Metodologia da pesquisa em educação

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Metodologia da pesquisa em educação: uma abordagem teórico-prática dialogada


DIALÓGICA

O selo DIALÓGICA da Editora InterSaberes faz referência às publicações que privilegiam uma linguagem na qual o autor dialoga com o leitor por meio de recursos textuais e visuais, o que torna o conteúdo muito mais dinâmico. São livros que criam um ambiente de interação com o leitor – seu universo cultural, social e de elaboração de conhecimentos –, possibilitando um real processo de interlocução para que a comunicação se efetive.


Maria do Rosário Knechtel

Metodologia da pesquisa em educação: uma abordagem teórico-prática dialogada


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Knechtel, Maria do Rosário Metodologia da pesquisa em educação: uma abordagem teórico-prática dialogada/Maria do Rosário Knechtel. – Curitiba: InterSaberes, 2014. Bibliografia. ISBN 978-85-8212-900-5 1. Pedagogia 2. Pesquisa educacional – Metodologia 3. Professores – Formação profissional I. Título. 13-07343 CDD-370.7201

Índices para catálogo sistemático: 1. Pesquisa em educação: Metodologia 370.7201

1ª edição, 2014. Foi feito o depósito legal. Informamos que é de inteira responsabilidade da autora a emissão de conceitos. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem a prévia autorização da Editora InterSaberes. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei n. 9.610/1998 e punido pelo art. 184 do Código Penal.


Sumรกrio



Prefácio p. 9 Apresentação p. 13 capítulo 1

Teoria do conhecimento, pesquisa e ciência p. 21

1.1

Conceitos básicos p. 24

1.2

A emergência do conhecimento científico p. 29

1.3

Categorias da dialética p. 36

1.4

Aspectos característicos do paradigma de Marx p. 40

capítulo 2

O novo espírito científico p. 47

2.1

Reflexões iniciais p. 49

2.2

Abordagens sobre a teoria da complexidade p. 54

2.3

Considerações sobre a inter e a transdisciplinaridade p. 64


2.4

Experiência de pesquisa e de prática pedagógica inter e transdisciplinares na UFPR p. 66

2.5

Níveis de pesquisa em educação p. 71

capítulo 3

Pesquisa científica p. 77

3.1

O estudo monográfico: preliminares p. 89

3.2

Pesquisa quantitativa p. 91

3.3

Pesquisa qualitativa p. 97

3.4

Integrando pesquisa quantitativa e qualitativa p. 103

3.5

Paradigmas da pesquisa aplicados à educação p. 109

capítulo 4

Pesquisa: planejamento e execução p. 131

4.1

Pesquisa bibliográfica p. 146

4.2

Pesquisa documental p. 146

4.3

Pesquisa experimental p. 148

4.4

Pesquisa ex post facto p. 149

4.5

Levantamento p. 149

4.6

Pesquisa participante p. 150

4.7

Pesquisa-ação p. 150

4.8

Estudo de caso p. 150

4.9

Parte prática p. 153

4.10

Procedimentos metodológicos da pesquisa p. 161

4.11

Instrumentos de coleta de dados p. 163

4.12

Tratamento dos dados p. 172

4.13

Conclusão e sugestões p. 175

Para concluir... p. 181 Referências p. 185 Sobre a autora p. 195


Prefรกcio



N

o contexto contemporâneo, há uma tendência a se confundir excesso de informações com conhecimento. O que reforça essa tendência é a rede global de computadores, a internet, com suas incursões em todos os domínios da vida associativa. Por intermédio dessa poderosa rede, aparentemente todos os seres viventes do planeta podem se comunicar e acessar informações inalcançáveis há alguns anos. Diante desse imenso conjunto de informações pouco ordenadas (ou atabalhoadas), qual é o papel da educação em particular e da cultura em geral senão insistir em sua principal capacidade: filtrar algumas informações dispersas e desconexas e conferir-lhes sentido associado à emancipação dos educandos? É essa capacidade que caracteriza uma boa educação e um bom cultivo de mentes, espíritos e corpos. É nessa direção que é preciso apreender o sentido profundo e inovador deste livro. O tema, aparentemente, já é de domínio público, porém o que se deve reter é o fato de que há um empenho deliberado de articular esforços epistêmicos, teóricos e metodológicos em uma única obra. Essas são a grandeza e a singularidade deste livro. Na perspectiva epistêmica, é apresentado um estado da arte dos principais elementos fundantes que permitem delinear os


contornos do campo produtor de conhecimento em torno da educação. Na perspectiva teórica, como derivação dos fundamentos epistêmicos, o materialismo histórico dialético emerge como possibilidade não apenas de (re)interpretar o mundo, mas também, e dentro de condições objetivas, de transformá-lo. Como corolário dessa ambição epistêmica e teórica, na perspectiva metodológica, o destaque não poderia ser outro senão o direcionamento às práticas educativas transformadoras. São práticas que precisam transformar não apenas o mundo material e externo a educadores e aprendentes, mas sobretudo interiormente. No conjunto, o livro é um lembrete de que uma transformação profunda imperativamente passa por uma transformação interior, diretamente associada a componentes éticos, que ensinem a educadores e aprendentes, diante de um mundo desenfreado, a arte de educar e cultivar a própria vontade, com vistas a deixar às gerações vindouras não necessariamente um mundo florido, mas um mundo menos feio. A obra pode interessar a educadores formais e não formais, a aprendentes, a formuladores e implementadores de políticas voltadas para a educação, bem como a governantes e a qualquer cidadão razoavelmente sensível à ideia de que, para educar, é imperativo que se tenha uma estratégia capaz de filtrar o essencial para a verdadeira formação do cidadão. Essa estratégia é apreendida aqui não como uma técnica simplificadora e manipuladora da condição humana, mas como um “método” dialógico, que leva em conta os limites e as potencialidades de todos que se predispõem a aprender o aprender. Boa leitura! Curitiba, 11 de maio de 2013. José Edmilson de Souza-Lima Sandra Maciel-Lima


