Boletim da Casa de Goa

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Boletim da Casa de Goa JANEIRO / FEVEREIRO 2019

S. Francisco Xavier - Goencho Saib Valores da nossa Comunidade Festa de Nossa Senhora da Candelรกria


Boletim da Casa de Goa ÍNDICE 3 EDITORIAL 4/5 CARTAS AO DIRECTOR 6/11 DESTAQUE S. Francisco Xavier - Goencho Saib (Dr. José Filipe Monteiro)

12/16 MEMÓRIAS Festa de Nossa Senhora da Candelária - Goa (Celina Almeida) Valores da nossa comunidade - António Mascarenhas (Mário Viegas)

17/19 NOTÍCIAS Eco-turismo e turismo rural em Goa Conferência do Dr. José Filipe Monteiro no Museu de S. Roque (9/1) Recital do Suryá (Cânticos em Concanim) (20/1) Missa de Homenagem ao Padre José Vaz (26/1) Conferência de Valentino Viegas (Salazar versus Marquês de Pombal) (16/2) Primeira palestra do Círculo de Releitura (20/2)

20/32 DOCUMENTOS Conferência inaugural das comemorações de Gandhi (20/2) Conferência sobre Salazar versus Marquês de Pombal (16/2)

33 DISCOS Apresentação do disco Argham Diun (Dando Graças) , cânticos religiosos de Goa, edição do EKVAT.

34 GASTRONOMIA 35/36 AGENDA / ANÚNCIOS

CASA DE GOA Associação de Goa, Damão e Diu Pessoa Colectiva de Utilidade Pública Calçada do Livramento, 17 1350-188 LISBOA Contactos: 21 393 00 78 / 915 057 477 @ casadegoa@sapo.pt www.casadegoa.org Presidente da Direcção Vasco Soares da Veiga Director do Boletim M. Vieira Pinto Diagramação Juliano M. Mariano Capa: foto do parque de estacionamento da Casa de Goa Colaboraram nesta edição Celina Almeida Joseph Dias José Filipe Monteiro Manuel Vieira Pinto Mário Viegas Rui Cabral Telo Valentino Viegas O Boletim da Casa de Goa agradece à associada Ana Paula Guerra o fornecimento de textos das notícias de Goa.

ESTATUTO EDITORIAL O Boletim da Casa de Goa visa divulgar a atividade da associação, sendo um instrumento de divulgação da realidade de Goa e de tudo o que se insira nos fins estatutários da Casa de Goa. O Boletim aposta numa comunicação viva, imaginativa, atual e atuante, privilegiando as notícias mais relevantes da área, sem descurar a crónica, a opinião ou o comentário mais desenvolvido. O Boletim é da responsabilidade da Direção. Publicará textos que sejam solicitados, reservando-se o direito de não publicar as colaborações que não sejam expressamente solicitadas. Caso as mesmas sejam publicadas, respeitará na íntegra o texto enviado, exceto se o autor aceitar as sugestões de alterações que venham a ser propostas, em razão de critérios de espaço.


Editorial

PROGRAMA DE APERFEIÇOAMENTO DO BOLETIM (Medidas a implementar)

Recuperação dos números em atraso:

• Até ao final dos meses de Maio, Junho, e Julho serão publicados os números de Janeiro e Fevereiro, Março e Abril, e Maio e Junho, pelo que, salvo imprevisto, nas férias grandes a situação estará normalizada. Obtenção e disponibilidade de conteúdos: • Vão ser contactados todos os locais de origem de notícias e fotos a fim de se articularem para fornecer atempadamente os materiais necessários para noticiar os mesmos. • Constituir-se-á uma existência de originais, em ordem a eliminar um dos principais obstáculos à pontualidade da publicação que é o atraso na entrega dos mesmos. Conteúdos: • Vão ser diversificados e melhorados através de convites dirigidos a goeses e a pessoas de outras naturalidades para publicarem no nosso Boletim os seus trabalhos de interesse para o mesmo.

O atraso na publicação do Boletim, verificado no ano transacto, foi objecto de reparos dos sócios na última Assembleia Geral realizada no ano de 2018. Este atraso foi motivado pela necessidade de reagir à tomada de posição de alguns serviços da Câmara Municipal de Lisboa quanto à utilização das nossas instalações que atrasou as formalidades implicadas pela mudança da Direcção. No entanto, estão sanadas as situações que o impuseram. O último número foi já publicado sob a responsabilidade do actual Director e iniciaram-se as providências necessárias para a respectiva recuperação dos seus prazos normais. Com a publicação do número relativo aos dois últimos meses do ano transacto completaram-se as edições relativos ao ano anterior. Está publicado o número respeitante a Janeiro e Fevereiro do corrente ano. No final dos próximos meses de Junho e Julho serão publicados os números de Março e Abril, e Maio e Junho de 2019, e no início do Verão a situação estará normalizada. Vão tomar-se medidas para facilitar a realização de futuras edições (ver caixa), melhorar os conteúdos e o aspecto gráfico, ampliar-se a lista de distribuição, e angariar receitas publicitárias.

A ideia é fazer do nosso Boletim uma publicação polivalente que possa informar das nossas actividades, Aspecto gráfico: • Foi pedido a um paginador profissional, inserir a colaboração dos nossos sócios e amigos, dar conta especializado em publicações digitais, que dos nossos estudos, e publicitar os nossos regulamentos e elabore, sem encargos para a Casa de Goa, documentos. parecer destinado a melhorar a aparência do Boletim, e a permitir a sua directa Correspondendo a sugestão de um dos nossos associados transformação em revista suportada por inicia-se neste número a publicação de uma rúbrica de Cartas ao Director, na qual publicaremos as cartas que os papel, quando se deseje. Lista de distribuição: • Vai propor-se a ampliação da lista de distribuição de modo a abranger mais entidades, de forma a poder influenciar mais leitores, o que poderá ajudar à campanha de angariação de novos sócios que se encontra pendente de execução.

nossos leitores nos enviarem.

Tendo em conta que o Boletim é também distribuído a um número cada vez maior de leitores que não são associados da Casa de Goa, passaremos a publicar também uma súmula dos currículos dos autores dos artigos publicados.

Finalmente vamos abrir, no final da publicação, a título experimental, uma nova rúbrica, denominada documentos. Receitas publicitárias: Esta rúbrica incluirá todos aqueles documentos que • Existe a possibilidade de angariar consideramos de utilidade colocar à disposição dos leitores receitas através da publicação de anúncios no Boletim. Vamos tentar promover este ou outros interessados. Como as actas das reuniões, os textos das conferências pronunciadas, os regulamentos, etc. tipo de receitas.

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Cartas ao Director Fiquei, na verdade, surpreendido com a foto escolhida para a capa, a qual poderia ter sido inserida numa das páginas “interiores”. Não me estranharia, porém, que a capa apresentasse, por exemplo, o Presidente da Casa de Goa, ou seu representante, com o Primeiro-Ministro ou outra personalidade num encontro formal. Sou de opinião de que a Revista da Casa de Goa deve seguir as normas editoriais por que se tem regido até agora, incluindo a escolha criteriosa do conteúdo da capa.. Tenho proposto que a Revista tenha um espaço destinado às “Cartas ao Director”, onde os membros da CG podem sugerir novas ideias para a CG ou comentar o que considerem relevante. Melhores cumprimentos Jose Venâncio Machado A fotografia publicada na capa poderia ter figurado numa das páginas anteriores. Mas ela foi escolhida precisamente para figurar na capa. Claro que se dispuséssemos de uma fotografia do Presidente da Direcção com o Primeiro-Ministro, teria sido melhor. Só que não dispúnhamos. Também achamos que o Boletim deve ser composto de forma criteriosa, tanto a capa como no conteúdo. O que não é possível (embora se tente) é agradar a todos os leitores, porque os gostos variam muito de pessoa para pessoa. Igualmente quanto às normas editoriais que não sofreram qualquer alteração. Quanto à secção das cartas ao Director, aqui está ela, inaugurada com uma mensagem de quem a sugeriu.

Como tem sido hábito, cá recebemos o excelente Boletim da Casa de Goa. Lemo-lo com muito interesse e sentimos que temos perdido muita coisa boa que se tem passado nessa Ilustre, Vetusta e Nobre Casa de Goa. Vamos ver se nos pomos mais atentos e teremos que começar a marcar na agenda as coisas em que gostaríamos de participar. Um grande abraço, Rui e Maria Fernanda Conferência subordinada ao tema: GOA – Salazar versus Marquês de Pombal Quem, como eu, aprendeu história no tempo do “botas”, teve que apanhar com aqueles livros do situacionista António G. Matoso, cuja historiografia era quase como uma ode a Camões na sua obra Os Lusíadas, acaba por exultar com a forma como Valentino Viegas vê e compreende a Historia. Com o Matoso tudo era cor-de-rosa e os feitos dos portugueses eram cantados como se de um louvor permanente se tratasse. Salazar adoptou-o como historiador oficial do ensino e ai de quem estudasse por outras fontes. Valentino Viegas, na sua alocação, faz uma comparação de como os povos da Ásia portuguesa eram tratados e considerados pela legislação régia do tempo do Marquês de Pombal e como esses mesmos povos passaram a ser tratados e considerados após o Acto Colonial de António de Oliveira Salazar. Valentino começa por referir que até o nosso 1.º rei, após conquistar Lisboa (1147), para impedir o BOLETIM DA CASA DE GOA -4-


despovoamento do território e necessitando de fixar mão-de-obra, assim como garantir acréscimo de proventos para o erário público através da cobrança de impostos, concede foral aos mouros, isto é, uma carta de segurança e de privilégios: “garantindo-lhes a liberdade religiosa e conservação de propriedade mediante o pagamento de impostos e cumprimento de obrigações. Protegidos pelo rei, foi-lhes assegurado que nenhum cristão ou judeu os poderia lesar e que seriam julgados pelo alcaide eleito por eles próprios”. É seguidamente apontada por Valentino a forma como o Marquês de Pombal, após livrar-se dos seus opositores, Távoras e Jesuítas, decide, em nome do rei, tornar os cidadãos originais de Goa, absolutamente iguais em direitos e deveres aos cidadãos provenientes de Portugal. Muito mais tarde, Oliveira Salazar, através do seu Acto Colonial, vira tudo do avesso e trata esses mesmos cidadãos como indivíduos de segunda preterindo-os em relação aos oriundos do Continente. Nesta pequena crítica, não me cabe mencionar o que, Valentino trata tão pormenorizadamente. Apenas me interessa focar a forma como antes éramos informados dos factos da nossa História. Ficámos sempre com uma ideia cor-de-rosa de que Portugal era igual e uno do Minho a Timor, mas muito mal informados estávamos das condições a que os povos das nossas colónias, mais tarde promovidas a Províncias Ultramarinas, eram tão ignobilmente tratados. A conferência de Valentino Viegas encheu as duas salas da Casa de Goa, certamente uma consequência do interesse que o tema despertou. Após os aplausos merecidos, seguiu-se o debate, em que muitos enalteceram a forma como o tema foi exposto, mas houve também alguns discordantes que, certamente palas suas convicções religiosas e pela quase veneração que nutriam por Salazar, referiram que não foi bem assim, que o Acto Colonial tinha sido geral para todos as possessões portuguesas, que em algumas os povos ainda estariam num atraso cultural muito diferente do que sucedia em Goa e que não seria normal tratar uns de forma diferente dos outros. Passei por inúmeras terras das Províncias Ultramarinas, inclusive Goa, e vi bem qual o “estatuto” a que os naturais estavam sujeitos. Rui Cabral Telo

O Boletim da Casa de Goa congratula-se com mais este êxito do nosso associado e fundador Prof. Doutor Valentino Viegas.

