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O médico-legista

entra em cena Essa especialidade está no centro das séries da TV, mas é cercada de dúvidas e até preconceitos. Conheça como é o dia a dia desses médicos no Brasil n

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por jéssie panegassi

m médico que também é policial, cujas declarações têm fé pública, que tem responsabilidade sobre vítimas, famílias, a sociedade e, além de tudo, tem a obrigação de falar por aqueles que já não estão entre nós. Esse é o perfil do médico-legista que trabalha no Instituto Médico Legal (IML) da maioria das cidades brasileiras e que vem ganhando fama através das várias séries policiais da TV. O personagem pitoresco retratado na telinha é bastante diferente do real, mas a sua importância está além de qualquer contestação. O volume de trabalho dessa especialidade médica não se resume a corpos. Hoje, praticamente 70% dos casos atendidos nos IMLs de São Paulo têm pacientes vivos. “Sempre que existe algum indício de violência, o delegado de polícia solicita um exame, que pode ser de lesão corporal, sexológico, cautelar ou necropsia”, explica Talita Zerbini, médica-legista da 56 | viva saúde

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fotos DANILO TANAKA

Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Se acontece um acidente de trabalho com características criminais, ou ocorre uma blitz da lei seca onde se deseja investigar o uso de drogas, pode ser solicitada a atuação desse profissional.

Quem é o médico-legista?

Para se tornar um profissional legista, é necessário ser formado em medicina e prestar um concurso público para fazer as perícias médico-criminais do Estado. O treinamento para os aprovados é com a polícia científica de cada local (braço da Polícia Civil), e eles têm autonomia para definir qual o tempo de treinamento que esse profissional receberá, assim www.revistavivasaude.com.br


Thais: “Escolhi seguir carreira como médica patologista quando percebi que para mim o estresse de lidar pessoalmente com o doente era muito pesado. Então eu preferia ficar por trás dessa história e estudar esses processos, ajudando de outra forma”.

Talita: “Descobri que queria ser legista quando tinha cerca de 12 anos. Minha irmã estudava direito e passei a me interessar por temas ligados à medicina legal”.

como a sua jornada de trabalho e salário. “O meu treinamento durou nove meses”, conta Talita. Os concursos são regionalizados e não é necessária nenhuma especialização para exercer a profissão. Embora “também existam aqueles que realizam exames complementares, dependendo da especialidade adquirida e do posto que se está trabalhando”, informa Willian Moleiro, médico-legista e patologista do IML de São Bernardo (SP). Sobre a necessidade de ser policial civil, Talita comenta que algumas das razões são os exames cautelares que podem identificar drogas camufladas ingeridas por pessoas com a finalidade de tráfico, entre outros. “Os presos passam pelo exame (cautelar) sempre que vão entrar ou sair da cadeia, com o intuito de identificar possíveis lesões corporais, para resguardar a integridade do detento, do Estado — que mantém a pessoa sob custódia — e dos próprios policiais responsáveis por transportá-lo”, explica Moleiro. “Além disso, todas as perícias estão sob segredo de justiça, isto é, não são de acesso público”, comenta a legista. www.revistavivasaude.com.br

O volume de trabalho dessa especialidade médica não se resume a corpos. Hoje, praticamente 70% dos casos atendidos nos IMLs de São Paulo têm pacientes vivos

Os exames sexológicos (quando há suspeita de algum tipo de crime sexual) em São Paulo são realizados no Hospital Pérola Byington. Lá são atendidas crianças de até 14 anos e mulheres com idade superior a essa. O hospital também oferece serviços fora do IML para ajudar pessoas nessas situações.

Perfil e personalidade

Mas o médico legista precisar ter um perfil de personalidade específico para atuar na área? Segundo os entrevistados, é preciso ser alguém tranquilo, capaz de lidar lidar com o sofrimento dos outros, e deve ser muito responsável, pois trabalhará sempre sob muita pressão, e ainda deve ser detalhista, minucioso e observador. Mas apesar do que dizem, “não é verdade que somos frios ou que não temos coração. É verdade que não lidamos com o paciente, mas estamos diretamente conectados ao sofrimento de cada família. Isso significa que é necessário ter bastante jogo de cintura”, comenta Talita. viva saúde | 57