Apresentação



A

preocupação com a atualização e a qualificação dos profissionais da educação diante das mudanças globais e da complexidade da sociedade em que vivemos exige uma formação que preconiza a reconstrução do conhecimento no processo de aprendizagem pela articulação dos procedimentos e do exercício da docência e da pesquisa. O estudo e as práticas de pesquisa no mundo contemporâneo possibilitam maior esclarecimento sobre os problemas da realidade socioeducacional e orientam como realizar a produção do conhecimento, assumindo um papel importante na qualificação de profissionais de educação e na articulação das funções de docência, de pesquisa e de orientação acadêmica perante os desafios educacionais que se interpõem a nós. Assim, acreditamos estar contribuindo para a consolidação da consciência do quão importante é, para o professor e o orientador acadêmico, a utilização da pesquisa, seja no ato docente, em oficinas de pesquisa para a construção ou a reconstrução do conhecimento, seja para dirimir dúvidas como orientador. Uma das características da sociedade contemporânea consiste no papel central do conhecimento nos processos de produção, pesquisa e qualificação profissional. Estamos assistindo à


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emergência de um novo paradigma econômico e produtivo, no qual o mais importante deixa de ser a disponibilidade de capital, de trabalho, de matérias-primas ou de energia e passa a ser a utilização intensiva de conhecimento, de informação e de pesquisa. Como você pode perceber, no mundo atual o conhecimento evolui de forma incontrolável, de modo a exigir uma educação voltada para a autonomia do aprendiz, o que implica uma metodologia do aprender a aprender. Nesse sentido, a educação a distância (EaD) é uma modalidade que exige do aluno e do professor envolvimento e compromisso com sua própria aprendizagem e a do outro, ou seja, daquele que estará aprendendo com você, assim como com a produção do conhecimento. Por isso, é preciso dar ênfase à pesquisa não só como princípio científico, mas, sobretudo, como princípio educativo. Para alcançar tal propósito, é necessário fazer pesquisa compreendendo que ela é um ato humano e que, fundamentalmente, garante sustentação no questionamento sistemático, com renovado referencial teórico e análise crítica, bem como procedimentos metodológicos adequados ao objeto de estudo em pauta. Ao pensar sobre o objeto de estudo, devemos considerar a afinidade que temos com ele, a disponibilidade de material e o conhecimento do tema e da realidade a serem estudados. Devemos problematizar a realidade a ser pesquisada e examinar as possibilidades de sua efetivação. Dentro desse objetivo, este livro oferece orientações sobre a emergência do conhecimento científico, o novo espírito científico para o delineamento metodológico da pesquisa em educação e a base teórica, prática e instrumental, isto é, os procedimentos a serem adotados na produção do conhecimento.

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Alguns pressupostos orientam nosso pensamento e nossas ações:

A produção do conhecimento por meio da investigação é uma função essencial de todos os sistemas de educação superior cujo dever é promover estudos de pós-graduação. Damos ênfase às novas práticas de inter e transdisciplinaridade porque são procedimentos contemporâneos muito recomendados nos programas, visando a orientações, objetivos e diálogos de saberes para a construção de conhecimento sobre problemas a serem investigados de acordo as necessidades sociais, econômicas, políticas, ambientais e culturais. Assim pensando, convidamos você, leitor, ao estudo desta disciplina ao lado de outras, para que, com as suas experiências, possamos constituir espaços de reflexão e crítica teórico-metodológica, tendo em vista a produção de conhecimento, pela prática da pesquisa em educação e de interlocução com ênfase em EaD. Neste estudo pretendemos refletir sobre as condições de produção e de acesso ao conhecimento que perpassam as práticas educativas no contexto e na interface dos problemas socioeducacionais, tendo presentes as condições histórico-sociais. O intuito é problematizar o sentido atribuído às novas práticas educacionais e aos fundamentos teóricos que as sustentam, bem como propor e discutir procedimentos metodológicos que garantam a produção de

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• na pesquisa em educação deve-se considerar os princípios científico e educativo integradamente; • a pesquisa e a aprendizagem não estão separadas, mas articuladas no mesmo processo; • a aprendizagem pela pesquisa e a pesquisa para a aprendizagem são elementos fundamentais na construção e na reconstrução do conhecimento.


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conhecimento em educação também pelo professor e pelo orientador acadêmico. Apesar de os professores serem os profissionais que devem tomar as decisões em sala de aula – com relação a comportamento, rendimento dos alunos etc. –, poucas vezes temos notícia de que essas decisões foram tomadas com base em pesquisas de sua própria prática escolar. Ainda estamos longe de ver a utilização da pesquisa no ato docente como um instrumento valioso no desenvolvimento do profissional de educação e do aluno, bem como da reflexão e da prática reflexiva na pesquisa. Como produtores de conhecimento, desejamos ajudá-lo a adentrar no campo da pesquisa em educação, em suas múltiplas dimensões, dentro e fora da escola, e a gostar dele. Por esse motivo, apresentamos uma linguagem coloquial, que busca manter um diálogo com você, leitor, e com a realidade socioeducacional. Esse diálogo desenvolve-se com o propósito de desencadear a interação professor-aluno no processo de aprendizagem, mesmo que a distância. É muito importante começarmos pelo entendimento dos conceitos, fundamentos e algumas referências epistemológicas básicas sobre conhecimento, pesquisa, ciência, além das bases metodológicas da pesquisa em educação. Na sequência, trataremos da reflexão e da prática reflexiva da pesquisa com e pelo professor e orientador acadêmico. Após isso, na segunda parte, descobriremos juntos os significados e as dimensões da pesquisa em educação, em face da natureza, da historicidade, da diversidade e da complexidade, da inter e da transdisciplinaridade no processo de investigação na educação. Por fim, como terceiro e quarto momentos, veremos o planejamento e os procedimentos da pesquisa: do problema à revisão de literatura; as abordagens de pesquisa, os procedimentos metodológicos e os instrumentos para a pesquisa de campo; a sistematização do trabalho científico; o estudo monográfico e o artigo.