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DESTAQUE

São Francisco Xavier − Goencho Saib A razão de ser J. Filipe Monteiro Integrada nas actividades da Exposição “Um Templo para Xavier” da responsabilidade da Direção da Cultura da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, teve lugar, no dia 9 de Janeiro de 2019, no Museu de S. Roque, a palestra “São Francisco Xavier − Goencho Saib: A razão de ser. Conhecido desde tempos muito remotos, diria mesmo in illo tempore, o missionário jesuíta, oriundo de famílias aristocráticas de Navarra, teve durante a sua missionação e após o seu falecimento, o seu nome associado a Goencho Saib. Um título? uma denominação? Um atributo? O que quer que seja, mas que deixa bem clara e explícita a admiração e a mais alta consideração que o povo de um pequeno território da longínqua costa de Malabar – Goa − tem por esse sacerdote firgui (europeu). Na génese da interpretação da palavra saib está uma teoria explicativa, isto é, uma hipótese ou uma opinião formada diante de factos comprovados, da sua vida e obra. Assim, para um entendimento credível desta hipótese, é fundamental conhecer as etapas marcantes da sua vida. Sinopse biográfica Francisco de Xavier, oriundo de uma família aristocrata, nasceu em Navarra, corria o ano de 1506. Em 1525 parte, para França onde frequenta a Universidade de Sorbonne. Cinco anos volvidos obtém o grau de Mestre em Artes (Filosofia). Em 1537 é ordenado sacerdote e segue para Roma onde conhece Inácio de Loyola e, em 1540, colabora na fundação da Companhia de Jesus (CJ). Após a aprovação pontifícia da CJ pelo Papa Paulo III, viaja para Portugal nesse mesmo ano e daqui (Portugal) para a Índia (Goa) em 1542. Ao fim de dois anos e inúmeras viagens na costa de Malabar, é nomeado, em 1544, superior das missões no Oriente. Em 1545 parte, para Malaca onde realiza a sua missão evangelizadora nos vários arquipélagos adjacentes. Regressa a Goa em 1548 e antes da partida para nova missão, em 1549, desta vez com destino ao Japão, realiza mais viagens pelas missões da costa de Malabar. Após dois anos de missionação no Japão, regressa a Goa, com escala em Malaca, em 1552 Depois de uma curta preparação de dois meses, parte para aquela que viria a ser a sua última missão − a viagem e missionação da China. Exausto e num estado de grande debilidade física morre no dia 2 de Dezembro na praia da ilha de Sangchuan, onde é enterrado. O seu corpo é transladado e, em Março de 1553, sepultado na Igreja da Nossa Senhora do Monte em Malaca. Mas no ano seguinte (1554) o seu corpo é novamente transladado. Desta vez para Goa, onde é enterrado na Basílica de Bom Jesus. BOLETIM DA CASA DE GOA -6-


Fig.1 – Itinerário de Francisco Xavier

Saib: O conceito e a interpretação Saib ou Sahib, palavra de origem árabe, também adoptada na Pérsia e India e empregue neste país para se dirigir ou referir a uma personalidade com autoridade. Era muito utilizada em relação aos funcionários brancos durante o Raj Britânico (domínio inglês da Índia). Tem como sinónimos: senhor/mestre/pessoa superior/protector. De entre estas designações, no nosso entender, a primeira (senhor) e a última (protector) serão, quiçá, mais compatíveis com o sentimento dos goeses em relação ao “seu” santo. Mas o que teria levado os naturais da terra a considerar este missionário, como o Senhor e Protector desta terra da costa do Malabar, quando, contas feitas, não teria estado, na totalidade, mais de cinco anos naquele território? Estaria a sua curta presença envolvida em algum mito? Em alguma crença ou lenda? Ou porventura num milagre? Por definição, mitos são narrativas utilizadas pelos povos para explicar fenómenos da natureza, misturados a fatos reais, características humanas e pessoas que realmente existiram. Por outro lado, a lenda, pode ser explicada como uma degeneração do mito, porque como são repassadas oralmente de geração em geração, vão, com o passar do tempo, sendo alteradas. A crença, por sua vez, é um paradigma que se baseia na fé, razão pela qual está associada à religião, à doutrina ou ao dogma. Por último, um milagre é um acontecimento dito extraordinário que, à luz dos sentidos e conhecimentos até então disponíveis, não possuindo explicação científica ainda conhecida, dá-se de forma a sugerir uma violação das leis naturais que regem os fenómenos ordinários. Fenómenos da natureza ou milagres Destas narrativas sintéticas, a dúvida que fica é se teria existido algum fenómeno da natureza ou qualquer BOLETIM DA CASA DE GOA -7-


milagre para justificar os epítetos (Senhor/Protector) em causa? Poderia o seu corpo incorruptível, apesar de todos os esforços no sentido de apressar a sua decomposição (sepultar em cal) e vicissitudes ocorridas nas transladações, ser considerado como um fenómeno de natureza? Ou a ocorrência de algum milagre ou algo inexplicável, como refere a vox populi, ao acontecimento que teve lugar no dia 24 de Novembro de 1683, quando Shambaji (Rei Maratha) capturou o forte de Santo Estevão, incendiou a igreja e preparava-se para caminhar em direcção a Velha Cidade. Perante esta situação dramática, D. Francisco de Távora, Conde de Alvor e Vice-rei da Índia, abre o túmulo de S. Francisco Xavier e coloca o seu ceptro nas mãos do santo, pedindo a sua protecção. Num acontecimento algo inesperado, as forças de um reino vizinho de Grão Mogul invadem os domínios de Shambaji, que posto perante o ataque à guarnição portuguesa ou defesa das suas linhas de retaguarda, ameaçadas pelas tropas do Grão Mogul, decide pela retirada e desiste de avançar para a Velha Cidade. Goa é salva. Na nossa opinião, estes acontecimentos, mesmo quando analisados à luz de conhecimentos da época, não explicam por si só, com uma consistência razoável, a denominação de Senhor/Protector. No nosso entender, e numa visão mais abrangente, o Goencho Saib teve na sua génese o modelo inovador de missionação alicerçado em singularidades, ao tempo desconhecidas, de modelo de liderança. Este arquétipo de governação é fundamentado nas suas atitudes, nas instruções que deixava aos que o substituíam nas suas ausências e nas cartas que escreveu aos seus colegas da CJ. Quadro 1 – Sentido de Liderança de Francisco Xavier

Conhecimento da realidade social

Disciplina

Voluntariado Social

Intelecto

Humildade

O seu modelo de liderança assentava em várias normas e procedimentos (Quadro 1). O seu entendimento em relação à comunicação, ao conhecimento da realidade social e ao voluntariado social, é assaz esclarecedor através das várias cartas que escreveu aos seus colegas da CJ bem como ao D. João III, na altura o soberano de Portugal. Assim, em relação à comunicação, escrevia “Falai sempre com doçura, sede sempre amável, mesmo quando tiverdes de repreender alguém. A vossa caridade deve dar a conhecer que a falta vos é desagradável, mas não a pessoa que cometeu. …Não admoesteis nunca em público os magistrados e os principais funcionários, cujo procedimento vos BOLETIM DA CASA DE GOA -8-


pareça irregular e repreensível…uma advertência pública, em vez de lhes ser útil, os irritaria e torná-los-ia furiosos, como o touro acossado e perseguido” . No que diz respeito ao conhecimento da realidade social, é sabido que o Estado Português e a Companhia de Jesus iniciam em 1541, uma colaboração que tem por desígnio evangelizar a Índia. Contudo, os propósitos que ligam a Coroa portuguesa e a CJ são, por vezes, muito ténues dado que enquanto a Coroa portuguesa quer sujeitar as necessidades das comunidades cristãs aos seus interesses, os missionários da Companhia querem salvar as almas dos nativos. A missionação de proximidade vai fazer ver a Francisco Xavier que o bem-estar da comunidade cristã, passa bem mais longe dos interesses do poder temporal português do que ele inicialmente pensava. Francisco Xavier não fica apenas pela observação desta situação. Numa Carta a D. João III, datada de 26 de Janeiro de 1549, escreve ao soberano «Vossa Alteza (V.A.) não é poderoso na Índia por acrescentar a Fé em Cristo, é poderoso por levar e possuir todas as riquezas temporais da Índia. Perdoai-me VA por lhe falar tão claro” . Por outro lado, o seu conhecimento da realidade social está bem perceptível na directriz ao Padre Gaspar Barzeu, aquando da partida deste para Ormuz: “Interrogai todos estes mercadores sobre a origem das suas fortunas, sobre a maneira como operaram as suas transacções, sobre a natureza dos seus negócios… e encontrareis a usura em tudo. Quase todos eles têm um tal hábito deste género de fraude e de rapina, que não têm nenhum escrúpulo… insisti sobre este ponto com respeito aos governadores, tesoureiros. recebedores… Muitas vezes fazem sempre esperar e sofrer necessidades àqueles a quem o tesouro é devedor, obrigando-se a uma composição que deixe sempre para eles uma parte devida; e esta locupletação manifesta, este vergonhoso roubo, adornam-no com o nome de indústria”.3 A sua apreensão da realidade social, principalmente no comportamento dos oficiais do Estado, leva a que Francisco Xavier anseie para que o trabalho dos missionários não seja confundido com o poder temporal português. Por último, a sua noção em relação ao voluntariado social está explícita nesta recomendação: “Visitai os pobres e os doentes nos hospitais; recomendai aqueles pobres desgraçados, aos administradores dos estabelecimentos, e empenhai-vos em procurar-lhes, além disto, todos os socorros e todo o bem-estar possíveis. Visitai os prisioneiros…rogai aos irmãos da Misericórdia que se empenhem com os magistrados a fim de obter a sua liberdade, e socorros para os mais pobres.”3 Sob outra perspectiva, as virtudes e os atributos intrínsecos ao santo missionário, podem ser inferidas pelo conteúdo de cartas endereçadas aos seus colegas da instituição (SJ), de uma carta dirigida ao Rei D. João III, bem como do livro de crónicas de J.M.S. Daurignac. Assim, a sua humildade pode ser induzida da carta endereçada ao Rei de Portugal em Goa a 7 de Abril de 1552: “A minha confiança não tem limites, quando considero que para uma missão tão sublime… Deus se dignou escolher-nos, a nós, o mais fraco e o maior dos pecadores…” bem como do pedido de perdão ao povo de Cochim, assim descritas nas palavras de Daurignac “de joelhos pedira perdão de todos os escândalos ocasionados pelo procedimento do Padre Gomes, e lhes restituía as chaves da igreja a que renunciou em nome da Companhia”.3 Em relação ao seu intelecto − e por intelecto entenda-se a faculdade de entender e transmitir o conhecimento − este é evidente e notório no conteúdo da missiva dirigida ao padre Paulo Camareni em Abril de 1549: “Logo que me veja estabelecido em meio daquele povo, pôr-vos-ei ao facto dos seus costumes, da sua literatura e do sistema do seu governo. Farei mais, darei esses esclarecimentos minuciosos à Universidade de Paris, para que ela os transmita às outras universidades da Europa.3 Outra vertente que imprimiu na sua missão evangelizadora foi a inculturação. Esta é comprovada através da carta que dirigiu à CJ em Roma, em Janeiro de 1544, onde se pode ler “Convoquei alguns de entre eles que me BOLETIM DA CASA DE GOA -9-


pareceram os mais inteligentes, e que tenham algum conhecimento… reunimo-nos por muitos dias seguidos e conseguimos, depois de grandes dificuldades, traduzir em pouco tempo, um catecismo em língua malaia.” E numa outra, redigida nessa mesma data ao S. Inácio de Loyola, onde escreve “Escrevemos um livro, na língua do Japão, que trata da criação do mundo e de todos os mistérios da vida de Cristo. E depois, escrevemos este mesmo livro, em letra da China, para, quando eu for à China, fazer-me entender, até saber falar chinês”. Também no livro de Oliveira e Costa se pode ler “Quando foi recebido por Yoshitaka não se apresentou como um humilde jesuíta, mas envergou esplêndidos paramentos próprios dum núncio papal , ao mesmo tempo que entregou ao Daimo um esplendoroso presente que incluía vários objectos nunca antes vistos no Japão. A audiência foi um sucesso, e os jesuítas começaram a compreender que teriam que fazer, por vezes, concessão aos valores culturais locais a fim de poderem transmitir a mensagem do Evangelho”. Na sua visão de liderança é também manifesta a necessidade de disciplina, como se depreende na carta dirigida ao padre Paulo Camareni, já anteriormente referenciada: “Conquanto eu os conheça muito intimamente para me achar persuadido de que eles não carecem absolutamente de um superior para os dirigir no seu ministério, devo designar-lhes um a quem tenham de obedecer, a fim de que não percam o mérito e o hábito de obediência”.5 Estas qualidades, que acabamos de enumerar e exemplificar, são em súmula princípios-chave de líderes excepcionais (Quadro 2), que Dale Carnegie, cerca de quatro séculos depois, em 1936, iria enumerar no seu livro “Como fazer amigos e influenciar pessoas” • • • • • • •

Sabem como criticar Reconhecem seus próprios erros perante a sua equipa Sabem quando sugerir ao invés de ordenar diretamente Elogiam todos os pontos fortes Esperam por excelência Tornam os desafios mais fáceis Tornam os seus colaboradores mais satisfeitos com os seus trabalhos Quadro 2. Princípios-chave de líderes excepcionais (Dale Carnegie)

S. Francisco Xavier, dois anos após a sua chegada, foi nomeado superior das missões no Oriente. Não foi um mero superior, leia-se chefe, mas antes um líder, pois enquanto um chefe tem a autoridade para mandar e exigir obediência dos elementos do grupo porque muitas vezes se considera superior a eles, um bom líder aponta a direcção para o sucesso, exercendo disciplina, paciência compromisso, respeito e humildade. Podemos assim afirmar que para além das qualidades de um líder nato, S. Francisco Xavier foi um visionário, um gerador de consensos e um executivo.

