PULSAR _ PRÉVIA

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ciclo INTEIRA por Maria Ana Guimarães

De dimensões exíguas, Nos apresentamos perante o céu. Imenso. Desafogado. Outrora nus e cândidos, Agora já sem espanto ou encanto. Solitários. Desamparados.

Pãn, «todo»

O uno perdeu a grandeza, E reduziu-se às cinzas esmaecidas, Do Eu. Apagado. Desviremo-nos de nós mesmos. Olhemo-nos ardentemente uns aos outros, Irmãos. Esquecidos. Sejamos outra vez um, Libertemos as amarras do ego. Sedento. Cego. Assim brotaremos deste solo seco, Morto pela nossa descrença, De sermos inteiros.


De onde me vêm estes sons, Contornos de palavras, Ainda em forma de massa, Que flutuam na minha boca, Pesados. Mal forjados e prematuros, Fervilham dentro de mim, Quase rasgando o meu ventre, Queimando-me com seus gritos, Gélidos.

Daímon, «demónio»

São procriadores desta dor, Desta dúvida constante e insana, Que roça as bordas da loucura E me mergulha neste estado febril. Violento. Preciso que nasçam, Que se enlacem graciosamente E me libertem deste desassossego. Minhas crias, desamarrem-se de mim e sejam, Voz. Meu corpo é agora eco, Onde dançam novos sussurros, Sedentos de vida, promíscuos. Vindos de entranhas que me são estranhas, Parasíticos. Entrego-me aos devaneios, Desta criação diabólica. Sou mais lúcida nesta cegueira, Que me permite ser eu, Poeta.


Pandemonium, «habitação dos diabos todos»

O Pandemónio, a habitação dos diabos todos. De todos os sedentos da ampliação do ser. De todos os famintos por conhecer. O lugar onde se libertam as amarras que nos enforcam, O espaço circunscrito à infinidade do querer. O tempo sorvido pela insatisfação incessante. O Pandemónio, a reunião dos inquietos. Dos possuídos pela dúvida e pelo belo. Dos insanos lúcidos e dos esquecidos. O refúgio dos esboços amarfanhados, Onde se podam as raízes do mofo, Dando espaço à fermentação cultural. Que se cantem os dramas! Que se dancem as narrativas! Que se pintem os corpos! Que se esculpam as paisagens! Que se encenem as canções! Que se escrevam os gestos! Que se representem os versos! Seja este o momento dos devaneios, Da exaltação da descoberta insatisfeita, Da partilha do alvoroço dos sentidos. O Pandemónio, o descanso da criação, O depositório vivo, buliçoso, carregado de cor, O repouso dos artistas.


Pãn, «todo» +dẽmos, «povo» +-ia

Estende-se o azul do céu Sobre a cidade em repouso. Quase se adivinham as estrelas, Quase se avizinha a lua. Abraça os sorrisos soturnos, Abarca os abraços longíquos, Polvilha-os com poeira de esperança, Adormece-os num colo sagrado. Todos estes gestos ao som de um canto divino, Que nos fez acordar desta insónia, Apática, mecânica, macilenta. E nos juntou numa dança mais humana. Voltamos todos a beber do seio familiar, A viver uns nos outros, os sonhos. Saciemos esta vontade que foi a apagada, Dancemos com a saudade, Encontremo-nos no sossego, Aprofundemo-nos, sem que nos afundemos No apetite do conhecimento, Expectante no fim do fio do pŕoximo suspiro. Estendamos também um céu, Sobre o mundo inquieto e estarrecido, Neste ensejo para redescobrir A saudade e o desejo de reflorescer.


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por Amaro Figueiredo / fotografias de Alessandro de Leo

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O vento o calor a luz da fenda a sombra os pardais os outros a possibilidade de atravessar e ouvir a música [Perto Perto.]

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O rapaz senta-se em frente com grandes olhos de nuvens cinzentas não há degraus não há um povoado de conversa [Nunca houve ninguém Nunca houve ninguém] cruza os braços [De vez em quando] parece pensar em qualquer coisa imagina o outro lado.

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Os ventos sopram o pulsante plano há uma fenda vertical assimétrica um ninho da fúria dos pardais no interior as chagas ervas suspensas também dançam [Teimosia das ervas daninhas] a sombra como toada de uma mancha negra no chão um carreiro de formigas em procissão a música demora o seu tempo. [Longínqua Longínqua.]






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Uma, duas, três, quatro, cinco Mulheres dão as mãos. Uma constelação feminina.

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O escaravelho sai da toca. As fezes húmidas no chão Formam o seu alimento.

Uma mulher olha para cima Abre a boca E come uma estrela

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Há uma mosca na cauda do cão. O cão morde a cauda Ou a mosca.

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Quando dei por mim, No lugar do cóccix, Nascia uma cauda de loba.

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A cobra pára. Silêncio. A pele descola. É primavera outra vez.

Na cascata a água desce. Empurra a pedra de argila, Que se desfaz na água do lago.

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Deitadas, Num chão fofo de terra, Sem pensar, respiram.

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O feto feminino É ainda tão pequenino. Sua mãe é já avó também.

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A minha avó Dentro de uma cápsula, Enviada para o espaço.

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Dois rostos aproximam-se. Ao olhar de frente, Um grande olho.

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Sozinha em frente ao muro, Nada. Viro costas E olhos abrem-se nesse muro atrás de mim.

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Uma parede de madeira. Proteje-me E respira.

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por Sofia Abreu

A floresta mudou de cor. Ficou vermelha. E há gente a entrar.

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Uma parede desfez-se. Pausa. Outra se constrói.

O cérebro fala com o útero. A parede do útero desfaz-se. Silêncio.

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Estando entregue ao calor entrançado Deste enraizar de teu corpo solene Louco enleei-me ao aroma aflorado Teu terreal erotismo perene.

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Asfixia 17

Asfixia Asfixia Asfixia Asfixia Asfixia Asfixia Asfixia Asfixia Asfixia

No fim somente esta sombra escura Carmim pelo sangue do amor sofrido Já nem pureza nem tua alvura Já só tua noite me tem tolhido.

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E nesta queda me iam subindo Mil ágeis caules entrecruzados E as brancas pétalas fui tingindo C’os poros pelos picos rasgados.

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E as vis raízes que logo ataram Meus tornozelos de ti tão virgens Num revirar de meus olhos causaram A mais leal das mais leais vertigens!

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Pousei meus pés na frescura atenta Da terra húmida à sombra alada E em alvas flores que o corpo alenta A flutuar pueril, qual fada!

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Teus vales flavos de odor premente Que fiel descia no fim de Agosto Eram vereda ao canteiro quente Da tua alvura pelo sol exposto.


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SIBÉRIA

t s i v e r a

Meu vírus de vida em vídeo São suspensórios de toca e foge Onde ouço, ouço o sussurro a ressonar Como um Altivo & Submisso, Humilde coro em Dó, Ela habita-me com a pressa de quem Se observa dentro de um organismo que Nunca aconteceu.

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De xadrez, chocolate, foda e violência com Seu pêlo fértil a um pontapé de distância De todo este romântico apocalipse

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Sentado na sanita d’outrem É como se nunca tivesse despertado Desta deterioração de veias, Luxúria & Trabalho Que nos preenchem pelas dobras, Sempre a mamar na ausência, A santificar o registo com o nó do encalhado Mimando-se Com golfadas de sílabas de dor E a paisagem a fazer-se passar por… Banalidades

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Beijo o coração do teu país Como um alvo antecede a pontaria e antecipa A derrota como o cansaço que prevalece Sobre a doença que orbita sobre a morte Em suspiros de memória mamífera, Em restos de certeza, subliminal


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“Po r e n tre g es tos mais d e n sos e de co r m a i s e sc ura, v i t amb é m n a s c erem ca n çõ e s m a i s su a ve s, o n de se e sco n d iam so sse g a d a s as histó r i a s m ai s doce s. V ã o s endo desve n d a d os , doce m e n te , es tes poe m a s q u e embal am e eq u i l i b r a m o meu es p írito criati v o.”

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P OE MAS DE E M BALAR


Janela

Repouso

A janela aberta, Desnuda e sem vergonha, Deixa que me beijem, De onde em onde, Doces pinceladas do céu.

Esconde-se o sol por detrás das casas. Envolve-as em tintas quentes e vivas, Pinta-as numa tela do tamanho do mundo E pousa-se no horizonte, delicadamente.

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As casas esfriaram no calor da despedida, Preparam-se timidamente para a noite, Recostam-se na memória da luz perdida, E adormecem embaladas neste quadro.

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A janela aberta, Sem preconceito ou trejeito, Sem limites desenhados Sempre que nela me perco, Sou mais livre, dentro.

Os recortados mantos de cor cinza, São agora estendidos pelas cores do sol, Que os trespassa em tom de carícia, E se desprendem das cores do céu.

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Sobre o parapeito, Polido a cor de carvão, Estendo os meus sonhos, A todo o momento, Da cor do vento.

Quase não se vê a doce descida, Apenas se percebe a calmia desse gesto, Lento, belo, que nos agiganta a alma, E nos deixa assim, a crescer, sós.

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O seu corpo translúcido, O seu abraço rasgado, Deixa que me acaricie, De quando em vez, O sopro das nuvens.

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Varanda

Debruçada nesta varanda, De pele contra o calor do tijolo, Sobre as pontas dos pés cansados, Inspiro a imensa mancha de cor, Estendida pelos suaves dedos Do tempo. Os olhos estão meio cerrados, Entre os lábios, um ténue sopro, Nascido do tímido bulir das folhas, E, de onde em onde, pó luzidio, Dançando debilmente ao som Do meu pensar. Ao longe, as casas sossegadas, Os sonhos ainda adormecidos, O canto ritmadamente matutino, O pomar faustoso e frutuoso, O melro astuto e faminto, No campo. De perto, o aroma a café, O acordar preguiçoso e quente, O murmurar dos segredos madrugadores, A carícia calorosa do sol cor de ouro, O olhar pousado sobre este conto, Da varanda.

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Debruçada nestes pensamentos, Afundo-me lenta e agradavelmente, Agora sobre as palmas dos pés, Sobre o chão de pedra, aquecido, Por estas doces histórias, Do tempo.

Cabeceira Um som ameno, Da forma dos teus lábios Chega-me ao ouvido, Em botão de luz. À socapa, um suspiro, Um trilho de memórias Descobertas destes lençóis, Aquece-me o corpo. Na cabeceira, Um livro. E outros tantos. De faces rígidas e quebradas, Deixam-me partir. Nas suas histórias. O odor forte, Das palavras velhas, Adentra-se na minha pele, Quase toca as minhas vísceras Ao de leve. A janela aberta, E o meu vestido corrido, Só se ouvem os sons secos, Indesvendáveis sob este sono. Cubro-me serenamente, Ao passo do luar. Com os meus desejos. E os teus.


Dos degraus

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Os degraus que dão para a minha porta, São os mesmos que dão para a rua da casa azul. Daquela de postigos rendilhados em tempos idos. Não lhes reconheço o fim ou o início. Um e outro confundem-se com os odores da manhã. Do pão madrugador. Do galo cantor. Do cão pastor. Nessa casa, o orvalho ainda dorme. E com cuidado, um pé antes do outro, o senhor da boina cinza, Manuel dos Passos, assim baptizado de boca em boca, mas não é de muitas palavras, afoga a sede à horta. Os degraus que me tiram a fadiga, São os mesmos que me tiram o sabor pardacento que trago nos olhos. E enquanto escrevo já subi até ao topo, e deitei-me no início.

