Memória da terra

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Mem贸ria da terra



Meu pai



José Carlos Mendes Brandão

Memória da terra poemas telúricos

Edição do Autor – 1ª edição com apoio da

Bauru – 2


Copyright © José Carlos Mendes Brandão, 2010

Dados internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Câmara Brasileira do Livro – SP – Brasil

B869.1

Brandão, José Carlos Mendes. Memória da Terra – José Carlos Mendes Brandão – Bauru – SP. Ed. do Autor – 2010.

ISBN978-85-909921-1-0 1. Poesia Brasileira I. Título.

CDD 869.1


Índice 9. Equilíbrio 10. O pomar do dia 11. Alba 12. À beira d’água 13. À beira do mato 14. Quietude 15. Anoitecer 16. Arte e astúcia 17. Delírio 18. A réstia de sol 19. Poente 20. O orvalho da amora 21. O tear 22. Exultação 23. A bênção do sol 24. Beira-rio 25. A orquídea 26. Entardecer 27. Cavalo bebendo água 28. O sangue e a terra 29. Na queda d’água

30. A calha 31. Mágica 32. Crepúsculo 33. Depois da chuva 34. Sinfonia 35. Valsa 36. Cristal 37. Inocência

38. O boi 39. Milagre 40. As nuvens brancas

41. Amanhecer no bosque 42. Sangue e sonho 43. As tetas do mato 45. O cueiro é cítara 46. Monte em chamas

47. A casa do lago 48. Poetas verdes 49. Monte Verde 50. A casa 51. A roça 52. Despertar 53. Luxúria 54 A peixeira 55. A porteira da tarde 56. A flauta 57. A polpa dos pés 58. O brilho das águas 59. A lâmpada de argila 60. Êxtase 61. O silêncio 62. As garças 63. Ceva 64. O lago dourado 65. A estrela-da-noite


66. Na névoa dourada 67. Paixão 68. O grilo 69. O poço 70. O cadeado 71. O dia é azul 72. O pássaro na sombra 73. A rosa floresce 74. A flor e o sol 75. Desenho 77. Os olhos da minha mãe 78. O sol da formiga 79. Os pássaros da aurora 80. Claridade 81. Os galos 82. A gota de orvalho 83. Alegria 84. Os elementos 85. Ode à cidade 86. Era dia de ouro 87. A argola 88. Fome gorda 89. A tarde de dor vestida 90. Luz

92. O coração pequeno 93. A invenção da paisagem 94. Os meninos do verão 95. Sol no umbigo 96. O sereno 97. O córrego 98. Lua nova 99. Raízes 100. Cheia 101. A ilha da tarde 102. As pedras da montanha 103. Visita ao velho pinheiro 104. Sabedoria 105. A figueira 106. Os castelos de pedra 107. O sol da infância 108. O monjolo do tempo 109. A casa verde 110. Paisagem 111. O útero da terra


A meus irm達os Urias, Paulo e Jane e a meu filho Aran


Vivo a natureza integrado nela, de tal modo que chego a sentir-me, em certas ocasiões, pedra, orvalho, flor ou nevoeiro. Nenhum outro espetáculo me dá semelhante plenitude e cria no meu espírito um sentido tão acabado do perfeito e do eterno. Miguel Torga, DIÁRIO II


Equilíbrio

Colore a manhã a seda simples da brisa. Uma garça valsa na margem do rio. O sol doura a água. Venha beijar comigo o orvalho dos nenúfares. O tuiuiú se levanta da água Com um peixe de ouro no bico. A pena da paisagem é de ouro e prata. Cada vez mais florida a plumagem do dia. As taboas deixam cair os pendões Em reverência ao azul do céu e da água. Uma borboleta saltita no ar Entre as florinhas amarelas. Um flamingo equilibra A perna fina do silêncio.

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O pomar do dia

As maritacas trincam o céu das frutas maduras. O ouro escorre da árvore. Olhar uma árvore é multiplicar o olhar. O prisma das folhas me entrega o universo. Os gerânios vermelhos entre o musgo verde. Os cravos rosados na água brilhante do jarro. Na forja da tarde, o martelo da araponga. As pitangas são gotas de sangue. A romã explode, as sementes são diamantes. Uma cigarra quebra as vidraças da tarde. Um melro voa de um galho de cedro. Cálices de flores gritam no alto dos ipês. Pássaros pingam mel. A vida é perfeita no pomar do dia.

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Alba

Gira a roda d’água. O monjolo pila o milho. Um galo bica a manhã. Escorre a farinha do ouro do sol. A dor das ameixas abre-se à luz. Entre as folhas da cerejeira, O canto do pássaro inventa o pássaro. Saboreio a amora roxa. Os meninos e as abelhas Sonham o mel das pitangueiras vermelhas. Dos cajus dourados nos galhos do cajueiro, Pingo a pingo, o sol. Bebe de meus lábios, Na clara luz da manhã, o êxtase do olhar.

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À beira d’água

A libélula beija a água Com os dois olhos abertos. A suavidade da garça branca Na grama verde à beira do lago. A tesourinha pousa no fio, A longa cauda corta o ar. A imagem de vidro Das águas fluindo no córrego. Os cogumelos no canteiro Brancos como suspiros. O louva-a-deus na parede É a sombra de um cavalo. As rosas brancas envelhecem No vaso, na mesa da sala.

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À beira do mato

As pedras repousam com as folhas do carvalho E as patas dos cavalos. O ribeirão voa sobre as casas Com toda a luz das suas águas. O grito do sol atravessa a névoa branca. As águas passam e levam as folhas das árvores. As flores giram no ar, entre as pedras e o silêncio. A siriema passeia no pasto perto dos hibiscos. À beira do mato a sombra sobre as folhas úmidas. A resina brilha no tronco da árvore como ouro. Flores amarelas pendem aos cachos, Uma gota de orvalho na romã vermelha. O caminho de pedras sobe a montanha E a água fresca desce.

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Quietude

A casa quieta, à beira do lago, acorda com os pássaros. Há domingos tão belos que até os cachimbos florescem. Os meus olhos e os figos maduros estouram ao sol.

A água fresca dos cântaros reluz à sombra sossegada. O poeta escreve com estrelas, pedras e pássaros. A montanha brilha no caminho do pinheiro além-horizonte. O pássaro desenha o círculo perfeito no céu azul. A pomba passeia na terra do canteiro de buganvílias. Escrever é um testemunho da alegria. A mulher ergue a mão para a macieira em chamas. As árvores solícitas esperam a passagem do rio. A figueira abre os braços e oferece a sombra acolhedora. Nadam na água os peixes dourados e a imagem das árvores. O melro canta, imóvel. O rio deflui, banha as folhagens do dia.

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Anoitecer

O lagarto sob a pedra É da cor da pedra e da terra. A lagarta preta e vermelha Devora as folhas verdes da roseira, A aranha devora a pequena abelha. Eu quero essa lua e a minha infância Sangrando nos espinhos da paineira. A candeia de um só pirilampo No pasto, entre as vacas, ilumina a noite. As pétalas caem no caminho da montanha. As águas do rio são pedras ainda líquidas. Um pássaro num sino tange as nuvens. De onde vêm, para onde vão As crianças rindo na estrada?

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Arte e astúcia

A silhueta dos marrecos nos galhos da árvore seca. A libélula confunde-se à folhagem, a água treme. A terra forrada de folhas Sob o céu azul e os galhos das árvores. A garça e o poeta no capinzal são paisagem. A borboleta equilibra-se Nas asas abertas e nas seis longas patas. Marcha o quero-quero no capim à beira d’água. A baitaca pendura-se no beiral da igreja Com arte e astúcia. O macaco-aranha agarra com as cinco mãos As grades da jaula. O mico branco, Com seu olhar triste, ergue as mãos em oração. A coruja me encara com os olhos vermelhos.

