“Figurações da morte na Literatura”

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Figurações da morte na literatura Cid Ottoni Bylaardt Gostaria de iniciar esta fala lembrando um texto famoso de Roland Barthes, que ao meu ver calha bem a este momento: “Se, por não sei que excesso de socialismo ou de barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto numa, é a disciplina literária que devia ser salva, pois todas as ciências estão presentes no monumento literário. É nesse sentido que se pode dizer que a literatura, quaisquer que sejam as escolas em nome das quais ela se declara, é absolutamente, categoricamente realista: ela é a realidade, isto é, o próprio fulgor do real. Entretanto, e nisso verdadeiramente enciclopédica, a literatura faz girar os saberes, não fixa, não fetichiza nenhum deles; ela lhes dá um lugar indireto, e esse indireto é precioso.”

Neste colóquio, a medicina dialoga com a literatura, mas certamente a medicina da literatura não é a medicina que se pratica no real. Assim, saúde e doença, vida e morte são conceitos que na literatura não podem fixar-se, se crermos nas palavras de Barthes. Propomos aqui falar de figurações da morte, um conceito que na medicina tem uma determinação própria, por mais que nosso imaginário torne-a um mistério e um encanto. Na arte, a morte já vem carregada de impossibilidade, a partir da pergunta que comumente fazemos sobre sua natureza. Há sempre uma resposta pronta para essa pergunta, uma resposta que jamais a cala, por mais que se acredite em seu poder. Quando tudo parece estar nos devidos lugares, as respostas se impõem, a tradutibilidade impera. Esta pergunta, particularmente, não tem direito à morte, jamais encontrará seu fim, seu caminho conduz ao desastre.

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Que é a arte, que é a literatura? É a pergunta que permanece aberta, não porque não haja resposta para ela, ao contrário, as respostas sempre estarão aí, firmes, determinadas. Quando Jean-Paul Sartre escreveu, ao final da primeira metade do século XX, um livro cujo título é a pergunta que ressoa nesta fala, ele fez afirmações importantes que pareciam pretender matar a pergunta, mas afinal o que fizeram foi dar vida a ela. Sartre fez algumas perguntas, às quais respondeu com assombrosa determinação. Quest-ce qu’écrire? Pour quoi écrire? Pour qui écrit-on? Qu’est-ce que la littérature?1 Entre outras coisas, ele disse que escrever é revelar o mundo e o homem para outros homens, esperando que estes assumam sua responsabilidade, que lembrem seu compromisso com a humanidade. Quem escreve assume uma vontade decidida, engajando-se inteiramente em suas obras. Escreve-se por uma exigência de desvendamento, por um ato de fé a que se liga o escritor, pela defesa da liberdade. Escreve-se para um público que tenha consciência de sua capacidade de mudança, no sentido de abolir as classes, de eliminar toda forma de ditadura, de suprimir a ordem que se imobiliza. Para Maurice Banchot, essas determinações decretariam a morte da literatura, conferindo-lhe um direito que ela não tem. O discurso quotidiano enseja a compreensão pela força de negação das palavras, potência do mundo real, assim como a morte, direito de quem transita pela finitude. Por outro lado, a impotência de negação da literatura é devida ao fato de que o escritor dispõe simplesmente de tudo, e se negar é limitar, se negar é afirmar a não-existência, simplesmente não se pode fazer isso no infinito. A pergunta, ou as perguntas são, assim, irrespondíveis, mas não cessam de ser respondidas, bem como impossível é a morte na arte, que entretanto está sempre a morrer. Quando o discurso literário falha ao representar o que havia morrido, uma vez que não há o que representar, emerge o nada da morte, impossibilitando a revelação de qualquer verdade, isto é, o escritor não pode agir “verdadeiramente”. No mundo das condições, a morte possui um poder civilizatório que torna possível a existência dos seres; dessa forma, a morte está para o homem como o sentido está para a palavra. Ao final de “La littérature et le droit à la mort”, Blanchot insiste na frase “a morte resulta no ser”: ela, a morte dos que têm direito a ela, só ela possibilita ao homem a compreensão,

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Trad.: Que é escrever? Por que escrever? Para quem se escreve? Que é a literatura?