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Caro professor e orientador, iniciaremos o estudo pela parte teórica. Se você tiver noções mais sólidas sobre a teoria do conhecimento, isto é, dos aspectos epistemológicos, entrará na prática com muito mais segurança. A teoria informa o porquê de investirmos em determinada pesquisa e como devemos proceder diante dela, com este ou aquele objeto de estudo, para, assim, reconstruirmos o conhecimento. O cotidiano da pesquisa educacional também merecerá enfoque. Continuando nossa caminhada, nos capítulos seguintes vamos distinguir diferentes tipos de pesquisa e abordagens, com explicações claras e ilustrações interessantes. Assim, acreditamos que, de pensamento a pensamento, de uma forma compreensiva e agradável, estaremos evoluindo e vivenciando a lógica do estudo e da prática da pesquisa em educação.



Teoria do conhecimento, pesquisa e ciência



P

ara a melhor compreensão dos conteúdos e o alcance dos objetivos propostos, devemos, antes de tudo, esclarecer alguns conceitos básicos: • O que é saber? • O que é sabedoria? • O que é senso comum?

Você deve estar pensando: “Quantos questionamentos!” Mas não se preocupe, pois vamos elucidá-los. O saber é uma forma de compreensão das coisas, na qual se integram conhecimentos particulares em uma perspectiva universalizante, sendo indissociável da consciência dos limites do próprio saber (Fontes, 2008). A sabedoria é um perfeito conhecimento de tudo o que os homens podem saber. Inclui a humildade socrática, a disposição para o saber integral, o bom senso e a arte de bem viver a vida. Diferente da ciência, a sabedoria não é para ser acumulada, mas para ser esquecida ao ser testada na prática da vida. [...] O princípio da sabedoria é a capacidade do ser humano de unir partes ao todo, integrando-as na vida prática. (Fontes, 2008, [n.p.])


Assim, a sabedoria engloba o conhecimento, a prudência, a moderação, a sensatez e a reflexão e pressupõe a utilização do conhecimento em todos os fatos da vida, ou seja, por meio dela ocorre a transformação daquele que conhece na própria imagem da sabedoria a representação desse saber (por exemplo, a sabedoria da mãe). Mesmo sem curso superior, ela é sábia; desde o nascimento de seu filho, orienta-o e transmite-lhe valores que podem ser os fundamentos de toda a sua educação. 26 O senso comum “é considerado primeira forma de conhecimento, gerada basicamente pela interação do ser humano com o mundo e fundamentada na experiência individual” (Appolinário, 2004, p. 52). Em outras palavras, é “um conjunto de informações não sistematizadas que aprendemos por processos formais, informais e, às vezes, inconscientes, e que inclui um conjunto de valorações” (Matallo Júnior, 1989, p. 16).

Perceba que o senso comum é o saber que se adquire por meio de experiências vividas ou ouvidas do cotidiano: ele engloba costumes, hábitos, tradições e normas éticas. Costumamos dizer que é o conhecimento passado de geração a geração.

1.1 Conceitos básicos Você saberia conceituar conhecimento? O que é conhecer? Conhecimento é uma relação que se estabelece entre o sujeito que conhece e o objeto conhecido. Conhecer é tomar conhecimento, é ter uma ideia de sua própria capacidade.

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Figura 1.1 – O processo do conhecimento

Método

Meio

Sujeito

Caminho

Objeto

Meio Método de Investigação

Fonte: Knechtel; Vieira, 2002.

O objeto conhecido pode, às vezes, fazer parte do sujeito que conhece. Por exemplo: pode-se conhecer a si mesmo, ou conhecer e pensar sobre os próprios pensamentos.

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Quando nos referimos ao conhecimento científico, estamos nos referindo a um conhecimento sistematizado, organizado, fundamentado, comprovado e reconhecido universalmente. No processo do conhecimento, o sujeito cognoscente se apropria do objeto conhecido (Cervo; Bervian, 2005, p. 14), que se encontra na realidade. O conhecimento sempre implica uma dualidade de realidades: de um lado, o sujeito cognoscente (o que deseja conhecer) e, de outro, o objeto conhecido, que está possuído, de certa maneira, pelo sujeito cognoscente.


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O ser humano, para tomar conhecimento das diversas áreas da realidade, mesmo de um fato ou fenômeno simples e isolado, procura situar cada fato dentro de um contexto mais complexo e observável, para captar seu significado, sua função, sua natureza aparente, bem como sua profundidade, sua origem, sua finalidade e sua interação com outros fatos. A apropriação pode ser física, sensível e intelectual. O pensamento é o conhecimento intelectual. O “sentirpensar’’1 e o agir movem o ser humano para o desejo de conhecer, de saber. De saber mais. Embora sujeito a polemização, consideramos interessante a seguinte reflexão, nas palavras de Pascal (citado por Cordi et al., 1995, p. 32): “O pensamento faz a grandeza do Homem. O conhecimento, a racionalidade nos tornam humanos e superiores em relação aos outros seres”. Para melhor compreensão e valorização do ser humano, veja o que acrescenta o filósofo: o homem é frágil, um grão de matéria no universo, mas “esse quase nada” pensa, raciocina, conhece (Pascal, citado por Cordi et al., 1995). Tais referências apontam para as possibilidades que somente o ser humano tem de: • “sentirpensar” e conhecer, para satisfazer sua curiosidade; • conhecer para se sentir seguro; • conhecer para transformar. Além disso, você pode desejar saber: Quem estuda o conhecimento como objeto de pesquisa, como problema? E o que isso tem a ver com a metodologia de pesquisa?

1 Sentirpensar é termo cunhado pelo cientista espanhol Saturnino de La Torre (2007, p. 163), da Universidade de Barcelona, utilizado para mostrar um amplo avanço nas estratégias e ações a realizar que incorporam a dimensão emocional.

