No precipício de uma folha em branco ...Agora conto eu - Crónicas ou cenas parecidas

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No precipício de uma folha em branco…

…crónicas ou cenas parecidas

João Cunha Silva


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NO PRICIPÍCIO DE UMA FOLHA EM BRANCO

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NO PRICIPÍCIO DE UMA FOLHA EM BRANCO – Crónicas ou cenas parecidas

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©João Cunha Silva/2015 Todos os direitos reservados O uso destes textos é autorizado em contexto escolar desde que se faça referência ao autor e à publicação. www.facebook.com/EscritorJoaoCunhaSilva 7


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Agora conto eu… crónicas ou cenas parecidas I

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TEXTOS PUBLICADOS NO JORNAL TRIBUNA PACENSE (TP)

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QUANDO EU FOR GRANDE! – TP – 25/10/2013

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A MESA DO CAFÉ DA RUA 38 – TP-01/11/2013

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O REI QUE NÃO TINHA CASTELO –TP- 8/11/2013

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A HISTÓRIA DA FOLHA LUTADORA… - TP-15/11/2013

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A PEDRA MÁGICA-TP-22/11/2013

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OS MISTÉRIOS DA LUA GULOSA – TP – 29/11/2013

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DAR E RECEBER – TP- 06/12/2013

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UM BRILHO NO ESCURO – TP - 13/12/2013

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NÃO GOSTO MESMO NADA DE LER! – TP – 20/12/2013

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TENHO UMA BALEIA NA BANHEIRA! –TP- 28/02/2014

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CABELOS COR DE VENTO – TP- 31/01/2014

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O TÍTULO É… ESQUECI-ME –TP- 30/05/2014

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A ABELHA VAIDOSA–TP- 30/06/2014

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TEXTOS PUBLICADOS NO JORNAL GAIA SEMANÁRIO (GS)

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NO PRECIPÍCIO DE UMA FOLHA EM BRANCO – GS- 14/01/2015

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VOANDO NUMA SEMENTE DE UM DENTE-DE-LEÃO – GS- 28/01/2015

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A MODA DAS FÁBULAS: O BURRO E O LOBO – GS- 11/02/2015

66

A CONSPIRAÇÃO DOS ASTROS – GS- (25/02/2015)

70

EM VERSO COM ALGUMA RIMA! – GS- (26/03/2015)

74

O GAFANHOTO ANTUNES – GS- (08/04/2015)

77

QUAL O PESO DAS PALAVRAS? – GS- (22/04/2015)

80

O QUE ME FAZ FELIZ! O MEU GUIA DA FELICIDADE! – GS- (06/05/2015)

84

AS CORES VERDADEIRAS – GS- (27/05/2015)

88

A ROSA VAIDOSA E A VISITA INESPERADA. – GS- (13/06/2015)

92

O PRIMEIRO DIA DE AULAS – GS- (30/07/2015)

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ENSAIO SOBRE O ABSURDO! – GS- (27/8/2015)

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A REALIDADE E A FICÇÃO –GS-(13/08/2015)

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I Textos publicados no jornal Tribuna Pacense (TP)

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Quando eu for grande! – TP – 25/10/2013

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Era um dia especial na escola e sempre que era um dia especial o Luís tinha muita dificuldade em adormecer. Ficava de olhos presos no teto a antecipar, minuto a minuto, como seria o dia seguinte. Desta vez tudo era um pouco mais complicado, pois era o Dia das Profissões. Ele não sabia o que queria ser quando fosse grande. Como podia? Apenas tinha sete anos. Os seus colegas não tinham dúvidas: polícias, médicos, engenheiros, professores… mas o rapaz não sabia. -E se depois não gostar de ser uma daquelas coisas? É uma decisão importante! -pensou o rapaz. – Se não gostar vou andar toda a vida rezingão e maldisposto como anda o Sr. Gomes da mercearia! – Disse baixinho para o seu urso de peluche. De certeza, que ele se tinha arrependido da sua escolha. Gordinho como é, imaginou-o de avental branco a cantar de boca bem aberta: Ladónimobilé! Não conseguiu deixar de sorrir para o urso castanho, já remendado, esperando em vão a sua risada de volta. Aqueles pensamentos deram-lhe sono e foi assim que adormeceu sem ter resolvido o seu dilema. Pela manhãzinha, o Sol, matreiro, obrigou-o preguiçosamente a esfregar os olhos. Levantou-se e de imediato se lembrou que se tinha esquecido de escolher a sua profissão. Enquanto engolia apressadamente os cereais com leite, começou a pensar nas coisas que gostava de fazer e nenhuma se parecia com as 11


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profissões que conhecia. Que ele soubesse, e não devemos ignorar o que uma criança de sete anos sabe, não existia nada parecido com Contador de Estrelas, Admirador de Palavras, Pintor de Sonhos, Fazedor de Sorrisos ou mesmo como Mudador de Mundos. Pelo menos que ele soubesse, é que apesar de uma criança de sete anos saber muito, não precisa ainda de saber tudo. Sentou-se no carro do pai, ainda cheio de dúvidas e fez o percurso para a escola sem desviar o olhar da janela lateral. Subitamente os seus olhos brilharam e era perfeitamente visível que algo de bom tinha acontecido, enquanto olhava o abanar das árvores e as gentes apressadas nas ruas. Chegou a sua vez: aproximou-se confiante do quadro, virou-se para os colegas e disse com uma voz calma, segura e bem colocada, tanto como a voz de um menino de sete anos, sem dentes na frente, consegue ser: QUERO SER ESCRITOR!

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A Mesa Do Café Da Rua 38 – TP01/11/2013

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Todas as manhãs o mesmo ritual. Obedecendo fielmente a uma sucessão de movimentos cristalizados pela repetição e pela ordem. Um rito…uma oferenda a um Deus maior. Passo a passo, mecânico, numa mnemónica aprendida num tempo ou então no seu templo. Entrava; sentava-se; pousava o chapéu na mesa; pedia o café com um gesto seco; agitava de forma também maquinal a saqueta do açúcar. Pegava na colher e mexia o café somente duas vezes, como se no seu íntimo não desejasse uma dissolução completa e secretamente procurasse o prazer final do açúcar restante. No entanto, não me lembro de o ver pegar na chávena para beber. A partir daí, desligava a corrente do real, como se entrasse numa outra dimensão. E eu com ele. Todo ele absorto, indiferente à vozearia das restantes mesas e ao meu olhar fixo e pouco dissimulado. Abria o caderno preto de modo cerimonioso, olhava por momentos pela janela, não parecendo importar-se com o seu próprio reflexo que turvava a realidade exterior. Baixava a cabeça como numa vénia e a sua caneta dourada parecia ganhar vontade própria. A escrita fluía num ritmo febril, num frenesim galopante e descontrolado. Devorava folha atrás de folha. A caneta, raspava a página de um lado para o outro, mais parecendo um tear, juntando as linhas escritas numa mancha de texto opaca, que 14