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a apreensão dos sentidos das coisas, ainda que seja para nós “a loucura absurda”, “a maldição da existência”, “o dilaceramento do homem”. Ela possibilita o advento da verdade no mundo, a construção do inteligível para o ser, a formação do sentido. Ao mudar o sinal da linguagem, tem-se a literatura. Nesse espaço esvai-se a maravilha de compreender, suprime-se o direito de morrer, chega-se ao domínio onde “a conclusão se torna o desaparecimento de qualquer conclusão”. Nesse domínio podese falar em outras formas de morte, como a perda da subjetividade, ou o estar a morrer sem que o processo se complete. Vale lembrar aqui a estranheza do cadáver, sobre a qual reflete Blanchot. A literatura não é imagem dos objetos do mundo, mas a sua própria imagem, imagem da linguagem, linguagem imaginária. Na linguagem cotidiana, a imagem aparece sobre a ausência da coisa. Na linguagem literária, a imagem aparece sob a sua própria ausência, já que ela é a própria linguagem. Mas o que é propriamente a imagem? A experiência da morte e de seus despojos ajuda a esclarecê-lo. O morto é a imagem de si mesmo (e não do vivo que foi), por se tornar mais imponente, mais impressionante do que o vivo quando era apenas um ser humano, uma sombra mais real do que a realidade que faz lembrar. Não obstante, a relação do cadáver com este mundo é de algo que perde seu valor de uso e de verdade para adquirir uma existência neutra, que na verdade não se assemelha a nada. Por quê? Porque o homem mesmo assemelha-se pouco a si próprio, já que em vida ele era mais uma função do que um ser; o cadáver, por ser um corpo sem utilidade, é apenas imagem, e imagem de nada. Pode-se vê-lo, mas não se pode apreendê-lo nem compreendê-lo. Essa condição de neutralidade se reforça quando o querido defunto é conduzido ao cemitério, o lugar da absoluta impessoalidade e anonimato. Esse caráter incomum e neutro da imagem cadavérica relaciona-se às imagens veiculadas pelo texto literário em sua fabulação da impossibilidade. A possibilidade ensejada pela escrita no mundo corresponderia ao que Maurice Blanchot chama “semelhança cadavérica”: o querido morto é o ser que conhecíamos até há pouco, mas essa semelhança é magnificada. A imagem é mais imponente, mais soberba, e construirá a verdade da morte na linguagem do engrandecimento. Um olhar diferente pode revelar o outro lado do processo imagístico. O que era reflexo (o cadáver) torna-se senhor da vida refletida (o vivo), o cadáver torna-se a imagem de si mesmo, transformando em sombra e apagamento o objeto em que 3