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A epistemologia estuda o conhecimento do conhecimento como objeto questionado. Trata-se de um capítulo da filosofia. Todavia, baseado no Dicionário grego-português e português-grego, de Pereira (1984, p. 220), epistemologia mantém relação com “arte, habilidade; conhecimento, ciência, saber; aplicação mental, estudo”. Cada ciência acadêmica tem sua epistemologia, que se refere à construção daquele ramo de conhecimento. Dessa forma foram construídas a biologia, a sociologia, a economia e os demais conhecimentos de cada ciência e, portanto, os novos conhecimentos. O pesquisador, conforme seu objeto de estudo, pode alcançar, com sua construção, a criação de conhecimento; eis por que atinge os níveis epistemológicos. A metodologia de pesquisa é a busca de formas, instrumentos e caminhos para a construção do conhecimento. É oportuno lembrarmos que as duas metodologias – a do ensino e a da pesquisa – não se confundem, mas se compreendem e se aproximam, possibilitando interfaces. Ambas constituem processos, não produtos. Assim, ao iniciar o processo de pesquisa e de aprendizagem, ambas devem problematizar a realidade e buscar a relação entre sujeito e objeto de pesquisa. Você está curioso para saber quem é o sujeito e quem é o objeto do conhecimento? No conhecimento, o sujeito (o homem, o educador) é quem convive com o objeto (a realidade, a realidade da educação); aquele que tem a capacidade de conhecer esse objeto e deseja, pela pesquisa, conhecê-lo melhor. A validade do conhecimento depende do raciocínio correto, podendo ser: indutivo, quando parte do particular para o universal ou geral, e dedutivo, quando parte do universal para o particular. O conhecimento indutivo é um tipo especial de inferência, na qual partimos de uma série de informações ou de premissas


particulares – geralmente empíricas – para chegarmos a uma conclusão geral. O conhecimento dedutivo parte de, pelo menos, uma premissa universal, que conduz a uma conclusão particular, a uma inferência. A forma clássica da dedução é o silogismo. Um raciocínio dedutivo é válido quando suas premissas, se verdadeiras, fornecem provas convincentes para sua conclusão, isto é, quando as premissas e a conclusão estão de tal modo relacionadas, que é absolutamente 30

impossível as premissas serem verdadeiras se a conclusão tampouco for verdadeira. (Copi, 1978, p. 35)

Por falarmos em verdadeira, o que é verdade? O que é conhecimento verdadeiro? A verdade é um devir: acumulando verdades parciais, o conhecimento acumula o saber, tendendo a um processo para o infinito, para a verdade total e exaustiva. E a ciência, o que é? Trata-se de uma pergunta difícil de responder até para a própria ciência. Daí, surge a necessidade de um autoconhecimento do conhecimento científico. A ciência é o saber metódico, sistematizado, que adquirimos pela leitura da realidade, pela pesquisa, quando organizamos um conjunto de conhecimentos sobre um determinado objeto, obtidos mediante a observação, a experiência dos fatos e um método adequado, próprio. Método, do grego methodos, significa “caminho para chegar a um fim”. O método científico é a observação sistemática dos fenômenos da realidade, com controle rigoroso das informações, por meio de uma sucessão de passos orientados por conhecimentos teóricos, buscando explicar a causa desses fenômenos, suas correlações e seus aspectos não revelados (Goldenberg, 1997).

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1.2 A emergência do conhecimento científico A teoria do conhecimento, ou epistemologia, apresenta-se com um longo percurso histórico do conhecimento humano, desde os fundamentos do saber filosófico, ocidental e oriental até as formas assumidas pelos saberes científicos. Sabemos que um problema de início filosófico pode vir a ser tratado posteriormente como científico. O debate sobre os fatos observáveis para os físicos, o debate sobre o valor e a riqueza para os economistas e, atualmente, o debate sobre a complexidade, a ecologia e outros temas foram tratados do ponto de vista filosófico e, posteriormente, transformaram-se em problemas de tratamento científico. Então, é importante questionarmos: Como ocorreu o desenvolvimento do pensamento científico?

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A pesquisa se realiza em uma situação histórica, quando um ou mais membros de um grupo científico, em interação, buscam a sustentação para o seu objeto de estudo e, tendo os resultados validados, comunicam-nos como produção de conhecimento. Para realizá-la, são utilizados procedimentos próprios, racionais, sistemáticos, intensivos e científicos, que possibilitam o confronto entre o conhecimento teórico e a prática. Assim, a pesquisa produz o conhecimento, que, uma vez validado, torna-se ciência. Caro leitor, esse é um dos nossos propósitos ao estudar e buscar compreender o procedimento para reconstruir o conhecimento, acreditando na premissa aprendizagem pela pesquisa e pesquisa para a aprendizagem.


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Não pretendemos trazer uma informação filosófica exaustiva, apenas uma incursão histórica para mostrar como se desenvolveu o pensamento humano até tornar-se científico, destacando as diferentes contribuições do pensamento metafísico, empirista, linear, dialético e complexo etc. A intencionalidade desse percurso reflexivo consiste em iniciar a compreensão sobre o nível e as dimensões da pesquisa em educação na atualidade. Assim, inicialmente consideramos que o homem é um ser complexo, racional e em interação com a realidade. Essa é uma reflexão filosófica que colocamos a você, para que possamos ver a realidade não como um conjunto de mistérios que nos determinam, mas como uma série de fatos e fenômenos que podemos analisar, criticar, alterar, aceitar ou rejeitar, enfim, conhecer. Apresentamos a seguir as concepções teóricas do conhecimento formuladas ao longo dos tempos, porém apenas algumas delas serão referenciadas aqui. Sua abordagem mereceria aprofundamento em filosofia da educação, mas esse não é o foco desta obra. Idealismo Empirismo Positivismo Pragmatismo Ceticismo Marxismo Essencialismo Idealismo dogmático

Dialética Materialismo Fenomenologia Racionalismo Existencialismo Realismo Estruturalismo Modernismo

Aristóteles (384-322 a.C.) deixou-nos a crença de que a explicação científica é verdadeira, no sentido de corresponder exatamente à realidade, uma vez que a verdade emerge do contato com a realidade. O legado aristotélico permaneceria por séculos. Com isso, manter a verdade como critério de cientificidade ainda

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Usar bem a razão é o único método seguro, conhecido como dúvida metódica.