SENHOR

MESTRE

LÍDER

PESSOA SUPERIOR

PROTECTOR

Quadro 3 – Saib sinónimo de líder BOLETIM DA CASA DE GOA - 10 -


Enunciamos, no início do texto, os sinónimos da palavra Saib como senhor/mestre/pessoa superior/protector. Parece-nos evidente que estes atributos integram na plenitude as qualidades de um verdadeiro líder (Quadro 3). No caso particular de Francisco Xavier, complexidade em entender a razão de ser do atributo (Saib) reside, entre outros, na dificuldade em saber a data ou a partir de quando esse dom lhe foi concedido. Independentemente da data, o atributo que lhe foi concedido, manteve-se inalterável ao longo dos tempos, e, como tal, deve, forçosamente, estar alicerçado em factos sustentáveis e vivenciados pelos habitantes de Goa. Nunca será demais realçar que esta distinção teve lugar numa altura em que a comunicação em tempo real era uma miragem foi consensual entre os devotos de todas as religiões de Goa. Em conclusão e independente de aceitarmos outros fundamentos, o atributo de saib, numa visão holística, implica, intrinsecamente, uma enumeração de atributos e virtudes. No caso particular de S. Francisco Xavier, a distinção de ser considerado Goencho Saib, parece estar, inquestionavelmente, ligada ao cariz inovador que imprimiu a sua liderança − muito para além do seu tempo − enquanto superior das missões no Oriente. Bibliografia: Monteiro, Miguel Correia, São Francisco Xavier – Um homem para os demais. Edição dos Clube dos Colecionadores dos Correios, 2006. V B Monteiro, How St Francis Xavier became Goencho Saib.https//timesofindia.com J.M.S. Daurignac, S. Francisco Xavier – Apóstolo das Índias. Livraria Apostolado da Imprensa, Sexta Edição Correia, Pedro Lage Reis, O Conceito de Missionação de S. Francisco Xavier: Alguns Aspectos da sua Acção Missionária na Índia (1542- 1545) https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/4941/1/LS_S2_08-9_ Obras Completas – São Francisco Xavier. Edições Loyola. São Paulo Brasil. 2006. http://alexandriacatolica.blogspot.com/2010/12/ sao-francisco-xavier-obras-completas.html Oliveira e Costa JP. S. “Francisco Xavier e o Japão. S. Francisco Xavier: A sua vida e o seu Tempo (1506 -1552)”. Comissariado Geral das Comemorações do V centenário do Nascimento de S. Francisco Xavier. Lisboa 2006. https://www.pdfdrive.com/como-fazer-amigos-e-influenciar-pessoas-d59471551.html

NOTA BIOGRÁFICA DO DR JOSÉ FILIPE MONTEIRO O Dr. José Filipe da Purificação Monteiro nasceu em Goa. É Bacharel em Química e Geologia pela Universidade de Bombaim, Licenciado em Medicina pela Universidade Nova de Lisboa e Mestre em Biotécnica pela Faculdade de Medicina de Lisboa. Especialista em pneumologia, desenvolveu uma importante carreira hospitalar e assistencial. É igualmente o autor de numerosas palestras e comunicações apresentadas em reuniões científicas internacionais, bem como de artigos publicados em revistas científicas, tendo escrito capítulos em vários livros, enciclopédias e atlas. Foi professor assistente e orientador do Mestrado integrado da Faculdade de Medicina e integrou o Centro de Formação do Hospital de S. Maria. É sócio da Casa de Goa, tendo presidido à mesa da Assembleia Geral no quadrimestre anterior. BOLETIM DA CASA DE GOA - 11 -


MEMÓRIAS

THE FEAST OF OUR LADY OF CANDELARIA KOTTIANCHEM FEST AT PILERNE

Pilerne is a small village situated in Bardez taluka in North Goa, within the co-ordinates of 15 –32 degrees N and 73 – 49 degrees E. It lies 12 kms away from Panjim city and at a distance of 9 kms from Mapuça. It comprises of lowlands and a hillock. The lowlands of this quiet village are carpeted with coconut groves and paddy fields. and the hillock holds the majestic chapel of Our Lady of Candelaria. The hillock was inhabited in the long past by the kumbhars so it is known as the Kumbhar waddo. No one knows for sure when the

Kumbhars came to Goa. Some say they came from the Chota Nagpur Plateau in 3, 500 B.C...” The Goan Khumbar may well have affinities with khumbars from Orissa, Andhra and Karnataka as they crossed the Gangetic plains and Andhra across Deccan and then up River kalinidi into Goa “(1) They settled where the preconditions for their work were available. They needed special mud and abundant fuel for their furnaces. The Khumbars consider the soil as its god. No activity of the potters whether religious or occupational starts without saying a prayer to this element of nature. The Kumbhars or the potters wait

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with great expectations for the feasts of the churches and of the temples as these are occasions for the traditional fairs. They eagerly display an array of items used in the households in the past, before the influx of plastic and aluminum. They mould and bake pots and pans, idols, lamps , toys , pitchers that to keep the water cool in the hot summers known as gorgoleta ,jars and vases for our gardens and indoor plants, figures of soldiers and cocks that till now embellish our roof tops and compound walls. Our traditional musical instruments like the Ghumot and the Mhadalem , the lamps used in the temple rituals , the small pots used to burn incense and the tulsi – vrindavans are made of clay till the present day A large part of the populace of Khumbars at Pilerne dwindled due to a plague. Some migrated to the village of Socorro also in Bardez and there, they are known as Pillernkars. Their work in Socorro had a short span due to various environmental drawbacks and lack of support from the Government The khumbars is a dying community. As per the records available in the writings of Gomes Catão (2)and Father Moreno de Souza in his book in Konkani Bardescho Igorzo(3) The chapel of Our Lady of Candelaria in Kumbar waddo in Pilerne has a history of faith that dates back to 1755 .Pio Ribeiro and Francisco Britto e Rosario were businessmen and friends and sailors and in one of their sea-fairing journeys they brought an image of Our Lady and placed it in the house of Francisco Brito . A few years later, Francisco married Monica, the daughter of Pio Ribeiro. Misfortune struck Monica’s life as she became a widow at an early age. Monica returned to her father’s house and never forgot to take along with her the image of Our Lady Of Candelaria Her house was situated close to the site where the chapel of Candelaria is seen today. The Image of Our Lady was placed in a small hut of palm leaves built by Monica Her faith grew with every sunrise and the hut became a place of prayer for the people of the vicinity. Money poured at the feet of Our Lady so they built a chapel with the contributions. In 1752 on 15th of March the construction of the chapel was ready. But, the then Archbishop Dom Antonio de Neiva de Silveira (1750-1773) did not allow it to be opened as it was built without the consent of the Church. The Image was taken from the chapel on the hillock and placed in the Church of Pilerne. Later, in the year 1775 the

Archbishop Dom Franciso de Assunção e Brito went up to the hillock and may be, inspired by God, reopened the chapel. Money and offerings overflowed from all the villagers and the Church itself. It was time for a new and bigger chapel to be constructed .A chaplain was appointed who used to reside in the quarters near the chapel of Candelaria (4 )It would not be out of place to mention that there existed a seminary of Nossa Senhora de Candelaria close to the site of the Chapel and it trained many a priest who later joined various parishes. Unfortunately, the seminary fell into oblivion due to the epidemic in the village. The new chapel situated in the old kumbhar waddo has an octagonal shape. It resembles The Capelas Imperfeitas in the Mosteiro de Batalha in the north of Portugal. The Capelas Imperfeitas with the octagonal shape is located behind the main altar The chapel of Candelaria is accessible by a ramp that is 270 feet long and this leads you to 30 masonry steps, weather beaten after centuries of use, that wind up at the entrance of the chapel. Two statues of angels and two imposing figures of the order of St Francis beautify the landing. The façade has a phrase in Latin inscribed on it. The chapel has one main altar where the image of Our Lady of Candelaria is placed. There are two side altars but not yet in use. The Feast of Our Lady of Candelaria is one of the most ancient feasts of the Church. It started about two thousand years ago. It commemorates the purification of Mary, 40 days after the birth of Christ, according to the Jewish law and the Presentation of Jesus in the Temple of Jerusalem. It is the Christian Festival of Lights and on this day of the year all the candles to be used in the Church in the coming year are brought to the Church and prayers are said over them. Hence it is called Mass of Candles or Candlemass A white candle of wax is distributed to all devotees who attend the Candlemass. Many Churches in Goa celebrate this feast with a Mass and blessing of the white candles. However, the village of Pomburpá, in Bardez is renowned for its celebration The name candelaria is derived from Latin candela which means a candle. This term was later absorbed in languages of Latin origin viz; Spanish and Portuguese So the feast of Candelaria is a feast of candles. The origin of this feast goes back to the year 1392 in the islands of Tenerife in Canaries, where Our Lady of Candelaria

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is the patroness. As all legends go, this feast also has a legendary foundation. Before the conquests of the islands by the Spanish, it is said that two shepherds discovered a statue of Our Lady with a child in one hand and a candle in the other, on a beach. One of the shepherds tried to stone the statue and his hand became paralyzed. The other tried to stab the statue and he ended by killing himself. The aboriginals of that island placed the statue in a cave on the beach. Later, in 1559, the Spanish Missionaries built a Basilica in her honor in Tenerife and she was declared the patroness of the Canary Islands’The Portuguese and the Spanish missionaries introduced the feast of our Lady of Candelaria in Goa The Kottianchem fest which is celebrated in the Chapel of Our Lady of Candelaria is unique. It is celebrated on the Sunday preceding Ash Wednesday. People of all faiths and age climb the ramp to pray to Our Lady. The faithful sweep the ramp and clean it on the previous day. Some devotees go down on their knees over the slope, to fulfill a promise. Others sweep the gradient with their long hair All along the access ramp and the steps, young and old, Christians and Hindus sit with coconut shells (Kottio), begging. The coconut shells are the cheapest and easily available and nature friendly containers used by the beggars to collect money. Not today, of course, as coconuts are scarce and hordes of beggars have mulitplied Talking to some of the devotees, they revealed that they came there to thank Our Lady for saving them from a terrible accident, others to express gratitude for a healthy child. Some said that they come to the Chapel Feast every year as Faith and Trust in Her have helped them to live peaceful lives. Devotees ask for favors to Our Lady by making a vow “Hanv borin zalim zalear bhik magon farik kortelin“, if I get cured, I vow to beg and give the alms to you. Whatever money they collect in the coconut shell, it is offered to Our Lady as fulfillment of a promise. Novenas precede the Feast Day. People book the novenas in the previous year to be able to offer a Mass to Our Lady. On the feast day there are low masses and a Feast Mass. The Chapel Square is filled with devotees from Pilerne and nearby areas who carry with them white candles of wax, abolins and rosans to offer to this Miraculous Lady on the hill of Pilerne.

References: Cabral e Sá, Mário The Kumbhar Community, pg 116 Fr Catão Gomes Anuário da Arquidiocese de Goa, Damào e Diu 1955 Fr. De Sousa Moreno, Bardescheo Igorzo pg 256 Ibid pg, 257 Kottio dry coconut shells Kottiancheam fest feast of coconut shells Khumbar the one who works with clay ( oleiro ) Khumbar waddo ward of Khumbars Gorgoleta pitcher of mud where water is stored during the hot months. It has the shape of a cock and the water is poured through its beak Ghumat a quasi semi circular earthen vessel ending in a small open tube covered by the skin of the monitor lizard Mhadalem an earthen vessel, cylindrical shaped, covered on both ends by the skins of the monitor lizard Tulsi or Holy Basil a sacred plant for the Hindu. They plant the Tulsi in mud pots or in structures of masonry in front or near their houses. These are known as tulsi vrindavan Abolins small orange coloured local flowers used to make garlands and offered during religious festivals of Hindus and Christians Rosans marigolds NOTA BIOGRÁFICA DA DR.ª MARIA VIOLANTE CELINA SUHILA DE VIEIRA VELHO E ALMEIDA

A Dr.ª Maria Violante Celina Suhila de Vieira Velho e Almeida é Bacharel em Pedagogia e Letras, pelas Universidades de Goa e Mumbai. Obteve igualmente os títulos de Mestre em Português e Mestre em Pedagogia também pelas Universidades de Goa e Mumbai. Dedicou praticamente toda sua vida profissional ao ensino do português no Estado Português da Índia e no Estado de Goa. Durante a sua carreira beneficiou de várias bolsas de estudo para actividades de aperfeiçoamento.