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Delírio

O lago reflete O incêndio de um lírio. Um pássaro de ouro canta na palmeira, Queimam as penas ao sol. A pitanga vermelha é uma gota de sangue. Uma pedra dourada Se abriu: voaram diamantes, Pombas brancas na tarde azul. Uma lagarta de fogo na goiabeira Queima o braço do menino. O guaxo preto e vermelho Se esconde entre as folhas verdes. O velho cavalo carrega o sol no lombo. A cigarra deixa na árvore a casca e o canto.

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A réstia de sol

Caminho ao longo da alameda de ciprestes. O velho carvalho agita os ramos. A gota de orvalho no cálice róseo da flor do ipê. A imagem do pássaro voa com o pássaro. A flor do ipê é um cálice de luz na manhã multiplicada. O pássaro é o coração da árvore. As canções das laranjeiras floridas Viajam nas asas das andorinhas. O lagarto de vidro como uma cobra verde Desliza na água. A aranha tece a teia da árvore até a água Numa réstia de sol. A clara paisagem na moldura da janela. O lírio roxo se inclina entre o musgo verde.

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Poente

Fui milagrado de garça no poente. O sol mergulhava na água, que deslizava, gargantão engolindo aguazinha. Eu voava, bicava uma nuvem que não era, me espreguiçava, azeitava o bico, contemplava. A rãzinha conversava com o joão-grande, ele nem ligava, cismava. Grandes cismas as nossas, eu com um pé dentro da água que passava, passava sem sair do lugar. Água é coisa que nunca sai do lugar, diferente do sol, que cai, se machuca para ser outro. Eu cismava e voava. Com uma nuvem no bico. Coloria, contemplava. Ser Deus é essa graça, essa garça levada, que paira sobre a água, leva a água: desenha o poente como quem põe um ovo fragílimo abrindo um arco-íris, garça-íris. Estou dentro da água, milagrado de garça. O poente boia na água, fogueira acesa com o sangue do sol degolado.

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O orvalho da amora

Os dias caem no córrego da infância, O tempo gordo, de sal e sol, Com os bezerros e os cachorros. A bananeira exibe o coração enorme, As jabuticabeiras carregadas Forram o chão de folhas leves. Os pés afundam no barro vermelho, Os olhos mergulham no orvalho da amora. Ouço ao longe o monjolo e sua sombra. O vento balança as nuvens brancas. As espigas rebentam no milharal. Abro os pulmões para o ar da manhã. O cavalo relincha na porta da cozinha. O galo canta por todos os galos.

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O tear

Estou no meio da ponte, olhando o rio. As águas negras regurgitam lá embaixo Como um pulmão. As árvores, as estrelas E os peixes pulsam. A mulher tem um pinheiro na língua e canta. O menino relincha como um cavalo. A lua se admira no espelho d’água. Contemplo o espetáculo do mundo. Os cães disputam o osso da tarde. A sombra é pouca para tanta luz. É minha a paisagem. O tear tece a trama de Deus. Vai nascer o pássaro do êxtase. Eu sigo arando a terra com a palavra.

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Exultação

A eternidade é um cântaro de sombra. A água atrás da casa embala uma árvore. O perfume do verão me inebria. Rebrilha a prata dos carvalhos. O menino modula uma palavra quieta. O cachorro ronrona aos meus pés.

O silêncio nas pedras molhadas. Os peixes sonham na água leve. A mulher se espanta com o incêndio Da rosa. Com uma árvore na mão Acaricio a sua face em fogo. O sanhaço atravessa o mamão E exulta. Eu exulto com a terra. Os cacos do sol fazem sombra no chão.

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A bênção do sol

A flor da cerejeira está brilhante. O barco na corrente dorme sossegado. Um homem se aproxima com a bênção Do sol nos olhos: a manhã é um milagre. Brilha o barro da aurora. O orvalho beija a terra. Os caldeirões de ouro fervem o sol. O melro cintila na luz. Os cachorros salivam, resfolegam. Os cavalos relincham e cantam. As vacas mugem. O leite espuma nos baldes. Os passos largos abrem a porteira. O dia é nítido ao sol.

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Beira-rio

A formiga se ajoelha para o tamanduá. Sobe um gemido de princípio de mundo Do monjolo monótono moendo a estrada. Cupim-menino estuda arquitetura. A margem do rio linda com a aurora. Chove no meu olho a cor das coisas sem nome. A garça se equilibra no brilho da água. O rio transborda de pétalas e penas. Mulheres e porcas estão parindo. O azul relincha no dia das potrancas. Uma vaca morta vem navegando Com o seu urubu-pirata em cima. Emas no capinzal tinem as esporas Num vôo rasante contra os tições do sol.

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A orquídea

A orquídea brilha no seu nicho sagrado No galho mais alto da peroba. Uma cacimba com as suas samambaias É um convite à sede. A água quieta não reflete a minha face, Não reflete a orquídea em seu altar.

A orquídea permanece sorrindo no tronco altivo, Entre as parasitas e as lianas felizes. Abelhas, borboletas e beija-flores voejam. Um bem-te-vi, com seu peito de ouro, grita. Um sabiá se exibe entre os raios de luz. A cigarra explode o tronco da peroba. A orquídea recolhe a cor do sol Filtrado entre as folhas minúsculas.

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Entardecer

A borboleta conversa com a árvore. O escorpião passeia entre as pedras. Estou na varanda olhando o tempo. O mormaço da tarde me envolve.

Uma taturana queima o meu olhar. Os cavalos bebem o sol. Um cabrito salta a porteira. A água cai na calha de taquara. O

limo

tem

desperdício

de

sentido. Passa uma garça sobre o telhado, Ilumina a tarde nas asas. Esta casa me maravilha. A sombra azul do jacarandá Se ajoelha para o sol.

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Cavalo bebendo água

O rio entra na terra, numa curva, E forma um pequeno remanso. Umas poucas árvores, desgalhadas, Deixam uma sombra esparsa. O capim verde e o capim queimado, Os arvoredos e o seu reflexo verde. O cavalo aproxima-se devagar Para não turvar a água clara. Alonga o pescoço com unção Num gesto quase religioso. Os arvoredos espelham-se na água. O cavalo verde reflete-se na água verde. O universo para por um instante: Imperceptível, um cavalo bebe água.

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O sangue e a terra

O barco no campo entre as vacas, Os bezerros e os cavalos. A luz era tanta Que giravam os cavalos. O barco flutuava, O brilho da tarde degolava. A mulher de pedra pairava Na luz da terra vermelha. A borboleta amarela Media a dist창ncia infinita. Pendiam de sede os caules da tarde. Os marimbondos bailavam como loucos Ou apaixonados. Fiquei cego com tanta cor.

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Na queda d’água

As águas se precipitam Sobre as pedras recobertas de musgo. Formam um poço claro, com sol líquido, Onde cresce uma pequena palmeira. O pato com a sua cabeça branca e vermelha Procura comida entre o capim à beira d’água. Logo entra no lago e desliza suave Formando círculos de sombra. A samambaia reveste o barranco De uma sombra acolhedora. As parasitas envolvem os troncos, Os peixes se confundem com a luz. As orquídeas se abrem brilhantes Nos galhos das árvores.

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A calha

Ainda fazia escuro. Apenas se ouvia Um ou outro pio de pássaro sonolento. Como se os pássaros se espreguiçassem Assustados, nos galhos das árvores,

Entre as folhas quase negras. O silêncio escuro de antes da madrugada. A harmonia simples das coisas simples. Quebrava o silêncio a calha d’água: Cantava claro, iluminava o escuro. Era uma música líquida Saindo das fraldas da noite. Lavava e alimentava a terra. O dia flutuava leve sobre o orvalho, Como se levado pela água da calha.