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depressa desaparecia com o virar repentino da página. Permanecia exatamente sete minutos naquela mesa ao lado da minha, naquele café onde eu próprio me encontrava, naquela rua 38. Sempre tão perto, diariamente tão chegado e no entanto só lhe conhecia os gestos. Não sabia o seu nome, nem me lembro de alguma vez ter ouvido a sua voz. (Deduzo que tenha uma ou várias até…) Da minha mesa, vítima da minha própria rotina, observava aquela celebração diária de forma mística e memorizei, gesto a gesto, os passos daquele sujeito magro, sempre de fato preto, de óculos redondos, de chapéu, também preto, pousado na mesa. Aqueles sete minutos, cronometrados, robóticos; eram mais do que sete minutos. Eram um tempo parado no tempo. Fechava o caderno, guardava a caneta no bolso do casaco e levantava-se. Deixava o valor certo do café na mesa; punha o chapéu na cabeça e saía sem pronunciar um único som. Durante todo dia, a mesa permanecia órfã do seu dono e ninguém ousava sentar-se naquela cadeira. Havia um respeito inexplicável por aquele momento sacro, por aquele lugar e por aquela pessoa, que podia ser qualquer Pessoa.

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O Rei que não tinha castelo –TP8/11/2013

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Era uma vez um Rei que não tinha castelo. Achava que não era necessário para a sua função. Vivia numa casa igual à dos restantes habitantes. Dormia também numa cama igual a todas as outras pessoas e a sua comida em nada diferia do que se comia por todo o reino. As suas roupas eram também perfeitamente normais e de coroa apenas tinha uma calvície avançada para a idade. No entanto, mesmo sem pompa e circunstância, todos o respeitavam como Rei e admiravam a sua dedicação e inteligência com que governava o reino. O Rei era fiel no seu trabalho de ser rei, era justo e reinava bem e por isso a população era empenhada e disposta a colaborar no que fosse necessário, para tornar o reino um sítio cada vez melhor para viver. O Rei cobrava impostos também justos: apenas os necessários para que o seu reino fosse um lugar culto, limpo e seguro. Um reino que tratasse as suas populações, dos mais novos aos mais velhos, com dignidade e respeito. Era por isso uma pessoa amada e venerada, mesmo sem ter um castelo. Todos os anos, havia um jantar que juntava todos os Reis daquela região e nesse jantar o Rei sem castelo ficava abismado com a sumptuosidade demonstrada pelos outros reis. Não deixava de admirar as suas roupas 17


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faustosas, coloridas e brilhantes e os seus carros potentes e reluzentes. Imaginava que as populações daqueles reinos viveriam também de forma muito mais próspera do que o seu povo. Nas conversas com os seus pares, tentou saber como eram os seus reinos e os reis descreveram com muitos adjetivos a grandiosidade dos castelos em que viviam. O rei ficou convencido que se queria realmente que o seu povo melhorasse, teria de construir um castelo. Regressou a casa com a ideia na cabeça e não demorou muito a por o projeto em prática. Reuniu os melhores trabalhadores do reino para construir o castelo e estes tiveram de abandonar os seus empregos, deixando as tarefas que antes faziam; para pagar os materiais, os artesãos e artistas convidados para embelezar o castelo, desviou o dinheiro dos impostos, deixando de haver dinheiro para a educação, para a saúde e para ajudar os mais necessitados. Com os olhos ofuscados com tanto brilho, o Rei olhou orgulhosamente para o magnífico castelo que tinha construído. Estava agora satisfeito e feliz por ser um Rei com um castelo, sem reparar que no processo se tinha transformado num Rei sem reino.

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A história da folha lutadora… - TP15/11/2013

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Conta-se por aí a história de uma folhinha, que vivia feliz nos ramos de um plátano. Vivia na cidade, no meio de um parque, onde muitas crianças brincavam e coloriam o ar com as suas vozes irrequietas. Tinha nascido igual a todas as outras folhas, espreguiçando-se toda sonolenta, assim que as manhãs de março ficavam mais quentinhas. Cresceu, brincando com as suas companheiras de ramo, tentando, em corridas loucas, encontrar o melhor lugar virada para o sol, atitude muito apreciada por todos os que usavam a sua sombra para fazer um piquenique de família ou para descansar, depois de uma tarde de brincadeiras. Em meados de agosto tornou-se uma folha adulta, de veios bem vincados e pontas bem definidas. Fazia o seu trabalho de forma competente e colaborava na importante função de manter a árvore próspera, sã e bela, é claro. Certo dia, ouviu dizer que a árvore, patroa de todas as folhas, já não precisava de tantos ajudantes e iria começar a despedir as folhas uma a uma, depois do fim do mês de outubro. Pensou ser um boato e não quis acreditar, pois uma árvore tão frondosa sem folhas não haveria de ficar. O certo é que, com as primeiras manhãs frias do mês de outubro, as folhas, como se tivessem perdido o seguro de saúde, começaram a perder o verde viçoso, ganharam tons amarelos e avermelhados e finalmente 20


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começaram a ser despedidos dos seus ramos. Lutou com todas as forças para se manter presa, mas pouco lhe serviu quando uma brisa mais forte a fez flutuar pelo ar. Ainda pensou em fazer greve ou até protestar, mas olhando a situação da árvore sabia que o que tinha de fazer era recomeçar. Aterrou perto das outras folhas, que no chão formavam um tapete triste, mas colorido. Toda aquela cor lhe deu uma ideia e ela não teve tempo a perder. Chamou-as a todas e soprou-lhes com emoção. Disse-lhes que não era hora de desistir, que apesar de não terem árvore, ainda podiam sorrir. Assim, com muita determinação e incapazes de desistir formaram uma empresa com a missão do mundo colorir. Podemos cair, mas nunca podemos desistir!

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A pedra mágica-TP-22/11/2013

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Conta-se por aí que no meio das brincadeiras de um domingo de sol, o outono apareceu fresco a pedir um agasalho e um chá bem quentinho. Não dava para longas aventuras pois os dias eram já curtos, mas o jardim da avó, que ficava bem pertinho, era sempre um bom local para esta pequena curiosa explorar e brincar nas horas mais quentes. Escondeu-se e encontrou quem se escondia. Contava os números com prazer redobrado, de um a trinta e depois partia para descobrir a avó, que estava sempre no mesmo sítio. No meio de tanta risota e corrida, a sua cara refletia alegria e os seus olhos eram espelhos de luz. Ela era assim quando não tinha as suas birras: contagiava a natureza sempre que sorria e a natureza parecia sorrir de volta. Entendo, assim, a justiça do que aconteceu, a natureza sabe recompensar quem a ama e a usa para amar. Assim, no meio do jogo das escondidas, numa das vezes que procurava a avó, ficou parada a olhar para o chão sem fazer qualquer barulho. Agora, era a avó que a procurava, pois já tinha passado muito tempo desde que tinha dito: «Alerta!» Encontrou-a de joelhos muito pensativa e olhando para a sua pequena mão fechada verificou que tinha apanhado alguma coisa do chão e perguntou: «Não me 23