Médico-legista

Falando pelos mortos

Dentre as partes que mais despertam curiosidade na medicina legal, está a necropsia. Nesse momento, esclarecer questões-chaves nos crimes durante a investigação integra a rotina. A partir do momento em que chegam os corpos, esse especialista é responsável por responder aos quesitos oficiais — que buscam esclarecer se houve morte (para enquadrar em algum critério do Código Penal Brasileiro), a causa e o agente causador do óbito, além da observação da existência de alguma agravante (asfixia, tortura ou método cruel). Esses detalhes irão auxiliar as autoridades a estipular a pena no respectivo processo criminal. “Sempre que são realizados os exames, eles são feitos de maneira completa em todo o corpo”, diz a especialista. Quando existem há fatores que podem causar a morte, como um tiro de arma de fogo e um corpo carbonizado, eles conseguem determinar quais ferimentos foram causados em vida e quais ocorreram após a morte. Se mesmo assim ainda sobrarem dúvidas, os médicos analisam em qual circunstância a pessoa teria morrido primeiro naquele cenário. “Se as autoridades precisarem de mais informações, elas podem solicitar exames específicos por escrito, ou chamar o legista para depor”, relata Talita.

O médico patologista é especializado em detectar as doenças através da análise dos tecidos tanto dos mortos quanto dos vivos

Na hora de examinar os cadáveres, “o papel do técnico de necropsia é fundamental. Pois ele é quem abre o corpo, e as suas observações são de suma importância para não deixar que algum detalhe passe despercebido pelo médico que está orientando a sua ação”, defende Moleiro, que já trabalhou como técnico de necropsia. “A principal arma do legista, nesses casos, é o papel e a caneta”, completa Talita.

A hora e a vez da patologia

Contudo, não são apenas causas traumáticas que podem levar os corpos ao IML. Quando alguém morre em casa, sem nenhuma razão aparente, o corpo deve ser também encaminhado para a instituição. Segundo os especialistas, nessas horas, “é preciso saber reconhecer as doenças durante a necropsia, e a única especialidade que tem formação nisso é a patologia”, alerta o legista Moleiro. “A meu ver, a prática da necropsia foi banalizada. Com o tempo, os médicos aprendem a fazer esse procedimento na prática, mas, quando realizada por um patologista, de um modo geral, é mais detalhada”, argumenta. “O médico patologista é especializado em detectar as doenças através

A TV NÃO IMITA A REALIDADE Diferente dos filmes da TV, legistas e peritos nunca conversam pessoalmente

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Efeito C.S.I. – Investigação Criminal Nem tudo que se vê na televisão corresponde à realidade. Nesse caso, a arte não imita a realidade. Assim, os médicos-legistas explicam os mitos que as séries como CSI, Bones e Dexter apresentam:

É bom saber que a lei e o modelo de médicos-legistas são diferentes no Brasil. Coisas como o legista conversar com um perito criminal pessoalmente, participar da análise da cena do crime e todas as necropsias serem feitas por patologistas, não funcionam da mesma forma em terras brasileiras.

Os resultados de exames saem extremamente rápidos. Dependendo dos exames e análises necessários, bem como a gravidade do caso, o tempo para serem concluídos é mais longo.

Com uma única gota de sangue ou fio de cabelo, é possível identificar a vítima. Por mais que os EUA tenham um sistema informatizado, é preciso material genético em maior quantidade para se fazer um exame genético como o DNA.

O legista tem sempre personalidade excêntrica, humor negro e é muito retraído. Como em qualquer profissão, as pessoas são diferentes e têm personalidades, manias e jeitos próprios.

fotos: divulgação /rede record

da análise dos tecidos tanto dos mortos quanto dos vivos”, explica Thais Mauad, médica patologista supervisora da Divisão de Autópsias do Departamento de Patologia da USP e membro da Sociedade Brasileira de Patologia (SBP). Apesar de esse profissional não lidar diretamente com o paciente, são extremamente importantes tanto para diagnosticar doenças em vivos, determinar a causa de mortes não traumáticas e estudar as doenças. A maioria dos hospitais de grande porte tem patologistas em seu quadro de médicos. Eles são bastante consultados, também, para o diagnóstico e retirada de um câncer, justamente por serem especialistas em analisar tecidos. Depois de terminados os seis anos da faculdade de medicina, é oferecida uma residência no período de três anos para se tornarem patologistas. Apesar de esses profissionais serem treinados para realizar autópsias, a minoria trabalha dessa forma, que normalmente fica nos hospitais universitários e nos serviços de verificação de óbito (SVO). Para realizar uma autópsia não legal (não requisitada por autoridade policial ou judicial), é necessária uma autorização da família. Essa prática ajuda a esclarecer diversas dúvidas, como a existência de alguma patologia rara, ou a evolução de alguma doença etc. “Apesar de essas informações não serem mais úteis para aquele doente, podem ser para a sociedade, principalmente no caso dos fetos — se a família autorizar, será possível detectar uma possível síndrome genética, auxiliando uma próxima gravidez”, finaliza Thais.

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