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Mágica

A terra úmida gruda nos meus pés. Cheiro o chão como um bicho. Esta é a terra da minhoca gorda. O líquen borbulha por meus poros. O sol cai como um machado. Espero a chuva calma no poente. Os brotos de bambu como nenês Gritam no canto da cerca. A lagartixa mexe a cauda numa pedra. O córrego cantarola. Eu tiro imagens da minha cartola, Eu sou o menino mágico de ontem. Tenho o monjolo na ponta dos dedos E a farinha de ouro na mão do pilão.

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Crepúsculo

As pétalas de luz caídas na água Embriagadas com o vinho do crepúsculo. A minha imagem sai do lago Molhada de sombra doce. Uma menina dorme e é uma rosa E sonha as pétalas orvalhadas. Um peixe olha de lado para o sol E sorri com a prata das escamas. Quebro gravetos secos com os pés. Quebro o vidro da paisagem. A árvore dança sorrindo Com os pássaros no coração. A lua se aproxima de mansinho Fugindo do moinho do sol.

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Depois da chuva Os lençóis acendem a manhã. As nuvens são flocos de paina E carneiros brancos bailando. O balido da avenca brilha escondido. O arco-íris na crista da montanha Lembra o fim da chuva mansa. O cisne tisna a água leve Como uma pétala pálida. Um barco brinca no cristal. Os crisântemos pendem a fronte. A terra nada com braçadas de ar. O sol beija a língua das árvores. As abelhas e os pássaros se agitam Alegres com as flores e os frutos lavados.

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Sinfonia

As tartaruguinhas nadam Com as cabecinhas de fora. O lírio caído no lago Sonha um idílio no jardim. O cisne flutua Entre as árvores no espelho d’ água. O cisne valsa No cálice do lago. Um ninho valsa Com a música da brisa. Um raiozinho quase se afoga No tanque da rãzinha. O pica-pau no alto do coqueiro Martela a sua sinfonia inacabada.

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Valsa A folha valsa na água. O pica-pau costura a casca da árvore. O bezerro geme sonolento Na beira da lagoa. A vaca balança o ubre no ar. O periquito lavra o azul do céu. A borboleta saltita Entre as flores tristes da amoreira. A terra vermelha estoura com a luz. A cabra come pedras Como se fosse poesia. O cachorro bebe goles de sol, Late em festa para os pássaros E o delírio das árvores.

35


Cristal O córrego se despede em cada curva, Os peixes dançam nas locas, A folharada se engasga em corrupio, As pedras rolam. O nitrido dos cavalos cala Na tarde azul. O perfume das árvores estonteia, Sobe até ao céu. Meus pés se afundam na terra gorda, A seiva verde borbulha nos meus poros, Minha língua floresce. O grito das baitacas quebra pedras, Acende a luz dos olhos. O cristal das palavras fende a tarde.

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Inocência

O lagarto se espicha na pedra ao sol. A corruíra brinca na luz. As abelhas e as libélulas Voam entre as flores e o capim. O macaco se enrosca pelo rabo De cipó em cipó. A arara tagarela. O quati come banana. As pétalas da rosa caem na água Bêbadas de alegria, rodopiam. A teia da aranha brilha. A pomba com um graveto no bico Descansa num galho baixo. A inocência da samambaia me alimenta.

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O boi

O boi pastava borboletas no jardim. Esse boi é tudo quanto eu quero. Os bagres puseram o córrego de bruços E escovaram os dentes com inhame. A rã se ajoelha de toalha no pescoço. O bem-te-vi repete a mesma paisagem. As mesmas palavras têm anzol dentro. O lagarto conhece cada gomo da pedra.

À beira da estrada uma árvore reza. O poema se concentra nas coisas, De ser coisa se basta como um moirão. Carrego uma cobra no bolso da calça, Com uma embira prendo na paisagem. Na minha língua um boi está pastando.

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Milagre

A menina é uma folha, suspira no alto do pinheiro. O lago canto seu trinado com uma peninha no bico. Um violino de cristal vai e volta pela margem. A formiga carrega a aurora, de chapeuzinho na cabeça. A dália molha os lábios no orvalho, Beija o ar lavado da manhã. Tanta água gorgolejando Com as pedras do córrego na garganta. A rãzinha reinventa histórias para não começar o dia. Brilha a relva no coração. O sol explode de luz e sangue. O touro estoura a sombra com uma colmeia no chifre. A roda d’água canta para o monjolo. A paisagem é um milagre nos olhos.

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As nuvens brancas

As nuvens brancas dançam no céu azul Sobre as vacas sossegadas no pasto. As árvores e o capinzal Vestem o barranco vermelho. As espumas flutuam na margem do rio Entre paus e cipós amontoados. Um sabiá pinica a terra molhada E displicente me ignora.

A borboleta azul pousa No tronco liso do eucalipto. Descansa mexendo as asas devagar. Um pequeno sino envelhece sem uso. O galho de pinheiro refletido na água Multiplica o verde.

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Amanhecer no bosque

Os meus passos na terra úmida do bosque. Fica um pouco de mim nas fundas pegadas. Caminho entre as árvores desviando-me. Os galhos caem com as folhas molhadas E pairam diante dos meus olhos em êxtase. Pairo fora do tempo, num istmo do eterno. O sangue de uma rosa escorre no meu peito. Um melro me traz uma estrela nas asas. As borboletas valsam entre as flores. Um cachorro fareja a margem da água. As abelhas carregam o ouro ao sol. Um cavalo relincha na minha garganta E eu cavalgo para a água limpa do dia Insensato e lírico como um galo no anzol.

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Sangue e sonho

A infância é o ponteiro caindo no poço, Subindo pejado de água limpa. É uma rãzinha no ponteiro Tocando violino com as estrelas. É a meia-noite no ribeirão Dançando com seu vestido de rendas. É o luar quebrando uma pedra, Espalhando sementes pelo mundo.

É a terra vermelha na boca Com gosto de mato, sangue e sonho. A areia à beira do córrego me acolhe. Sou a novilha lambendo a minha cara, Sou o cavalo alazão galopando Com um galo cantando nas ancas.

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As tetas do mato

A infância é uma figueira arrebentada, É o leite do céu sobre todas as árvores, É uma vaca com tanto leite como um mar, É um bezerrinho mamando, escorrendo leite. É o fogo queimando as árvores secas E os pastos, os cafezais, os olhos vivos. São tetas gordas sacolejando, Inundando as bocas, fertilizando as raízes. Minha alma era uma espiga pequena Semeando seus grãos e pólen ao vento. A infância nem era uma palavra. Era o galo, era o boi velho com o galo em cima. Eram as tetas da égua, do mato, do céu arrebentado. Era tanto leite vazando branco pela boca e pelos olhos.

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Com a prima Teresinha


O cueiro é cítara

A infância estraçalha vidraças. É fonte de cristal e rãs pequenas. É um silêncio de pardal esquivo. A pombinha de muleta cai três vezes. O amor nem era uma palavra. Eu me espojava na terra e mais nada. Para florir me bastava a seiva verde. Com os pés descalços no estrume, Eu galopava livre como um bezerro. De asas abertas eu vigiava o meu mundo, Eu cantava nos galhos das árvores, Voava como um pássaro no céu azul. Eu me conheço no amor florindo no peito. Na argila vermelha o cueiro é cítara e canta.

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O monte em chamas

O sol incendiava as árvores. As casas se balançavam nas chamas. Os cavalos queimavam na estrada.

Os meus olhos estavam acesos no barranco. O mato era uma fogueira fumegando. As vacas flutuavam com as labaredas. Eu pisava o carreiro das formigas loucas. O vento levava o fogo das coivaras. O touro escarvava o chão das figueiras. Os cachorros vermelhos ganiam. O grito do sabiá engravidava o dia. Eu bebia o leite e o sangue da terra Abraçado à árvore alta do horizonte No dia grande sobre o monte em chamas.