Celina Almeida BOLETIM DA CASA DE GOA - 14 -


MEMÓRIAS

VALORES DA NOSSA COMUNIDADE

ANTÓNIO MASCARENHAS Por Mário Viegas Emigrante por natureza, o goês alcançou as sete partidas do mundo implantando-se e conquistando as sociedades onde se inseria. Por vários motivos, o principal dos quais o económico. Mas, nos primeiros tempos, o goês aportou a Moçambique, mais próximo, no espaço e no clima, e devido a estar também dentro da sua esfera governativa.

Começamos hoje por uma figura do desporto, por aquele que, leve e franzino, mas irrequieto e habilidoso, dispunha de força e de apurada técnica; era hábil na finta e no drible, ultrapassava o adversário com eficácia, transportava a bola para a linha da frente, atemorizava os defesas com as suas estonteantes movimentações, e marcava golos, no futebol. Ele reunia todos esses ingredientes mais do que suficientes para dotar completamente um avançado que se preze. Prendia a assistência coim os seus maneios, que parecia gingar mas não, era mesmo seu, manietava os seus adversários, para gáudio de quem gostava de desporto-rei. Ele é ANTÓNIO MASCARENHAS (AM), craque do Clube Desportivo Indo-Português, de Lourenço Marques, “feiticeiro da bola”, conforme o apelidaram em Maxixe, povoação a norte da capital. Calmo, sóbrio e conversador, António

Mascarenhas começou a jogar futebol nos juniores do Clube 1.º de Maio de Lourenço Marques, onde, assistido e presenciado atentamente, acabou O casal: Sara e António Mascarenhas classificado como o melhor marcador e… ganhou o campeonato da categoria. Depois de transitar para as reservas, mudou-se para o Clube Desportivo IndoPortuguês da mesma cidade. Ainda como estudante, Em Moçambique, que estamos agora a tratar, a sua fama como jogador não passou despercebida ao desenvolveu-se uma importante comunidade, dr. Carmo Vaz, goês, figura mítica da juventude indoprimeiro pelos seus progenitores, depois pelos seus portuguesa de Moçambique, professor de português descendentes, muitos dos quais brilharam em várias e educador, homem atento e justo. Tinha um afeto áreas, e honraram o nome da terra natal de seus muito especial pelo craque a ponto de o dispensar da antepassados e a sua própria identidade. São desses aula quando o nosso biografado vinha de um jogo que vamos retratar aqui, para que o leitor os conheça. BOLETIM DA CASA DE GOA - 15 -


disputado na véspera ou antevéspera. O dr. Carmo Vaz e companheiros cabiam dois refrescos Vimtos e duas achava que não era demais esse gesto atribuído a um sanduíches quando ganhavam as partidas; e uma atleta de valor da nossa comunidade. sanduíche e um Vimto quando perdiam… As mazelas continuavam. Para se deslocarem ao campo, ainda, não haviam machibombos próprios, com letras garrafais, ou sem elas. Os jogadores eram transportados pelos simpatizantes, iam de bicicleta, equipados ou, em algumas exceções, carolas custeavam as despesas dos transportes. Apesar dessas incongruências, os craques não deixaram de despontar e jogavam todos como se diz agora, por amor à camisola. Estávamos na efervescência dos anos 50(séc. XX). António Francisco Lourenço Mascarenhas nasceu em Lourenço Marques a 15 de setembro de 1931. Depois de completar o curso comercial na Escola Comercial de LM, empregou-se na secção de contabilidade CDIP Campeão da II Divisão de 1958 do jornal Notícias, considerado o melhor jornal de Moçambique. Em 1964, António Mascarenhas casou Grupo de simpatizantes com Sara Fernandes, natural da Beira. Em abril 1975 veio para Portugal e nos anos 80 (séc. XX) efetuou a Já como sénior, no primeiro jogo que António sua primeira viagem a Goa. Em 2005/2006, deslocouMascarenhas efetuou, contra o Desportivo – um dos se a Moçambique e ficou um ano em Maputo. grandes de Moçambique, dos consagrados Lage, Jorge Nicolau, Pedro Santos, Mascarenhas e os • Hoje, o nosso craque visita, quando pode, a companheiros do Indo venceram por 3-1. Noutro Praça da Figueira, para se encontrar com os amigos, jogo decisivo, que o Sporting de Lourenço Marques participa em almoços de confraternização (de escola, precisava de ganhar para conquistar o campeonato, de bairro, de clubes, de simples amigos), e, em casa, o Indo fez questão de estragar a festa, vencendo por nas horas vagas, gosta de ouvir música clássica, 4-3, com um dos golos carimbado precisamente pelo suave, e nada de barulho; mas gosta também dos “feiticeiro”. primeiros rocks, os de Elvis. Da cozinha, prefere um peixe recheado. Segue a vida quotidiana com atenção, As vertiginosas deambulações pelos campos de lê e viaja – de preferência a Luxemburgo, onde tem futebol da capital, possibilitam a António Mascarenhas familiares – e é adepto do F. C. do Porto. a glória de desfeitear todos os grandes guarda-redes da época em Moçambique (Acúrsio, Costa Pereira, Pedro Santos, Hélder, Pegado), registo que lhe granjeara Mário Viegas uma certa aura. No seu tempo, começou a sangria no futebol de Moçambique com a vinda para a Metrópole (Portugal) de Naldo, Coelho, Juca, Wilson. Mascarenhas foi sondado para ingressar na Académica ao tempo orientada pelo saudoso Cândido de Oliveira. Mas a sua mãe (D. Guiomar) não aprovou a ideia (as mães goesas não queriam os filhos fora do lar). AM já era um craque consumado, apesar do amadorismo da época, em que as carências logísticas ao atleta eram evidentes como as metodologias de treino. A título de exemplo, refira-se que antes da entrada em campo, o jogador não se aquecia nem se preparava adequadamente, como hoje acontece. Os prémios consistiam em refrescos e sanduíches. A Mascarenhas BOLETIM DA CASA DE GOA - 16 -


NOTÍCIAS

Goa promove o turismo rural e o eco-turismo (Assim reina o Rei da fruta) A Ambeachem Fest foi celebrada com uma excursão ecológica à Quinta de S. Estevam, a qual constituiu a mais excitante folga de Verão para os 110 convidados. Na Quinta, foi-lhes oferecida uma fantástica refeição goesa cozinhada diante deles em forno de lenha por senhoras pertencentes a uma cooperativa da região. Aam panna, pez, korom, raw mango slice, phanasabhaji, ghotache sasav, ukdo Brown rice, three types of mango pikles, alsandyachi bhadji, chanya bhaji, dried banana dalad and chicken xacuti- tudo produtos frescos da Quinta integraram um delicioso almoço, servido em louças levadas pelos participantes. A comida era fresca, biológica, parcialmente processada, isenta de produtos químicos e única pela sua qualidade. Enquanto o aan panna serviu de aperitivo, um gelado e um bolo de manga foram a sobremesa. No final foi servido chá de limão. Os convivas forma transportados de e para Pangim em autocarros. Foi o princípio de uma promoção de turismo rural e eco-turismo, no interior do Estado, cujo rendimento ficará totalmente na posse dos agricultores das aldeias. BOLETIM DA CASA DE GOA - 17 -


NOTÍCIAS Conferência do Dr. José Filipe Monteiro no Museu de S. Roque No dia 9 de Janeiro p. p. , no Museu da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa anexo à igreja de S. Roque, o Dr. José Filipe Monteiro pronunciou uma interessante conferência dedicada à figura de S. Francisco Xavier (ver destaque). A assistência (na qual se incluíam vários membros da Direcção e sócios da Casa de Goa) ouviu, com o maior interesse a exposição do ilustre conferencista que no final foi vivamente cumprimentado por todos os presentes.

Recital do Suryá na Igreja de S. Roque No âmbito das actividades relativas à exposição «Um Templo para Xavier» o Grupo Coral Suryá, composto por associados da Casa de Goa, realizou, no dia 20 de Janeiro, um recital de cânticos em Concanim. O recital, que obteve assinalável êxito, realizou-se na Igreja de S. Roque, da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. O Grupo Coral Suryá é dirigido pela nossa associada Ama Maia Camelo (Mitzi).

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NOTÍCIAS

Salazar versus Marquês de Pombal A 16 de Fevereiro, pelas 17 horas realizou-se a anunciada conferência de Valentino Viegas subordinada ao tema «Goa, Salazar Versus Marquês de Pombal». A conferência despertou inusitado interesse e suscitou um animadíssimo debate. Foi publicada no volume «Raízes da Minha Terra», recentemente apresentado na Casa de Goa. Na rúbrica Documentos publicamos o respectivo texto integral.

Primeira palestra do Círculo de Releitura Realizou-se a 20 de Fevereiro a primeira palestra do Círculo de Releitura, a cargo do vogal da Direcção, Dr. Manuel Vieira Pinto, que dissertou sob o tema «O Pensamento de Gandhi e a Sua Perenidade». O texto integral consta da nova rúbrica documentos.

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DOCUMENTOS

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Boletim da Casa de Goa - Documentos Goa Salazar versus Marquês de Pombal Por achar que não devo abordar de chofre o tema da conferência sem mencionar duas figuras incontroversas da história portuguesa, salientando a linha de continuidade do pensamento que os une, e por admitir que o teor da palestra pode ficar mais clarificado com subdivisões, vou reparti-lo em nove subtítulos. Em consonância, iniciaria com o primeiro intitulado 1. Dos primórdios ao Alvará de 2 de Abril de 1761 Nos primórdios do nascimento de Portugal, D. Afonso Henriques, o primeiro rei português, após conquistar Lisboa em 1147, habitada por cristãos e muçulmanos, cujo governador era mouro e tinha o bispo cristão, moçárabe, como segunda figura mais importante da cidade, adoptou políticas inteligentes em relação à população local . Para impedir o despovoamento do território conquistado e por necessitar de mão-de-obra qualificada, assim como de proventos para o erário público, em conjunto com o seu filho D. Sancho, concedeu foral aos mouros foros em 1170, ou seja, uma carta de segurança e de privilégios, garantindo-lhes a liberdade religiosa e conservação de propriedade mediante o pagamento de impostos e cumprimento de obrigações. Protegidos pelo rei, foi-lhes assegurado que nenhum cristão ou judeu os poderia lesar e que seriam julgados pelo alcaide eleito por eles próprios. Em troca pagariam um maravedi por cabeça, depois que começassem a ganhar, a alfitra, o azaqui, e a dízima de todo o trabalho. Além disso tinham de cuidar das vinhas e vender os figos e o azeite do rei . A carta dada aos mouros foros lisboetas era extensiva aos de Almada, Palmela e Alcácer do Sal. No prosseguimento dessa linha de orientação política, Afonso de Albuquerque, tendo conquistado Goa em 25 de Novembro de 1510, apadrinhou o casamento entre conquistadores e conquistados no intuito de criar um núcleo de população miscigenada defensor dos interesses portugueses no Oriente . Marquês de Pombal, Secretário de Estado dos Negócios do Reino no reinado de D. José I, seguindo o ideário dos regimes monárquicos absolutistas, do iluminismo e do despotismo esclarecido, desejando promover reformas através de centralização política e modernização do país, por ter conhecimento de que deixara de existir harmonia na Ásia portuguesa, entre a população local e os originários de Portugal, elabora o Alvará de 2 de Abril de 1761 e manda publicar com força de lei em nome do soberano. O documento foi dado por concluído, depois de terem sido ouvidos e confirmados os pareceres de muitos ministros do Conselho Real, e publicado após comprovação de inexistência de qualquer impedimento. Embora domine e dirija a política portuguesa, o arguto Marquês, pretendendo pôr em prática, em Portugal e nos seus domínios, parte dos ensinamentos aprendidos como embaixador nas cidades de Londres e Viena, tem o cuidado de mandar publicar a legislação sempre em nome do rei, mencionando expressamente a sua concordância. Em virtude do alvará versar matéria de suma importância, antes de analisá-lo, vejamos em primeiro lugar qual era o estado de situação política em Portugal e em Goa, aquando de sua publicação. 2. Situação política em Portugal e em Goa aquando da publicação do Alvará «Na noite de 3 de Setembro de 1758, o rei D. José I sofre um atentado no alto de Belém, quando regressava de sege ao palácio da Ajuda. Foi ferido no braço e numa anca com tiros de bacamarte. Apesar do caso ter sido guardado inicialmente em segredo, não deixaram de circular rumores de que o monarca tinha sido vítima de uma tentativa de assassínio, no qual estariam envolvidos membros da alta nobreza da poderosa família dos Távoras em conluio com os Jesuítas» . Feita devassa para averiguar responsabilidades, no dia 19 de Dezembro diversos membros da alta nobreza dos Távoras são presos e, dias depois, os jesuítas são condenados como conspiradores e autores morais da tentativa de regicídio. Na noite de 11 para 12 de Janeiro são encarcerados o Provincial dos Jesuítas João Henriques e os BOLETIM DA CASA DE GOA - 21 -