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digas que encontraste algum tesouro.» E não é que tinha… Levantou o olhar do chão e exclamou em voz alta a frase que criou espanto a quem ouviu: «É uma pedra mágica!» A avó entrou na brincadeira e perguntou se tinha encontrado uma pepita de ouro ou mesmo uma pedra preciosa. Ela respondeu que não e abriu a mão, mostrando uma pedra banal, castanha que nada tinha de especial. «É mesmo uma pedra mágica, não vês!», reafirmou a menina. A Avó sorriu, como só as avós sorriem para os netos, mas o certo é que não via nada a não ser uma pedra, um pequeno calhau ainda coberto com torrões de terra. Percebendo que a avó não acreditava nela, escolheu uma parte mais clara do chão de cimento e com pedra mágica que tinha na mão começou a fazer riscos no chão. A avó, espantada, verificou que a menina, tinha acabado de escrever o seu nome no chão. «Vês, é uma pedra mágica! É mágica porque é uma pedra que escreve.» Para mim, também tinha ficado claro: a pedra era realmente mágica! Pensando agora sobre o assunto, na reflexão que a escrita oferece, não posso deixar de concluir que magia é na verdade o que de surpreendente conseguimos fazer, com o que à primeira vista parece banal. Δ 24


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Os mistérios da Lua gulosa – TP – 29/11/2013

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No tempo em que não havia enciclopédias e não se sonhava sequer que a palavra Google pudesse algum dia existir, as perguntas dos filhotes mais curiosos tinham de ser respondidas com muitas pitadas de imaginação e com uma boa dose de raspa de loucura. Naquele tempo, ainda não havia luz elétrica nas casas, nem iluminação nas ruas e por isso as noites tinham mesmo a cor escura que a noite deve ter. Se para uns a visão era assustadora, já para outros, como o menino desta história, aquela visão dos céus provocava uma série de enigmas e mistérios, que não o deixavam dormir sem amarrar umas asas à sua imaginação. Também não havia televisão no quarto, na sala, nem em nenhuma divisão da casa. Para se aquecerem as famílias juntavam-se à volta de uma lareira onde o fumo curava os presuntos e o calor rosava os rostos. Ora, houve um dia, numa dessas alturas de reunião familiar, que um pai desses tempos antigos se viu obrigado a explicar ao seu filho de cinco anos as fases da misteriosa lua, que para espanto do pequenote, ora desaparecia, ora aparecia envergonhada, ora se mostrava toda vaidosa, ora voltava logo a desaparecer. -Porque é que a Lua está sempre a mudar de forma?

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Todos escutaram a pergunta do rapaz com atenção e ninguém o mandou calar ou falar mais baixo, para ouvir uma qualquer novela de ficção ou da vida real; as notícias ou mesmo para terminar a mensagem no smartphone. Olharam todos para o fogo da lareira como se procurassem lá a resposta, mas foi o pai que respondeu com um certo orgulho nos olhos pois achava que a curiosidade era sinónimo de inteligência. Ele próprio sempre estranhara aquele mistério e lembrava-se da história que sua avó lhe tinha contado, sentada à frente daquela mesma lareira. Assim, aquele pai dos tempos antigos, neto de alguém dos tempos ainda mais antigos, partilhou a história que tinha ouvido em criança: - Ora bem -preparou a voz - a Lua é muito gulosa e não consegue parar de comer. Começa muito pequenina, do tamanho de um grão de areia, que ao longe não se consegue ver; depois vai apanhando estrela atrás de estrela, comendo uma a uma e sem nunca parar. Começa a ficar cada vez maior, cada vez maior… cada vez mais barriguda, até que rebenta e espalha novamente as estrelas pelo céu escuro. Todos riram, a bom rir, da história maluca do pai e foram dormir com um sorriso no rosto 27


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que só uma história consegue dar. O rapaz ganhou mais um sonho e de certeza que imaginou a Lua de guardanapo posto; faca e garfo em cada mão lunar e um prato cheio de estrelas estaladiças para se deliciar.

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Dar e receber – TP- 06/12/2013

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Todos os anos era a mesma coisa. Chegava a hora de abrir os presentes e galopava contabilisticamente para ver o que tinha recebido. Abria o presente, esboçava um sorriso, para logo depois o atirar de forma desinteressada para um canto reservado com a devida antecedência para alojar as suas prendas, onde, misturados com restos de papel de embrulho, se acumulavam roupas, brinquedos, livros e até dinheiro. –Receber prendas é muito bom! –Dizia em voz alta. Passara os dias de dezembro a pensar nas prendas que iria ter, não tendo tempo para mais nada. Quando a irmã lhe pediu ajuda para enfeitar a árvore que o pai tinha trazido, ele disse que não tinha tempo para essas coisas, pois tinha de fazer a lista das prendas que queria para o Natal, acabando a conversa com a pergunta: -O que me vais dar no Natal? Não reparou na cara triste da irmã, nem percebeu porque não lhe tinha respondido. O mesmo acontecera quando o pai lhe pediu ajuda para apanhar musgo e construir o presépio. Nem o deixou acabar a frase, perguntando-lhe de seguida qual seria o seu presente. A mãe também foi brindada com a mesma pergunta ao lhe pedir ajuda para fazer as rabanadas e docinhos com que enfeitava a ceia de Natal. À noite, adormecia a perguntar ao teto o que 30


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iria receber, vendo sombras de brinquedos a serem desembrulhados, uns atrás dos outros, num frenesim imparável. - O que irei receber no Natal? O que irei receber no Natal? – Sonhou em voz alta. Não foi um sonho que lhe mostrou a verdadeira natureza do Natal, nem ficou sem receber o seu presente desejado, como a lógica poderia antecipar. Não, tudo correu como tinha planeado: recebeu muitas prendas, as que pediu e as que nem precisou de pedir. Podia mesmo verificar na sua lista, que ninguém se tinha esquecido da sua prenda. Para ele, estava a ser um Natal quase perfeito. No entanto, sem conseguir muito bem explicar porquê, não se sentia muito feliz. Pelo menos, não se sentia tão feliz como a irmã mais velha ficava, sempre que dava um presente. Ela também ficava feliz quando recebia, é claro, mas os seus dias de dezembro eram passados a pensar e a preparar as prendas que iria dar. Chegou a vez de o rapaz dar os presentes e todos aguardavam expectantes, mas ele não tinha nada para dar. Aí ele percebeu (acho que deve ter percebido) que as prendas são uma forma de dizer que gostamos e nos lembramos dos outros, para lhes mostrar que são importantes para nós. Ficou triste ao perceber que tinha passado o natal apenas a pensar em si. Ainda ia a tempo! No monte das suas prendas encontrou a 31


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caixa de chocolates que a tia lhe tinha dado. Abriu a caixa e distribuiu um chocolate a cada um com um beijo e os votos de Feliz Natal. -Receber é muito bom, mas dar é fantástico! – Disse o rapaz, visivelmente feliz, provocando a todos um sorriso e um brilhozinho nos olhos.