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A casa do lago

A casa do lago é um poema Na água, com peixinhos na varanda E arco-íris por todo lado. A casa do lago navega, vai só até ali Na outra barranca, Depois volta balançando feliz. A casa do lago quieta Sob duas árvores floridas, De janelas abertas e floridas, Espera por mim. A casa do lago verde Sobre a água verde Com os seus pássaros verdes Canta para mim.

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Os poetas verdes

Nós colhíamos anzóis na areia branca Para fisgar as dálias do amanhecer. As borboletas navegavam numa folha, Voavam na luz como um arco-íris. Os peixes rebrilhavam à flor d’água E eram estrelas sem malícia nenhuma E eram peixes verdes sem escamas Piscando para nós, cantando baixinho. Tinha um cheiro de malva essa manhã E mergulhávamos nas locas fundas Com um peixe de capim nos dentes.

Uma ilha convidava para o dia grande. O sol respingava tantas gotas d’água. Nós éramos poetas verdes sem escamas.

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Monte Verde

Abraço o velho pinheiro na trilha do bosque. A seiva verde corre no meu sangue. O ipê me oferece seus cálices de flores. Eu me embriago com a beleza do dia. O bicho-preguiça se pendura num galho. A arara voa, vaia e aplaude sem parar. As garças são nuvens leves no céu azul.

O monjolo canta na sombra do vale. A brisa suave balança as montanhas. O verde se repete de árvore em árvore. Os beija-flores dançam, os sabiás cantam. O cavalo relincha na encosta dos esquilos. As casas florescem à beira do caminho. As águas caem, brilham, saltam nos olhos.

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A casa

A casa era alta de muitos metros e sombra. Quem diria que os jasmineiros tantos e tantos. Inebriava muito mais que o pasto e o mato. A casa era alta, muito maior do que o mundo. Uma trepadeira teimosa crescia pelos beirais E lagartixas espiavam pelas fendas das paredes. Uma sombra boa nos envolvia de moringa d’água, Bebíamos aos goles o nosso mundo perfumado. As pedras gotejavam a sombra grande do musgo. Eu tinha um martelo e um formão e talhava a vida. A morte não existia, o café coado gritava. Minha mãe lavava e lavava as tábuas gastas. Sob o assoalho o antigamente dormia como semente. A casa abraçava todas as roças do universo.

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A roça

A memória em chamas passeia no mato. Cabriolam no céu os tuins, martelam os meus tímpanos. A coruja no mourão reza contrita comigo. O bezerro lambe o meu coração pequeno como um cisco. A coivara se lava na ramagem da minha alma. As pombas queimam a palhada com o sol nas asas fulvas. O girassol no morro tem tanto sol e tanto orvalho. A lua começa o dia na roça à espera de mais luz. A língua do galo era uma rosa branca cantando a alvorada. O sangue escorre e fertiliza os jardins e as hortas. Um galope na cozinha me remexe o poço do peito Que refuga e relincha na cal do último cavalo. As formigas dedilham uma restiazinha de sol. A roça renasce no tempo como uma palavra verde.

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Despertar

O passarinho faz sombra redonda na sala. A lagartixa brilha verde e amarela na luz. A borboleta abre e fecha as asas de ouro. As flores sabem toda a história da terra. O boi no pasto rumina o capim do tempo. Um chupim vem pastar o couro bom do boi. As porcas fazem festa na lama do mangueirão. Os olhos dançam com os pezinhos molhados Como cabras sonâmbulas ruminando a vida. O limo eclipsa o espelho no sangue do sol. O girassol rebenta a pedra do caminho e gargalha. Os caracóis sobem pelas paredes e explodem. As espigas maduras da madrugada explodem. Estou sonhando o mundo com o bico dos galos.

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Luxúria

Cerquei o dia com arame farpado. Os pássaros não gostaram, ficaram loucos. Eu estou luxurioso de folhas verdes na água ao sol. Um formigueiro vermelho e um touro soltam fogo.

Os cachorros têm sangue na boca. Estou comendo a terra do caramujo. O cogumelo é varado de luz na cerca. Ontem me choveu, floresci pólen. O meu néctar perfuma a terra das abelhas. Estou lambendo a cor da árvore. O escuro da palavra se ilumina. Eu sinto todos os cheiros do mato. Carrego no ombro o barranco do lagarto. O meu coração ofega na pureza do olhar.

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A peixeira

A peixeira abre a barriga da manhã, Os ovos brotam como caranguejos Florindo entre as vísceras violetas. A nudez do sol se parte nas garrafas. A garganta sonha com quatro pássaros. A mulher oferta o ventre para o universo. O lagarto é do tamanho de um rio e vomita. A palavra se revela na barriga do mato. O jacinto carrega a árvore nas costas. Eu carrego todos os bichos da terra. Sou a mula puxando uma carroça antiga. Reaprendi atrás de uma moita gorda O rio do dia e lambi a terra feliz. A alegria é o princípio da peixeira.

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A porteira da tarde

A cigarra desfia a porteira da tarde. Eu sou uma moringa d’água porejando. O cachorro deitado na sombra fresca, De língua de fora, abana o rabo. As rãs fazem festa na beira do rancho. As ingazeiras conversam com os inhames. As porcas se espojam na lama gostosa. A caranguejeira sai do ventre da terra. O bugio coça o queixo, boceja com preguiça. Os cupins fazem a sesta sob os andaimes. O camaleão bota a sua farda verde e cinza E destila a paisagem no bico de uma flauta. A minha voz molhada pinga de uma árvore, É cor da terra e vai caindo de manso.

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A flauta

Eu tinha uma lata de flores na janela. Plantei a minha casa sobre uma pedra, A lata e a pedra eram um ninho de pássaros. Minha casa cantava nos beirais do sol.

A árvore balançava com o mormaço. O dia brilhava como uma queda d’água. Eu gorjeava com néctar na garganta. A minha natureza era de mel e abelhas. Eu tinha um cacto florindo na língua. O limo brilhava na minha língua verde. O sol dourava a resina do horizonte. O sabiá cantava mais alto no visgo. As frutas do pomar tocavam a alvorada. A manhã se elevava no olhar da flauta.

56


A polpa dos pés

A égua branca pasta o sol, Cozinha o relincho do ferro. O ouro da terra me inebria, Caminho com o musgo nos pés. O arame das formigas me leva, Nos andores de folhas e lua. Leite de pombas me alimenta, Enxergo com a polpa dos pés. Venho da paisagem no tronco, Do grito da lesma e do limo. Venho dos lençóis de flores Que são palavras e me vestem. Eu afundo os pés na minha terra. Sei de onde venho e para onde vou.

57


O brilho das águas

A sombra da nuvem na montanha Torna mais verdes as árvores próximas. As vacas pastam ao lado da cerca de pedras. As cabras pastam do outro lado da cerca. A terra, a árvore, o pássaro. A roda d’água sobe até ao sol. O monjolo sobe, a mão do pilão sobe E cai como uma lâmina. As águas brilham como diamantes. O burro puxa a carroça, as rodas cantam. O cachorro me morde o calcanhar. Um galo passeia com a crista erguida. Pinga sangue da crista. O cavalo relincha.

O sol queima o pássaro. A terra flutua na claridade.

58


A lâmpada de argila

Chego ao lago sereno com suas flores e pássaros. Deito-me ao sol dourado, sob o verde das árvores. A brisa ergue no ar a poeira fina dos estames E a terra fertiliza-se como num encantamento. Tomo da palavra como uma chave mágica. As estrelas cantam nas folhas ainda escuras. O sino toca na montanha acordando o dia. O meu tronco de árvore floresce e frutifica.

A lagarta carrega uma flor nas costas, torta de dor. A aranha tece a sua teia, caça e devora a mosca. O limo escorre entre as pedras do barranco. Uma cortina de água flui na entrada da gruta. A casa da poesia é a única morada de Deus. A lâmpada de argila brilha ainda.