Sob este sol

Espreguiça-se o gato e esgueira-se o sol, À boleia da sombra desaparecem os dois.

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A mim, deste lado da rua. Cheira-me a café. Quente.

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Boceja de quando em vez um sonho solto, Como ele, pelas ruelas que abraçam as ilhas. Não conheceu outra história.

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Dorme sobre o passeio engelhado como se a casa fosse sua.

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Aquele gato cor de café adocicado Põe em descanso as noites frias, Sob este sol de Inverno tardio.

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Talvez amanhã, a manhã se pinte de café E eu me deite também no passeio.


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Gotejos Adormeço as minhas angústias Do lado de cá das gotas de chuva Que escorrem numa dança hipnótica De braço dado às minhas lágrimas.

deste dia de outono que cobrem os passeios como se faz com as crias? que engolem a cidade parda como se tivessem boca?

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que subiram por ti acima como se fossem teu sangue? que têm tez de terra molhada e olhos de beleza afogada?

Que cores são estas

Que cores são estas

Que cores são essas

Que cores são estas

Que cores são estas que rodopiam com o cair da tarde deste dia de outono.


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Sob este céu Sob este céu de tintas longínquas Estendem-se os corpos sonolentos sobre as camas feitas. Ajuntam-se os troncos flácidos Numa dança de sussurrada volúpia, Em que os seios se tocam e as seivas se trocam.

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Corria uma brisa e do terraço, brotava o mar. As sardinheiras pendiam do parapeito para a rua. E para o mar. Em murmúrios tímidos adivinhavam as marés. Ora cheias, ora vazas. Como as mãos. Era a minha vista preferida. A daquele terraço. Lá do alto tudo parecia repousar sob o céu. Por vezes azul, outras avermelhado e noutras quase d’ouro. Como o rio. Todos os dias ia ao meu terraço. De café entre as mãos. E demorava-me. Até a chávena esfriar. Não havia fim para aquela cidade. Perdia a conta aos telhados, mais vivos ou mais desbotados. Como eu. Tenho saudades. Sinto falta daquele terraço. Que ficou, quem sabe, à minha espera. Como tu.

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No terraço

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A noite caiu pelas nuvens abaixo Sem que ninguém se desse por si. Misturavam-se os sonos e os desejos. Adormecidos.


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primavera que desponta em terra quente que sou eu

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o mundo é terra queimada mas a ameaça sou eu


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tardam muito as andorinhas em chegar presas lá longe

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na alva madrugada pássaros cantam a liberdade


32 é nestas noites mudas que as palavras se fazem armas

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somos todos bichos roendo a carne à espera do amanhã


33 é nestas noites mudas que as palavras se fazem armas

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somos todos bichos roendo a carne à espera do amanhã


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não me lembro da chuva salgada que parecia vinda da tua boca nem dos passos que contava desde o entardecer. apenas luz e uma fome louca do limite da Terra, da resistência do Ser.

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Cheguei aqui e não me movi. Já não era meu o braço, a mão, a perna, o corpo deslizava sozinho movido por ti. veio-me à boca a saudade de tudo: formas geométricas a quererem-se sem pudor; filmes inventados a preto e branco no fim da rua; cabelos tropeçados em palavras de amor. aqui me exilo do mais doce dos segredos: a tua pele quente e a da montanha nua.

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Cheguei aqui e fiquei parada. Não conseguia mais o movimento do corpo à volta do nada e de uma imensa esperança plantada. sinto as quebras da terra dentro de mim: os buracos vazios, cheios de nuvens e de ruído nulo. não se cava a esperança nesta terra de beleza fresca, está aqui e ali à espera de ser despida, por fim. sinto a indecisão do céu nos meus pés: a dança tosca entre uma corrida e um bolero.


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por Sara F, Costa

a mãe pousa o pensamento na inclinação da sala os seus verbos deambulam pelas horas proibidas das ruas a criança jorra em todas as direções a sua existência secreta como um sismo também ela se vai sentar ao longo das manhãs fechadas à espera que lhe cresçam olhos de gaivota.

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repousa na respiração das paredes até ao quisto no chão das palavras.

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peixes felizes escorrem das torneiras em direção à náusea e a casa desagua no sossego de estar viva

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portas e janelas adormecidas ao longo das cidades que se escondem em quartos abandonados

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na contemplação do fogo: incêndio permanente que embala as portas e não deixa ninguém entrar

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sou vida-casa


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O VELHO QUE D E SCASCADO ERA

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O velho caminhava muito devagar, com esforço, um pé arrastado a seguir ao outro. As mãos iam cruzadas atrás das costas, amparavam-lhe a verticalidade do seu corpo mirrado, mas soltavam-se frequentemente naquilo que poderia ser descrito como interjeições, ainda que não faladas. No rosto enrugado espraiava-se um sorriso permanente, de quem sorri tanto às coisas como às pessoas. E as pessoas que se cruzavam com aquele velho não conseguiam evitar um sentimento de estranheza, um desconforto causado por aquela afabilidade quase translúcida do velho. O velho deixou-se ficar parado num pequeno parque, onde brincavam muitas crianças. Os olhos muito azuis do velho corriam o parque, pousando delicadamente em cada uma daquelas crianças. O velho pousava os olhos nos gestos que as crianças faziam ao falar umas com as outras, na destreza com que trepavam aos baloiços e escorregas, na velocidade que imprimiam às suas corridas de passadas curtas. Sempre sorrindo, os olhos muito azuis do velho iam pou-

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Havia um velho. Daqueles mirrados pelo peso de milhares de dias, com a pele encarquilhada em rugas profundamente sulcadas no rosto. Mas eram rugas diferentes do habitual: não as criaram preocupações ou angústias, mas sim milhares de sorrisos. Era um velho que sorria muito, sorria às coisas como às pessoas. Sorria às cadeiras vazias dos terraços, às portas fechadas das casas da cidade, às bancadas dos vendedores de fruta e de legumes. Sorria às estantes de livros das bibliotecas e das livrarias, às filas de cadernos por estrear nas prateleiras. Sorria aos bancos de jardim e aos baloiços nos parques para crianças. Era um velho que sorria muito.


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sando devagar em cada criança que povoava o parque. Os adultos que as acompanhavam olhavam o velho com uma certa desconfiança. Já as crianças, essas não pareciam dar pela presença do velho. Houve uma delas que se abeirou dele. Não parecia estar acompanhada: não olhava para lado nenhum a não ser para os olhos muito azuis do velho e para o sorriso que trazia espraiado no rosto enrugado. O velho abriu ainda mais o seu sorriso desconcertante, enquanto aquela menina de caracóis negros e tez pálida se acercava dele. “Quase não te reconhecia”, disse ela com ar sério. “Estás cheio de camadas, todas umas por cima das outras, quase que não te conseguia ver.” Os olhos muito azuis do velho reluziram, mas ele não disse nada. Soltaram-se as mãos por detrás das costas e acenou à menina dos caracóis negros, encolhendo os ombros num gesto resignado. “Como sabias que eu estava aqui?”, perguntou-lhe a menina com ar desconfiado. O velho sorriu ainda mais, enquanto as mãos respondiam que ia àquele parque todos os dias, que passava sempre pelo menos umas duas horas a pousar os olhos muito azuis em todas as crianças, à espera que ela aparecesse. “Eu já aqui estive mais vezes”, disse ela meio amuada, “mas nunca te vi. Ou se calhar vi mas não te reconheci, debaixo dessas camadas todas.” Ela sentou-se confortavelmente num banco ali perto, instigando-o a fazer o mesmo com os seus olhos grandes e cinzentos. “Nunca ninguém me disse que os anos nos cobriam de camadas, umas por cima das outras, até mal já se reconhecer quem somos.” Dizia aquelas coisas num tom despreocupado, como quem relata as mais absolutas banalidades, mas os olhos grandes e cinzentos da menina não permitiam equívocos. Aqueles olhos estavam zangados, muito zangados, “sabes quanto tempo já passou, há quanto tempo estou à tua espera?”, perguntou-lhe a menina, o lábio tremendo muito ligeiramente. As mãos do velho responderam-lhe que não tinha a certeza, porque naquele momento era como se não tivesse passado tempo nenhum, como se tivessem despedido ontem, mas depois as dores nas costas mirradas diziam-lhe que não podia ser, depois via as mãos enrugadas e quebradas pelas artroses nos dedos e percebia que já havia de ter passado muito tempo, muito tempo desde a última vez em que tinham estado juntos. Os olhos grandes e cinzentos da menina encheram-se de lágrimas salgadas, o queixo a tremer suavemente no seu rosto pálido. “Senti muito a tua falta, sabes?”, as palavras escaparam-se-lhe, quase uma confidência, mas a voz chispando-lhe num tom acusatório que, ainda assim, não era capaz de desarmar o sorriso espraiado no rosto enrugado do


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velho. “Não é lá muito bonito, esqueceres-te assim das pessoas, deixar-me a brincar sozinha tanto tempo.”, e a menina abanava os caracóis negros ao mesmo tempo que abanava a cabeça. As mãos do velho explicavam-lhe que não tinha sido assim, que ela é que tinha ficado presa no tempo e no espaço quando tinha morrido há tantas décadas atrás. “Então eu morri, dizes tu.”, retorquiu ela num tom levemente sarcástico, sim porque as crianças também sabem o que é o sarcasmo, aliás, são do mais cáustico e sardónico que há, depois a vida é que se encarrega de lhes vergar a mola, mas à menina ainda lhe escorria devagar algum cepticismo pelas palavras. “Se é assim, porque é que estamos os dois a conversar? Se é assim, porque é que dizes que vens aqui todos os dias à minha procura?” E o velho encolheu os ombros, o sorriso que nunca esmorecia a dançar-lhe nos lábios. “Costumam dizer-me que as saudades levam as pessoas a fazer coisas muito curiosas. Se calhar é mesmo verdade.”, dizia ela, os olhos grandes e cinzentos a olhar em redor, sem se demorar em parte nenhuma. As mãos do velho explicaram-lhe que sim, que isso era verdade, que as camadas que o cobriam eram na verdade mantos tecidos a saudades, debruados com a mais fina mestria de que ele era capaz. Metros e metros de um tecido fabricado com todas as coisas inexplicáveis que foi fazendo ao longo dos anos à procura dela. As mãos do velho explicavam à menina de caracóis negros ele fora tecendo aquelas camadas que o cobriam ano após ano, entrelaçando com minúcia fragmentos duma existência aparentemente normal: fora um funcionário leal e eficiente (tinha sido bibliotecário numa das bibliotecas da cidade durante toda a sua vida), muito metódico na forma como geria as rotinas de todos os livros que guardava, como era metódico a tecer as mantas que lhe cobriam as horas dos dias, camada por camada. Os olhos muito azuis do velho reluziam enquanto explicava à menina de tez pálida e olhos muito grandes e cinzentos que no dia em que ela tinha morrido, ele decidira parar de crescer. Não fazia sentido: ela, para sempre cristalizada numa menina de caracóis negros a emoldurar um rosto naturalmente curioso, e ele tinha que deixar de ser um menino? Não havia justiça nisso, não, nem sequer fazia qualquer espécie de sentido. Então decidiu ali, no preciso momento em que a viu adormecida num caixão (o caixão era tão grande para ela tão pequena adormecida lá dentro, não se deviam fazer caixões para crianças, fazem-nas muito mais pequenas do que elas são, roubam-lhes o tamanho, e se lhes roubam o tamanho então roubam-lhes a vida, são os caixões que as matam) que deixaria de crescer. Aprisionou-