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Um brilho no escuro – TP 13/12/2013

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Acordou de noite sobressaltado, ouvindo uma voz sussurrada ao fundo, não conseguindo identificar, ao certo, a sua origem. - Tu mudarás o Mundo! Não acreditou muito naquela voz, pois como seria possível uma pessoa mudar o Mundo, principalmente uma criança que vivia num país tão complicado, a quem nem o nome original lhe deixaram ficar. O seu país, lá para os lados do Sul da terra mãe, levava as cores muito a sério e viviam todos separados de acordo com a cor que nasciam. Haviam cores, que eram tratadas de modo privilegiado, como se fossem mais importantes do que outras. A cor da pele era sinónimo de riqueza e quanto mais escura, menos importante se tornava. Os serviços públicos também eram diferenciados pela cor dos seres humanos e mesmo os lugares dos autocarros eram também ocupados de acordo com a cor da pele: quanto mais escuro, mais atrás se tinha de sentar. Havia mesmo grades a separar aqueles mundos de cores diferentes. «Que estranho e injusto pensava!» Uma das palavras mais difíceis que aprendeu a soletrar na escola, mesmo sem saber muito bem o significado, apesar de o viver diariamente, foi a palavra SE.GRE.GAR. Como poderia um menino mudar o Mundo, que o considerava inferior só pela cor da sua pele?

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Cresceu revoltado com tanta injustiça e estupidez primária e interpretou aquela voz, que ouvira em criança, como um apelo à luta intransigente pelos direitos do povo do seu país. A sua determinação acabou por o levar à prisão, porque os que separam, não querem livres aqueles que tentam unir. O seu corpo ficou aprisionado durante vinte e sete anos, mas durante todo esse tempo, a sua voz, num voo místico ancestral, sobrevoou as consciências dos que se dizem humanos e mais humanos eles ficaram. As suas palavras foram um brilho no escuro, uma luz guia pacificadora num Mundo de trevas que ameaçava ruir. Um dia as grades partiram, mas ele já estava livre, principalmente de ódio e rancor. Tornou-se no pai de todos, independentemente da cor, libertando mesmo aqueles que o tinham aprisionado. Aquela voz tinha agora sentido: ele tinha mudado o Mundo! Ao longo dos seus últimos anos, ensinou-nos uma palavra que muitos ainda teimam a não conseguir soletrar: CON.GRE.GAR. RIP TATA

- Os heróis nunca morrem!

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Não gosto mesmo nada de ler! – TP – 20/12/2013

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Era sempre assim. Sempre que alguém tinha a ideia estratosférica de lhe dar um livro, a sua cara ganhava a cor de fastio e lá saía um agradecimento forçado. Atirava o calhamaço para um lote de presentes sem sentido, com uma clara noção de desperdício de dinheiro que aquilo significava. «-Um livro!...bahhhh! Então não era muito melhor um jogo para a consola, um filme ou outra coisa qualquer!?» Quando vinha acompanhado de talão de troca, a coisa até não era assim tão má, pois sempre dava para trocar por outra coisa qualquer. O pior era quando se tratava de uma livraria, daquelas onde apenas se leem, vendem e promovem livros. Aí a troca só seria feita por outro livro e quando era assim nem se dava ao trabalho: deitava logo o talão fora e atirava o livro para o monte, para cima de outros livros, sempre à espera que alguém os abrisse. Ficavam assim no chão como folhas mortas num outono eterno, onde nem uma brisa corria para alterar o padrão que formavam. Quando ouvia aquelas frases “Ler é bom! Ler faz bem!” fazia sempre a mesma cara de troça. Ele até tinha acreditado na história dos superpoderes e sentiu-se mesmo um superherói, assim que juntou com sentido as suas primeiras letrinhas para formar palavras, mas depois aquilo já não era só para se divertir e vinha sempre com algumas 37


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perguntinhas parvas que só quem fosse muito distraído é que podia não saber. Lembra-se sempre de ler aquela história do Pedro e do Lobo, em que depois de vezes e vezes sem conta a ler a palavra Pedro, tinha de responder por escrito e de forma completa à pergunta: “- Como se chamava a personagem principal?” Claro que era Pedro! «Mas que perda de tempo!» Podiam ter perguntado como tinha ficado a cara de Pedro quando ninguém o acudiu! Isso sim seria interessante. A resposta podia muito bem ser um desenho. Mas não, eram apenas perguntas que não lhe apetecia nada responder. Com isto e com o assombro de que cada livro tinha um teste de avaliação na última folha, começou a perder o interesse, pois muitas vezes queria guardar para si aquilo que lia e assim não era possível, porque ninguém lhe perguntava como se sentia depois de ter lido aquela história. Queriam saber quem era o narrador, se este participava na história; pediam para descrever as personagens, física e ainda por cima psicologicamente, como se estivesse numa esquadra a fazer o retrato-robô, ou sentado no sofá de um psicanalista. Era demais! Era muito mais fácil jogar um jogo: aí ninguém se atrevia a perguntar nada e podia jogar descansado. Aos poucos perdera o interesse pela magia de ler. Sim, enquanto narrador desta história posso mesmo afirmar que ler é mágico. Algo aconteceu para poderem ler o que estou a escrever. E isso, caros 38


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amigos leitores, é magia. Convencido de que não podia ler o livro como quem come um gelado, apenas por prazer, começou, cada vez mais, a manter os livros à distância, mas mesmo assim não evitava que, de vez em quando, por altura do Natal ou do seu aniversário, lhe oferecessem um calhamaço, ou dois. Já tinham destino marcado: o “monte do esquecimento”. Nos tempos livres, fazia Legos sem livro de instruções, jogava Monopólio com o irmão e perdia, jogava à “bisca dos nove” com o avó e ganhava até ao nono jogo, para perder dez de seguida, andava de canoa, jogava à bola, andava de bicicleta apenas com os pés nos pedais, brincava com os primos, com a sua cadela Dama, mas ler não ocupava sequer um segundinho da sua vida. «E também não faz falta nenhuma!» pensava o rapaz. A verdade é que aparentemente não fazia mesmo falta nenhuma na vida daquele rapaz, mas como os leitores mais atentos já devem estar a antecipar, alguma coisa deve ter acontecido para que o rapaz mudasse de ideias em relação à leitura e aos livros. O que terá sido? Conseguem antecipar? A noite tinha sido muito mal dormida. Não sabia muito bem se a causa seria a dor de barriga ou a ansiedade pelo importante jogo de futebol que iria ter na manhã seguinte na escola. O certo é que jogou a custo e a dor 39