59


Êxtase

A pedra cai na água, o pássaro imóvel No galho. A rosa, ao sol, se renova. Os melros na relva, os melros dentro De mim. Onde estão? Quem fui? Caminho na tarde verde à beira Da água clara onde as nuvens se miram. Atira a pedra na água e esquece. Você Nunca mais será o mesmo. Qual a forma do meu poema? Ainda Estou elaborando o nome da rosa. Vozes verdes, verdes ventos. Elaboro O meu poema como um cavalo ruminando. O rio engole a palavra e espera o êxtase Da rosa ao se mirar em suas águas.

60


O silêncio

Fomos à ilhota no meio do lago Para ouvir o silêncio. Um pássaro de prata imóvel na luz Abria o bico, não cantava. O sol estourava a água. Uma orquídea partia-se com o calor. Um carreiro de formigas carregava Uma roseira nas costas. As pedras do caminho soltavam chispas. Ouvia-se uma pétala no ar. Ouvia-se a raiz da árvore sob a terra. Um lagarto saboreava a claridade. A libélula ouvia a borboleta. Nós ouvimos o sol e a sombra.

61


As garças

Duas garças brancas pousaram Na árvore nua da ilha. Logo vieram mais duas, Mais três, quatro, cinco, dez. A árvore ficou carregada De garças brancas, e algumas pretas. O sol tingia de ouro O espelho das águas do lago. As garças não se mexiam. Até que, de repente, voavam duas Ou três. Davam uma volta na ilha E pousavam novamente. A árvore, a ilha, a água dourada Não poderiam existir sem as garças.

62


Ceva

Uma flor nasce na pedra. A larva cresce no fundo do poço. A corruíra me bica a língua. Escorre mel da minha boca. O martelo da araponga na forja da tarde E o sol em brasa numa árvore só árvore. Por que o gato mia nessa noite Que ainda não é noite, mas árvore cantando? Semente na língua torna belo o canto. Palavra é como a erva se alastrando, cobrindo tudo. Não pode faltar a árvore. A flor fecha os olhos com tanta beleza. A flor sabe a palavra do êxtase. A palavra tem raiz dentro da terra.

63


O lago dourado

A ascensão da encosta, passo a passo. Na subida, o assobio do vento. A libélula mergulha Com a montanha nos olhos. A pedra no lago, de círculo em círculo, Não deixa vestígio. A agonia da canoa De borco na areia, para sempre. Um caranguejo se esconde em sua loca. O bambual se inclina. Os guizos da cascavel Tilintam na brisa. O grito do quero-quero Desperta o banhado. O capim cintila em festa. O cisne desliza no lago quieto. Uma rã coaxa. As tartarugas descansam ao sol. Um bem-te-vi Refulge com a luz dourada na beira do lago.

64


A estrela-da-noite

Pensei uma flor no ventre da pedra. As baitacas gritam, gargalham. O pinheiro abre os braços para o céu. O grito branco de espanto do gavião Voa num átimo, instaura a claridade. A minha flor se abre: A estrela-da-noite, lívida, sangrando, Sorri para a alvorada. Quebrem as garrafas! Quero um banho de luz verde, Quero me afogar no sol. Espero um dilúvio Para inundar a minha garganta Seca de Deus.

65


Na névoa dourada

A solidão da pedra sob o cipreste azul. A rã coaxa contra o espelho da água. A borboleta dança na sombra das árvores. Os meus olhos beberam todas as paisagens. O salgueiro chora lágrimas de ouro e âmbar. As nossas sombras se misturam. Um toque de sino e um pio de coruja Na névoa dourada encerram o dia.

O pescador lança a rede no espaço Das estrelas. Os peixes brilham no escuro. Na margem, o cachorro morde o rabo. As folhas giram no ar e caem na água Entre as pedras e o silêncio. A lua Sonha as árvores e o cheiro de alecrim.

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Paixão

O sanhaço com a frutinha no bico Pousa no arbusto vermelho. O marreco imponente abre as asas Sobre uma pedra no meio do rio. A casca da cigarra no tronco da árvore Ainda canta. Tanta solidão. A coruja aguarda no meio do capinzal Como um relógio. O tempo cai. O besouro azul à beira da morte Brilha no charco. O pássaro-preto Compenetrado marcha no capim. O corrupião imita o próprio canto. O lagarto ao sol brilha de tão verde. A paixão na flor de maracujá.

67


O grilo

O grilo aproveita a noite no monte de lenha, Tomou vitamina e canta a plenos pulmões. Pingam na noite lágrimas como estrelas. A lua acorda, se levanta e boceja na janela. A árvore abaixa a copa para a terra sonolenta. As casas solitárias se apagam na distância. Os cachorros latem encurtando as estrelas. Late muito mais alto o meu grilo lenhador. O cheiro do mato molhado me envolve todo. O meu corpo exulta no calor do barranco. Os coqueiros do pasto entram em casa. A língua do meu bezerro Bito me lambe a cara. Vaga-lumes passeiam beliscando os meus olhos. O meu grilo martela a bigorna da memória.

68


O poço

O balde mergulha no poço, com um baque surdo, negro. A água funda, longe, com o céu e a lua. Avencas e musgo verde respingam. Uma rãzinha de atalaia. A manivela é pesada, A velha corda geme e canta no sarilho. O perigo da madeira podre, A pedra molhada, escorregadia, E a minha face deformada na água côncava. A minha voz vai e volta, redonda, E me envolve de uma outra melodia. Uma raiz com limo escorrendo Fende a parede de tijolos gastos.

Um perfume úmido vem da água noturna, que me sacia.

69


O cadeado

Uma borboleta pousada No cadeado do portรฃo Como uma flor amarela, Depois azul e vermelha. Um pรกssaro canta. Ela bate as asas, Bate, bate as asas Para que o pรกssaro cante. E ele canta. A gota de orvalho verde. O lagarto sobre a sombra. Meus lรกbios sangram De tanta cor e sol. A rosa explode.

70


O dia é azul O dia é azul nas asas do sanhaço. O sabiá caminha na ponta dos pés Colhendo o jambolão caído na grama. Respira a suavidade do dia. O bem-te-vi, pousado à beira d’água, Espia para todos os lados, refresca As penas amarelas num leve mergulho. A libélula voa da areia, entre as pedras, Olha-se no espelho da água do lago. Os peixes olham para os lados, de soslaio, Indiferentes à vida que passa. O pica-pau remenda a casca da árvore Como se tudo fosse casca. O martim-pescador mergulha glorioso.

71


O pássaro na sombra

O pássaro pousado na sombra Medita na beleza da vida verde. Entre as folhas douradas da figueira, Sossegadinho, vela o seu tesouro.

As nuvens no azul turvam-se com a luz. O sol sua entre os galhos do pinheiro. A claridade purifica a terra. O peixe nada sob as sombras da água E das árvores refletidas no fundo. O pato forma círculos no lago

E caça entre os arbustos da margem. As águas são da cor da terra, Levam raízes, galhos e sementes. A orquídea lilás lembra Deus.

72


A rosa floresce

A rosa floresce. Junto à fonte interminável Abre as pétalas de luz. Um bem-te-vi anuncia o arrebol. Na harpa da palavra, Com os dedos em chamas, Vou tangendo o universo. No meu olhar cai o orvalho da manhã. Vejo a tua face na gota de orvalho. A libélula se procura à beira d’água. Ouve-se o som da sombra de uma folha. O poeta vive à beira do abismo e do êxtase. As águas do rio estão dentro dos meus olhos, Nunca acabam de passar.