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se a si mesmo dentro daquele corpo familiar, como quem arma as muralhas contra um inimigo, um invasor. Viu o tempo a montar-lhe cerco, construindo trincheiras à sua volta, mas nem por isso se rendeu. O corpo foi-se alterando, esticou e alargou, nasceram-lhe pêlos em sítios estranhos, na cara a furar-lhe a pele onde antes era suave, e a voz ficou mais cava. Não conseguiu acabar muito bem a escola, os professores tomavam o seu total alheamento como falta de empenho e até de inteligência e acabavam por o ignorar. Quase como se à medida que o seu corpo crescia, ele se fosse tornando a pouco e pouco mais transparente, translúcido ao ponto de mal se dar pela sua presença. Refugiava-se nos livros, que devorava durante tardes inteiras passadas nas bibliotecas da cidade. Os livros eram os seus únicos companheiros, os únicos com quem falava. Chegou um dia em que já não sabia falar: a sua boca emudeceu e nunca mais recuperou. “Mas tu agora estás a falar comigo.”, e a menina era tão encantadora quando não acreditava no que lhe dizia o velho, uma das sobrancelhas escuras ligeiramente mais arqueada que a outra, os lábios contraídos num esforço de compreensão teimoso. As mãos do velho agitaram-se no ar, o sorriso a tornar-se meio irónico. Para a maior parte das pessoas, o discurso das mãos do velho não era mais que um gesticular neurótico de um velho um tanto ou quanto peculiar. Ele sabia disso, e não era coisa que o incomodasse. Não sabia precisar o dia no tempo, mas a um dado momento da sua vida a voz esgotou-se-lhe. As palavras deixaram de fazer sentido impressas no som da sua própria voz; só conservavam o seu significado desenhadas no papel. As mãos do velho agitavam-se diante dos olhos grandes e cinzentos da menina, à medida que lhe tentava explicar que muito poucas pessoas conseguem compreender as palavras que a boca não diz. “Mas e então porque não tentas voltar a falar?”, perguntou-lhe a menina, levantando-se energicamente, “eu posso ajudar-te a lembrar como se fala!”. O velho explicou-lhe que não era tanto uma questão de não se lembrar, mas antes um não ter nada para dizer. Porque as pessoas só têm coisas para dizer se tiverem quem as ouça, e uma das muitas camadas que o cobria era a solidão. Pessoas sós vão falando cada vez menos e menos, afinal, as palavras só têm sentido se dirigidas a alguém. Quando ela morrera, o velho ficou sem mais ninguém que o quisesse ouvir. Foi falando cada vez menos e sorrindo cada vez mais, tanto às coisas mudas e paradas como às pessoas, as pessoas que o tomavam por tolo quando o ouviam a desejar os bons dias aos bancos de jardim e as boas noites às portas


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fechadas dos prédios, até que esgotou as palavras que trazia dentro dele para dizer. “A um banco de jardim não faz falta falar”, retorquia a menina, teimosa, “mas tu és um menino! Mesmo sem quem te queira ouvir, podes sempre falar para ti próprio. Ou tens medo de te aborrecer?” As perguntas da menina eram afiadas como agulhas, mas não faziam doer. O velho não desviava o olhar da menina, nem lhe abandonava o rosto o sorriso amplo, mas agora já eram os olhos azuis que sorriam também. Talvez houvesse de facto coisas ainda por dizer, mais que não fosse para ele mesmo ouvir. Já nem sequer recordava o som da sua própria voz, e se ele tentasse e não saísse nada, e se as suas cordas vocais se tivessem convertido em pedra calcinada pela falta de uso? As mãos gesticulavam frenéticas, mas a menina, de pé à frente dele, agarrou-lhas com as suas mãos pequeninas, meio gorduchas e muito brancas. “As palavras não moram só na nossa cabeça. Se assim fosse não existiriam tantas línguas diferentes para dizer a mesma coisa, não achas?”, e agora a menina já sorria, era um quadro tão bonito aquele rosto perfeitamente cinzelado com um sorriso a emoldurar-lhe os olhos grande e cinzentos. As mãos dela apertaram-se nas do velho, “eu sei que as tens aí, porque senão não se soltavam as tuas mãos e eu não te conseguia entender”, e agora as mãozinhas pequeninas dela agarravam-lhe o rosto, segurando-o muito perto do seu, “a solidão é como o pó que cobre os móveis velhos duma casa, basta limpares que desaparece”. Os olhos azuis do velho transbordaram ligeiramente, e ele levou as mãos ao rosto para secar as rugas sulcadas no rosto, bem fundo nos olhos azuis. Quando voltou a abrir os olhos, a menina já lá não estava. Permaneciam os mesmos adultos preocupados, as mesmas crianças ágeis, o parque era exactamente igual. Mas as mãos do velho voltaram-se a cruzar atrás das costas, e as rugas sulcadas no rosto estavam secas. O velho levantou-se do banco, as costas talvez um pouco menos mirradas, os pés a arrastar-se talvez um pouco menos. - Obrigada, Isabel. Volto amanhã. A voz do velho era cava e quase inaudível. Ele sorriu ao banco, deu-lhe as boas noites e foi-se embora.


ATLANTIDA

e o mar só existe a coincidência do amor – um néon azul que pela noite berra as cidades em furores metálicos e de dia incendeia as paisagens junto à orla.

* a nossa tragédia aconteceu. colhi as algas que estavam nos canteiros que adornavam a nossa janela. um rés-do-chão que me havias prometido numa noite sem cor, céu apocalipse, peixes a rondarem os nossos sonhos. saiam do chão, muito embora o mármore fosse novo, recémconstruído, uma casa digna deste bairro a que chamaste de Atlântida. e agora tenho apenas medo das criaturas mitológicas que passam, pois deixaram de ser transeuntes do nosso afeto. assim colhi as algas, colhi o oxigénio, queria plantar um lugar novo no fundo deste rio. mas tuas mãos emergiram à tona do desespero de um desses homens que vão de propósito salvar outros homens ao mar.

passeávamos indiferentes à forma do tempo. um beijo que se prolongava muito para além do sabor que entrelaçava as nossas bocas. ficávamos ali, fomos aprendendo a viver sem oxigénio, nadávamos por entre as ruas à procura de um lugar para fazer amor. desapareciam os becos dos heroinómanos, diluíam-se as janelas das mulheres que de tudo sabiam, o silêncio começava nos jardins dos prostitutos – pensávamos que éramos invisíveis, que fazíamos parte como uma velha arquitetura, que estávamos condensados na azáfama, que nenhum carro pararia se quiséssemos muito morrer nos braços um do outro. um momento de felicidade que se transformaria numa criatura nunca antes vista – e que não respirava, e que não tinha chão nem tecto.

aqui dentro era quase impossível distinguir os astros que pisávamos daqueles que nos iluminavam. não importavam as longas noites de frio. passávamos o tempo a fumar cigarros sobre a borda de um barco. fazias de conta que eras tu o dono desse pedaço de madeira e durante muito tempo soubeste que eras amado. muito embora conhecesses imaginasses os pescadores e as suas redes – o teu sonho sempre foi seres um deles. eram belos com os seus corpos curtidos pelo sol, as suas latas de cerveja, a voz rouca, a necrofilia de se alimentarem de peixes com peixes mais pequenos, a determinação de chegar a casa de mãos fartas. era assim que querias que eu te visse, mesmo sabendo que o outro lado da atmosfera parecia sempre mais azul.

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nesse tempo, os nossos braços tocavam-se, o peito a tragava o sal. felizmente ainda não tínhamos feridas, ainda não existia essa dor de existirmos juntos. estávamos muito longe e não existia gravidade que nos colocasse no fundo. não sabíamos que no fundo dos oceanos existiam fossas abissais, capazes de nos devolverem ao princípio do planeta. entre o céu

pensávamos que éramos invisíveis, anónimos, caóticos, pontos de escuridão: o medo de caminhar sozinha à noite, de se olhar para trás, e não existir ninguém. achávamos que estávamos a salvo, que ninguém daria pela nossa presença. ninguém suspeitaria de nada, o prolongamento dos nossos corpos atravessava o que já não se sabia possível. talvez tenha sido esse o nosso erro, achámos que enquanto não respirássemos – seriamos invencíveis. o barco esteve sempre parado, parecia que não pertencia a ninguém. supusemos que o pescador havia morrido só e sem amigos. que o barco era inventado. que o rés-do-chão existia dentro dos pulmões, que a Atlântida era um mistério para qualquer um que se atravessasse no nosso caminho. * do outro lado da margem vivia um homem numa pequena cabana, num pedaço de terra feio, industrial, onde o mar tentava pintar a desolação. levantava-se com o sol e via ao


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aproximou-se devagarinho. a água fria nas solas dos pés, as pedrinhas, as areias, tudo parecia novo naquele gesto. o barco estava pouco mais ao longe, teria que nadar para alcançar aquela figura súbita. fechou os olhos no instante em que se debruçava para chegar ao seu barco e quando os abriu. ela tinha desaparecido. segurou-se sobre os remos, a água à altura do tronco, o fato negro a arrefecer o corpo. olhou em todas as direções para tentar ver onde estaria a figura. a figura que abalara por completo tudo aquilo que sabia do mundo.

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entrou dentro do pequeno barco. mexeu os remos. tentou alcançar com os braços a profundidade do mar. olhou sob o horizonte, ao fundo, o nevoeiro que o deixava ainda mais só. a beleza do instante haveria de o perseguir. pensou que talvez fosse uma sereia, um fantasma, uma fada, uma qualquer criatura mística. há muito tempo que não estava dentro do barco. há muito tempo que não fazia parte da sua própria memória. e isso exaltava-o numa mistura de si mesmo com a fantasia de algo distante – irremediavelmente visceral. decidiu que remaria até voltar a encontra-la. que o mundo já mais voltaria a ser tão perfeito como era. pela primeira vez seria capaz de sonhar – e isso deu-lhe a força necessária para começar a remar.

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foi num dia de chuva miudinha. olhou pela janela e logo começou a sentir dentro de si o movimento da lassidão, da tristeza que nos torna seres superiores. vestiu-se. bebeu leite. lavou a cara, a boca, as mãos. recomeçou a rotina que os dias cinzentos trazem ao mar. abriu a porta à espera de ver o seu horizonte imodificável. Espantou-se. olhou melhor, o coração a bater

os cabelos molhados, as vestes brancas a definirem uma silhueta encolhida. o cabelo negro a escorrer como se fosse uma mancha nova num lugar imutável. a cabeça dela como quem chora. o barco transportando algo subitamente novo. sentiu a barriga cheia de peixes, algas, um fio de luminosidade a verter. os olhos abertos sobre o coral. a mulher no seu barco a cortar a paisagem ao meio. uma Luz a cobrir o quadro, a visão de sempre subitamente degolada. o mundo acabara de lhe mostrar numa nova cor. o seu pensamento deixou de ser infinito e principiara a ser livre.