inicialmente se refletia, a partir do processo de desfuncionalização do ser agora morto. Ele se torna então semelhante a nada, um ser em torno do qual se perde a verdade útil, mesmo porque o próprio ser vivo se assemelha a si mesmo em raros instantes, já que a linguagem tende a afastar o homem de seu próprio ser, tornando-o um não-ser. É como um utensílio cuja obsolescência lhe retira o valor de uso: uma vez cessada a utilidade que lhe conferia vida e que o fazia desaparecer, ele aparece. Entramos então na região do inacessível, do inapreensível, onde o cadáver não repousa. A morte, com toda sua verdade construída no mundo, não consegue manter-se no belo lugar que lhe reservaram. O defunto pervaga errante, em parte nenhuma, depositado num espaço anônimo e intemporal chamado cemitério. Nesse caso, a semelhança move-se para substituir o real, para assombrar o mundo deixado para trás, para constituir uma identidade pela semelhança e suas qualidades, sem ser nem qualidade nem semelhança. A superfície do real oferece-se à arte como se já fosse plástica, acolhendo a semelhança, a evocação que vem incessantemente a sua face. Segundo Levinas, essa vinda incessante à superfície é a obscuridade do tempo de morrer. O tempo de morrer (na arte, na imagem) não é um corte no contínuo do tempo, mas um intervalo vazio onde se devem encontrar os personagens de certas narrativas, aos quais a ameaça aparece em sua aproximação, nenhum gesto sendo possível para se subtrair a essa aproximação, sem que ela mesma possa jamais acabar. Angústia que se prolonga em outros textos, como o pavor de ser enterrado vivo, como se a morte não fosse jamais bastante morte, como se paralelamente à duração dos viventes corresse a eterna duração do intervalo: o entretemps. Essa duração sem intervalo, o tempo jamais findo, ainda perdurante ― “algo de inumano e monstruoso” ― é o que a arte realiza, tornando-se a grande obsessão do mundo artístico. A arte realiza a possibilidade de que o ser vivo possa sempre ser experimentado como imagem, como não-vivo, como sempre já petrificado ― como se as qualidades se fixassem no nada. Esse mourir de Levinas associa-se ao estar a morrer blanchotiano, ao espaço da outra morte, “não mais morte dessa tranquila morte do mundo que é repouso, silêncio e fim, mas dessa outra morte que é morte sem fim, prova da ausência de fim”. A morte não é possível. A única possibilidade é sua impossibilidade, isto é, estar a morrer sempre na literatura, sem chegar ao termo.

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Eis o desastre, o que não admite conclusão, o que jamais é algo que vai acontecer, ou que tenha acontecido, embora esteja sempre acontecendo. Não é da ordem do apocalipse, não admite o fim da história, ou de uma unidade da história, ou de um período da história. O poema é um acidente, o poema é um desastre. Impossível não pensar no poema “Acidente” de Henriqueta Lisboa, alguém que certamente não conheceu Blanchot, mas cujo poema em questão, o poema que se torna uma questão, poderia perfeitamente figurar como um fragmento poético de L’écriture du désastre, em três mágicos momentos:

Acidente

Quebra-se o púcaro de fino cristal vibrante contra lájea: restam avelórios feridos.

Do vento escuto o balbucio por entre os galhos das árvores. Percebo-lhe o timbre, o ritmo. Porém não as palavras: interceptadas, interceptadas. (LISBOA, 2004, p. 44) Talvez o desastre ― o acidente ― seja o que impede o passado de tornar-se futuro, ou o contrário, uma vez que não se pode determinar em que sentido o tempo se move ― pode-se apenas representar esse movimento com números e palavras (ou com signos). O estilhaçamento do dulce et utile, que fere a linguagem; o balbucio do que impossibilita a suprema satisfação de compreender; a interceptação de um rumo, de um sentido, de um fim, provocados pelo acidente. O acidente não é o ponto em que algo deixa de acontecer para possibilitar outro acontecimento; ele é a própria impossibilidade. Evento semelhante se dá com a narrativa, com as narrativas, o desastre não se narra ― o desastre não narra, o que as palavras fazem é interceptar o que poderia ser um sentido, um resgate, uma conclusão. O narrador não pode contar. A voz do enunciador tem a entonação da memória reprimida e sufocada, que 5