73


A flor e o sol

A flor se despe para o sol. Escorre leite de seus seios, Seus lábios fremem. As abelhas preparam a dança do amor: ela geme de prazer, se contorce, Se transforma numa estrela, numa virgem vestal. O sol beija a nuca, as nádegas. Ela oferece o alforje Com o néctar. O sol é uma aranha e a teia núbil. O olho da aranha chove azul. A flor é fêmea No cio. O sol é um escorpião esperneando. Ela é uma árvore enferma, conhece a linguagem Do corpo no verão. Ele agoniza salivando como um cão. O cheiro dele é um caracol explodindo. Ela, a flor, É uma jia calada. Mal respira para não morrer. Ele, o sol, é um peixe com ela dentro. E tudo é silêncio e escuro antes que o eterno gorjeie.

74


Desenho

Eu desenhava pássaros no mato. As águas rebrilhavam sob a ponte. O sagui balançava-se num galho. O esquilo descascava um pinhão. Os canários dourados como o sol Voavam e cantavam na cascata. Eu contemplava o córrego e os pinheiros. Havia tanta luz no morro verde. Um gavião cruzou o ar como uma faca. O azul sangrou de dor e maravilha. Minha alma se elevou no azul do céu. Os cavalos ergueram-se nas patas E galoparam para o horizonte. As pétalas da flor caíram na água.

75


Os olhos da minha mãe

Nasce uma flor nos chifres da vaca, Uma fonte de leite puro muge no pasto. O orvalho da aurora me purifica. Brotam da memória um bezerro e um touro Voando sobre as árvores da infância. Onde o cavalo do meu pai? Onde O grito retumbando como o trovão? Os centauros celestes fazem chover Pétalas do delírio e borboletas azuis. Um peixe curioso espia das locas na água verde Do ribeirão correndo no fundo do pomar. O eterno dorme ao meu lado como um cão. Minha mãe chega à porta com pássaros nos ombros E me mostra a face de Deus nos olhos.

76


Minha m達e


O sol da formiga

A terra alegre de chuva e caramujo. Os olhos se melam brilhosos de água. A arara gargalha, racha a árvore e o céu. A menina sabe a história das formigas, A saia clara está molhada de espinhos. O caracol saliva pregado num barranco, Numa pedra feliz com limo de sol novo. Bois e vacas mugem no pasto cheio de água. As coisas acontecem no mugido do gado. O chupim pasta o depois da chuva da noite.

O meu cachorro para e saliva com o sol da água. A alma das coisas é limpa como uma luz líquida. O mundo nasce dos lábios da menina da água. O mundo nasce da água com o sol da formiga.

78


Os pássaros da aurora

A siriema bica o ovo do dia Na porta da cozinha, quebra a casca. O cheiro do café coado grita. O forno gordo estoura com os pães. Estralam as estrelas no fogão. As galinhas se agitam no terreiro. O galo engasga com o sol e grita. O cavalo relincha sob o arreio. O meu pai tira leite das vacas Coroado das flores da paineira. Os bezerros invadem o pomar, Os cães correm atrás e latem, latem. Cantam todos os pássaros da aurora. A luz inunda a terra como um mar.

79


Claridade

O hibisco vermelho apaixona-se pelo sol, Abre-se mais, explode, parte-se. As folhas verdes guardam a luz e a sombra. A borboleta aprisiona a cor nas asas abertas. A libélula equilibra-se no caniço. O limo recobre a pedra por onde a água escorre, A água cristalizada ao cair das pedras da cascata. A garça caminha com leveza no capinzal. O pica-pau martela o tronco do pinheiro. O beija-flor carrega a luz nas asas em delírio. A coruja vigia a sua toca com os olhos acesos. As palmeiras espelham-se nas águas do rio. O monjolo sobe e desce, a roda d’água cantarola. O melro canta à beira d’água a claridade do verão.

80


Os galos

O galo debulha a espiga da manhã. Seu grito trepa as árvores, O chifre das vacas, as esporas do meu pai. O velho calça as polainas, amola a faca na pedra negra, Enfia na bainha, na cinta. Bate o isqueiro de pederneira, acende o cigarro E monta com um grito na garganta Como um galo. Meu pai e o galo Debulham o milho da manhã. O dia trepa no terreiro, Na invernada, Com o gado mugindo, soberbo, único, Para os galos.

81


A gota de orvalho

A gota de orvalho me cai dos olhos. Tem as cores da aurora E o som de uma flauta-doce medieval. Nela o beija-flor se reflete, Paira e carrego para agora. O moinho de vento minúsculo mói o tempo para trás. O boi berra na minha garganta. O galo anuncia: os ovos de ouro são eternos. A roda d’água roda no mesmo lugar. O meu coração é monjolo, brilha como o sol. Tritura a luz até que a estrada se encolha Como um pássaro na concha da mão. A farinha vermelha do chão da infância.

O meu corpo úmido é uma árvore perdida de amor.

82


Alegria

A relva recobre o chão e viver é tão grande. O peixe me revela a cor das coisas. Sou a semente plantada na terra. Vejo na árvore o nome do universo. Vejo no perfume do pássaro a alegria. A música das águas abraça as árvores. Margaridas dançarinas cantarolam na luz. Um cavalo alazão relincha na invernada. São meus os horizontes das palmeiras. Tenho raízes e a infância grita no mato. Tenho estrume nas botas e grito para o dia. A cobra percorre o caminho da roça. O pincel do lagarto colore a paisagem. O pólen da beleza desenha a vida.

83


Os elementos

Uma caneca d'água bebida na beira do mato. Uma laranja saboreada à sombra no mais sujo do pomar. Andar descalço na terra molhada. Pisar na bosta verde das vacas, boa para curar frieira. Chupar jabuticaba trepado no pé, lambuzar até os cabelos. Cair sentado nas jabuticabas, lambuzar a bunda e a cara. Entrar na água devagar, no meio do mato, Na água fria do mato fresquinho da infância. Sentir a infância entre os dentes. Sentir nos olhos os bezerros do pasto. Ouvir o mugido das vacas na noite longa. Adivinhar os vaga-lumes na noite que boceja Perdida lá fora entre os coqueiros e a tulha de café. E chove em mim e eu floresço de manhãzinha.

84


Ode à cidade A Bauru no seu centenário O verde se evola no ar. A areia branca me foge entre os dedos, Poalha de estrelas que o céu destila. Caminhos se bifurcam, Artérias de um coração multiplicado. Voo pelas ruas com os olhos brilhando de memórias, Árvores e casas e homens Mergulham por mim a dentro. Os rastros de meus pés permanecem, Alheios ao tempo que se escoa. Os limites se esvaem da bússola Ou da palma da mão. Em meu peito pulsa O pulmão do universo.

85


O dia de ouro

Escorria ouro da árvore, o sol cantava na língua. A maritaca trincava o céu, o tímpano voava com a luz. Pingava tanto ouro na tarde com cheiro verde. A menina era um canário na árvore e sonhava azul. A nuvem era de paina, espinhos sangravam. O rio madurava, o sonho resfolegava. A sombra se espichava para o sabiá no mamoeiro. Ninguém sabia da festa da água, regada a ouro. A paisagem era caminho subindo, a garça levava. A espora da tarde tilintava, a cerca cheia de musgo Invadia a casa, balançava as tetas e chovia leite azul. Borboletas circunavegavam entre a água e o céu, Brotava uma flor nos dedos, o mel escorria da perna, O cheiro de estrume de vaca perfumava o mundo.

86


A argola

Uma argola solitária na varanda da minha infância. Solitária, inútil, equivocada: nunca nada foi ali pendurado. Sempre amei as coisas que não significam nada.

Por acaso amei essa argola, de que ninguém se lembra: Enfeite, estorvo, encalhe. Certamente linguagem Em sua solerte mudez: memória Afogada na água do tempo e seus dejetos. Uma argola na varanda, no pescoço, nas ventas. Onde estou, no vão desse espelho? A minha imagem pendurada na varanda Como uma argola enferrujada Com a casa e seu sangue, em silêncio. Deus lê o meu poema com uma esquiva alegria E nenhum escárnio. Rara a vida e a argola.

