore de espantos, para o nada. O cachorro rompeu o seu silêncio de pedra exausta: precisava a dor dizer ao mundo. O sangue na terra clamava aos céus, o breve fim, a angústia milenar, consentida, mas angústia. Nascer para morrer? O fim de tudo, num átimo? Da luz fazem-se as trevas? O cachorro floriu diante do mar, em êxtase com a água, a eternidade nos olhos mansos, vendo o tempo frágil desfazer-se na areia e nas espumas.
O CAVALO
O cavalo sentou-se à minha mesa, comemos e bebemos, conversamos como velhos amigos que retornam ao altar de antes, com os olhos rasos de lágrimas e algum represado ódio. O cavalo soltava fogo pelas ventas, enquanto ria seu riso ácido. Contou-me a história da partida antiga com sangue e pus nos cascos quebradiços. Fomos irmãos, pastamos nas pastagens do mesmo senhor, nosso pai, ausente e presente na dor e na alegria. Fomos os filhos pródigos sem lar e sem Deus. Fomos livres na ilusão. A angústia não tem fim, e retornamos ao capim do universo que deixáramos.
A ARANHA
A aranha fia o fio da minha vida com paciência e luxúria, com seu próprio fio finíssimo e puro, atrás de mim, não à frente, por onde vou. A origem é o meu fim. Na minha própria teia eu me enleio: de angústia e de beleza é tecido o meu leito, leve, no ar suspenso, no equilíbrio em que se libra, caminho frágil para si voltado. A luz do alto ilumina o precipício e se me perco em sombras e delírios, mais me encontro na senda do real. O claro-escuro se articula, e lúcido sigo, sem extravio. O mito lírico revela e esconde o ser que já não sou. Na minha teia um cego vê o abismo.