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permanece. Somente recentemente os filósofos têm conseguido deixar de lado essa ideia, ainda que com dificuldades. A crença de que os fatos podem revelar a verdade manteve-se até o século XVII, quando Francis Bacon (1561-1626), na Inglaterra, levantou-se contra o rígido sistema metafísico de Aristóteles, substituindo o caminho para se chegar à revelação mística da verdade pelo controle metódico e sistemático da observação. Trata-se do método que se tornou conhecido como ­empirismo. Bacon substituiu a especulação e a ortodoxia, quer dizer, a radicalidade teológica da Idade Média, pela investigação científica descomprometida. Ele promoveu o enfoque experimental na investigação e sua aplicação na resolução dos desafios que surgem na vida prática cotidiana. Do ponto de vista metodológico, podemos chegar à realidade subjacente aos fatos por meio da indução verdadeira, em oposição ao dogmatismo de posições a priori. Bacon considerou o método como um modo de “desbloquear” o intelecto. E em que se baseou Descartes para nos indicar um método? O francês René Descartes (1596-1650) apreendeu a ideia de que o domínio e a compreensão do mundo exigem a aceitação de um poder especial da mente que assegura a verdade: a razão humana. Ele considerava importante a observação criteriosa, mas que só fornece segurança pelo bom uso da razão. Foi um gênio que deu muitas contribuições à filosofia, à matemática e ao quantitativismo, por exemplo. Ele propôs um método de pensamento e para a prática da ciência denominado racionalismo.


Assim, o que resulta de Descartes, em acréscimo ao empirismo e à substituição da metafísica aristotélica pela metafísica da razão como faculdade máxima do conhecimento?

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Para o inglês John Locke (1632-1704), o irlandês George Berkeley (1685-1753) e o escocês David Hume, a consciência, a mente, a razão e o sujeito, originariamente, são como uma folha de papel em branco, na qual as impressões sensíveis vêm registrar suas imagens, que são nossas ideias. Nessa visão, apenas conhecemos aquilo que for registrado em nossa mente pelas impressões sensíveis. Estamos falando de uma posição subjetivista empirista, e toda filosofia da idade moderna é de natureza subjetivista, pois privilegia o sujeito, quer dizer, o lado subjetivo, no processo do conhecimento. Prosseguindo em nossa descoberta sobre o percurso do conhecimento científico, vamos nos deter, agora, na teoria positivista do conhecimento. No positivismo, linha de pensamento cujo precursor foi Auguste Comte (1798-1857), o método absorve de tal maneira a teoria que o conhecimento somente se torna válido mediante uma rigorosa metodologia, com a pretensão de chegar à universalidade do saber. Nessa perspectiva, o conhecimento é concebido como algo pronto e acabado, a ser transmitido de maneira sistematizada. A partir do século XIX, o caminho mais empregado nas ciências naturais – como a biologia, a física e a química – tornou-se igualmente o mais adotado para a pesquisa do mundo social. Com essa visão aplicada às ciências sociais – mais especialmente à sociologia – destacam-se os filósofos franceses Auguste Comte, mencionado anteriormente, e Émile Durkheim. Para Comte, o verdadeiro conhecimento do mundo somente era possível por meio das experiências vividas. Trata-se da Metodologia da pesquisa em educação: uma abordagem téorico-prática dialogada


posição empírica, segundo a qual a única fonte confiável de conhecimento é a experiência, pois envolve os sentidos.

Para o pesquisador positivista, bem como para o interpretativo, o objetivo da pesquisa é buscar o entendimento e realizar a descrição do fenômeno da realidade social estudada em um

Assim, os dados coletados pelos positivistas são geralmente numéricos, utilizando-se a estatística, de maneira que suas pesquisas são sempre quantitativas. Durkheim (1858-1917) via o ser humano, o grupo, em função da sociedade. Ele entendia a coesão social como a força necessária para o funcionamento da sociedade. Sua perspectiva é conhecida como pluralista-funcionalista, na sociologia. A objetividade é a regra na investigação científica, assim como a exterioridade, a qual pressupõe que a externalidade do mundo está posta independentemente dos seres humanos. Segundo Durkheim, essas são características do fato social, além da coercitividade e da generalidade. Para esse pensador, o mundo social é tão significativo que os atores sociais constroem e reconstroem as realidades de sua vida social utilizando conceitos, regras e interpretações que compõem as Regras do método sociológico (Durkheim, 1984), título de uma de suas obras. Os fundamentos aqui expostos constituem a teoria desse autor e explicam as características do fato sociológico. Nesse caminho percorrido, no século XVIII o criticismo de Immanuel Kant (1724-1804) representou a tentativa de sintetizar as várias orientações anteriores, buscando integrar aspectos do idealismo e do empirismo. A filosofia de Kant implicava dois movimentos: um de penetração da “coisa em si”, a que denominava Maria do Rosário Knechtel

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processo linear.


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o absoluto, e o outro de explicitação do absoluto em suas múltiplas formas. Esse método de filosofar foi dominante na Alemanha de 1800 até 1870, aproximadamente. Outrossim, essa foi a época do Iluminismo (meados do século XVIII), o denominado Século das Luzes, que influenciou sobremaneira a Revolução Francesa e seu lema: “Liberdade, igualdade e fraternidade”. Esse período trouxe o advento do enciclopedismo, a verdadeira origem do conhecimento científico. O século XIX parece ter sido o mais fértil para o desenvolvimento do conhecimento científico. Entre outras correntes de pensamento, surgiu a fenomenologia de Edmund Husserl (18591938) e Max Scheler (1875-1928). E, ainda, procurando unir a dialética de Hegel com o naturalismo, a sociologia e a economia, surgiu na sequência o marxismo de Karl Marx (1818-1883), Friedrich Engels (1820-1895) e Ludwig Feuerbach (18041872). Com eles, consolidou-se a tradição dialética no século XIX, embora ela tenha origens muito antigas. Marx, discordando da posição metafísica idealista de Hegel, aproveitou sua lógica dialética, aplicando-a ao mundo da realidade histórica concreta, ou seja, à natureza e, sobretudo, à sociedade. Pelo exposto, podemos constatar que a questão da evolução do pensamento científico, qualquer que seja a vertente considerada, é a difusão do conhecimento. Portanto, é uma questão pertinente à educação. Caro professor e orientador, até este momento procuramos fornecer uma visão geral do fluxo do pensamento, com alguns destaques. Todavia, nessa grande aventura do espírito humano na história de sua cultura, podemos considerar como um importante marco utilizado na pesquisa educacional o que apresentaremos a seguir: o modo de pensar dialético.