87


Fome gorda

Emas correndo, emas voando Com o sol nas costas, com o sol nas patas. O boi velho adora as moscas no atoleiro. As baratas são tições no capinzal. Os besouros têm sapatos pesados e sufocam. O boi engole fogo pelas ventas. O veado e a jaguatirica se equilibram no ar. A anta em prece se ajoelha. O mato queima, os bichos naufragam no rio gordo. O rio gordo solta a cadela para cruzar com os bichos. No meu tronco chamuscado as últimas fagulhas, Uma brasa queima nos meus olhos e na minha língua. O rio gordo, a cadela do rio gordo, os bichos, A fome gorda dos bichos no crepúsculo do rio gordo.

88


Luz

O vermelho pinga no céu de alto a baixo, O barranco abre uma boca enorme e boceja. As flores brotam da casa e das árvores, E se penteiam de cócoras no espelho do rio. Pesco na minha varanda sob as árvores, Os pés balançam sobre o baile das águas. O limo sobe pelas paredes do poço,

As samambaias bailarinas brilham e cantam. O mundo é uma canoa de pássaros e peixes. As estrelas caem de banda ao sol do meio-dia. O homem continua o mesmo como uma semente. As vacas vêm beber com o verde na garganta. Um velho se agacha na beira d’água e sonha. Ergo nas mãos o meu farol e ilumino o mundo.

89


A tarde de dor vestida A tarde gemia sob os arreios, sob as esporas nas ancas e o freio comendo a boca. Um lençol veio de manso num cesto de vime e cobriu de morte a tarde. A tarde é uma égua sem lua, relincha no descampado com o algodão da morte nas ventas. A guasca do vento semeia chumbo no lombo da tarde, vergasta o ventre sofrido o dedo de uma estrela raivosa. A unha de onça em brasa nas tetas gordas da tarde. Um chifre vara a coxa, a penugem do pulmão pequeno, de pomba, da tarde. O relógio enlouquece com o espinho do silêncio no coração pequeno. A língua sangrenta da tarde na coivara da agonia. A tarde de dor vestida, com um relógio de ouro na argola das ventas. O relógio louco rumina o tempo numa baba de estrume fervente. O relógio não sai do lugar, na argola das ventas, na nuvem verde do estrume. A rosa de luto se despe, pétalas de carne fremem. O pasto agoniza com a gangrena as virilhas comendo, a mata queima no aceiro do sol estripado pela seda verde. A guampa chama a lua, chama a lua a árvore debruçada no ribeirão. A água reflete sombra funda como um relógio morto. Tempo terrível de um vaga-lume só. Ai tempo morto de um vaga-lume só.

90


Com a prima CĂĄrmen LĂşcia


O coração pequeno O meu coração pequeno rolava Com os grãos de café no terreiro. A infância cresce com a beleza das coisas. O meu pai gritava mais alto que o tempo. A coruja meditava no mourão. Os meus olhos brilhavam ao sol. Os caracóis cresciam nas barrancas. O martelo da araponga quebrava pedra. A casa delirava na terra vermelha. A árvore fulgurava na tarde, Furava a neblina com os dedos rubros. Os cães arrastavam as casacas no ribeirão. O meu corpo floria nas quatro estações. As espigas da infância estralavam no meu coração.

92


A invenção da paisagem

O passo-preto-do-brejo chama o cachorro Num assobio assoprado de longiperto. Ninguém ouve no súbito silêncio. A cadela fareja o ar, pasta a água. O poema adora a pedra verde e leve. Deito no barro e bebo a água do rio. A borboleta da palavra pousa No barranco com limo e brilho líquido. A árvore madura tem o sol no bico E dança e canta a plumagem colorida. Quase bato as asas brancas de felicidade. Tenho fiapos de céu azul nos dentes. Não acabei de fazer o meu pássaro, Mas ele inventa a minha paisagem.

93


Os meninos do verão

Os meninos colheram os frutos de ouro. A terra era fértil, os celeiros estavam cheios. As mulheres se deitaram com o sol do verão Quando veio a paixão das maçãs vermelhas E o mel estourava os troncos das árvores. Estava muito longe o tempo da incerteza. Não importava o emblema da serpente Dependurado de uma estrela envelhecida. Era uma festa a explosão do útero das mães. Esquadrinhei a dor cifrada na túnica do tigre. Cavalguei nu para a montanha mais além.

O coração pequeno dos homens pulsava No ritmo dos cavalos selvagens tangendo A língua límpida da vida em flor e pássaros.

94


Sol no umbigo

Eu tinha um sol no umbigo cheio de passarinhos. A cobra rastejava com as perninhas nervosas Para debaixo de mim. Eu era um lambari sentado no alto de uma ĂĄrvore E cantava tangendo as cordas da viola Com os passarinhos me acompanhando. Eu nadava vermelho com o sol incendiando o rio. Capimgordura pegava fogo, passarinhada despencava do cĂŠu. Meu umbigo era um ninho vermelho de guaxo vermelho Estuprado de marimbondos. Pegava o vento como um peixe pelo rabo. A cara colada no chĂŁo ouvia o vento vindo, Ouvia o vento indo na terra verde Com as perninhas tortas como uma cobra apressadinha.

95


O sereno

O sereno debulha a noite no pasto Sobre o sono sossegado dos bezerros Que os coqueiros velam com a lua nos braços. As três-marias estão namorando o cruzeiro,

Nem veem o pasto pequeno dos bezerros, O mato de um lado, de outro o cafezal E de outro a casa onde eu sonho na janela. A solidão me envolve de uma ternura sonolenta, A noite distraída não diz nada, resmunga Apenas com os grilos e as rãs do brejo. A palavra é criança pequena na noite, É uma flor se abrindo numa grata surpresa. O vaga-lume pisca para mim, me conta um segredo. A noite dorme sob um manto de milhões de estrelas.

96


O córrego

Os brotos de bambu crescem rodeando a casa. A água parada brinca com os girinos. Giram no ar as jabuticabeiras pesadas. As pedras sonham com a carne dos lagartos. A cadela delira com o dia das maritacas. O joão-de-barro palpita com a sua casa. O arado levita nas asas do beija-flor. A orquídea eleva a árvore acima do sol. A vida clara estala na cacimba. A borboleta adora a terra vermelha E as flores semeadas no canteiro. Meu canto engorda na ponta dos dedos. As laranjeiras adernam no quintal. No córrego a beleza nua e límpida.

97


Lua nova

Hoje eu caí de quatro e uma garça me beijou. É lua nova e vou podar a minha parreira, vou podar com o canto do galo nas unhas. Será um bruto amanhecer. Eu com a palavra colibri na mão, com um pacu no peito estufando até arrebentar. Vou mastigando o horizonte de pé na minha canoa. Minha canoa é verde com um tição no nariz. Cuspo negro e canto um palavrão brilhoso. Vou colher uvas de sol, vou tirar cachos e cachos de uva do umbigo. E colibri espreguiça o dia. Gozado como as coisas se combinam de estufamento sabido e cantado. É como se a gente tirasse um olho fora depois o outro e cada um olhasse a gente e parisse a gente.

98


Raízes

A árvore tem um corte no tronco. Sangra, um líquen dourado brilha. Uma flor branca brota da ferida da árvore. Um beija-flor dança diante da dor e da beleza. Pássaros vêm e vão entre as folhas, cantam. Um cavalo vem descansar à sombra da sua copa. Cachorros latem para as vacas cansadas. Uma cascavel passa sacudindo os guizos. O chão está coberto de folhas douradas. Um ouriço se esconde no vão de uma raiz. Um gafanhoto verde e amarelo pousa na flor branca. Um bando de borboletas azuis revoluteia no ar. Um homem chega, sorri e deita-se à sombra. A árvore se eleva no céu azul com a luz do sol.