seus padres Gabriel Malagrida, Inácio Soares, João Alexandre, Jacinto Costa, José Perdigão, José Moreira, João de Matos, Timóteo de Oliveira e Francisco Eduardo . Na sentença proferida a 12 de Janeiro de 1759, «os juízes condenaram a pena capital o Duque de Aveiro, os marqueses velhos dos Távoras, seus filhos Luís Bernardo e José Maria e o Conde de Atouguia. À pena de morte foram também condenados os autores considerados materiais do crime, Brás José Romeiro, João Miguel e Manuel Álvares. Os jesuítas foram incriminados com base em confissões extraídas sob tortura. A sentença ordena a morte dos culpados, mas enfatiza, todavia, a responsabilidade moral dos Jesuítas no processo. Mais do que a alta nobreza, os Padres da Companhia são os grandes visados no processo» . A sistemática campanha desenvolvida contra os jesuítas e as medidas legislativas tendentes à desjesuitização, promovidas pelo Marquês de Pombal, prossegue com o alvará régio de 28 de Junho de 1759 que põe fim a mais de duzentos anos de actividade pedagógica da Companhia de Jesus em Portugal e nos seus domínios. Como para o chefe de Governo o atraso cultural português se devia aos conteúdos e ao método «escuro e fastidioso» introduzido pelos jesuítas, considerou imperioso e necessário actuar com urgência para reparar os estudos com novos conteúdos e alterar os métodos de modo a impedir que o ensino por eles ministrado em Portugal e nos seus domínios caísse em total ruína . As acções antijesuíticas prosseguem e culminam com a promulgação da implacável lei de 3 de Setembro de 1759, pela qual os regulares da Companhia de Jesus são imediatamente desnaturalizados, proscritos e expulsos do reino de Portugal e de seus domínios . De entre as várias incriminações apontadas, são acusados de corrupção, de declararem guerra ao monarca no país e nos seus domínios, de atentarem contra a sua vida na noite de 3 de Setembro de 1758, de falarem abertamente contra o rei manchando a sua alta reputação em Portugal, nos seus domínios e na Itália, e de conspirarem contra os Estados e a vida do rei . 3. Os grandes causadores da desarmonia existente na Ásia portuguesa Contextualizado sinteticamente o Alvará de 2 de Abril de 1761, destinado a promover a reforma sócio administrativa e a restaurar o Estado da Índia, vamos agora mencionar quem vão ser apontados como os grandes causadores da desarmonia existente na Ásia portuguesa e indicar em que moldes são citados no diploma. O rei começa por afiançar que foi informado de que devido à influência dos Regulares da Companhia de Jesus se contaminou a política e a economia no Estado da Índia, através do espírito de sedição e de discórdia, mas sempre debaixo da aparência de pacificação, engrossando desta maneira o desmedido poder com que se arrogavam em Portugal e nos seus domínios . Utilizando essa nefasta metodologia, os infestas jesuítas conseguiram que entre os vassalos reais naturais de Portugal e os nascidos no Estado da Índia fossem introduzidas diferenças, aversões, desprezos, chegando até a considerar os segundos de inábeis, em manifesta transgressão das leis e esquecimento dos costumes existentes desde o início da governação portuguesa na Índia. Para justificar as severas determinações constantes no diploma, que iremos especificar detalhadamente, o Marquês de Pombal aponta mais uma vez as suas baterias contra os jesuítas – esquecendo, entre outros méritos, até o relevante papel desempenhado como grandes dinamizadores do ensino, da educação, e da aprendizagem e utilização das línguas locais -, como se nada de positivo tivessem feito na Ásia portuguesa e fossem os principais e únicos responsáveis de todos os males que grassavam em Portugal e no seu território asiático. Efectivamente, depois de se ter ganhado a aposta da descoberta do caminho marítimo para a Índia com Vasco da Gama em 1498, a vontade mais ardente dos dirigentes portugueses foi a de procurar converter as populações locais à fé católica, nem sempre utilizando os melhores métodos. Quando a poderosa armada de Pedro Álvares Cabral partiu para a Índia, logo em 1500, levou consigo oito frades da Ordem de São Francisco, oito capelães e um vigário . Nessa linha de orientação político-religiosa, após a conquista de Goa por Afonso de Albuquerque, tendo a obra de conversão como uma das prioridades dos mentores do poder central, a ordem de franciscanos instala-se em Goa em 1518. Todavia a actividade missionária só vai ter grande impulso com a chegada de jesuítas em 1542. Apesar das medidas constantes no diploma em análise serem declaradamente favoráveis apenas aos cristãos baptizados, e mesmo sabendo que esses católicos haviam sido convertidos maioritariamente pelos jesuítas , o Marquês de Pombal não se coíbe nem se retrai na inflexível perseguição e nas terríveis acusações que continua a fazer contra aqueles grandes impulsionadores de cristianismo na Ásia portuguesa. 4.

Determinações régias BOLETIM DA CASA DE GOA - 22 -


O Marquês manda abolir as discriminações raciais na Ásia portuguesa obrigando os poderes locais a cumprir as determinações régias, pois o monarca não distinguia os seus vassalos pela cor da pele mas pelos méritos. Nessa conformidade, o monarca D. José I afirma que os naturais da Índia haviam sido considerados sempre iguais em honras, consanguinidade e interesses, sendo que a única diferença que existia para os empregos, matrimónios e civilidades resultava das naturais virtudes, letras, acções recomendáveis e a riqueza adquirida licitamente ao longo do tempo . Razão pela qual decide obviar as perniciosas transgressões e extinguir todos os abusos daí resultantes mandando guardar as leis, os usos e os costumes antigos, e ordenando que todos os seus vassalos nascidos na Índia Oriental e Domínios que tem na Ásia portuguesa, sendo cristãos baptizados e não tendo outra inabilidade de direito, gozem das mesmas honras, preeminências, prerrogativas e privilégios de que gozam os naturais de Portugal, sem a menor diferença . Em consonância com as suas determinações, o rei não só os considera imediatamente habilitados para todas as honras, dignidades, empregos, postos, ofícios e jurisdições, mas ainda recomenda muito seriamente aos vice-reis do Estado da Índia, ministros e demais autoridades que, para as citadas honras, dignidades, empregos, postos e ofícios, atendam sempre nos concursos dando preferência aos naturais das respectivas terras, mostrando-se capazes, de contrário, afirma, considerar-me-ei muito mal servido e punirei como achar justo . Tendo conhecimento de que os naturais da Índia eram ofendidos e preteridos em relação aos de Portugal, o rei denuncia aquelas práticas e estabelece penas severas aos incumpridores. Assim, determina que qualquer pessoa de qualquer estado ou condição que desprezasse ou distinguisse no trato e na civilidade os naturais da Índia, seus filhos ou descendentes, chamando-lhes negros ou mestiços, ou aplicando-lhes outras semelhantes antonomásias odiosas e de ludíbrio, ou pretendendo com aqueles pretextos considerá-los inábeis para as honras, dignidades, empregos, postos, ofícios e jurisdições, sendo fidalgo de Casa real que perdesse aquele foro de fidalgo, além de sofrer outras penas que sentenciasse; sendo nobre que perdesse a nobreza que tivesse e ficasse reduzido à ordem dos peões, com multa de duzentos pardaus para a parte ofendida e quatro meses de prisão, encarcerado com chave na cadeia pública, dobrando e triplicando estas penas cumulativamente à proporção das reincidências; sendo cavaleiro de qualquer das Ordens Militares - o rei arrogava-se de ser grão-mestre e perpétuo governador delas -, além das citadas penas que lhes fossem aplicáveis ficasse suspenso do uso do hábito que tivesse até ele determinar o que lhe parecesse justo; e sendo peão fosse condenado nas mesmas penas pecuniárias e de prisão da qual fosse degradado para Moçambique durante cinco anos da primeira vez, sendo agravadas as penas por reincidência de forma citada . E por saber que os goeses eram obrigados a usar os cognomes das famílias de origem contra as suas vontades, mesmo depois de terem sido baptizados, proíbe esta prática e determina que eles possam usar os sobrenomes e apelidos tal como usam as famílias em Portugal sem qualquer diferença . Para que essas determinações fossem observadas, o rei ordena ao vice-rei, ao capitão-general do Estado da Índia, chanceler, desembargadores da relação, ouvidores, juízes e os demais funcionários aos quais este alvará dissesse respeito que cumprissem o preceituado sem qualquer embargo, derrogando tudo o que tivesse sido estatuído em contrário. Manda também registar o Alvará, a vigorar para sempre, nos livros das Câmaras de Goa, Bardez, Salsete, Diu, Damão e demais lugares obrigatórios, depois de se publicar e afixar nos lugares públicos da cidade de Goa, Diu e Damão. 5. Acompanhamento do cumprimento da legislação promulgada O atento e perseverante Marquês de Pombal, que primava por acompanhar o cumprimento da legislação promulgada, não tendo tido qualquer resposta das entidades oficiais da Ásia portuguesa a respeito da publicação e execução do Alvará de 2 de Abril de 1761, tal como tinha sido determinado, escreve a D. José Pedro da Câmara, governador e capitão-general do Estado da Índia, em nome do rei D. José I, uma carta datada de 15 de Janeiro de 1774, estranhando o sucedido e recordando que através daquele diploma tinha removido, entre os vassalos reais de Portugal e os do Estado da Índia, as sediciosas diferenças que com as denominações de naturais e reinóis tinham maquinado os disseminadores das discórdias, ou seja, os jesuítas. Através dessa carta manda registar, publicar e dar a devida execução do Alvará de 2 de Abril de 1761 em todas as terras de seus domínios constantes no documento. Ordena também que os exemplares impressos do Alvará fossem remetidos a todas as Câmaras e gãocarias; as cópias das certidões lhe fossem remetidas; e a publicação e o registo se fizesse com a maior rapidez, por assim exigir o bem comum e o sossego público dos seus vassalos do Estado da Índia . BOLETIM DA CASA DE GOA - 23 -