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de barriga tornou-se insuportável a ponto de o levarem para o hospital. – Acho que é uma apendicite! - disse a medo a médica estagiária que o observou. Aí, tudo iria mudar e há que dizê-lo sem pudor, que há males que vêm por bem, pois aquele internamento haveria de ser o fator de mudança da sua vida, pelo menos da sua vida de leitor. Trocar uma ponta do intestino dispensável, por uma vida de contato com os livros parece-me sempre uma boa opção e neste caso pode-se dizer que a troca foi claramente um ganho. Ali, sem se poder mexer, no meio de uma enfermaria cheia de gente estranha, cada um com a sua dor, foram os inúmeros livros que leu que tornaram o seu internamento suportável. De início, parecia maldição, chegaram livros de todos os lados. Os que o visitavam, num inocente gozo, traziam livros, uns dados, outros emprestados, outros vindos do “monte do esquecimento” do seu quarto, que no seu todo formavam uma biblioteca que nem um ano de cama daria para ler. De início ficaram lá pousados, num descanso que parecia destinado a ser eterno, mas após as primeiras horas a ver o tempo que o soro demorava a descer, lá se decidiu a abrir o primeiro com clara desconfiança. A partir daí nunca mais parou. Descobriu ideias novas, mundos novos, pessoas novas, leituras novas. Perante a 40


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alegria que tinha redescoberto, espalhou-a por toda a enfermaria, e a sua cama, aquele número 231, passou a ser a secção de empréstimo de livros durante aquela semana que acabou por ser mágica. Assim que recuperou, continuou a fazer tudo aquilo que fazia antes e não se transformou em mais um sabichão ou estrela de quiz show, nem se tornou numa enciclopédia ambulante insuportável, mas destinou um período do seu dia para a leitura. Não fosse aquele pedaço de intestino de discutível utilidade, seria hoje um adulto como tantos outros, daqueles que duvidam que ler é realmente um superpoder, que permite interpretar primeiro e melhor o mundo e as pessoas que nos rodeiam.

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Tenho uma baleia na banheira! –TP28/02/2014

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«Ajudem-me! Tenho banheira!!!!!»

uma

baleia

na

Foi assim que acordei numa manhã cinzenta de dezembro. Agora que penso no assunto, não sei muito bem se foi um pesadelo ou um sonho, porque a baleia não é um animal que provoque medo imediato. Acho que foi só mesmo o susto de ter uma baleia na minha banheira que me fez acordar sobressaltado. Meio ensonado e ainda a pensar porque haveria eu de ter um sonho assim, calcei os chinelos e fui ao quarto de banho. Tentei abrir a porta, mas parecia que alguma coisa a impedia de abrir. Forcei, forcei e de seguida empurrei, empurrei, até que muito a custo lá se abriu uma pequena frincha por onde espreitei. Saltei de espanto! Afinal não tinha sido nem sonho nem pesadelo! «Socorro, Ajudem-me! Tenho mesmo uma baleia na minha banheira!» Desato a correr em círculos, ainda meio atarantado. Belisquei a mão (ato muito usual para quem pensa que está a sonhar) e reparei que me doeu e por isso confirmava-se que aquela visão não se tratava nem de nenhum sonho, nem da minha imaginação. De imediato, liguei o 112 e disse com a voz mais aflita que encontrei, «Preciso de ajuda! Tenho uma baleia na banheira.» Do outro lado da linha, uma voz com acento grave disse: «Não acha que já tem idade para ter 43


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juízo» e continuou, «pode estar a ocupar a linha para alguma emergência. Respondi de imediato «Eu sei, eu sei… mas isto é mesmo uma emergência, não é brincadeira. Tenho mesmo uma baleia na banheira!» Do outro lado, de forma irónica perguntaram-me: «Não me diga que a baleia está a brincar com um patinho amarelo!» Fiquei espantado, como poderiam saber? «Sinceramente…» disseram-me do outro lado, «Ele há cada uma!» e desligaram o telefone na minha cara. Pousei o telefone, indignado com a terrível falta de consideração pelo que se estava a passar. Se não é para o 112, para onde se deve ligar quando se tem uma baleia na banheira? Espreitei mais um pouco para dentro do meu quarto de banho. Já não estava a brincar com o patinho amarelo, tinha mergulhado. Entrei e quando julgo que afinal tudo se passou de uma alucinação própria de um acordar ensonado e nada mais do que isso, eis que a baleia, enorme como só uma baleia consegue ser, aparece de rompante e num salto acrobático cai com um grande estrondo em cima da superfície da água. Escusado será dizer que fiquei encharcado da cabeça aos pés. Banho matinal tomado, pensei eu. E agora o que fazer com uma baleia na banheira? Ela parece que se encontra bem e não quer sair, pois se o quisesse, desapareceria tal como apareceu. Acabei por me habituar à ideia e assim sempre posso dizer que tenho um animal de estimação muito especial. Uns têm um cão, 44


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um gato, ou mesmo um periquito, mas qual é a piada disso quando se pode ter uma baleia na banheira. Por isso, se virem passar uns camiões carregadinhos de krill já sabem para onde vão. Porque uma baleia, mesmo uma baleia que vive numa banheira, também precisa de comer.

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Cabelos cor de vento – TP31/01/2014

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No final daquela rua havia uma casa vazia. Uma casa de uma cor qualquer que o tempo se encarregou de apagar. Porventura seria branca ou talvez amarela, mas isso agora pouco interessa, porque não é a cor exterior que torna mais ou menos interessante uma casa, mas sim o que se passa no seu interior: as pessoas, a vida que albergou. É disso que quero hoje falar. Conta-se que aquela casa, quando ainda tinha cor, era habitada por uma mulher com cabelos cor de vento. Todos a conheciam por aquele nome e era fácil saber porquê: os seus cabelos ondulados, esvoaçavam como papagaios de papel, ao levantar-se a mais pequena brisa, ganhando assim a cor que o vento traz. Saía todos os dias daquela casa, com cor das marés, e ficava a olhar as ondas do mar que, numa luta contínua, golpeavam de forma assertiva as dunas onde se sentava. Imóvel, permanecia em silêncio, ouvindo os murmúrios borbulhantes da espuma das ondas. Ao longe, ao ver aquele diálogo mudo entre os elementos, aquela figura feminina fazia parte daquele quadro móvel em conjunto com o mar, as dunas e o vento, como se nunca de lá tivesse sequer saído. Mas saía e sabiam-no, porque assim que o horizonte ganhava a cor do sol poente, regressava a casa embalada pela promessa de um novo amanhecer.