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E o que é a dialética?

É o processo de superação da contradição. O real se constitui a partir da totalidade do universo, que vai se realizando em um processo histórico, no qual cada momento é resultante de múltiplas determinações naturais, sociais e culturais. Como escreve Severino (1992, p. 138-139): “O homem também é uma entidade natural histórica, determinado pelas condições de sua existência, mas, ao mesmo tempo, cria sua história ao atuar sobre as condições objetivas, transformando-as por meio da práxis (ação-reflexão-ação)”. Assim, o homem sente, pensa e age.

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Assim, buscando essa compreensão, questionamos: Qual foi o ponto de partida desse pensamento? É possível pensar e pesquisar dialeticamente? Vejamos a construção do pensamento de alguns de seus principais teóricos. Para Georg W. F. Hegel (1770-1831), a contradição é o motor do processo de evolução do real, que valoriza a história e a transformação. Hegel tomou a realidade como uma síntese que se coloca à inteligência do homem, a priori e dialeticamente. A dialética é entendida como uma antinomia de opostos que se compõem, e não apenas se justapõem; esses opostos formam um todo, que se apresenta ao pensamento na forma de totalidade e movimento. Nessa síntese que é a realidade, o real e o racional coincidem, sendo necessária uma nova lógica para apreendê-la – a lógica da totalidade –, sem perder de vista o movimento. Esse movimento é o processo dialético, que permite superar as próprias contradições da sociedade, uma das premissas básicas do paradigma de Marx.


Para Demo (2003, p. 14), a dialética considera a realidade intrinsecamente contraditória porque sua dinâmica é tipicamente contrária. Não existe a linearidade cuja dinâmica vai de ponto a ponto em linha reta, nem tão pouco a circular que se move em torno de um ponto central de modo uniforme. Todavia, a circular em espiral que parte de uma realidade e circula com regularidades e irregularidades, em movimento, mediante determinações naturais, culturais, sociais e educacionais e retorna a realidade para intervir, esta 38

é dialeticamente construída.

Existe, assim, a realidade complexa que, embora manifeste regularidades, é dinâmica, porque se movimenta ante irregularidades. Demo (2003) afirma que essa é uma questão fundamental na discussão metodológica atual, uma vez que a dialética, nesse ponto de vista, entra em confronto com outras visões metodológicas. No entanto, essa é a que mais se coaduna com os estudos e pesquisas em educação.

1.3 Categorias da dialética O que é, pois, a contradição? “Contradição não é apenas entendida como categoria interpretativa do real, mas também como sendo ela própria existente no movimento do real, como motor interno do movimento, já que se refere ao desenvolvimento da realidade” (Cury, 1995, p. 30). Temos o seguinte exemplo desse processo: em uma pesquisa que motivou a dissertação de mestrado intitulada Atendimento à escolarização da criança hospitalizada com enfermidade prolongada, em Curitiba, no Hospital Pequeno Príncipe, a mestranda teve de trabalhar com a contradição entre educação e saúde. Por quê?

Metodologia da pesquisa em educação: uma abordagem téorico-prática dialogada


A pesquisadora, em sua prática cotidiana, observou que, quando os pais levavam a criança enferma para o hospital infantil, depois de tê-la mantido em casa para que não perdesse o ano escolar, a doença já estava em estágio adiantado; contraditoriamente, quando os pais providenciavam o internamento da criança portadora, por exemplo, de uma enfermidade reumatológica ou frequentar a escola e, então, perdia o ano escolar. A mestranda constatou a contradição e trabalhou com os opostos educação e saúde, no movimento, ou seja, dialeticamente. Foi uma pesquisa-ação que ocorreu durante dois anos e meio e depois disso, foram obtidos resultados animadores que deram origem a uma nova produção de conhecimento na área, a qual foi publicada e atualmente se encontra na terceira edição. Para saber mais sobre essa pesquisa, sugerimos a leitura da obra: MUGIATTI, M. Pedagogia hospitalar: a humanização integrando educação e saúde. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2006.

Buscando com você, leitor, entender melhor o conceito de contradição, depreendemos que a realidade, em seu todo subjetivo-objetivo, é dialética e contraditória, o que implica o fato de esse conceito expressar uma relação de conflito, de opostos no devir do real, o que também está presente na realidade socioeducacional, a ser por você considerada na metodologia da pesquisa em educação. Com isso, a totalidade, como categoria, está sempre aberta a novas determinações no interior da realidade, abrangendo o todo. Nesse movimento, cada elemento contém os anteriores e se abre a novas determinações.