responde ao que foi vivido sob a pressão da estranheza: ele fala como se estivesse lembrando, mas se lembra é por meio do esquecimento. O processo é o de uma migração interior, que vai ao profundo do ser como um risco ― não como um recurso ― e encena uma certa ciência do ser em relação ao que está acontecendo, o saber do mais profundo afastamento. Nessa condição, a linguagem literária aponta repentinamente para a coisa esquecida e para o esquecimento, afastamento desmedido onde se torna possível encontrar o espaço da metamorfose, o espaço de preservação do que se esconde, que protege os seres daquilo que eles são. A memória inicialmente é perturbação, obscuridade, a força incompreensível que estabelece nos seres a ambiguidade constante de uma mudança indefinida. Como se viu, o que é infinito não tem começo nem fim, nem limites que possam suportá-lo, condição que recusa qualquer relação dialética, a qual, por se configurar como confronto, pressupõe referentes e limites. O desastre é a experiência-limite que escapa a todo emprego e fim; nessa condição, desastre é exterioridade e não catástrofe. A experiência do desastre traz à lembrança o enunciador-personagem de Nove noites de Bernardo Carvalho, cuja trajetória se desdobra num esforço para desvendar um crime, ou um suicídio. Após recolher inúmeras evidências, que parecem afastá-lo cada vez mais da conclusão, ele percebe que aquilo só pode se tornar... literatura. Da impossibilidade de dizer nasce a ficção. A impossibilidade de narrar conduz ao holocausto, ao shoah, a que muitos dos fragmentos de L’écriture du desastre fazem referência: como narrá-lo? Eis o absoluto desconhecido, a impossibilidade. No capítulo “Connaissance de l’inconnu”, de L’entretien infini, Blanchot diz que um filósofo não é apenas aquele que se espanta: é alguém que tem medo. Que medo é esse? É o medo, a angústia de se defrontar com o não-conhecível, mas que precisa ser conhecido. No mecanismo do conhecer, em geral há uma apropriação do objeto pelo sujeito, e uma redução do desconhecido ao já conhecido. Essa pode ser uma forma segura de filosofia. Mas o que ocorre quando somos impedidos de nos relacionar com algo que se situa fora de nossos limites? Temos então com o objeto uma relação de não-poder, que não é a simples negação do poder, e talvez só o poeta, alvo de desconfiança do filósofo, possa exercer o desejo de conhecer o não-conhecível. Não como necessidade, carência a ser suprida; não como amor, que pressupõe a união; mas o desejo, o que não pode ser satisfeito, o que permanece inacessível e exterior. Assim, a atitude do filósofo diante do desconhecido ou da 6


impossibilidade é o medo, diferente da atitude do poeta. Algo semelhante ocorre com abordagem que comumente se faz do holocausto, que provoca em nós uma espécie de estado de alienação, de inação diante do inabordável, como o estado do filósofo diante do desconhecido. O holocausto torna-se então o absoluto, uma vez que não pode relacionar-se a nenhum outro evento, que não consegue estabelecer referências dentro de certos limites; a ruína do sentido, aquilo a que não se pode atribuir significado e portanto nem perdoar nem consentir, nem afirmar nem negar, nem guardar nem preservar. Um grito apenas, um grito. Como narrar um grito? Muitos comentadores atribuem um nome ao desastre na escritura de Blanchot: Auschwitz. Shoah, holocausto, Auschwitz, consoante minha leitura, parecem ocupar no pensamento de Blanchot um lugar semelhante ao de Orfeu, ou de Ulisses, ou das sereias em outros momentos. Teríamos assim uma espécie de Auschwitz mítico, com uma ressalva atenta à maneira como Blanchot recorre ao mito, desprovendo-o de sua verdade exemplar, atribuindo-lhe outras. Não se pode pensar em Auschwitz, no texto de Blanchot, como denúncia, ou condenação, ou mesmo como registro histórico, mas como o evento absoluto, e portanto da ordem da impossibilidade, que só existe nos livros que lemos e nas fotos que vemos ― que, portanto, não existe. (A perplexidade vem do próprio Blanchot: “E como, com efeito, aceitar não conhecer? Lemos os livros sobre Auschwitz. O desejo de todos, no fundo, o último desejo: saibam o que se passou, não esqueçam jamais, e ao mesmo tempo jamais saberão.” Nosso desejo de trazer Blanchot à luz talvez seja responsável pela magnitude que às vezes se confere à relação entre o desastre e o holocausto, e a escritura. Temos então três termos que giram sem se posicionarem historicamente: a escritura, o desastre, o holocausto. A escritura do desastre, a escritura do holocausto, o desastre da escritura, o holocausto da escritura, e assim por diante, são expressões que não conseguem definir uma hierarquia, uma precedência, nem mesmo uma semelhança se a pensarmos em termos de oposição e diferença. Como todas elas no discurso de Blanchot pertencem ao infinito, ao absoluto, ao que não tem relação, seu espaço parece ser apenas um: o da literatura. Há uma particularidade curiosa a respeito do título do livro de Blanchot, L’écriture du desastre, que ressoa em sua tradução em português, A escritura do desastre: a preposição de que une os dois substantivos. A gramática tradicional atribui a essa preposição, aqui, duas possibilidades: a de introduzir um complemento ou um adjunto. No primeiro caso, o segundo termo torna-se o alvo, o objeto do substantivo 7