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por vezes era possível vê-lo com os pés descalços sobre a areia. a água fria que ia e vinha. nada mudava no lugar onde dormiam os seixos. achava que a vida seria todo aquele momento parado, que nada existiria para o fazer mais triste ou mais feliz. nunca pensou em abandonar aquele instante. apenas se limitara a existir perante o imutável. tudo o que havia à sua volta era uma continuação do infinito em que estava o seu pensar.

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vestia fatos pretos e possuía uma tez de cal. o mar que via era só uma ideia de beleza que tentava fielmente reproduzir. não era tal como se apresentava. umas vezes o barco era memória de infância. outras vezes era luto pelos homens da família. outras seria aquilo que um dia teria coragem de ser. apontava tudo em cadernos, folhas de papel, agendas velhas, num qualquer pedaço de guardanapo. navegava sozinho pelos poucos livros que possuía – nunca havia esgotado nenhum deles. mesmo quando dobrava as folhas, sublinhava as palavras mais belas, as imagens de sítios longínquos. reescrevendo as maravilhas em cima do caos em que havia assumido a sua vida. nunca ninguém lhe havia dito que isso, esse estar, se chamava poesia.

junto à garganta. o céu escuro, o mar revolto, o barco. uma mulher.

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fundo o seu pequeno barco a remos. olhava com a tristeza a marejar a paisagem. nunca na vida seria como seu pai. ou como o pai do seu pai. mas todos os dias acordava e mirava o horizonte. umas vezes a chuva dava-lhe uma sensação de melancolia. outras vezes radiava e ele esquecia a solidão. não nascera com vocação de ir ao mar, nem de encontrar uma mulher em cada porto, nem de se embriagar ao final do dia.


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tento esclarecer as constelações. encontrar o momento para o princípio da tragédia. a nossa memória era apenas mais um mergulho profundo. colhíamos da cidade um lugar em que eramos os dois. estava cada vez mais profunda. os seus habitantes uns entre os outros. peixes pequenos que temiam peixes grandes. que por sua vez não acreditavam em predadores. a claridade da água diluía o medo de todos os seres. as estradas não possuíam destino. e casas abrigavam uma ideia de existência. movimentos rápidos à velocidade de uma luz inexistente. amar-te neste fazer de conta era a certeza de ainda estar viva. a água emergia da sintonia rara em que nos escondíamos. foi assim durante tanto tempo que julguei que fosse durar para sempre. perto do barco, tivemos as conversas mais tristes. murmurávamos. o barco era a única forma de abandonar aquela cidade. submergíamos de novo para um abraço. voltávamos à cidade de mogno esculpido, corais persas, estradas de pérola rara. só havia uma lei: deixar os bancos dos jardins cair no esquecimento. as árvores davam flores venenosas. toda a gente sabia como preparar bebidas doces para contemplar sonhos de ópio. mas nenhum peixe dormia – eram todos iguais – se um se esquecesse das suas próprias barbatanas, logo seria substituído por outro, mais audaz. chamavam-lhe anonimato. qualquer face era a face de um cardume. por isso tinha sido tão fácil escapar à convenção daquela cidade. as maravilhas não inquietavam os seus habitantes. ninguém queria saber do que se tratava o brilho nos olhos humanos. as lágrimas eram feitas da mesma matéria que o mar. os sonhos estavam destinados a serem a pedra de um ricochete, caindo lentamente – uma das matérias mais vivas de Atlântida. a noite chegava sempre para nos mostrar o recanto mais silencioso desta cidade. eu usava um vestido branco e tinha ao peito uma chave de latão. andávamos com os pés desnudos, não precisávamos do chão, do caminho, da estrada. de nenhuma invenção para o tempo

que passava. a cidade havia-nos oferecido uma casa. a minha chave não abria essa porta. a casa só possuía janelas. longos reposteiros do mesmo tecido do meu vestido. a minha nudez só começou a existir quando te conheci. cobri-me para que me despisses. fechavas os reposteiros para que pudéssemos fazer amor. essa era a fina malha que me oferecias para que fosse só tua. uma prisão da cor da claridade. brancura das conchas, dias que flutuavam em leite e cal. voltávamos amiudamente para o barco. logo de seguida fazíamos promessas que nunca mais lá voltaríamos. eu chorava e tu principiavas a remar. PÁRA. vamos ficar aqui, vamos voltar para água, vamos nadar o mais longe possível. quero o que vive dentro de ti. dás-me a tua boca e de novo voltamos para o nosso rés-dechão. os canteiros de algas. os bichos aquáticos. o raio de sol sobre os nossos corpos. a leveza do azul que parecia penetrar o futuro. uma cidade inteira onde podemos resistir às contrariedades do amor. abria os cortinados. a madrepérola embaciava a escuridão com que se punha a noite. do lado de lá um homem parecia absorto. uma noite invulgar em Atlântida. o primeiro homem que se via puxado para o abismo. possuía uma gravidade gasta e muito velha. não seguia com o cardume para parte incerta. inclinava-se numa velha rocha vulcânica. a única claridade daquela rua surgia do rés-do-chão. olhou para a janela. encontrou-me e subitamente ficou sem oxigénio. ocorrendo, nadando, puxando o corpo forte e pesado, o mais depressa possível de encontro à tona. foi assim que começou a nossa tragédia. * remava com os olhos postos no horizonte. a névoa assombrava o destino. sentia-se nas margens do Estige. aos poucos começara a ficar cansado e com fome. por momentos achou que morreria ali. que o seu barco ficaria permanentemente no limbo. mergulhava a mão na água na esperança de agarrar outra mão. uma criatura idílica estaria para sempre no encalço


* o meu nome é Penélope. disse-te ao princípio, quando te encontrei no banco de jardim. o teu rosto iluminou-se. pegaste num pequeno caderno e escreveste. Penélope. era assim que começava o teu poema. ofereceste-me a chave de latão e disseste que ela impediria o esquecimento. que voltaríamos depressa ao princípio. a tua língua sabia à maresia da juventude. e que um dia serias muito velho e eu estaria cristalizada para sempre naquelas folhas. ou se nunca tivesse existido. ou se fosse a morte a pregar partidas. que voltarias de novo ao barco

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até ao momento em que ouviu o seu riso, o seu vestido branco, a chave de latão ao peito, uma súbita Primavera a fazer nascer frutos nas árvores, pássaros em ninhos de prata, animais demasiado pequenos para o amor que estava dentro dos seus peitos. e subitamente voltava atrás três décadas na sua vida. sentado num banco de jardim para o qual ela parecia ter reparado. só existia porque ela o contemplava. os cabelos negros a fugirem como corvos estonteantes. os dentes brancos a cobrirem o rosto como amendoeiras em flor. olhos verdes, muito próximos da memória que um dia teve.

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o outono dissecava as árvores, o tom do céu, o frio que fazia durante a noite. dormia num banco de jardim e sentia-se invisível. as suas barbas haviam crescido e os cabelos ficaram grisalhos. o fato preto era agora um andrajo feio. havia esquecido que há muito tempo atrás havia sido só ele, o mar e um barco. havia esquecido a criatura mística que se atravessara no seu caminho. já não esperava nada da vida. nem existia qualquer sentido em povoar os papeis de ternas palavras. a cidade havia votado o poeta ao seu próprio esquecimento. o tempo passava sobre ele, agora, para o recordar do seu próprio fim.

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à medida que caminhava o seu fato preto secava, a fome diminuía, a sede transformavase numa melancolia persistente. queria apenas registar a forma como o dia era esperança cobrindo a cidade de múltiplas histórias. ou como a noite tragava os miseráveis concedendo-lhes novas oportunidades. andava. andava. andava. não existia bréu mais belo do que aquele que se iluminava com eletrificantes vícios humanos. as ruelas cheiravam a uma mistura de mar e sexo. tons salgados sobre a boca de homens habituados a efémeros desejos. ali jamais encontraria uma criatura tão pura como aquela que o fizera começar a sua viagem. começou a entender um pouco acerca do mundo. aquilo que nos faz caminhar é a idealização do futuro. futuro que se realiza no longínquo do ponto de

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abriu os olhos pela força da luminosidade. o sol estava alto e era doloroso. olhou à sua volta e viu uma cidade inteira prostrada ao longo do horizonte. atirou-se à água para nadar até à orla. um homem secava a rede de pesca num pequeno pedaço de areia. perguntou-lhe que lugar era aquele. acabara de chegar a Lisboa. as suas roupas pingavam. a fome e a sede possuíam a forma de gigantes. o barco caíra de imediato perdia-se no mar. temia esquecer o propósito de tão longa viagem. olhou à sua volta e viu mulheres belas, de longos vestidos em cores de veludo ocre. tudo resplandecia o tom do ouro. os edifícios eram imponentes como se tivessem pertencido a uma civilização antiga.

partida. e o seu coração desfazia-se como o entardecer. a tristeza envolvia-o porque o destino estava longe da sua fantasia. aquela cidade não representava a beleza tolhida que um dia existira dentro de si.

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sua esperança. tinha sede, apetecia-lhe beber a água do mar. resistia e remava. na sua mente haviam passado já muitos dias desde que começara aquela viagem. não sabia sequer qual seria o seu destino. as noites eram frias, mas o céu parecia criar mapas infindáveis com as estrelas. na sua imaginação conseguia ver o rosto da sua ninfa ligada por pontos brilhantes na escuridão. mergulhou a mão no mar mais uma vez. a sede falava no mesmo tom da nostalgia. inclinou-se e sorveu a água salgada como se fosse a boca de um recém-nascido. deitou-se no barco e contemplou aquilo que lhe parecia ser a sua morte.


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para me ofereceres um rés-do-chão num lugar inóspito. onde o mar cobriria o meu corpo com a mesma água que te trouxe a mim. se fosse apenas uma miragem, então seria para sempre um bocado do sítio de onde vieste.

fui à tua memória e vi ao longe o homem que

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chegaria incólume ao barco para te procurar. perseguia o tempo em que foste um homem feliz. queria devolver-te a memória da juventude. procurei-te no último reduto da minha imaginação. mas provavelmente nunca havias sido tão novo como quando te encontrei. ia atrás das tuas confissões. dos pescadores, dos primeiros poemas, das contemplações distantes. em como haveria de chegar o dia em que me encontrarias. fui ao passado para que te pudesse salvar. para que soubesses qual seria o meu rosto no meio da multidão. para que recordasses as possibilidades infinitas do meu carinho. o tempo não existe enquanto me puder socorrer das palavras que escreves. ao longe. a distância é apenas um fio etéreo que nos reconduz de volta ao mar. Atlântida só é fiel aos que nunca morrem – e nós já eramos eternos desde o momento do começo da narrativa.