6. Clarificação do diploma e as máximas reais Revelando grande empenho e determinação no acompanhamento do cumprimento integral das suas ordens, no mês seguinte, também por carta em nome do rei, datada de 10 de Fevereiro de 1774, o Marquês de Pombal envia instruções directas e clarificadoras ao Governador do Estado da Índia, D. José Pedro da Câmara, designando-as de máximas e dizendo que elas constituíam o verdadeiro espírito do Alvará de 2 de Abril de 1761. Afirma que antes dos malvados jesuítas introduzirem na Ásia portuguesa ideias de perturbação e de discórdia, em substituição da aliança existente entre portugueses e asiáticos, não havia distinção entre reinóis e naturais «porque o Grande Affonso de Albuquerque os deixou a todos alliados, e unidos em causa commum de consanguinidades, e interesses; imitando nesta forma a única Politica, que pode ser sollida para estabelecer, e dilatar Imperios»; Explicada nesses termos a razão de ser da união estabelecida pelo conquistador de Goa, declara na primeira máxima que tendo os jesuítas levado ao Oriente o plano de promoverem distinções entre reinóis e naturais, de fomentarem perturbações e dissensões entre brâmanes e chardós, semeando assim na Índia as mesmas discórdias que praticavam com idêntica malícia em Portugal, manda ao governador empregar eficacissimamente todo o seu zelo de modo a desterrar do espírito dos seus súbditos as distinções e divisões por eles causadas . Na segunda máxima informa que o grande número dos povoadores, defensores e missionários incumbidos de defender e alumiar aquelas remotas e vastas regiões deve ser constituído pelos naturais da terra, sendo a função dos europeus a de instruí-los e ajudá-los, como sucedeu na primitiva Índia . Na terceira manda dispor as coisas de tal sorte que o domínio útil das terras, os ministérios sagrados das paróquias e missões, o exercício de empregos políticos e até dos militares se conferisse na maior parte aos naturais da terra, ou aos seus filhos e netos, fossem eles de cor mais branca ou mais escura, porque não só eram igualmente vassalos de sua majestade, o rei D. José I, como também por ser conforme ao direito divino, natural e das gentes, que não permitia de forma alguma que os estrangeiros pudessem excluir os naturais da cultura das terras onde tinham nascido, dos seus ofícios e benefícios, pois caso contrário nasceria um ódio implacável e uma injustiça clamando ao céu uma satisfação condigna. Na quarta manda ao governador que castigue com severidade inflexível todas as pessoas que fossem contra os ditames das referidas máximas, ou notassem os naturais da Índia com epítetos de negros e mestiços e outros semelhantes, ou os inabilitassem para quaisquer actos ou empregos nobres ou civis com base naqueles ridículos pretextos. Ordena também que os transgressores, sendo do foro secular fossem rendidos e castigados imediatamente, e os do foro eclesiástico, transportados para Portugal nos primeiros navios que partissem, sem remissão alguma . Deve ter sido por causa da severidade e execução dessas penas que durante toda a minha vivência em Goa jamais ouvi um europeu, fosse militar ou civil, ofender os goeses chamando-lhes de preto ou negro. Dizendo constituir essas máximas o verdadeiro espírito do Alvará, o Marquês de Pombal conclui a carta ordenando, em nome do rei, que o Governador as trouxesse sempre presente na memória, em todas as ocasiões, para conciliar os espíritos dos que governava e para desterrar do meio deles tudo o que os pudesse dividir e alienar uns dos outros, extirpando as distinções de reinóis e naturais, inteira e absolutamente, e as de brâmanes e chardós em tudo o que fosse possível. 7. O Arcebispo de Goa, o clero goês e metropolitano O chefe do Governo, que pretendia subordinar a Igreja ao controlo do Estado, por odiar os jesuítas e estar convencido de que o atraso português se devia inteiramente às suas «maquinações diabólicas» informa de que tendo também conhecimento dos escandalosos abusos que se cometiam em Goa fazendo diferença entre o clero goês e metropolitano, favorecendo abertamente os segundos e ofendendo os primeiros, por uma carta pessoal datada de 10 de Fevereiro de 1774, enviada ao Arcebispo de Goa, Primaz do Oriente, em nome do rei D. José I, expressa a necessidade de existir recíproca união e mútua concórdia entre a Igreja e o Estado e com fundamento no direito do padroado faz-lhe recomendações expressas mandando que todos os passos a dar para realizar a sua missão apostólica teriam de ser os indicados pelo monarca «como Rei, e Senhor Soberano, como Protector das Igrejas, que nos Reinos, e Dominios Orientaes Fundaram, e Dotaram os Senhores Reis Meus Gloriosos Predecessores, como Governador e Perpetuo Administrador do Mestrado, e Cavallaria da Ordem Militar de Christo, e como tal Prelado Espiritual constituido pelos Summos Pontifices com jurisdicção superior sobre as de todos os Prelados Diocesanos, e Ordinarios das sobreditas Igrejas do Oriente» . Por outra carta, também com a mesma data, repete na essência as mesmas instruções que tinham sido feitas ao Governador do Estado da Índia, D. José Pedro da Câmara, designadas de máximas, solicitando a cooperação do arcebispo no que BOLETIM DA CASA DE GOA - 24 -


pertencia ao seu ministério para a execução útil e necessária do Alvará de 2 de Abril de 1761 . E por saber que as ordens constantes no alvará não tinham sido cumpridas pelo Arcebispo de Goa, que era metropolitano, a carta de 10 de Fevereiro de 1774 ia acompanhada da cópia de uma outra carta em que todos os eclesiásticos seculares, naturais de Goa, Salsete, Bardez, ilhas adjacentes e províncias do Norte se queixavam contra ele clamando junto do rei D. José I. Nessa queixa constava que mesmo depois da publicação do Alvará de 2 de Abril de 1761, na Sé Patriarcal de Goa, tendo falecido muitos cónegos, meios cónegos e quarternários, o Arcebispo Primaz não tinha nomeado um único goês para aqueles cargos, havendo nas ilhas de Goa, e províncias de Salsete e Bardez, mais de dez mil eclesiásticos, sendo muito deles opositores, letrados, pregadores e teólogos consumados com distinto procedimento. Em resposta, em vez de atender as reivindicações, o arcebispo queixava-se daquelas pretensões dizendo que os clérigos naturais já estavam soberbos, embora ele próprio reconhecesse que existiam clérigos naturais com capacidade, talento e habilidade para desempenhar as obrigações de qualquer cargo. O clero goês queixava-se também que com a política preconceituosa do arcebispo se enchia a Sé Patriarcal da cidade até de alguns chinas e de homens rudes, contanto que brancos, tão ignorantes que nem a língua latina sabiam perfeitamente . Sendo os naturais da Índia mais de dez mil clérigos e, com justa razão, um extraordinário número deles tinha vindo a apresentar queixas, junto do rei, por se acharem excluídos dos concursos e provimento em muitas paróquias, o Marquês de Pombal informa que o rei D. José I ordenava ao Arcebispo de Goa e Primaz do Oriente que, no provimento imediato das cinco dignidades de deão, de chantre, tesoureiro-mor, arcediago, e mestre da Escola da Sé Metropolitana de Goa, a selecção fosse feita entre os naturais da Índia e os reinícolas, especificando o método de escolha dos candidatos que devia ser utilizado para o preenchimento destes e doutros cargos . A política anti-racista de Pombal em relação aos clérigos indianos continuou mesmo depois da sua queda do poder. Alude-se que em 1541, o vigário-geral de Goa, Miguel Vaz, criou uma instituição multirracial para ordenar padres seculares, mas não regulares. Ele «convenceu as autoridades civis e eclesiásticas locais a patrocinarem a fundação de um Seminário de Santa Fé para a educação e treino religioso de jovens asiáticos e africanos orientais, não sendo neles admitidos europeus nem euro-asiáticos. Pouco depois da sua chegada a Goa, os Jesuítas assenhorearam-se desta instituição e associaram-na ao seu colégio de São Paulo.» São Francisco Xavier, «que defendeu calorosamente e reorganizou este seminário e o contíguo colégio Jesuíta de São Paulo, advogava a ideia de que os noviços indianos não deviam ser admitidos na companhia de Jesus. Ele e os seus sucessores defendiam a ideia de que os recrutas indianos se tornariam bons catequistas, auxiliares e assistentes dos padres das paróquias que provinham, na maioria, do clero regular europeu.» Se é possível que tenha havido exagero na carta de queixa que os naturais fizeram ao monarca D. José I, quando afirmaram serem dez mil clérigos, é elucidativo que apenas tenha sido ordenado um único padre indiano, brâmane, na Companhia de Jesus, de nome Pêro Luís, desde à chegada dos Jesuítas a Goa, em 1542, até à sua extinção em 1773 . Por maiores que tenham sido os erros cometidos pelos jesuítas, é óbvio que não lhes podem ser assacadas exclusivamente todas as culpas. É sabido que as causas da decadência da Ásia portuguesa são de natureza vária, que não faz parte do âmbito do presente trabalho apresentar. A análise do Alvará possibilitou conhecer quais os principais males de que enfermava aquele território na perspectiva governamental e quais as medidas tomadas para os resolver. Se o exame permitiu depreender que em relação aos interesses dos católicos, naturais de Goa, a política do Marquês de Pombal prosseguiu e até ultrapassou as marcas deixadas por Afonso de Albuquerque, vamos agora verificar qual foi a atitude de António de Oliveira Salazar perante Goa e o seu povo. Antes, porém, recordo que na cidade de Pangim, pelo menos no meio por mim frequentado, Salazar era por nós idolatrado e acreditávamos que gostava sobremaneira de Goa e dos goeses. 8. Estudo comparativo das medidas do Acto Colonial com as normas antecedentes É difícil senão impossível colocarmo-nos no lugar do legislador, daí que se torne incompreensível entender as razões que teriam sido por si invocadas para igualitarizar todos as possessões ultramarinas , quando a história de cada um delas era diferente. Se ao tempo talvez não tenha tido outra alternativa, o certo é que no concreto o Estado da Índia foi gravemente prejudicado com o Acto Colonial. BOLETIM DA CASA DE GOA - 25 -


A grande contestação contra a sua política ultramarina surge em Goa aquando da publicação de algumas das suas aberrantes disposições , cujo artigo segundo expressa em termos tão inexplicáveis que nenhum goês, minimamente informado, iria ler sem manifestar repúdio e o mais veemente protesto: «É da essência orgânica da Nação Portuguesa desempenhar a função histórica de possuir e colonizar domínios ultramarinos e de civilizar as populações indígenas que nêles se compreendam, exercendo também a influência moral que lhe é adstrita pelo Padroado do Oriente» . Afirmar que a missão histórica portuguesa era civilizar os goeses era revelar uma ignorância de pasmar sobre a História de Goa em particular e da Índia em geral. Não era esse seguramente o caso de Salazar, pois embora pudesse desconhecer que, por ser uma cidade situada em local estratégico do subcontinente indiano e muito importante em termos económicos, havia sido escolhida para servir de capital ao reino dos Kadambas, mesmo antes do nascimento de Portugal, ou que já tinha ganhado a independência anteriormente à conquista de Afonso de Albuquerque, todavia, enquanto ministro interino das Colónias, necessitava de justificar a legislação que ia publicar, apesar de saber que a Índia do seu tempo, embora não pudesse proporcionar tantas riquezas como outrora, continuava a dar prestígio a Portugal; e de ter conhecimento dos elogios proferidos pelo primeiro governador lusitano daquele território e das frases tão propaladas em Portugal a seu respeito: quem viu Goa não precisa de ver Lisboa; Goa Roma do Oriente; Goa, a jóia da coroa portuguesa, e tantas outras que retractavam o esplendor dos tempos áureos da capital do império português no Oriente. Realmente, a diferença entre o citado clausulado do Acto Colonial de Salazar e a instrução dada pelo Marquês de Pombal ao governador D. José Pedro da Câmara é substancialmente diversa. Antes de referi-la informo que no país circulavam cópias de um manuscrito de autoria de um magistrado muito instruído, que havia servido em Goa. Ele indicava como causas para a decadência portuguesa na Ásia e o aniquilamento de Goa, entre várias outras, o mau sistema de governo na Ásia, a péssima administração da justiça e o fanatismo religioso. E acrescentava: «Que os Jesuitas tiveram grande quinhão na erradissima politica dos Vice-Reis, he verdade incontestavel; mas não para ficarem sós. – A destruição dos Pagodes do Gentilismo foi hum dos maiores erros dos primeiros Governadores, que a Côrte alias approvou; e a rapacidade, de que foi acompanhada esta impolítica e violenta medida, a tornou ainda mais odiosa. – Milhares e milhares de homens ricos e industriosos abandonaram para sempre hum Paiz, que lhes era tão ingrato nas mãos de novos Senhores. – Em Portugal tinham expulsado os Judeus: - de cá affuguentaram, com perseguições, Arabes, Armenios, Persas, Guzarates, e outros muitos das terras de Bengala, de Siam, e do Pegú, que vinham a Goa fazer negocio, e alli se estabeleciam, e domiciliavam» . O Marquês de Pombal deve ter lido e tomado em boa conta esse manuscrito, razão pela qual ordenou ao governador que considerasse as suas determinações como máximas e, por haver dado provas de eficácia no passado, tenha também mandado que se estabelecesse como regra o seguinte princípio: para se defender e alumiar a região aumentando os povoadores, defensores e missionários, é necessário que o território seja preenchido pelo grande número de homens naturais da terra, cabendo aos da Europa apenas o papel de os instruírem e ajudarem, como sucedeu na primitiva Índia. Das cartas e da legislação promulgada pelo Marquês de Pombal sobre Goa se infere que o papel dos europeus nascidos em Portugal não era o de civilizar, mas o de ensinar e divulgar a cultura e os valores do mundo português e do mundo ocidental, com destaque para a pregação e difusão da religião católica. Se o artigo segundo era difícil de compreender e muito menos de aceitar pelos goeses, é fácil imaginar como é que teriam sido recebidas as decisões abertamente discriminatórias do artigo 32.º: «As instituições administrativas municipais e locais são representadas nas colónias por câmaras municipais, comissões municipais e juntas locais, conforme a importância, desenvolvimento e população europeia da respectiva circunscrição». Enquanto Salazar dava primazia à população europeia na representação das instituições administrativas municipais e locais de Goa, Marquês de Pombal havia mandado, em nome do rei D. José I, guardar as leis, os usos e os costumes antigos, ordenando que todos os seus vassalos nascidos na Índia Oriental e Domínios que tinha na Ásia portuguesa, sendo cristãos baptizados e não tendo outra inabilidade de direito, gozassem das mesmas honras, preeminências, prerrogativas e privilégios de que gozavam os naturais de Portugal, sem a menor diferença. Em termos comparativos de legislação a diferença é abissal, pois o Marquês de Pombal também determinou que no domínio útil das terras, nos ministérios sagrados das paróquias e missões, no exercício de empregos políticos e até dos militares se concedesse na maior parte aos naturais da terra, ou aos seus filhos e netos, fossem BOLETIM DA CASA DE GOA - 26 -