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cardiológica e a levavam logo para o hospital, ela não podia mais


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Considerando-se a sociedade como um todo, eliminar a totalidade significa decompor os processos particulares da estrutura social em partes autônomas, sem estabelecer relações internas entre elas. Assim, considerar a educação como processo particular da realidade, sem inseri-la na própria totalidade, seria contrapô-la à sua característica de totalidade, imanentemente histórica e social, uma vez que incorpora e interioriza, nos grupos e nos indivíduos, uma visão de mundo preexistente, interpretada nas ações sociais do contexto onde vivem e transmitida aos outros por meio de práticas inseridas nos costumes, nas ideias, nos valores e nos conhecimentos. Daí por que as categorias, como expressão conceitual, dão conta de uma determinada realidade do modo mais abrangente possível. Até aqui, falamos sobre as categorias da contradição e da totalidade, mas todas nos ajudam a entender o todo social, cujos elementos são constituintes da realidade e onde se encontram os elementos para a pesquisa em educação: os sujeitos da pesquisa (alunos, professores, gestores, supervisores, funcionários em geral e comunidade em que a escola está inserida) e os atores sociais (Ministério da Educação, Secretarias de Educação, políticas públicas, entre outros). Devemos observar que essas categorias podem ser obrigatórias ou não. Dependendo da natureza do objeto de estudo, escolheremos o paradigma teórico e metodológico de pesquisa que lhe seja pertinente e que permita o grau de aprofundamento dos conteúdos e do problema a ser investigado para produção do conhecimento. As demais categorias são: a mediação, a hegemonia e a ­reprodução. Então, perguntamos: Você deseja saber como esses conceitos podem ser utilizadas na pesquisa educacional? Para isso, prossigamos em nossa intenção de conhecer melhor essas categorias e suas características.
 Metodologia da pesquisa em educação: uma abordagem téorico-prática dialogada


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Quanto à categoria da mediação: ao lançar nosso olhar de observadores sobre a sociedade, vemos que as mediações concretizam e incorporam as ideias, ao mesmo tempo que iluminam e significam as ações. No caso da educação, essa é uma categoria básica, porque, como organizadora e operacionalizadora de ideias, a educação torna possíveis alternativas de intervenção entre duas ações socioeducacionais e/ou práticas socioeducativas nas quais a mediação supera em qualidade a transmissão. Nos processos socioeducacionais, cada elemento guarda em si mesmo o dinamismo de sua existência e, de forma recíproca, os contrários se relacionam de modo dialético e contraditório. A interação entre os processos permite ao professor e ao orientador acadêmico agirem sobre a natureza, sobre o ser humano e sobre a realidade, tornando-se criadores de ideias e alternativas superadoras de problemas inter, intra e extraescolares. Os produtos dessas ações, ou seja, os elementos da cultura da educação, são mediadores nas relações que o educador estabelece com o mundo e com os outros – os alunos e toda a escola. Na categoria da hegemonia (dominação) estão inseridas tanto a possibilidade de análise quanto a indicação de uma estratégia política. As relações de classe estão presentes na sociedade como um todo e, igualmente, na educação. A análise com base na hegemonia é também uma forma de crítica, pois prepara as condições de sua superação de modo teórico-prático. Assim deve ser a indicação de uma prática política que satisfaça os interesses da maioria da população. Por fim, a reprodução implica o caráter de autoconservação da sociedade. Em um estudo etimológico do termo, temos: “a reprodução é uma redução de em favor de” (Cury, 1995, p. 38-39). O autor se refere à reprodução das relações sociais de produção,


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de modo a atenuar os conflitos presentes na sociedade, inclusive na capitalista. Essas categorias se combinam e se completam mutuamente e ainda nos auxiliam na análise do fenômeno educativo, considerado do ponto de vista da totalidade. Com uma síntese dessas categorias, objetivamos levar a você, leitor, o entendimento de como esses conceitos podem dar conta do estudo de uma determinada realidade e, igualmente, do papel que exercem para a reflexão crítica e compreensiva do contexto da educação. Como escreve Cury (1995, p. 53): “A presença da educação numa totalidade concreta manifesta esta totalidade, ao mesmo tempo em que a produz, uma vez que os seres humanos não são meros produtos sociais, mas também agentes históricos”; e poderíamos complementar: são sujeitos da educação.

1.4 Aspectos característicos do paradigma de Marx Os fundamentos dos paradigmas de Marx podem ser aplicados à educação; esses paradigmas serão rememorados no estudo das abordagens e dos procedimentos de pesquisa, mais adiante. Conforme Marx, a realidade natural e social de fato evolui por contradição. São os conflitos internos que provocam as mudanças sociais, que ocorrem dialeticamente, assim como na educação.

Explicando melhor: tratando-se de educação, o marxismo é uma concepção real e do pensamento que avança e que tornou possíveis a evolução, a criatividade, a historicidade e a prática no nível subjetivo dos seres humanos. Acreditamos que essa concepção possibilita a superação, ou seja, a solução da contradição,

Metodologia da pesquisa em educação: uma abordagem téorico-prática dialogada


a qual aparece enriquecida e reconquistada na forma de uma renovação educacional. “Por outro lado, o real se constitui da totalidade do universo, totalidade esta que se vai realizando num processo histórico, do qual cada momento resulta de múltiplas determinações, naturais,

Fica claro que o agir humano está pleno de valores essenciais e metafísicos que, por vezes, confundem-se com os valores técnico-funcionais. Logo, o fundamento ético da prática é necessariamente político. Daí que: Toda ação humana está envolvida com as relações de poder que perpassam o contexto social da existência do ser humano.

Ao encerrar esta primeira parte do livro, devemos fazer algumas considerações, necessárias ao entendimento dessa longa aventura do espírito humano, conteúdo sobre o qual esperamos ter propiciado uma reflexão e uma prática reflexiva, tão importantes na pesquisa e na reconstrução do conhecimento. As perspectivas do pensamento humano que trouxemos à tona aqui não foram colocadas em uma sequência cronológica rígida e exaustiva. Na verdade, esses modos de pensar coexistem e convivem em períodos históricos e culturais simultâneos, e sua influência nos meios científicos e filosóficos se faz sentir até hoje. Curiosidade: Podemos constatar, com relação à história da cultura ocidental, que a perspectiva metafísica predominou no Primeiro Milênio; a perspectiva científica, no Segundo Milênio; e tudo leva a crer que a perspectiva dialética predominará no Terceiro Milênio (Severino, 1992).

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sociais e culturais” (Severino, 1992, p. 34).