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fomos até à margem e nesse momento a calamidade assombrou o dia. muitos haveriam de morrer consumidos pelo mar. não sabíamos onde começava o nosso século e onde acabava o azul dimensional deste lugar. uma oferta dos deuses nas nossas mãos, para que existisse uma probabilidade na coincidência de um afeto. mergulhámos juntos, como se tivéssemos ensaiado a nossa morte. logo desaparecemos juntos para dentro daquilo que seria o abismo do amor. o abismo do mar. o abismo da cidade. submergindo ferozmente a ideia de felicidade. não se pode subsistir muito tempo sem dor. quando deixássemos de ser os dois, passaríamos a ser a metade amputada de uma fantasia. e isso haveria de durar uma vida inteira. durante muito mais tempo do que aquilo que chamariam de um para-sempre. quando esquecêssemos todas as promessas, relembraríamos apenas a essência do fim.

um dia foste. foi assim que começou a nossa viagem. estava longe de saber que também, um dia, tu voltarias ao passado. e que viesses buscar o homem que conheci. de volta ao banco de jardim. de volta à cidade submersa. um dia. muito velho. * haviam prometido qualquer coisa de superior ao tempo. por isso conseguiam deslocar-se para lugares que nunca existiram. um amor em Atlântida. a infância junto do mar. os pescadores que escreviam. as criaturas míticas em que se haviam convertido. os peixes multicolores. corais de hedonismo. um amor que era injetado em pulsos de marfim. sangue de oricalco. pulmões convertidos em flores azuis. o tom pálido da morte. boca sorvendo boca para que pudessem sobreviver. corpos com a leveza de uma caravela portuguesa. dançando pelas ruas. onde substituíram os indigentes por tritões. os homens andam no encalço da voz das sereias. eternos vícios de harpas douradas. o rosto envolto pelos cabelos. fluído negro que corrompe as cidades. petróleo arco-íris que é a moldura do rosto amado. descer às profundidades para que nada mude. para que o navio afundado guarde o melhor do que foram. repousando ilustremente sobre a areia dos mortos. ele havia encontrado a figura do futuro. um mendigo de sonhos que havia perdido a mulher que amou. tinha chegado para finalmente carregar o seu corpo de novo à superfície. para que voltasse ao princípio: um barco recordando uma mulher triste. tinha a certeza de que reconheceria a felicidade quando a visse. mas só a melancolia é rainha para esses homens que vão sozinhos ao mar. e quando despertou viu um sorriso com mil anos de espera. ele esperava à janela porque ela sempre passava por lá. fazia rir os canteiros. abria as janelas. cantava como um canário belga. e ele escrevi este longo poema. para dizer adeus. teria que nadar depressa. ela olhou através da janela. ele imaginava que ela ainda estaria lá. longe de saber que nunca se fora embora. que


a invisibilidade era a noite a cair para amantes em cristal. a chave pertencia a um lugar sem porta. abriria o peito dele de volta à vida. a casa estava trancada permanentemente em Lisboa – mas em Atlântida era o último resguardo de ambos.

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de repente foi como se nunca nada tivesse existido. e ele emergiu para procurar o barco. ela já o havia levado para o tentar encontrar. o tempo é a pior ferida para quem ama. existe para mostrar que a convenção é mentirosa. ele submergiu. ele olhou para dentro daquela casa. já muito velho. pesado. de barba e cabelos grisalhos. não viu ninguém.

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Esta era a sua carta de amor nas margens do Estige.

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foi por isso que caminhou de volta ao esquecimento. sentado num banco de jardim. a comer as tóxicas flores das árvores. doces sonhos sobre Penélope. principiou a escrever um poema. uma carta de suicídio nas margens do Tejo. a voz de uma mulher que parecia a ninfa da sua juventude. olhou sobre o horizonte. jamais nada se pareceria com a paisagem que tinha inventado. os poemas serviam apenas para pintar a ausência de todos os barcos.


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Os seus passos são estranhamente decididos. Tão decididos que nem parecem ser os seus. Como é que uma pessoa sempre tão indecisa, como era com os vários aspetos da vida, podia ser tão decidida quando caminhava rumo àquele fim fatídico? Aparte do desfecho fatal desta sua curta caminhada, desde o local onde estacionou o automóvel até à borda da falésia, um forte sentimento paradoxalmente agradável de liberdade e autodeterminação acelera-lhe os batimentos cardíacos, impulsionando-lhe vigorosamente o sangue dentro dos seus vasos, excitando-lhe a mente e libertando o movimento das suas pernas. Sente-se como se estivesse mais uma vez em frente ao seu cavalete de pintura, algo que já não

ocorria há muito tempo. Só nesses momentos sentia esta excitação, principalmente quando as ideias, que se formavam facilmente na sua mente, ganhavam forma material nas suas telas. Todas as suas criações eram autênticas obras-primas. Mas neste momento, a obra-prima que vê à sua frente é aquela paisagem estonteante sobre o mar, aqui e além as agitadas águas prata-me-


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tálicas revolvendo em assustadoras ondas de cristas brancas, batendo pungentemente contra os rochedos das arribas. Uma tela animada, portanto, fazendo lembrar um daqueles espaços públicos virtuais ou filmes rodados e apresentados em 5D, muito comuns nesta época, onde a realidade virtual deixara de o ser. O barulho intenso das ondas do mar entrelaça-se no ar com os uivos arrepiantes do vento, parecendo penetrar pelos ouvidos dentro e chegando aos tímpanos em forma de agulha. Conseguimos concluir, desse modo, que esta cena não se trata apenas de um fil-

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por Fr ancisco d’Oli Gonçalves

me ou realidade virtual, mas de realidade pura, nua, crua e tenebrosamente dilacerante, pois, apesar de nos conseguirmos mover dentro de um filme 5D ou de um qualquer ambiente puramente virtual, os especialistas em tecnologia ainda não conseguiram, por exemplo, fazer com que os espectadores-participantes desta nova geração de filmes conseguissem alterar o rumo das histórias apenas com o poder da sua mente ou ter estas sensações tão intensas que ele agora experimenta. Que ideia absurda e fantástica! Ao mesmo tempo, é bem provável que já se estivesse a trabalhar nisso, em algum desses fantásticos grémios de génios pensantes, para os quais o nosso protagonista já havia sido convidado por várias vezes, por várias vezes o tivesse recusado, por várias vezes tivesse sido considerado louco por isso. Apesar de tudo, beneficiava ainda de uma réstia de livre-arbítrio, em oposição a todo o resto da humanidade que o acompanhava naquele planeta no tempo e no espaço. Estamos numa época na qual todo o ser humano acaba sempre por abdicar desse direito, de forma muito espontânea, sem remorso e sem divergência, mercê do usufruto total e completo de momentos únicos e irrepetíveis numa realidade alternativa onde tudo é belo, leve, limpo e solto. Uma realidade bela onde cada um escolhe a aparência com que pretende iludir os outros. Uma realidade leve onde os problemas não entram e onde a existência do trabalho e dos prazos não faz qualquer sentido. Uma realidade limpa onde o ambiente “virtual-natural” continuamente se regenera e a poluição é apenas um pesadelo vivido naquela outra realidade, a real, onde é difícil viver, sobreviver e prosperar. Uma realidade solta de qualquer adversidade, de qualquer preconceito, de qualquer ignomínia, de qualquer sina, fado ou fatalidade. Um mundo perfeito! Bem, quase-perfeito… ainda que de designados génios emanado, é previsivelmente limitado por essa inescapável condição humana dos seus criadores. Essa seria então, e apesar de tudo, uma realidade boa para se viver. Assim o percepcionam esses mentecaptos seres abdicatários de livre -arbítrio, que se deixam envolver nesses mun-


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bientes virtuais. Tudo começou quando, certa noite, um grupo armado de homens absolutamente gigantes e inchados de músculos, cobertos por umas armaduras intransponíveis balística e visualmente (só se lhes reconhecia mesmo o tamanho e a musculatura), irromperam pela sua casa móvel pré-fabricada e levaram tudo à sua frente, inclusive o seu pai, procurado há anos como génio dissidente. Levaram e destruíram mesmo tudo, deixando para trás apenas alguns móveis, utensílios básicos, o cavalete de pintura e algumas telas antigas na cave da casa, onde, desde pequeno, o seu pai o ensinara a pintar e a expressar as suas ideias, quer estas fossem baseadas na realidade factual, quer fossem totalmente imaginadas, dizendo-lhe muitas vezes: «Na Arte, tudo é possível! Podemos criar o nosso próprio mundo». Um dia, já mais crescido, ganhou coragem para lhe perguntar: «Mas pai, não é verdade que só os génios podem criar mundos e ter ideias?», convém não olvidar que o nosso pintor foi uma criança atípica que cresceu num mundo totalmente submergido noutro, de índole mais tecnológica, onde as crianças e jovens não cresciam a aprimorar as suas capacidades criativas e, até, racionais, uma vez que não eram incentivados a isso (os próprios pais não tinham sido incentivados e, portanto, essa seria uma questão que nem sequer se poria, pois não tinham capacidade para a levantar). Todos sabiam que as suas vidas eram plenamente controladas por esses “génios”, mas ninguém sabia muito bem quem seriam, onde moravam ou como viviam. Alguns já os chamavam mesmo de “deuses”. O pintor teve o azar (para ele, sorte seria ser mais um rapaz banal no meio de todos os outros) de ser filho de um génio dissidente, como já sabemos. Sabemos nós e sabe ele agora, mas nem sempre assim foi. Só depois da demolidora e musculada intervenção daquele grupo de agentes é que a sua mãe lhe contou toda a verdade, de como jovem plebeia, sendo ainda bastante curiosa por descobrir todos os meandros do mundo virtual, foi encontrar uma referência digital deixada ao acaso, por erro, do perfil de um jovem génio ainda em formação. Curiosa como era, acedeu a esse link perdido

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dos virtuais e virtuosos, criados por meia-dúzia de eleitos artificialmente selecionados, que mal nascem, e herdando as características genotípicas de dois seres idealmente geniais, homem e/ou mulher (convenhamos que a procriação assistida, como hoje a conhecemos, evoluiu de forma exponencialmente vertiginosa, e os fetos crescem produtivamente saudáveis em bolsas amnióticas de laboratório), são colocados em crescimento e maturação num canto desconhecido do mundo, num ambiente idílico onde muitos recursos do planeta são intensivamente gastos para que aquele permaneça o lugar mais intocado desta esfera conspurcada azul-poluição. Mas acontecia, por raríssimas vezes, por obra e graça do simples acaso, que um génio viesse a nascer no seio de uma família comum da população geral e, quando identificado e localizado, iniciavam-se imediatamente uma série de contactos com a família plebeia que, normalmente, aceitava de jubiloso agrado entregar o seu filho em mãos alheias, acreditando que mais que infantes, tinham sido os progenitores de uma divindade. Não estavam de todo errados, uma vez que esse elemento da sua prole seria, um dia, um dos criadores do seu maravilhoso mundo cibernético. Levanta-se assim uma questão pertinente: se esses génios estão todos reunidos num só lugar desconhecido e são entregues de bom grado pela família se forem concebidos naturalmente, o que faz este génio sozinho ali, percorrendo aquele mesmo caminho repetidas vezes, de trás para a frente e de frente para trás, desde o seu automóvel até à borda da falésia? Não deveria estar ele a trabalhar no desenvolvimento dos mundos virtuais dos outros, concebendo ideias e transformando-as em novos produtos largamente consumidos pelo resto da população? Sejamos muito francos: este nosso pintor sente-se sozinho e abandonado porque quer, pois desde que o seu excepcional talento criativo foi descoberto por um grupo de agentes de intervenção, recebia contatos persistentes por diversas vias pedindo-lhe encarecidamente, repito, pedindo-lhe encarecidamente que se juntasse às equipas de génios criadores de am-