99


Cheia

O rio estava tão cheio que as mulheres pariam. A barranca era uma vaca sangrando. Um quero-quero berrou a festa do barro. As porcas se arrebentavam contra o sol. O meu pântano borbulhava, eu coaxava como um sapo. Uma garça se inclinava para dentro de mim, me bebia. A rosa da vaca sangrava. Eu quero todas as graças da vida. O chão sabe o nome da água. Eu sei o meu nome Como quem explode, não me venham Com meias palavras: eu sou um palavrão esventrado. A árvore cavalga no rio com mil crianças montadas. A felicidade na barriga das crianças e das porcas na água. As mulheres cantavam os lençóis da vida flutuando na água.

100


A ilha da tarde

O beija-flor me entra nos olhos, me beija. No rio largo uma folha, uma garça ao lado. Uma dália viaja na córnea d’água. Pedras são pétalas de ar. Borboletas estudam o silêncio. A ilha bebe o horizonte. Um arame estrangula A sombra pálida da ilha. Mariposas pousam no relógio quando chove. Arco-íris capenga, é tarde. É sempre tarde quando os caracóis. As raízes gorjeiam de costas, Escorpiões conjugam os verbos do amanhecer. As palavras bailam na areia, Compõem as cores mínimas do eterno.

101


As pedras da montanha

Os cavalos galopam na invernada. O vento sopra sobre as águas e as árvores. As flores do jardim respiram em sossego. Os homens sonham, voam com os pássaros. A mulher bebe água da moringa de barro, À sombra, na quietude do dia largo. As árvores cantam, o perfume do jasmim Grita com todos os pássaros nas pétalas do verão. É insaciável a minha sede de pássaros. De olhos fechados vejo a claridade. No âmago da rosa a essência do sangue. Um voo iluminado para o círculo do sol. Com todas as borboletas azuis, o céu mergulha Nos meus olhos abertos para o êxtase da vida.

102


Visita ao velho pinheiro

Volto a abraçar o meu velho pinheiro. Os seus galhos se estendem para o azul. Respiro o ar claro da manhã de Deus. Os esquilos saltitam em busca da luz. O sol coado de leve entre as folhas Acaricia o húmus úmido da trilha. Um bando de beija-flores dança Numa coreografia de brilhos e cores. Uma manada de cavalos marcha Com o equilíbrio natural da raça. Eu bebo a água da fonte do pinheiro. O musgo cobre as pedras e o barranco. Os jacus saltam, voam com estrépito. Depois, apenas o silêncio verde.

103


Sabedoria

Uma roça vermelha cresce do meu peito. Sem palavras eu canto com o sol no horizonte A cor e o cheiro da grandeza única da terra.

Eu tenho uma semente morrendo e renascendo Na minha alma, no sangue, entre os calos Com que conheço a língua porosa da terra. Tenho um conhecimento perfeito das coisas.

Os homens que conhecem não precisam conhecer. Eu sei quanto o mundo me pertence. Estou todo molhado de penas e cantos. Os meus olhos estão parindo estrelas. Eu plantei na montanha a árvore dos galos. Sou paisagem no olhar de antes do caos. O meu moinho mói o universo com doçura.

104


A figueira

Deito num vão no tronco da minha árvore. É uma grande figueira velha de um século. Estou deitado no meio de folhas amarelas Com um cheiro bom pelo meu corpo inteiro.

Réstias de sol desenham figuras no ar. Pássaros voam, pousam e cantam. A claridade doce me envolve e sonho A sombra do bezerro e a sombra da vaca. Essa figueira foi minha desde que nasci. O meu mundo eram os seus galhos e folhas. O meu mundo eram suas raízes sobre a terra, Seu tronco e sua sombra como um colo de mãe. Envelheci, sou outro, a minha figueira envelheceu, Não nos reconhecemos. O tempo não volta atrás.

105


Os castelos de pedra

Os castelos de pedra coroam o céu do sertão. As araras devoram o pequi ou as espigas de milho. Os urubus-rei se escondem nos buracos da serra. A vida prossegue no equilíbrio natural das coisas.

Passa a nuvem branca pelo céu azul Desenhando os seus animais delicados. Ensina que a vida é passar, na altura, Como os animais, ruminando a paisagem. Dedilho a harpa do mito ao crepúsculo. Resolverei meus teoremas sob os carvalhos Antes que a noite apague o último pássaro. Tenho penas e sangue nas mãos em cruz. A esfera do círculo é perfeita e queima. Deus é o geômetra do mistério azul.

106


O sol da infância

Pombos caíam do céu Como frutos estourando de maduros. O sol pintava de azul a infância. Os guizos da cascavel me encantavam. Eu sonhava com a árvore dos dias Nos ladrilhos iluminados da varanda. Os gerânios vermelhos dançavam no jardim. Os copos-de-leite cochilavam nos canteiros de sombra. Os sabiás e os sanhaços empurravam As raízes da paisagem para agora. O mel inundava o pomar tranqüilo. Um pássaro cantava na roseira do êxtase. Os telhados vermelhos suavam Sob os raios do sol escancarado.

107


O monjolo do tempo

O monjolo marcava o tempo na água. O moinho moía a farinha e os galos. O canto dos pássaros bordava o dia. O arado tombava a carne da terra. As sementes sorriam prenunciando a flor e a espiga. A noite me embalava na copa da figueira. Longe, os latidos dos cães loucos. Eu me aconchegava no seio da lua Como no embalo de uma rede e sonhava. Os grilos brigavam com os vaga-lumes entre os coqueiros, As estrelas caíam com o sereno. O leite da madrugada era doce como a vaca Moela. O bezerro Bito mamava com sofreguidão. A Moela e o Bito, eu me dizia, sabem o meu nome.

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A casa verde

O meu cão ladra na porteira. O meu cavalo canta para as vacas no pasto. O meu galo cego acende as pedras do dia. As galinhas festejam o milho no quintal E fora dele, no curral do sol. O pássaro abre as asas brancas no umbral Da minha casa, sempre aberta. A árvore cresce dentro das paredes, Enrosca as raízes e os galhos Nas portas e janelas, arrebenta o assoalho. Posso ver o céu azul pelos vãos do telhado. O sol entra na casa, acende labaredas No fogão, na mesa, nas pedras do chão. A casa é verde como uma semente ao sol.

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Paisagem

O vermelho da terra é como carvão, Brilha na alvorada e no pôr-do-sol. Bonito ver a vida com os cavalos. No pasto o menino inventa uma árvore. O boi tinha os chupins em volta. A palavra abria a boca no capinzal. O mundo era maior do que o rio. No braço do rio pastava um jacaré. Grilos namoravam numa canoa velha. O peixe cozinhava com lenha molhada. A paisagem era de pedra e de água, Tinha capim viçoso e bezerros voando. As emas pastavam o sol com as esporas Fazendo uma coivara de meia-sola.

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O útero da terra

Deslizava o riacho tranqüilo Atrás da casa, abaixo do mangueirão. As jabuticabeiras eram pretas. Eu era preto como dois olhos. Os canários trinavam no jardim. A rosa brilhava no galho Da roseira na janela. Estava nua, porejava leite e orvalho. Lembro a figueira, a casa, o quintal infinito. O cachorro põe a língua de fora e resfolega. O cavalo escarva o chão e resfolega. O sol cai no barranco do caminho de casa. Silencioso, eu me deito na terra vermelha Como no útero da minha mãe.

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Sobre o livro Formato: 14,8x21 cm Tipologia: Franklin Gothic Médium 10,5 (texto) Franklin Gothic Médium 16,5 (títulos) Papel: Off-set 75 g/mº (miolo) Projeto gráfico e diagramação: José Carlos Mendes Brandão Capa: Marcelo Woelke Foto da capa: José Carlos Mendes Brandão Foto da contracapa: Sônia Brandão Fotos internas: Arquivo da família

Impresso em junho de 2010

Impressão e Acabamento

Avalon Gráfica Digital


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