eles de cor mais branca ou mais escura, porque eram igualmente vassalos de sua majestade o rei D. José I, como também por ser conforme ao direito divino, natural e das gentes, e advertia que se alguém chamasse aos naturais da Índia, seus filhos ou descendentes, negros ou mestiços, ou pretendendo com este tipo de pretextos considerálos inábeis para as honras, dignidades, empregos, postos, ofícios e jurisdições, ficaria sujeito a multas e penas extremamente severas. Como se infere da documentação analisada, se o Marquês de Pombal proibiu qualquer discriminação entre os naturais e europeus, Salazar deu primazia aos metropolitanos e decidiu que as chefias das câmaras municipais, comissões municipais e juntas locais, pertencesse à população europeia, apesar de saber que há já mais de século e meio, o poderoso e influente ministro do rei D. José I havia ordenado que nas honras, dignidades, empregos, postos e ofícios se atendesse sempre nos concursos dando preferência aos naturais das respectivas terras, mostrando-se capazes e professando a religião católica. 9. Outras normas nefastas introduzidas por Salazar Sendo por demais infeliz o clausulado dos citados dois artigos dispensa qualificativo o 20.º do decreto n.º 19220, de 9 de Dezembro de 1931, cuja intenção primordial era promover a discórdia e a divisão entre os naturais de Goa, criando o grupo chamado de assimilados. Era a velha máxima política posta em acção, a de dividir para reinar, mais uma vez repetida e publicada com força da lei no seguimento do Acto Colonial: «Os naturais das colónias que não descendam de pais e mães europeus, mas que pelos seus costumes, ilustração ou outros indícios do grau de civilização atingido, sejam considerados não indígenas e assimilados aos europeus, são em princípio obrigados à prestação do serviço militar nas mesmas condições dos mancebos de que tratam os artigos 7.º e 8.º». No que toca a divisões existentes em Goa, quando o Marquês de Pombal legislou, recordou que ao tempo de Afonso de Albuquerque não havia distinções entre reinóis e naturais porque o conquistador os deixara a todos aliados e unidos em causa comum de consanguinidades. Por essa razão mandou ao governador D. José Pedro da Câmara empregar eficazmente todo o zelo de modo a desterrar do espírito dos seus súbditos as distinções entre reinóis e naturais, assim como as perturbações e dissensões entre brâmanes e chardós. Em vez de fomentar distinções e divisões, o Marquês procurou conciliar os espíritos e criar uma unidade política e social entre todos os súbditos reais da Ásia portuguesa. Longe de seguir as preocupações do Marquês de Pombal, antes pelo contrário, revelando abertamente intenções e pensamentos racistas, o chefe de Governo, António de Oliveira Salazar, manda cumprir um texto eminentemente discriminatório clarificando uma anterior disposição legal: «As vantagens que pelo artigo 24.º do decreto n.º 12209, de 27 de Agosto de 1926, foram concedidas aos filhos de pai e mãi europeus e portugueses, embora nascidos nas colónias, são extensivas a todos os seus descendentes em linha recta e por filiação legítima, desde que não exista cruzamento com indivíduos das raças nativas das colónias» . Desta forma, de nada servia aos residentes em Goa serem filhos de pai e mãe europeus e portugueses, pois se tivessem contraído matrimónio com goesas ou goeses perdiam determinadas regalias especificadas no diploma. De facto, se Afonso de Albuquerque patrocinava e pugnava pela miscigenação, se o Marquês de Pombal considerava todos os naturais de Goa iguais aos de Portugal sem nenhuma diferença, António de Oliveira Salazar adoptou uma política preconceituosa, discriminatória e racista que penalizava até os metropolitanos só pelo facto de se terem casado com os naturais da terra da Ásia portuguesa. Em jeito de conclusão direi apenas: 1. É de admitir que em Goa, por razões sociopolíticas, os manuais escolares de História não referenciassem a legislação do Marquês de Pombal acabada de ser analisada. 2. Nem Marquês de Pombal nem Salazar estiveram em Goa, mas Sebastião José de Carvalho e Melo legislou sobre Goa respeitando o seu passado histórico e como se lá tivesse estado, enquanto António de Oliveira Salazar fez tábua rasa de todo o passado e decidiu contra os goeses com sobrançaria e por imposição. Conferência realizada na Casa de Goa, em 16 de Fevereiro de 2019, sem supressões mas com acrescentos pontuais.

Valentino Viegas

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Boletim da Casa de Goa - Documentos Texto da Conferência inaugural do ciclo integrado nas comemorações do 150º aniversário do nascimento do Mahatma Gandhi (M. Vieira Pinto) I A minha conferência constará de duas partes. Direi primeiro algumas palavras sobre o Mahatma. Depois, sendo esta a conferência inaugural do ciclo integrado nas comemorações do centésimo quinquagésimo aniversário do nascimento de Gandhi, promovidas pela União Indiana e às quais a Casa de Goa se associou, tentarei justificar a nossa adesão a esta iniciativa e explicar a razão pela qual estamos empenhados em fazer com que destas comemorações se extraiam todas as virtualidades possíveis. II Mohandas Karamchand Gandhi, nasceu a 2 de Outubro de 1869 em Portbandar, no Guzerate, hoje um Estado federado da União Indiana. Foi assassinado a tiro em Nova Deli no dia 30 de Janeiro de 1948, por um ultra nacionalista hindu que o acusava de, pela excessiva flexibilidade manifestada ao tentar conciliar hindus e muçulmanos, pôr em causa os valores do hinduísmo. A família de Gandhi pertencia à casta dos Banianos. Estes eram originalmente comerciantes, mas alguns dos familiares de Gandhi brilharam na política, tendo ocupado altos postos nas administrações de alguns Estados da Índia. A família casou-o aos treze anos com uma outra criança que mais tarde lhe daria quatro filhos e o acompanhou nos seus primeiros tempos. Em 1888, contra a vontade de alguns dos seus familiares, Gandhi deslocou-se para a Grã-Bretanha para ali estudar Direito. Regressou depois à Índia mas não conseguiu estabelecer-se como advogado na sua terra natal. Em desespero de causa, emigrou para a África do Sul, onde conseguiu um emprego temporário. Ali exerceu depois, a advocacia, durante cerca de 20 anos. Adoptou uma forma de acção revolucionária e de protesto que rejeitava por completo o uso da violência. Esta prática ficou conhecida como satyagraha, palavra composta pelos vocábulos do sânscrito satya (verdade) e agraha (firmeza ou constância). Na África do Sul, quando se deslocava de combóio numa viagem que empreendeu por motivos profissionais, Gandhi, que comprara uma passagem em primeira classe, instalou-se na carruagem respectiva. Mas apesar de trajar fato e gravata, em tudo aparentando ser uma pessoa de elevada condição social, um passageiro branco exigiu a sua transferência para a terceira classe. Gandhi recusou-se a mudar e o revisor pô-lo fora do combóio, abandonando-o numa planície deserta. Inconformado com as injustiças que presenciava, e de que ele próprio fora vítima, passou a desenvolver intensa luta em prol da defesa dos direitos dos negros e dos emigrantes, que eram tratados como lixo pelos brancos sul-africanos. Quando as autoridades do Transval decidiram eliminar completamente estes direitos, Gandhi opôs-se fortemente. Introduziu a resistência passiva na luta pelos direitos humanos. Considerava os negros como a sua gente. Proclamava como sua família o Mundo inteiro. Regressou posteriormente à Índia. Bateu-se pela abolição do sistema de castas. Pelo fim dos casamentos infantis BOLETIM DA CASA DE GOA - 28 -


inteiramente arranjados pelas famílias. Pelos direitos das mulheres. Encarnou o movimento independentista, e conduziu, durante mais de três décadas, uma luta contra a exploração colonial imposta pela Grã-Bretanha aos indianos, exigindo a independência total da Índia, mas sempre por métodos não violentos. Nessa luta aplicou as virtudes da resistência passiva e da desobediência civil, que teorizara. Utilizava os jejuns, os boicotes e outros métodos pacíficos. Abria os olhos ao povo e persuadia-o adoptar métodos que não agrediam o opressor, antes o consciencializavam. Que concorriam igualmente para a libertação do próprio opressor. A Grã-Bretanha utilizava a Índia como mercado para os produtos que fabricava. A certa altura da sua luta Gandhi pediu aos povos da Índia que não comprassem as roupas fabricadas na Grã-Bretanha e que usassem apenas peças de vestuário produzidas artesanalmente pelas pessoas nas suas próprias casas. Com isto vibrou um rude golpe nas indústrias têxteis e de vestuário da Grã-Bretanha e concorreu também para a manutenção da pureza dos costumes da Índia. Quando os britânicos impuseram a compra e o consumo do sal por eles fabricado, tributando-o fortemente, Gandhi conduziu, durante centenas de quilómetros, multidões, que se deslocaram a pé em direcção ao mar, para ali o obterem elas próprias, deixando de o comprar aos ingleses. Por tudo isto foi várias vezes parar à prisão. Mas acabava sempre por ser libertado, já que as prisões mais não faziam do que aumentar-lhe a popularidade e, consequentemente, a força. A certa altura começou a ser conhecido como o Mahatma, palavra que em Sânscrito significa «Alma grande» A vida de Gandhi foi inteiramente coerente com os seus princípios e ensinamentos. Renunciou ao sexo, à gula, a tudo quanto significasse prazer e ao luxo. Percorria constantemente a Índia procurando consciencializar o povo. Em Madurai, cidade localizada no Estado de Tamil Nadu, constatando a miséria dos mais pobres, que nada possuíam para além de um trapo que enrolavam sobre os rins, ocultando os genitais, rapou inteiramente o cabelo e abandonou as roupas confeccionadas, passando a usar apenas uma espécie de lençol branco enrolado à volta do corpo. No tosco tecido desse pano é hoje obrigatoriamente confeccionada a bandeira nacional da União Indiana. Dormia num catre. Alimentava-se exclusivamente de vegetais. Acreditava que se todos comessem apenas o necessário não haveria fome. Ninguém podia apontar contradições ou incoerências no seu comportamento. Pela sua conduta e pela forma como vivia despertava as simpatias da maioria das pessoas para as suas causas. Dotado de uma indesmentível credibilidade tinha, devido a ela, um enorme poder. Ao mesmo tempo era um patriota. Mantinha e sublimava as tradições e valores da Índia, provando a superioridade dos povos do Industão em relação aos indígenas do Reino Unido. Os povos da Índia buscavam por todos os meios o aperfeiçoamento espiritual e a purificação individual enquanto os Britânicos, sobretudo comerciantes, apenas se preocupavam com o saldo da conta de ganhos e perdas. Não passavam de comerciantes. Na verdade Gandhi uniu e organizou os seus próximos e levou de vencida um poder que parecia superior mas que só o era aparentemente, porque como ele próprio dizia, a força reside no ânimo e não nas armas. Não venceu completamente porque não conseguiu que toda a Índia ficasse reunida numa só entidade política. Apesar de tudo ter feito para unir hindus e muçulmanos, não foi possível evitar a criação de um outro Estado, onde se concentraram estes últimos. E as migrações massivas a que a separação deu origem. E as vítimas que ela causou. Estado esse que posteriormente, por sua vez, veio a cindir-se em dois, com a separação do Bangla Desh. Mas ele também disse que, mais do que a vitória, interessa o esforço desenvolvido para a conseguir. Por outras palavras, uma derrota não é vergonhosa para quem fez tudo o que era possível para a evitar. Mesmo não vencendo totalmente, a sua acção concorreu para tornar realidade uma superpotência regional chamada União Indiana, a maior democracia do planeta, o sétimo país do Mundo em extensão, o segundo (senão já o primeiro) em população, um conjunto de povos, raças, línguas, culturas e religiões, que não é um país, nem um subcontinente, nem um continente, mas sim um verdadeiro Mundo. Como alguém já disse, depois de ter criado, a Índia, Deus não precisava de fazer mais nada. A Índia, só por si, justificaria, a existência do planeta. III Feito este enunciado de factos, chegou agora a altura de perguntar: devemos nós, Casa de Goa, participar BOLETIM DA CASA DE GOA - 29 -