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e os dois entraram assim, pela primeira vez, em contacto. Apaixonando-se, mais tarde, a única forma de ficarem juntos fora do mundo virtual era o jovem génio fugir do seu grémio de génios, nesse local idílico onde estes se concentravam, alterando, claro está, a sua identidade durante o processo. Uma história de amor extremamente bonita e fascinante, pela qual o seu fruto, o nosso pintor, sentia repúdio e vergonha. Enquanto ia fixando os suportes às rochas da falésia, distribuídos por toda aquela extensão do promontório que os seus passos anti-vento e as sua força anímica contra-stress conseguiam alcançar, e colocando cada uma das suas obras-primas em todos esses suportes, o pobre pintor questionava-se como tinha o pai conseguido sobreviver num mundo bipolarmente oposto ao seu, sendo inevitavelmente incompreendido por todos, até pela própria esposa que, a bem da verdade, acabou por se tornar a sua musa-cobaia. Uma primeira característica desta definição composta é perfeitamente compreensível, já que todo e qualquer pintor tem sempre como referência algum ser inspiracional, real ou imaginário (este pai-génio aprendera todos estes conceitos durante a sua formação de génio, nesse lugar idílico anteriormente mencionado). Mas cobaia? Porquê cobaia? É relativamente fácil chegar-se à conclusão de que um verdadeiro génio não se dedica a uma e uma só atividade. Pintar é muito bonito, libertador e extremamente gratificante, mas não chega para preencher a alma espontaneamente indagadora de um génio. O pai do pintor, para além de pintar, estudava o comportamento dos seres humanos

plebeus e escrevia algumas das suas conclusões no seu diário. Esta constituía uma atividade clandestina e mais disfarçada para evitar as atenções alheias. Só quando ouviu a verdade proveniente da voz emitida pela sua mãe, articulando as palavras custosamente, pensando demasiado nelas para que lhe saíssem com sentido, é que o nosso pintor veio a descobrir este empreendimento do pai. Nesse momento, sentindo muita dificuldade em articular as frases, a sua mãe estendeu-lhe um pequeno tablet, do tamanho de um bloco de notas de folhas A6, e disse: «O teu pai quereria que tu lesses o seu diário». Esta era uma mãe frágil que sofria as consequências da sua cumplicidade na fuga e omissão da identidade do companheiro. O mundo não era assim tão pernicioso que levasse as pessoas a serem presas por amar, mas foi condenada a viver para sempre com o remorso de ter enfrentado o sistema e ter posto em perigo milhares de vidas humanas que beneficiariam com a atividade do companheiro como criador de mundos virtuais, para além de ter sido transferido para as suas memórias (tudo isto através de um comprimido que foi obrigada a tomar e cujo princípio ativo atuava especificamente no seu hipocampo) que o destino do companheiro de prisão, condenação e morte, foi por si provocado e se culpas havia, ela as assumiria. Durante anos, o jovem pintor ignorou completamente o diário digital do pai, sendo muito mais tangível sentir a sua presença junto ao cavalete e às telas, pintando. Decidiu procurá-lo após a morte da mãe, num daqueles atos de desespero à procura de qualquer coisa que lhe aliviasse a angústia e a solidão. Foi nesse diário que descobriu as experiências do pai: procedimentos, participantes (que desconheciam completamente que o eram), notas, pesquisas, tentativas de formulação de hipóteses que explicassem os fenómenos observados e até equações matemáticas. A última hipótese que o pai havia registado, após tantos anos de estudo e observação dos comportamentos dos participantes, especialmente da sua mãe plebeia com quem o pai génio partilhava a sua vida quotidiana, residia no facto de o pai acreditar que ainda era possível que o ser humano normal, o desig-


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alguns suportes com as telas já colocadas, voltando até eles para os enterrar mais firmemente no solo da falésia. Espalhara aleatoriamente as suas obras de costas voltadas para o abismo. O estalido da viatura voadora parecia estar cada vez mais próximo, mas à medida que o seu som se intensificava, outro som acompanhava o mesmo crescimento sonoro, abafando -o. Era o som de passos na gravilha. Muitos passos, dezenas, se não centenas, de passos. Alguns desses passos afiguravam-se mais sincronizados, fazendo lembrar um batalhão de militares em marcha. Com todos os seus quadros posicionados nos seus respetivos lugares e visíveis a uma distância considerável, o pintor ocupou o seu lugar junto à borda da arriba. Com alguma dificuldade, conseguiu distinguir ao longe a multidão que se aproximava cada vez mais, todos juntos, como um exército de sonâmbulos, agarrados uns aos outros, pois haviam-se desabituado à violência libertadora do vento. Como as suas obras, dorso apoiado no nada que existia atrás de si, que era o vento, o pintor vislumbrava as caras que reconhecia da rua, num dos raros momentos em que, assim como ele, alguém saía à rua; outras caras totalmente novas, deviam ser os mais viciados na virtuosidade do mundo virtual. A multidão parou a uns metros das primeiras telas, estupefacta. Nas suas feições carcomidas surgia uma expressão de total estranheza: que seriam aquelas coisas tão bonitas, tão coloridas e tão reais? Apesar de tudo, o pintor sentia-se aliviado por toda aquela gente de aspeto tão pestilento e decadente ter respondido, ainda que ludibriada, ao seu último grito de esperança. A ideia de colocar uma mensagem no mundo virtual, informando todos os humanos-avatares daquela região que uma nova tecnologia de criação de mundos alternativos, onde tudo ainda pareceria mais

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nado plebeu, fosse capaz de recuperar o seu livre-arbítrio, fosse este desconsiderado há anos ou que nunca tivesse existido, como acontecia com as novas gerações. Segundo ele, essa possibilidade ainda se encontrava inscrita nos genes de todos os membros da família humana, mesmo nas novas gerações que nunca o tinham experimentado, encontrando-se apenas silenciada a sua expressão fenotípica. No entanto, a sua conclusão era que, após alguma ligeira estimulação do pensamento e da imaginação, um acontecimento muito drástico, daqueles que não ocorriam há décadas, seria a ignição necessária para atear a chama tímida que ainda ardia nas almas alienadas dos plebeus, metaforicamente falando, porque o pai conseguiu comprovar que esse acontecimento fatídico e redentor levaria a uma descarga elétrica considerável nos neurónios cerebrais adormecidos no hipocampo e, mesmo que o efeito não fosse imediato, essa memória acabaria por levá-los a questionar a realidade existente. Não estava patente no diário a razão pela qual o pai dedicou tantos anos da sua vida nestas investigações. Talvez a razão residisse no facto de que, num mundo diferente do seu, era o único capaz de constatar que a humanidade caminhava demasiado alegre e feliz para o seu fim. Poucos anos restavam ao planeta no fornecimento de recursos naturais e, ainda que as pessoas vivessem confortáveis na sua realidade alternativa, nos raros momentos em que ressuscitavam para a sua vida real, a decadência e a podridão eram demasiado evidentes. Mas ainda havia esperança! Uma esperança que não residia no interior do ser humano (afinal, este já não estava apto a mudar por si próprio), mas em algo exterior que poderia concretizar essa mudança interior. O nosso pintor, sozinho, pois sempre recusara os insistentes convites para integrar um grémio de génios, tendo como justificação interior o facto de não se rever em nenhum dos dois grupos possíveis, não tinha, agora, nada a perder. E era este o objetivo desta sua azáfama fatal na falésia: salvar a humanidade! Ao fundo já se ouvia o estalido ultrassónico de um modelo aéreo das viaturas policiais, trazido pelo vento, vento esse que derrubava


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belo, mais leve, mais limpo e mais solto, havia sido criada, mas que, para lhe acederem, teriam de se desconectar do mundo virtual antigo e encaminhar-se para um local específico, tinha sido do seu pai. Estava tudo efetivamente escrito no diário; a única diferença era que a pessoa que deveria estar no seu lugar era o seu pai, e não ele. A viatura voadora da polícia sobrevoava a uns escassos pés daquela cena e a multidão abriu uma brecha a meio para deixar passar os enormes militares que marcavam o ritmo compassado que ouvira antes. Pareciam os mesmos que tinham levado o seu pai, anos antes, mas este era um mundo em que nem tudo o que parece, é. A multidão encontrava-se completamente imóvel e absorta olhando os quadros. Os militares apontaram-lhe os lasers verde-fluorescente das suas armas, prontos a disparar. O pintor respirou fundo e gritou: «Na Arte, tudo é possível!», deixando cair o peso do seu corpo no abismo.


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Combustão O homem do gás passou e o som da campainha ecoou. Tanta coisa dentro e nenhum calor emanou. Era um corpo sem corpos, uma vida de cacos. Com os pedaços de uma alma em frascos.

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De mim, dentro de mim, conquisto o mundo. Posso ser Matrioskas, Medusas ou Medeias. E se o gás acabar, fecho os olhos para mergulhar, na minha mente à procura de ideias.

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Eu quero partida, arranque, saída. Palavra em voo rasante, pintando areia ou monte. Voarei com ela, de parapente ou aguarela, Certa de que só assim a vida é bela.

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Para quê ideias, poeta? Que trazes realmente em ti? Queres calor, chama, vela. Viver talvez numa novela... representar para não existir?


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MÃOS

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A curvatura das costas acentuava-se de dia para dia. Era da apanha da fruta, das vindimas, dos filhos, das regas e das podas. E dos sonhos, enterrados. Custava a levantar da cama, não porque lhe faltasse a vontade, fruto das repetidas insónias, mas porque o esqueleto já lhe pesava mais que a carne. Envolta em voltas inúteis, que só a afundavam mais no calor mole do colchão, deteve o olhar no lugar ao lado, vazio e frio. Como numa casa desabitada, que parece mais vazia e mais fria do que realmente é. Os tímidos raios de sol espreitavam pelas frestas das portadas velhas, carcomidas pelos sonos não dormidos. Mais uma volta e lá se ergueu, lentamente, sem pressas porque a vida já passou. Sentia o esforço rígido de cada articulação, merda para esta carcaça, que já está hirta e com caruncho, quem diria, eu, dizia para si. Já estou mais para lá do que para cá...(suspirou) Levantou-se de pés ao arrasto e foi abrir as portadas. Numa tentativa mais penosa, abriu também as janelas empenadas, de madeira inchada. Como ela, mas de cara. Entrou ansioso o gato preto, visitante assíduo das horas matutinas. Anda lá gatinho, era o nome que lhe tinha dado, e bem, era o que ele era, um gatinho. Um de pernas ágeis a fazer-se lento, e a outra de pernas demoradas a fazer-se rápida.