inicial; no segundo caso, o termo posposto funciona como aquele que tem a posse do primeiro, ou o agente da ação pressuposta no termo inicial. Assim, poderíamos falar, de um lado, de uma escritura que se dirige ao desastre, ou que conduz a ele; e de outro, de um desastre que possui uma escritura, que realiza uma escritura. Essa ambiguidade é fundamental para se pensar as ideias de desastre, escritura e holocausto. O holocausto é o movimento opaco, que não pode ser registrado pela linguagem, que não pode ser acessado pelo conhecimento. Nada além de um amontoado heterogêneo de memórias, fragmentos de memórias ― cuja temporalidade é a do il y a, ou a do desastre. Blanchot fala de um jovem prisioneiro judeu no campo de morte de Auschwitz, que tinha sido obrigado a levar a própria família para os fornos crematórios, depois tentou o suicídio e foi “salvo” pelos SS. Sua função daí em diante era segurar a cabeça das vítimas quando elas eram fuziladas, para que a bala se alojasse mais facilmente na nuca do sacrificado. Perguntado como podia suportar aquela situação, ele teria respondido que “observava o comportamento dos homens diante da morte”. Para Blanchot, isso não é uma resposta, porque aqui não cabe uma resposta. A justificativa de busca de conhecimento soa aqui como um dizer que ressoa a impossibilidade de responder, a impotência da filosofia, do saber diante do que não pode ser conhecido, o que se confirma pelo relato de Lewenthal, em notas que foram achadas enterradas próximo a um crematório: “A verdade sempre foi mais atroz, mais trágica do que o que se dirá dela”. Enterradas próximo a um crematório, como tudo o que diz respeito ao holocausto ― e desenterradas de outra forma. Outro relato que soa como a impossibilidade de narrar, para Blanchot, é o livro L’espèce humaine, de Robert Antelme, membro da resistência francesa que havia sido entregue aos nazistas pelo governo de Vichy. Ele foi resgatado logo após a guerra, em condições precárias de saúde. Blanchot assinala que Antelme, ao ser resgatado, não conseguia parar de falar. Falar era imperativo, não necessariamente para contar uma história, para comunicar um saber, mas falar, simplesmente falar. Falar sem parar, destituído de autoridade, de poder, é o que o enunciador de L’espèce humaine faz. Seu discurso escapa a uma dialética, porque não consegue exercitar nenhuma forma de poder de significação ou representação. O que há aqui não é uma fala exemplar, ou uma narrativa elucidativa, mas uma forma de grito. É como o canto de Orfeu, “a linguagem que não repele o inferno, mas aí penetra, fala ao nível do abismo e assim lhe concede a fala, propiciando entendimento ao que é sem entendimento.”

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Assim como se ouvem as palavras interceptadas de Henriqueta Lisboa, assim como a ficção surge da impossibilidade de se estabelecer uma coerência para os fatos em Nove noites de Bernardo Carvalho, assim como a escritura incessante do Bartleby de Melville se dissolve no “I would prefer not to”, assim como o jovem prisioneiro de Auschwitz busca uma justificativa filosófica para seus atos e não encontra senão o vazio, assim como um grito surge dos depoimentos de Robert Antelme e de Lewenthal, nada disso representa, nada disso significa algo que possa ser levado a sério, uma vez que todos abordam o inenarrável. Resta então a literatura, a literatura do desastre, o fora da linguagem, que entretanto não cessa de pertencer a ela, o neutro que é palavra e não consegue dizer.

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