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Poucos segundos depois de ter entrado, a janela ganhava cor de luz e a casa cor de vida. Uma só janela com luz, nada mais…uma só pessoa. Não demorou a que a casa ganhasse cor de sono onde apenas um candeeiro de rua tentava quebrar a monotonia da cor da noite. Despertada pela cor da aurora, a mulher regressou ao local de sempre onde os seus cabelos esvoaçantes ganhavam de novo a cor do vento. De mãos juntas parecia suplicar ao mar, que agora beijava os seus pés, na impossibilidade de atender aos seus rogos e súplicas. Uma rajada de vento trouxe consigo a cor do choro e a mulher, envolta pelas lágrimas do mar e pelo choro do vento desapareceu do quadro revolto que a cena se transformara. Na areia, a fotografia de um amor que o mar não devolveu. Estavam juntos agora, mas a casa perdeu para sempre a cor da vida e a janela, aquela única janela que por algumas horas ganhava cor de luz, permaneceu para sempre apagada, pintada com a cor que a noite sempre traz.

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O título é… esqueci-me –TP30/05/2014

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Sempre fui muito distraído. Ou me esqueço da luz acesa, ou não me lembro onde deixei as chaves do carro, ou me esqueço da carteira, ou… sei lá… agora mesmo esqueci-me do que ia dizer… está aqui na ponta da língua, mas parece que se recusa a sair. Agora também já não importa. Sempre vivi desta forma, esquecendo-me das coisas, perdendo outras, encontrando-as depois, principalmente quando já não preciso delas. «Acontece…», costumava eu dizer! Pois, o que mais fazer nestas situações… não se pode mesmo fazer nada e até conseguia viver assim. Não me incomodava assim tanto. Obrigava-me a um difícil exercício mental e a um estado de alerta permanente, despertadores e alarmes em duplicado. Mas com meia dúzia de truques na manga, o dia-a-dia tornava-se suportável e ninguém se apercebia, a não ser um número muito reduzido de pessoas muito próximas. Descia assim a rua como sempre fiz. A chave do carro no bolso da frente, os óculos mesmo à frente dos olhos, a carteira no bolso de trás… e sim tinha apagado a luz antes de sair de casa, foi necessário confirmar duas vezes, mas estava apagada. Confirmadíssimo. Antes que me esqueça do que estava a contar… ah! Estava a descer a rua sem me ter esquecido de nada, confiante com tal feito, que não deve ser considerado menor dadas as circunstancias. Ia eu entretido no diálogo com a minha própria memória, quando de 50


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repente sou estranho.

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abordado,

por

um

aparente

- Olá, já não te via há muito tempo! - Pois é… já lá vão alguns anos… desde a escola secundária. Sabia quem ele era, mas o nome… estava na ponta da língua, mas simplesmente se recusava a sair, mais uma vez! Não querendo dar uma ideia de fraqueza demonstrando uma senilidade prematura, disfarcei, a partir daquele momento com o uso do pronome, que nestes casos, dá cá um jeito. «Tu isto…tu aquilo…tu lembraste…» O certo é que a conversa seguiu, fiquei a saber em género de CV o seu percurso de vida, desde o momento em perdemos a convivência diária nos bancos da escola secundária… mas o nome, nem vê-lo. Ele falava e eu acenava com a cabeça sempre numa luta interior para me lembrar do nome do sujeito. Também não sei se ele se recordaria do meu, nunca o disse na conversa. Ele subiu e eu continuei a descer a rua ainda a pensar no abraço com que nos tínhamos despedido. Entrei no café e pedi a minha dose de cafeina diária acompanhada por uma bela nata. Continuei com o nome dele à porta da memória, mas relutantemente agarrado à soleira sem se querer mexer. O líquido quente despertou-me o cérebro ensonado, como que iluminando o caminho por onde passava. O clique final deu-se com o polvilhar da 51


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canela. Sentidos todos despertos. «- Ah, grande camelo!» Seguiu-se uma vã tentativa de apalpar a carteira no bolso! Aqui, juro que não sei se me referia a mim, ou ao “zé mãozinhas” … pois não me lembro… está claro. O nome veio jorrado cá para fora, assim como a lembrança de que ninguém tirava a carteira do bolso dos outros com a classe do Zé, disso eu devia ter-me lembrado. Sabia agora que não me tinha esquecido da carteira em casa.

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A Abelha Vaidosa –TP- 30/06/2014

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Os leitores mais atentos terão reparado que a crónica do mês passado não estava assinada…até correu bem, já o que o título era “Esqueci-me…” e realmente, há coisas que nos escapam, mesmo quando temos a preocupação de tudo controlar. Ilusão! Não conseguimos controlar tudo e por vezes é muito bom que assim seja. Para mim é sinal de humanidade, para outros … uma boa desculpa. Mesmo assim, aqui fica a minha explicação. Nesta minha recente vida de pai e de contador de histórias, por vezes, é difícil acordar a imaginação para criar uma história fresquinha, apetitosa e comestível para uma criança de olhos brilhantes, que está à espera, nada menos, do que uma história genial, capaz de ombrear com as grandes histórias da literatura infantil. Apesar de difícil, é uma das tarefas de pai que me dá mais prazer: adormecer a minha filhota ao som de uma boa história, inventada no momento, à vela da narrativa espontânea, com personagens muito a propósito e com a ouvinte / crítica mais sagaz do mundo inteiro e arredores. Assim nasceu a história que vos vou contar: a história da “Abelha Vaidosa”, a história que adormeceu a Maria numa destas noites de junho. Numa colmeia no meio do monte vivia uma abelha muito vaidosa. Sempre que saía para apanhar o pólen das flores, 54


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passava sempre pela frente do espelho para confirmar e melhorar a sua beleza. Todos os dias repetia a mesma rotina e a cada vez arranjava uma forma de se tornar, aos seus olhos, um pouco mais bela: ora encaracolava os pelos, ora revirava as pestanas, ora pintava as unhas com feitios diferentes em cada uma… Aqui fui logo interrompido pela minha crítica, que mesmo parecendo já estar para lá do rio do soninho, depressa abriu os olhos e disse com a maior das certezas: «As abelhas não têm unhas, papá!» Ultrapassei este nó narrativo com a desculpa de que tinha aplicado umas unhas de gel e lá continuei com a história, pois os olhos voltaram a fechar em sinal de aceitação… Tal atitude atrasava as suas tarefas e era sempre a última a levantar voo. A rainha da colmeia não se chateava muito com o assunto que já dava falatório, pois apesar de tudo, mesmo sendo vaidosa, a abelha cumpria com distinção a tarefa de recolher o néctar das melhores flores. Um dia, ao olhar-se ao espelho, sem já saber o que fazer para melhorar a sua aparência, a Abelha Vaidosa decidiu pintar as riscas, que antes eram amarelas, de vermelho, uma cor que achava que lhe ficava bem. Olhou, tornou a olhar, deu uma voltinha e sorriu: o resultado era positivo, pelo menos no seu entender. A tarefa de pintar as riscas de vermelho deve ter demorado mais do que o habitual, pois 55


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nem ao longe via as suas companheiras e por isso levantou voo sozinha para o seu trabalho diário. A esta hora já a Maria dormia e por isso a história terá de continuar na próxima edição onde iremos descobrir o que aconteceu com a Abelha Vaidosa. Até já!