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Percebemos, atualmente, que a maneira de sentir, de pensar e de pesquisar dialeticamente está presente em quase todos os procedimentos de construção e de reconstrução do conhecimento, sejam quais forem suas origens e inspirações filosóficas. Sucede que a problemática socioeducacional da atualidade tem conferido ênfase às abordagens que levam em conta as contribuições mais ricas e mais críticas do modo dialético de pensar e pesquisar. Assim, em decorrência das mudanças globais, da complexidade da sociedade e do conhecimento e, por consequência, da educação, novas dimensões surgem na área da pesquisa.

Atividade final Neste momento, convidamos você a elaborar um texto didático como prática educativa reflexiva para sua compreensão sobre o conteúdo abordado até aqui. Agora que você se apropriou do significado de conhecimento, de conhecimento científico e da importância da pesquisa para a produção de conhecimento, elabore suas referências conceituais acerca dos seguintes temas: • A gênese do conhecimento humano. • Os filósofos, seus modos de pensar e suas proposições para a interpretação dos fenômenos da realidade. • Relato dos aspectos conteudísticos que mais lhe interessaram neste primeiro capítulo. Você pode utilizar os mapas conceituais a seguir; a Figura 1.2 se refere à organização de uma pesquisa, inclusive na educação; a Figura 1.3 sintetiza a emergência do pensamento científico.

Metodologia da pesquisa em educação: uma abordagem téorico-prática dialogada


Figura 1.2 – Como ser bem-sucedido na metodologia de pesquisa em educação

indutivo

ciência

por exemplo

idealismo pensar

criaram

é igual a caminho método necessita de leva ao pesquisa

saber

filósofos

sabedoria

conhecimento científico

dos

concepções teóricas

difere de saber

pela

surgiu do

reconstrução

pode ser conhecimento

dedutivo

produz

epistemologia

leva à

geraram o

e mais tarde dos cientistas

relaciona

com base na

do

verdade

problematização

do

gera

Realidade

sujeito

a origem são

objeto

Figura 1.3 – Emergência do pensamento científico Emergência do pensamento científico Qual o modo de pensar dos filósofos?

Mark, Engels e Feuerbach

deixaram legado Aristóteles

Hegel Durkheim

Bacon

pensaram

criaram

Comte

Descartes Locke, Berkeley, Hume

o movimento dialético

o movimento dialético

totalidade

categorias como

contradição mediação

tem hegemonia reprodução


Revisão do capítulo

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Conforme os objetivos propostos, você percebeu que nossa preocupação inicial foi compatibilizar certos conceitos básicos, contidos na visão do que é e de como se construiu o conhecimento ao longo da evolução do pensamento humano pelos pensadores que desenvolveram suas orientações filosóficas e seus métodos de pensamento. Assim, as preocupações da filosofia antiga e medieval eram ontológicas. A ontologia “estuda os caracteres fundamentais do ser: os que todo ser tem e não pode deixar de ter” (Abbagnano, 1998, p. 662). É a gênese do ser: trata do ser enquanto ser, isto é, do ser concebido como tendo uma natureza comum, que é inerente a todos e a cada um dos seres. As preocupações do pensamento moderno são epistemológicas, ou seja, tratam, antes de tudo, de avaliar qual a verdadeira capacidade de o ser humano conhecer a realidade que o circunda. Os empiristas, por sua vez, apenas admitiam como válido o conhecimento obtido por intermédio de ideias formadas a partir das impressões sensíveis; trata-se de um racionalismo empirista. Kant afirmava que o conhecimento pressupõe formas lógicas que existiam antes da proposição da experiência sensível; por outro lado, acreditava que aquelas só exerciam alguma função se aplicadas sobre conteúdos empíricos apoiados na experiência. Contudo, a síntese kantiana se desdobrou, retornando à metafísica idealista, conferindo prioridade novamente ao sujeito e à intuição intelectual; assim, priorizou o objeto e a experiência sensível, que se desenvolveu em nível epistemológico da ciência, sobretudo com Auguste Comte. Como pudemos observar no texto do capítulo, a contribuição de Marx para o desenvolvimento do pensamento foi e é marcante até os nossos dias, tanto quanto a aplicação das categorias por

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ele criadas e reconhecidamente aplicadas à educação, bem como o pensamento dialético e sua metodologia. Para o início da aprendizagem em pesquisa, é necessário termos clareza da relação entre conhecimento, pesquisa e c ­ iência. Por quê? Pesquisamos para produzir o conhecimento e, ao produzi-lo, estamos construindo-o e/ou reconstruindo-o e, por consequência, produzindo ciência. Entramos no nível epistemológico quando atingimos o estudo do conhecimento e seu produto (o conhecimento científico); assim, as questões básicas discutidas pela epistemologia referem-se ao que é o conhecimento e como ele pode ser obtido, construído e validado. No entanto, nem toda pesquisa tem a pretensão de alcançar o nível epistemológico. Identificamos a produção do conhecimento por meio do pensamento de certos filósofos e algumas metodologias de pensamento que orientam a pesquisa nos dias atuais, especialmente a dialética. Ela traz, para nos auxiliar na pesquisa em educação, as categorias que, relacionadas entre si, permitem captar criticamente a realidade dos fatos e fenômenos da educação. Devemos considerar a presença, na realidade educacional, de inúmeras contradições, desde o planejamento do projeto político-pedagógico, cuja contradição pode ser observada na justaposição de conteúdos, na inadequação destes à realidade dos alunos e ao que eles necessitarão na vida profissional e nas atividades interculturais, até as políticas públicas em contradição com as reais necessidades dos alunos, dos professores e da comunidade escolar. Essas e outras contradições podem ser estudadas, dialeticamente, com base na totalidade e na hegemonia, muitas vezes constatadas no próprio Poder Público e na instituição de ensino em questão. Pela pesquisa, buscamos as condições de superação dos problemas na realidade em estudo. No caso da educação, a categoria da hegemonia é básica, porque a educação, como organizadora e transmissora de ideias,


valores e hábitos, torna-se mediadora entre as ações socioeducacionais e/ou práticas socioeducativas propostas, o que pressupõe a superação. Por fim, devemos ter sempre em mente o seguinte pressuposto: a aprendizagem ocorre pela pesquisa e a pesquisa objetiva a aprendizagem.

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