empenhadamente nestas celebrações? E porquê? Portugal entretém hoje com a Índia relações normais. No estado actual das relações entre a União Indiana e a República Portuguesa aparece como natural a colaboração entre os dois países para a execução de projectos com objectivos comuns. E estas comemorações poderão ser um deles. Gandhi é uma figura mundial, um apóstolo da paz, um convicto da não-violência. E a divulgação da obra e do pensamento desta grande figura da humanidade é, ultimamente um tanto esquecido, na teoria e na prática, é, sem dúvida, uma finalidade comum, e pode ajudar à prossecução dos nossos objectivos. Mas há outros motivos. Entre os princípios da gestão ou da teoria organizacional formulada pelos behaviouristas ou cientistas do conhecimento, conta-se um princípio a que normalmente se dá o nome de paridade entre a responsabilidade e autoridade. Segundo ele, numa organização, a autoridade nunca deve ser maior ou menor do que a responsabilidade. Deve ser sempre igual. Quem tem autoridade deve ter igualmente responsabilidade e a inversa também é verdadeira. Mas esse princípio admite excepções. A nossa atitude em relação a Goa e aos restantes territórios que foram portugueses, constitui uma delas. Nós, portugueses, não possuímos hoje qualquer autoridade formal nas nossas Províncias africanas agora independentes nem no nosso antigo Estado da Índia, que compreendia os territórios de Goa, Damão, Diu, Dadrá e Nagar Aveli. Nem de facto, nem de direito, uma vez que alguém, em nosso nome, renunciou à soberania sobre esses territórios. Mas nem por isso nos é permitido desinteressar-nos do bem-estar e do futuro dos habitantes daqueles territórios. Continuamos a sentir alguma responsabilidade em relação a eles. Nós não os abandonámos nem nunca os abandonaremos. Devemos recordar que quando os nossos antepassados conquistaram Goa o poder estava na mão de Muçulmanos. Goa era apenas uma base para permitir a operação das nossas frotas marítimas. Os nossos antepassados foram recebidos como libertadores pela população hindu. Ao contrário do que fizeram aos muçulmanos (pensa-se que aniquilaram cerca de seis mil) os nossos antepassados respeitaram a população hindu. Reconheceram encontrar-se na presença de um povo e de uma cultura superiores. Garantiram aos hindus a conservação de todas as suas propriedades. E liberdade para continuarem a viver de acordo com os seus costumes, sendo unicamente proibida a prática do Sati. Não se interessaram apenas com os lucros da pimenta. Apaixonaram-se por aquelas terras e por aquelas gentes que todos os testemunhos colocam entre as mais belas que alguma vez fizeram parte do império português. Instalaram-se ali para ficar. Afonso de Albuquerque determinou aos dirigentes e funcionários portugueses que levassem para Goa as suas famílias. E tudo fez para que os homens solteiros casassem com senhoras goesas. E assim se originaram as famílias goesas e indianas que ostentam nomes portugueses, muitas das quais possuem membros que desempenharam cargos de relevo na sociedade indiana. Na minha opinião seria útil copiar a prática do Governo indiano que consiste em outorgar um cartão de origem a todos quantos provem possuir antepassados com essa qualidade. Deveríamos ter igualmente um cartão de origem para outorgar aos indianos de origem portuguesa. Se o nosso Estado não o criar podemos criá-lo nós. Claro que no nosso caso seria um cartão de origem portuguesa. A manutenção das memórias da nossa presença de séculos naqueles territórios é um imperativo da manutenção da própria nação portuguesa. Existe um tratado, assinado, em nome de Portugal, por quem ocupou o poder no seguimento do golpe de 25 de Abril de 1974, o qual estabelece neste campo algumas garantias. Mas a plena preservação das nossas memórias em Goa e nos restantes territórios que foram portugueses só pode lograr-se desde que se mantenham boas relações com as autoridades nacionais e estaduais da União Indiana. Goa é hoje um Estado federado da União Indiana. Os restantes territórios, segundo penso, continuam na dependência do Governo Federal. De ambas as situações se podem auferir algumas vantagens. Mas é necessário convencer a Índia de que pode tirar proveito das especificidades de Goa e dos restantes territórios, onde durante séculos se levou a cabo um encontro de culturas. E a força da qualquer cultura só se apreende quando a comparamos com outras. Concretamente, é necessário que a Índia se responsabilize pelo ensino do Português em Goa. Se o Português BOLETIM DA CASA DE GOA - 30 -


passar a ser uma das línguas do Estado de Goa tem de ser considerada uma eventual participação da União Indiana na CPLP, ainda que com o estatuto de simples observador. Para evitar a preponderância que o Chinês mandarim está obter entre nós, Portugal poderá ter interesse em fomentar o ensino do Indi. Uma colaboração tripartida com Moçambique poderá contribuir para a também desejada consolidação daquele País do Índico. Como já disse, no estado actual das relações entre Portugal e a Índia aparece como natural a colaboração dos dois Estados em projectos que conduzam à consecução de finalidades comuns e todas as oportunidades para isso devem ser aproveitadas. Mas há outras razões e talvez não menos importantes. Cito palavras recentes do Prof. Doutor Henrique Machado Jorge: (passo a citar): «…Há que reconhecer que a chamada Civilização Ocidental se encontra em crise profunda. Por duas razões principais. A primeira, porque depositámos excessiva confiança na ciência e na tecnologia de base científica. A realidade é que atingimos um estádio em que não somos capazes de avaliar o risco associado a tecnologias que estão a emergir sucessivamente. A segunda razão é a profunda «desespiritualização» que a modernidade e a contemporaneidade europeias instituíram. Chegados a uma situação de bloqueio, a única saída que se afigura factível é a retoma da espiritualidade por via de conceitos e valores que as filosofias e culturas da Ásia, com particular relevo para a Índia, desenvolveram ao longo de milénios. Correntes filosóficas como Vedanta, Budismo e Jainismo, para apenas mencionar algumas, poderão revelar-se essenciais para uma reorientação das dinâmicas desenvolvimentistas ocidentais, que devolva à humanidade fundadas perspectivas de sobrevivência a longo prazo.» (fim de citação). Estas palavras, concorde-se ou não com elas, induzem a pensar. Analisemos, se estão de acordo, as manifestações concretas desta crise na sociedade portuguesa. Comecemos pela primeira razão principal, ou seja a excessiva confiança depositada na ciência e tecnologia de base científica. Na verdade, começamos a estar em condições de avaliar o risco associado a tecnologias que estão a emergir sucessivamente. Mas a questão já nem é verdadeiramente essa porque na verdade somos já hoje escravos dessas mesmas tecnologias. Provavelmente avaliar os seus riscos não serviria já para nada. Exemplificando: pode calcular-se o impacto das automações no emprego. Mas, sobretudo com a desculpa da competitividade imposta pela globalização, ninguém se atreve hoje a colocar no prato da balança os inconvenientes dessas técnicas. Proclama-se que deve ser a economia a servir o homem e não o homem a servir a economia mas é mesmo o homem a servir a economia como o comprova a sucessão das reorganizações que se efectuam sem outra finalidade que não seja a supressão de postos de trabalho. Quanto à «desespiritualização» que a modernidade, o relativismo, a falsa noção da liberdade, a renúncia à integração, e outros factores que a contemporaneidade europeia instituiu, ela está patente em muitas realidades da vida quotidiana. No comportamento dos políticos, na expressão das reivindicações, na dificuldade de descortinar ideais e princípios, e na impossibilidade da própria distinção entre o bem e o mal. O vício, a violência, o sexo e o crime aparecem como figuras normais do nosso quotidiano. Não há filme, telenovela ou jogo de computador onde eles não estejam presentes. A verdade, é o politicamente correcto. A união já não faz a força. Os partidos multiplicam-se e levam a luta política a todos os campos, chegando mesmo a discutir a própria nacionalidade. Os direitos dos velhos, das mulheres e das crianças não estão assegurados. Nem nos casos de violência doméstica, nem de assédio sexual ou psicológico, nem de discriminação, nomeadamente salarial. O mérito não é reconhecido. Quando percorria Índia para explicar o seu pensamento ao povo Gandhi sublinhava o valor da unidade como sinónimo de força (que se transformou no divisionismo), da igualdade, como sinónimo de justiça, (substituída pela iniquidade) de lealdade, como sinónimo da amizade (substituída pelo pragmatismo). E persiste o consumo de drogas, o alcoolismo e a gula. Entre nós, a «despiritualização» (para a qual o fim do serviço militar foi determinante) também se patenteia naquilo que o País exige dos seus cidadãos. Antigamente, exigia-se que o cidadão estivesse disposto, se necessário, a morrer pela Pátria. Actualmente basta que pague os impostos. Substituí-se um sentimento por um valor pecuniário. BOLETIM DA CASA DE GOA - 31 -


O estudo da vida e dos ensinamentos de Gandhi acompanhada da relocalização da religião e da moral, hoje dificultada pelos escândalos a que a hierarquia não tem dado a resposta devida, pode ser uma oportunidade para esse efeito, porque a sua vida possui «uma dimensão atemporal fortemente marcada que nos permite fazer dele um guia possível para a aspiração humana a um Mundo mais justo» Por tudo, considero que a iniciativa de levar a cabo as comemorações do 150º aniversário do nascimento de Gandhi, e a revisitação do pensamento que elas proporcionam, deve ser agarrada com ambas as mãos. Na minha opinião, ela serve por igual os interesses da Índia, os interesses de Goa e os interesses de Portugal. Por isso, penso que devemos estar gratos a todos quantos têm trabalhado (ou haverão de trabalhar) para essas comemorações, bem como àqueles que assistiram aos actos constantes das mesmas, garantindo assim a sua realização. Foi decidido que a Casa de Goa e respectivos corpos sociais se associem, com a sua vontade e os seus recursos, às comemorações do centésimo quinquagésimo aniversário do nascimento do Mahatma.

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D ISCOS Argham Diun (Dando Graças), cânticos religiosos de Goa, edição do EKVAT Cânticos religiosos interpretados pelo Grupo EKVAT da Casa de Goa nas Missas de S. Francisco Xavier, na Igreja de S. Roque, ao longo dos anos, incluindo vários originais do seu Diretor Musical Arvi Barbosa. Cânticos em concani dedicados a S. Francisco Xavier e a Nossa Senhora com as letras traduzidas para português. Cânticos em português ainda hoje cantados em celebrações religiosas em Goa. Indice dos cânticos: S. Fransisku Xavierá / Ruzari Saibinni / Sam Fransisk Xaviera, vhoddá kunvrá / Argham Diun / Somia kaklut kôr / Bhettovnnê Git / Povitr, Povitr, Povitr / Devachê Xelliê / Jezu mhojea Devá / Jesus Bendito / Argham ditanv Tuk’ Saibinni / Milagri Saibinni, amkam ghe tujea gopant / Com minha Mãe estarei / Ladainha à Virgem Mãe de Deus / Onodvont S. Francisk Xavierá A gravação e edição deste CD só foi possível pelo generoso patrocínio da D. Teresa Mendia de Castro. Pode ser adquirido na Casa de Goa (7€).

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GASTRONOMIA CHUTNEY DE MANGAS Ingredientes: 25 mangas descascadas, reduzidas a fatias pequenas e expostas ao sol por dois dias 110 gr de gengibre em fatias finas 110 gr de alho 55 gr de pimentas secas 340 gr de açúcar 8 gr de sal 55 gr de mostarda descascada 226 gr de uva passa 1 garrafa de vinagre Temperos aromáticos

Preparação: Ponha a cozer quase toda a porção de vinagre com poucos pedaços de canela, cinco ou seis cardamomos, quatro ou cinco cravos e deixa-se esfatiar. Em seguida ponha o açúcar a cozer e vá deitando aos poucos as fatias de manga, gengibre, alhos, a restante porção de vinagre, pimentas cortadas, sal, mostarda e passas. Deixa-se tudo isso cozer sobre fogo brando e depois de esfriado mete-se nos vasos.


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