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II Textos publicados no jornal Gaia Semanรกrio (GS)

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No precipício de uma folha em branco – GS- 14/01/2015

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A folha em branco causa-me sempre sentimentos controversos. Por um lado há a promessa da ilusão do tudo possível, da criação de mundos novos, de novas ideias. No fundo, efervescências em forma de palavras que se apressam por preencher todos os espaços que encontram em branco, numa correria desvairada, sem eira nem beira, à procura de sentido. Por outro lado, há o desmaio de nada conseguir escrever; de encontrar uma porta fechada, por onde nada entra e nada sai e sem puxador e fechadura à vista; um frio vazio que congela os dedos e os impede de escrever; uma longa pausa que parece eterna. Mas quando tudo parece perdido, uma pequena luz se vê no meio daquele vazio e a folha branca é agora um recreio coberto de neve onde crianças, às gargalhadas, atiram bolas e de costas deitadas, desenham anjos no chão, abrindo e fechando os braços e as pernas. As palavras, caem como flocos e amontoam-se em bonecos de neve ou em iglôs improvisados. Mas aqui, nesta terra de pés molhados pelo rio, não há neve, e de olhos presos na minha folha em branco, fico de novo parado perante o abismo de nada conseguir escrever. De novo o frio do vazio, tanto frio que a folha encharcada pela neve derretida se transforma numa pista de gelo. Mais possibilidades a surgir à frente dos meus 59


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olhos e, de súbito, as palavras de mãos dadas com uma bailarina de cabelo imaculadamente penteado fazem piruetas, rodopios, saltos acrobáticos e aterragens destemidas ao som de uma música que parece seguir todos os seus movimentos. Escrevo nesse ritmo frenético, tentando acompanhar a música, enquanto a minha bailarina de patins, voando sobre a minha folha feita pista, faz um levantamento e ergue as minhas palavras enquanto rodopia sobre o seu próprio corpo. A música acaba. A bailarina curva-se para receber o aplauso e as minhas palavras ficam marcadas na folha pelas lâminas dos seus patins. Sai a bailarina e saio eu de cena. A minha presença já não é necessária, agora que as palavras se recusam a sair da folha e parecem acomodar-se aos lugares que lhe destinei. Polvilhadas ao sabor do vento ou cortadas pelas lâminas dos patins da bailarina, foram ocupando o seu lugar de forma ordeira: letra a letra; palavra a palavra; frase a frase; linha a linha. Como lenha amontoada pronta a ser queimada numa noite fria de inverno. Para que servirão as palavras que preenchem uma folha em branco, se não for para nos aquecer? Fica a promessa que este espaço nunca ficará em branco a partir de agora. Será sempre preenchido pelas minhas palavras, palavras escolhidas por mim ou palavras que me escolham a mim, tanto faz. Podem ser contos, crónicas ou mesmo palavras de urgência que o momento não consegue calar. Fica também a promessa que serão sempre 60


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palavras livres, sem algemas ou prisões, porque as palavras são a nossa liberdade e a liberdade só é verdadeira, se existir a possibilidade de as colocar numa folha em branco, de acordo com a nossa vontade e engenho. Je suis Charlie!

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Voando numa semente de um dentede-leão – GS- 28/01/2015

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O vento ainda era frio, mas, às escondidas, a natureza já se espreguiçava num longo acordar. Por todo lado o ar trazia já a azáfama da bicharada: formigas encarreiradas carregando mundos; abelhas namoriscando todas as flores que encontravam, competindo com borboletas floridas pelo melhor lugar; lagartixas espraiando nos ainda fracos raios de sol; escaravelhos de todas as cores e feitios correm apressados de um lado para o outro… Com este acordar cíclico, mas no entanto sempre surpreendente, chegam também as cores do que outrora tinha sido monótono e sombrio; chega também o riso das crianças. É hora de ir brincar lá para fora, depois de dias de uma aparente hibernação. Como ela gostava daqueles dias de sol à tardinha e de percorrer com as mãos as pontas ainda húmidas das ervas. De repente parou. Acho que viu alguma coisa especial: algum bicho para qual olha com especial atenção? Ou uma flor que terá aprisionado o seu olfato? Já sei o que foi! Vejo agora que segura uma semente de dente-de-leão, na mão. Ela sabe que não faz mal arrancar «Estou a ajudar a natureza!», diz ela, como se fosse uma entendida nestas questões da biologia. O facto é que estava mesmo a ajudar, pois estava a substituir o seu amigo vento e dar-lhe uma ajudinha. Sem perder muito tempo e de dente-de-leão na mão, fechou os olhos e soprou com força. É assim 63


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que se pedem os desejos: fecha-se os olhos e guarda-se todos os nossos sonhos nos nossos pulmões. Por breves momentos tudo fica suspenso à nossa volta e até a natureza parece querer esperar, curiosa por saber o que vai dentro de nós. Depois tudo acelera e à medida que libertamos o ar aprisionado nos pulmões, vamos projetando naquela semente de flor todas as nossas expetativas e sonhos. Abrimos os olhos e esperamos que a realidade à nossa volta esteja diferente, como se uma pequena semente de dentede-leão fosse capaz de fazer o que muitas vezes nós não conseguimos ou não temos coragem. Mas nem por isso deixamos de soprar: é isso que nos torna humanos, ou seja, a nossa capacidade de sonhar. E ela sabia disso. Com o seu sonho preparado, soprou como sempre soprava e deixou-se levar pela sua imaginação. Consigo ver pelo seu rosto que ela vai à boleia do seu sonho, agarrandose a uma das sementes de dente-de-leão. Deixouse arrastar pelo seu amigo vento, sem querer a responsabilidade de escolher o seu caminho. Ainda era cedo: primeiro é preciso sonhar, construir castelos impossíveis, brincadeiras tontas e dizer coisas sem sentido. Só depois disso, muito depois disso é que é preciso acordar para perseguir os nossos sonhos. Ainda era tempo de sonhar para ela: sentia-se bem, sentia-se leve, sem peso, a confiar em quem a levava pela mão, a confiar na natureza e no seu amigo vento. De olhos fechados, sobrevoou 64


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os campos, ainda verdes por ainda não terem sido beijados de forma intensa pelo sol; sobrevoou pelas copas das árvores ainda a recuperar as cores, que se encontravam povoadas pelo chilrear de pequenos pardais que por ali namoriscavam; sobrevoou pelo rio e passou levemente a mão pelas suas águas frescas, como se quisesse fazer desenhos na sua superfície. Depois abriu os olhos, e aqueles breves segundos, duraram horas. Horas felizes com toda a certeza. Não sei ao certo com o que sonhava, apenas posso imaginar o significado daquele sorriso enquanto soprava a semente de dente-de-leão. Diz o poeta que o sonho comanda a vida. Quero acreditar que sim, mas para mim já acho suficiente que a torne suportável.