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7:00

Subiu os degraus rachados e gastos, dos tempos em que lá havia azáfama. Dos almoços de domingo, dos filhos, dos netos, das noras, dos genros. Das festas. Do cheiro a assado e da correria das crianças, olha lá que vais cair. Barriga cheia, companhia desfeita. E o gatinho acompanhava cada passo manco,

que pareciam dois. Na cozinha, num prato castanho, sem par, deitou os restos de ontem que lhe tinha guardado. Depois, na chaleira, a água até ferver. Enquanto isso coçava os olhos estremunhados, bocejava uma boca oca e procurava o lenço de pano onde se costumava assoar. Este frio não perdoa. O sol de Janeiro mata a velha ao soalheiro, sorriu. A água já chiava e o gato miava. Numa chávena deitou a cevada, e noutra o chá. Cá fora, o pão esfriava debaixo do sol de Janeiro, pendurado no puxador da porta. No tabuleiro pôs o chá e duas bolachinhas. Daquelas que ela sempre gostou. Desceu e atravessou o corredor de soalho deslavado do sol, que rangia a cada passada. Estaria ainda a dormir, perguntava-se. Não ouvia ruído, só o burburinho desamparado das memórias daqueles domingos, que já iam longe. E não vinham mais. Perguntavase porquê. Por que razão uma casa cheia fica vazia, assim, num abrir e fechar de olhos, que agora só as lágrimas consolavam. Entreabriu a porta, que mesmo assim deu sinais de si. Trouxe-te o chá, enquanto se aproximava da portada. Olhou para ela. Deitada, como uma menina outra vez. Pequenina. Não lhe via os cabelos brancos, nem as rugas, nem o corpo a definhar. Via só a menina. Entreabriu os olhos e sorriu. A irmã deu-lhe o chá com cuidado, arrefecendo-o na colher com um frágil sopro. Só não quis comer porque queria esperar pelo pai, que teimava não chegar. Tens que comer, ele já vem, vem mais tarde. Não. Num gesto lento, levantou- se da borda da cama e quis ela também esperar pelo pai. Já sou mais velha que o meu pai. E que a minha mãe. Já sou mais velha do que tudo o que sou. 9:00 Voltou para a cozinha e tomou a sua cevada.


de uva em jeito de segredo. Olha que o meu homem não é desses. Isso pensas tu. É, eles são todos iguais, olha o meu. Procurava a enxada. Ia jurar que a tinha deixado aqui. Que raio, onde se pôs a safada.

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É como procurar uma agulha no palheiro. Por entre candelabros empilhados, em tombos baços; por entre as arcas de salgar o porco, que agora nem sal, nem porco; no meio de pipas de borras de vinho; no meio de teias escurecidas e abandonadas; havia de estar uma enxada.

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Já a acusava o cansaço, de o ter arrancado do sono tão cedo, o mandrião. Escorria-lhe o esforço em gotas de suor que ensopavam as dobras do corpo. E estamos no Inverno, que seria se fosse Verão. As costas da mão enxugavamlhe a testa que pingava para a vista. Soltava a terra com a enxada achada por detrás de uma salgadeira, dos tempos dos porcos gordos. Das vacas, dessas, já nem se lembrava. Plantava as batatas na terra, nos baixos entre os altos. Lembrava-se de quando não

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Encostou a enxada ao esteio, e dobrada, quase que enovelada em si mesma, foi colhendo uma a uma, as ervas malditas, as daninhas, que embirravam em se reproduzir sem freio e sem servirem para calar a fome da boca. Eram de todos os feitios e contornos, órfãs das sementes migratórias que traziam no bico os pássaros. Também és gente, mas estorvas. Por isso, olha, é o que é. Pau que nasce torto, nunca se endireita.

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Escorregava morna pela garganta, como as lágrimas que insistia travar, mas doce. Afinal foi-se tudo tão rápido. O tempo agora estava só morto, estagnado, e não havia mais nada por vir, porque já se tinha ido tudo. Então, só lhe restava esperar. O gato apanhava sol esticado na soleira da porta. De regador na mão e de dores nas costas,desceu o degrau com cuidado para não pisar o gato, com as mãos calejadas apoiadas na parede de pedra. Na pequena estufa, os amores perfeitos, os jarros elegantes, as margaridas recostadas, as rosas doces, as hidrangeas em botão. Todas rejuvenesciam. E também os morangos e os pés de maracujá. A cada flor, uma ou duas palavras, diz que crescem melhor se falarmos com elas, já dizia a minha avó. Ontem fiz uma sopinha, com os olhos de couve que já espreitavam o mundo. Estava boa. E fiquei bem, só com uma sopinha. Que bem que sabe esta água fresquinha, tanta sede, não é, minhas meninas. A cada flor, cada passo, mais tombado e demorado. É a vida. Fora da estufa, os kiwis, e vocês já estão maduros. Precisam de mais sóis. Cuidado é com os melros. Esses ladrões. Cuidado é com eles. Entrou na adega. A luz oscilava em espasmos turvos. Fitou o tanque de pedra que transpirava ainda as memórias das vindimas. Do marchar agrário, que se esvaía em sangue de uva. Agora já nem chamava os homens para ajudar na poda. Na altura, era o senhor António. Era o caseiro de uma das casas do seu pai. Parecia ontem. No seu jeito envergonhado, de bochechas rosadas e dentes em falta, não esquecia nunca o bom dia menina, bom dia senhor António, passou bem, sim e o senhor, vai-se andando. E continuava. Ora suba para aqui, ela trepava e chegava às uvas. Só as mais doces, as mais escuras. Um punhado de uvas, assim está bem. Assim está bem. Já na altura, pensando bem, era velho o senhor António. Mas talvez ela agora fosse ainda mais. Ouvia também as saias das mulheres arregaçadas, tanto umas como outras, a roçarem umas nas outras, com trocas de sumo


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era ela a velha, e ansiosa, todos os dias, não tão curvada como hoje, chegava-se à terra lavrada e perguntava-lhe se tardavam muito as folhinhas. Mãe, parece que já vejo uma pequenina. Dantes era o senhor João. Ó António, não enchas a menina de uvas, que ela depois dá-lhe a volta à barriga. Depois é um vê se te avias. E era. O senhor João era o mais antigo da casa. Sempre de palito entre os dentes, ó menina mais um pouco de vinho neste copo que já se vê o fundo. E bebia, que a sede de um homem não se afoga com água. Senhor João, coma qualquer coisa que isso até lhe faz mal, daqui a pouco não pode com uma gata pelo rabo, menina já lhe disse que as gatas não querem nada comigo. E de um trago bebia e de um trago a terra abria. Fosse ele pequenino como uma semente, semeava-se também, mas não era para brotar para cima, era para se botar para baixo. E era, pensava, nascer-se para dentro. É como se morre. E foi assim que encontraram o senhor João, umas Primaveras depois, de raízes para cima e de copo cheio, podia ser que ainda viesse, se há-de ir pr’os porcos, fica já aqui, e ficou.

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12:00 Tinha sobrado sopa. Estendeu uns pedaços de broa na chapa do fogão a lenha, que se apagava desde ontem, entre gemidos tímidos e cores de pó. Grelhou um carapau, e chega, que já ficava feita com pouco. Não é como dantes, agora o comer é mais um debicar, e ela é também mais pássaro, não por ter pena, porque isso é para quem foi triste, mas por estar mais perto do céu. Sentada no mocho, já que estamos numa de aves, ora demolhava a broa no caldo, ora o carapau na broa, e de um lado as migalhas afundavam-se na sopa, e do outro boiavam pedaços do peixe desfiados com as mãos,

que ainda há pouco beijavam a terra. Às tantas já não se sabia onde começava um e onde acabava o outro. Era tudo o mesmo. A pasta espessa que era a sopa, engolia lentamente o resto, quase com mais vontade do que ela própria. Não tinha acendido a luz apesar da pouca visibilidade na cozinha, provocada pelos tons invernais do exterior e pelo próprio posicionamento das estreitas janelas. A côdea rapada lambuzou o fundo do prato. Sacudiu as migalhas adormecidas no avental e levantou-se a custo. 13:00 Os bichos também precisavam de alimento. Grão a grão enche a galinha o papo, mas que não lhe falte o grão. Qual balbúrdia que se pôs mal lhe ouviram os passos. Eram as asas frenéticas, as bicadas no pescoço das outras, as patas afundadas no tapete de excrementos, o cacarejar em protesto, enfim, toda uma parafernália escusada, porque grão nunca lhes faltou, e não ia ser hoje. Apanhou os ovos com o cuidado calejado das mãos, lindas meninas, até lhes daria nomes se não as fossem elas um dia irem encher-lhe o papo. Não seria capaz de comer uma asa da Maria Odete, nem uma canja da Maria Amélia, ou uma coxa da Maria Antónia. Essas eram galinhas de antigamente, de quando era ela menina e as bichas é que tinham nome, mas só até descobrir que iam parar à panela. Por isso, as suas galinhas não passavam de lindas meninas pr’aqui e lindas meninas pr’acolá. Foi buscar o galo, que já cantava rijo, e pousou-o na terra. Joelho no lombo do macho, arre que este é dos grandes, vinagre na taça que lhe ia servir de babete, e zás, lá se foi o cantar de galo. O sangue borrifou-lhe as mãos como pequenas gotas de chuva, mas quente. Quase que sentia o líquido a latejar na sua pele. Jorrava do corpo decapitado enquanto este, esperneado, se convencia da sua sorte. É preciso segurar bem os bichos, assim. Mas porquê mãezinha, se não eles vão a correr pela


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A quem dorme ou preguiça, nunca lhe acode a

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Acordou num sobressalto, a pele estava quente e a boca seca. O gatinho já lá não estava, que ele era gato mas não era tolo. O pomar, que conhecia desde criança fora despido pelo Inverno. Por entre os ramos esguios e nus das maceeiras, dos pessegueiros, das pereiras e da cerejeira, espreitavam umas copas verde-escuro e de onde em onde, as laranjas perfumavam a paisagem. A alegria do Inverno, já dizia o senhor António, já viu esta formosura, e com as unhas começava a puxarlhe a carcaça. Viam-se pequenos espirros dos gomos, coitados, desnudos, ai que bem que sabe, darmos cabo do canastro no campo e depois comer-lhes os filhos. É mesmo assim sabe, está bem que nos esfarrapamos todos na lavoura, mas ela também nos dá o que pôr na boca.

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Tanto corri com ele por estas ruas, pr’a cima e pr’a baixo. Que isto agora não é como era, d’antes as crianças andavam à solta e chegavam a casa de joelhos rotos, a chagar o juízo aos pais. Quantas vezes já te disse para não correres dessa maneira, para não trepares às árvores, seu malandro. E às vezes, ainda lhes vinha a colher de pau marcar uma nádega. Olhe mas fomos felizes, pena agora o Zé. Pode ser que Nosso Senhor o ajude, está nas suas mãos, que nas minhas já não cabe mais nada.

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Que está mais para lá do que para cá.

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Já se ouvia o altifalante ruidoso do batateiro que costumava percorrer as ruas àquela hora. Como já sabia do tempo que lhe tomava a chegar ao portão, ia sempre com mais antecedência do que nos outros tempos, em que havia pressa para tudo. Quem sabe se tanta pressa não nos pôs mais velhos e fez passar a vida numa correria que só agora conseguimos desmedir. Ora, é o costume, sim sim, esta já é da nova, melhor. Tem visto o senhor Zé, o da Maria lá de baixo, às vezes vejo, mas agora é mais raro, diz-se que ele não está muito bem.

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O céu desabotoou as nuvens e deixou que viessem os raios de sol ameigar a terra. O gatinho estava pela eira, estendido na moleza que lhe davam aqueles pedaços de luz. Bocejava os sonhos contra a pedra quente, e já nem se lembrava se era gato, se era pedaço de chão ou erva daninha. Juntou-se-lhe a velha, numa cadeira desbotada e de pernas bambas. Ai que bom calorzinho, até anima a gente. De olhos fechados, sentia-se jovem. Mãezinha já posso ir ao mar, não que acabaste de comer, mãezinha e agora, agora também não, e o sol queimava, e as histórias nos castelos de areia cresciam, mãezinha, já posso não já, vai para debaixo do guarda sol que já estás vermelha, e depois, depois vais ao mar. As doces memórias daquela praia, das rochas, das algas pegajosas, da água fria, dos passadiços, dos calções de banho às riscas, da maré vaza, da maré cheia, das bolas de berlim e das línguas da sogra, subiam-lhe aos olhos. Bons tempos gatinho, bons tempos.

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casa fora e sujam tudo de sangue. Mesmo sem cabeça, sim, mesmo assim, sem cabeça. Agarrava bem, nunca tivera coragem de largar os desgraçados. Já bastava o espectáculo sangrento, os espasmos finais, e acabar numa panela, mais desfiado ou mais inteiro, que os gostos não se discutem.


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justiça. Colhia com gosto as laranjas para o regaço do avental. Devia era vir cá um homem a ver se se empoleirava num escadote, pr’a chegar às que eu não chego. E ia parecer um melro, se fosse de luto, encarrapitado contra o tronco e a picar os frutos. Isto o melhor até era nem deixar cescer, mas o agora já ia velho. O fundo das costas já acusava a colheita e foise sentar na beira de um muro, com mais musgo do que pedra. Dava para ver dali as ruas da aldeia, quase que a chegar à vila. Fizeram-se os dedos do senhor António os dela, e começou a perfurar a casca rija. Cada gomo que metia à boca ia com pedaços do mundo, e assim achegava-se cada vez mais ao céu, que o que ele faz é dar colo aos pedaços do mundo.

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17:00 Já começava a esfriar. Antes de ir para cima, foi buscar um cesto de vime para deitar a lenha, mas não muita, que carregar o cesto apinhado já não era para a sua idade. Os troncos murchos e ríspidos traziam-lhe recordações de Natais antigos, desses em que se recebe muita gente, se deixa as gargalhadas à solta e elas riem-se umas das outras, se ouvem histórias do avô que foi para a guerra, do primo que vai casar, da tia avó que dançava em tudo o que era baile mas que nunca ligou a casório, do senhor padre que era bom homem, mas que o antigo era melhor, da avó que não ouvia nada do ouvido esquerdo e o direito, coitado, também já não conseguia salvar a situação. Avó o Mino vai casar, está-me a chamar, ai desculpa Mininho mas a idade não perdoa, que me queres, não avó, o Mino vai casar, está com azar, que se passa com o pobre menino, não avó, e vinham uns lábios colar-se ao ouvido direito, que o outro era torto, o MINO VAI CASAR, ah vai casar mas olha que ouvi também que estava com azar. A avó só ouve o que lhe interessa, diziam, enche-me aí o copo, e ainda goza com a gente. Mal sabiam que avó

já só lhes lia os lábios, porque o que ouvia era a surdez a ficar mouca. Acendeu o fogo e ia-se virando, ora o traseiro colado na chapa, ora a barriga. Que bem que sabia aquele formigueiro quente a adormecer-lhe as entranhas que pareciam crepitar ao som do frio. Ouviu um miar roçar-lhe as pernas, estás aqui, minha companhia, hoje dormes comigo, fazes companhia à velha, que isto de ser velho é um enfado. Um fardo. Enfiado nas suas histórias que também serão as tuas.

18:00 Depois de levar um prato de sopa à irmã, com dois pedaços de broa, voltou para a cozinha. Antes de preparar o jantar, esfregava as mãos debaixo de água, tinha restos de vida agarrados aos dedos. Dizia-se que quando se vai para velho se sente que o corpo já não é o nosso, vai-se degradando, afastando-se do mundo e aproximando- se da terra. Mas estas mãos eram suas. Eram mais suas do que alguma vez foram, enrugadas, as unhas com fendas, pequenas cicatrizes, nada disto por muito mais que esfregasse, saía. Eram daquelas pragas que se apegam à gente e fazem de nós mais gente. A água jorrava da torneira aos cachos, tinha-se enchido o lavatório e começara a transbordar. Apercebeu-se do seu devaneio quando sentiu a água a escorrer pela perna. Já não vou para nova, é o que é. 19:00 O jantar estava na mesa, o mocho à espera,e o rádio ligado para ouvir o relato. Sabia que o jogo passava na televisão, mas não era a mesma coisa. Como não via nada podia imaginar


Uivava o vento lá fora, como um cão abandonado ao relento. Fustigava os vidros das janelas, açoitava as paredes e arrancava a terra do chão. Amanhã vai ser o cabo dos trabalhos. Aconchegou-se melhor com a manta de lã e começou o noticiário. Boa noite, os números

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Nessa noite a velha não desceu para o quarto. Aconchegada na poltrona de orelhas moucas, gato no colo, dormiu profundamente. Era menina outra vez e tinha a casa cheia, uma correria com as travessas a transbordar, olha não deixes queimar, olha vê lá se te queimas, bebida com fartura, deixa a menina provar o vinho, só um gole, não que lhe faz mal, não, faz-lhe bem até, vais ver se não arrebita, não me venhas com histórias. E estavam lá todos, o avô, o pai, o senhor João, a avó, o senhor António, a mãe, até lá estava o Zé da Maria lá de baixo, e ela também.

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A velhice é a segunda meninice.

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Tão certo como o amanhã que se levanta.

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plantar umas batatas, depois levas das outras que tenho aí um ror delas, é isso e laranjas que também tenho muitas, pode ser que para a semana dê para passar aí, cá estarei. Voltou para a segunda parte do jogo, e depois de arrumar a cozinha e coleccionar uns restos para as galinhas, instalou-se na poltrona de orelhas. Veio-lhe à memória o seu pai. Sentia ainda o perfume dele agarrado à velha poltrona, gasta, tal como ela gostava de se agarrar ao pai, depois de todos os jantares.

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O telefone tocou. Estou, Estou mãe, como estás, vai-se estando e tu, bem, já jantaste, acabei agora mesmo, estava a ouvir o jogo e tu, também, já sabes como é cá em casa, o João não perde um jogo, como esteve o tempo aí, choveu e aí, aqui não, ainda deu para

continuam a aumentar e os hospitais estão sobrelotados, há de haver sempre uma peste, lembrava-se bem da gripe espanhola que lhe levou o avô embora. Filha não chores que já sou velho, já vivi muito, paizinho não vás, se tiver que ir vou, não fiques triste, mas paizinho, já devias saber que a velhice não tem cura, e eu tenho lá em cima muitos dos meus, um rio de lágrimas, não chores filha. Como tinha coragem o avô. Agora era ela avó, e compreendeu que não se tratara de bravura, tratara- se de um outro sentimento, muito grande, como se não desse para encher mais o coração de um velho, uma gratidão para com a vida e para com a morte, que uma não existe sem a outra. E ele foi, para dar lugar aos novos, que cá ficaram e sentiam que a casa era grande demais para a pequenez que crescia dentro deles. Depois do avô, foi o pai, o senhor João, a avó, o senhor António, a mãe, talvez amanhã fosse o Zé da Maria lá de baixo, e depois fosse ela, que eram mais os dela lá em cima do que cá em baixo.

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fosse o que fosse, e para além disso, a EMOÇÃO, a emoção com que se descreviam todos os movimentos do jogo, quase os sentia no ar, e ai que vai marcar, quase que era golo, as equipas para a frente e para trás, atrás da bola impaciente, e as claques, que tiravam as camisolas e faziam delas bandeiras, e agora é fora, e agora é canto, e as caneladas nas pernas uns dos outros, e as fitas, e é cartão amarelo, falta, falta para o que se pôs a andar, e o mártir já está fino, o outro é que se ponha fino que ainda vai de vermelho, e agora um curto intervalo, voltamos já para a segunda parte.


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F O TOS DO R AFA


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Atqui optias nihillabores saes mil idellabor raecepudam ra verum dolupti aeperro comnihit, vollabo. Nam litaepuda parupit volo ex estiassi tem que coratem qui temolesti as eos im fugeos dendionsenit optarit mos eum faccum volenti velest am nonsed eos audiosti dolor rem rate


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por Diogo Divagações Nós ainda vamos ser muito precisos. Antes da pandemia acabar e antes do apoio chegar... Nós ainda vamos ser muito precisos. Antes da igualdade vingar E ainda antes da justiça reinar Nós vamos ser muito precisos. Deixa que eles não entendem que o Grândola Vila Morena é fogo que incendeia a madrugada. Deixa que eles não entendem que a Pedra Filosofal é arma, é escudo, é sonho. Deixa que eles não entendem que há em cada um de nós a aventurança há a réstia da eterna esperança. Deixa que eles não entendem.

M A N I F E S T O Deixa que eles não entendem que os livros com que ensinam e as imagens que projetam e as músicas que referenciam precisam de nós para existir.

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Nós ainda vamos ser muito precisos. Deixa que eles não entendem que o filme que marca a vida o livro que fascina a viagem a tela que envolve a alma precisam de nós para existir. Deixa que eles não entendem que o concerto do ano daquele festival com as luzes, e o som, e o palco lindos... precisam de nós para existir. Deixa que eles não entendem que o programa da manhã, o da tarde e o da noite o telejornal o discurso do presidente... tudo isso precisa de nós para existir.

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Nós ainda vamos ser muito necessários. Quando já nada houver para tirar mas ainda for preciso confinar nós vamos ser necessários. Quando precisarem de património imaterial para encher o peito de Portugal nós seremos necessários. Quando precisarem de uma nova Nelly Furtado uma nova Daniela Ruah um novo Joaquim d’Almeida nós seremos necessários.

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Nós ainda vamos ser muito precisos.

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Nós ainda vamos ser muito precisos para erguer casas edificar a língua expandir mercados reconhecer o mundo. Retratar aventuras. Explanar tormentas. Acompanhar alegria. Criar mundos.

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Nós ainda vamos ser muito precisos para dar ânimo depois do caos para engrandecer a alma para elevar as mentes.

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Deixa que eles não entendem que por cada concerto cancelado cada restaurante fechado cada artista castrado é um país que se perde.

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Deixa que eles não entendem que o progresso se faz de saber que a alma se engrandece ao aprender que a vida é tão mais do que a economia que falam.


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E C H C O L L I Atqui optias nihillabores saes mil idellabor raecepudam ra verum dolupti aeperro comnihit, vollabo. Nam litaepuda parupit volo ex estiassi tem que coratem qui temolesti as eos im fugeos dendionsenit optarit mos eum faccum volenti velest am nonsed eos audiosti dolor rem rate derum ipsanda ndiciis sa doluptatem sus, cuptatempor asim sedi bearchicium rem fugia praest, tem quianim invelib earuptatiur, nos as que


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