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A moda das fábulas: O burro e o lobo – GS- 11/02/2015

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Decidi que também vou fazer uma fábula: primeiro tenho de arranjar uma animal que fale, pode mesmo ser um burro. Sim, nada melhor do que um burro bem-falante; de seguida tenho de arranjar alguém que sirva para mau da fita; bem, desta o lobo não se livra, e que seja mau, muito mau, já que hoje em dia, faz muita falta um lobo mau, para nos assustar de vez em quando e nos obrigar a levantar do sofá e correr um bocadinho. Faltame só escolher uma moral, sim porque as fábulas, vêm sempre acompanhadas por uma indispensável moral, para nos ensinar alguma coisinha. A moral mais apropriada neste momento é a fábula do bom aluno. Agora, com todos os ingredientes selecionados, pomos tudo dentro de uma daquelas máquinas que cozinham sozinhas, programamos o tempo necessário e aqui está, uma fábula quentinha, pronta a servir. Conta-se por aí que em certo país, lá para os lados das arábias, existia um burro falante que andava há muitos anos na escola. Este burro, por ouvir sempre a mesma coisa, parecia ser muito bom aluno, uma vez que já sabia as respostas todas. Nunca quis mudar de classe, pois assim era sempre o melhor, mesmo que depois de tantos anos, apenas conseguisse as suas notas a copiar e a roubar os trabalhos dos outros. À frente do professor, fazia-se sempre de bem comportado e fazia sempre o que ele mandava. 67


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Para mostrar serviço, acusava injustamente os colegas para que estes ficassem de castigo e lembrava o professor, quando este se esquecia de marcar os trabalhos de casa, ou de os corrigir. Isto para tristeza e muita raiva de todos os outros animais da sua turma. Como estes eram muito mais novos e tinham medo, nada diziam. O burro era o rei daquele pequeno mundo. Um dia chegou à escola um aluno novo, radical, de óculos escuros e sorriso brilhante e com a adequada cara de mau. Sentou-se lá no fundo da sala. Alguns ficaram com medo, mas todos ficaram admirados com a figuraça que o lobo fazia. E as suas palavras… fantásticas e sem medo de questionar o professor e as ideias copiadas do burro, que parecia mandar por ali. As coisas que dizia faziam sentido, e ele sabia mesmo do que estava a falar. Aos poucos, o professor, já um pouco farto da conversa burra do burro, ou talvez até um pouco amedrontado, começou a dar mais atenção às palavras e ideias novas do lobo e as suas respostas começaram a ser as mais apreciadas e elogiadas. Ora o burro, não gostou de deixar de ser o centro das atenções, e quando viu que o professor até parecia querer ouvir as palavras daquele intruso, começou a zurrar como só os burros sabem, e à falta de argumentos válidos, começou a dizer: “Mas ele é o lobo mau, não estão a ver! Ele é o lobo mau e vai comer-nos a todos.” 68


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Todos se riram, até mesmo o professor, pois via agora a verdadeira natureza do burro. O lobo afinal não era mau, só dava, aqui e ali, uma merecida rosnadela ao burro, para o pôr no devido lugar ou quando ele tentava copiar. Agora, chegou a hora de tirarmos as corretas conclusões e a devida moral da história (isto para evitar extrapolações para o atual contexto político internacional): O burro, com o lobo por perto, estudou mesmo e aprendeu a lição, e nós aprendemos que as aparências iludem e que para ser mau não é preciso ser lobo, basta ser mau.

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A conspiração dos astros – GS25/02/2015

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Um frio que não chegava a ser incomodativo batia-me no rosto, despertando, um a um, todos os meus sentidos, como se desejasse prepararme para o que viria a suceder. O ar estava leve e limpo e a Lua, mostrando-se ainda a medo, deixava já antever a forma sombreada de todo o seu perímetro e futuro esplendor. Logo por baixo dela, à distância precisa de dois polegares, dois astros capturaram a minha atenção. Pela sua trajetória e tipo de brilho, percebi que eram certamente planetas. Um mais brilhante e vibrante; o outro um pouco mais sóbrio e expectante. A sua posição pouco usual parecia querer dizer-me alguma coisa e o meu olhar nunca mais se desviou daqueles pontos da tela celeste e passou a acompanhar o seu desaparecimento na linha de arvoredo, que no meu caso antecipa a linha do horizonte. Os fenómenos celestes costumam aprisionar a minha atenção, mas por norma, surgem sempre antecipados por grandes notícias ou pesquisas fortuitas na internet. Neste caso, nada disso… apenas olhei na altura certa e no lugar certo e nunca mais fiquei indiferente. Sei identificar os astros e constelações no desenho do céu. Mesmo assim, não sabia ao certo que planetas seriam e por isso, qual astrónomo de trazer por casa, recorri preguiçosamente a uma aplicação no telemóvel e apontei para aqueles dois pontos brilhantes, situados dois polegares abaixo da Lua. Marte e Vénus! Tornei a confirmar… eram mesmo os dois 71


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planetas, eternos amantes. Não consegui disfarçar o meu entusiasmo e surpresa, pois a ligação entre estes dois astros não é vazia de significado para os mais atentos. Senti, por isso, que os astros conspiravam para me dizer alguma coisa. Naqueles minutos em que fiquei a observar aquele bailado de amantes arrebatados, viajei até junto deles e sentei-me a recordar as suas histórias. Lembrei-me das vezes que me cruzei com os seus nomes ao longo da minha vida; lembrei-me como fazem parte do imaginário de todas as verdadeiras histórias de amor; lembrei-me dos poemas e dos textos que lhes foram dedicados; lembrei-me do carinho que, segundo Camões, tinham por todos os portugueses e venturosos; lembrei-me do seu filho Cupido e das datas em que no calendário comemoramos o AMOR e vi que este encontro, afinal, não tinha sido por acaso. Agora, estavam ali tão perto de mim. Percebi que eu próprio fazia parte do universo presente e passado, pois partilhava o mesmo ar de todos os outros que, ao longo dos séculos, observaram o mesmo céu e se sentiram inspirados para criar os seus poemas, histórias e narrativas. Ao ver a dança apaixonada destes dois eternos amantes, iluminados apenas pela Lua, como sempre deveria ser, sorri maravilhado ao pensar que tinham escolhido o meu horizonte para se encontrarem por aqueles breves momentos. Tive aí a certeza que conspiravam em meu favor. 72


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Para mim, à imagem de Sophia enquanto olhava o mar e as coisas simples, isto é motivo de maravilhamento, de poesia e de inspiração. Sei, no entanto, que para aqueles dotados de um cinismo científico, nada disto é mais do que o aproximar aparente de dois planetas desprovidos de vida, ou para aqueles dotados de um perigoso desinteresse geral, isto não deixa de ser uma mão cheia de nada. No entanto, são estes dois “amantes” e nossos vizinhos imediatos nas viagens à volta do sol, que permitem a existência de condições para haver vida no nosso planeta. Marte e Vénus não conspiraram apenas para o sucesso dos portugueses na descoberta do caminho marítimo para a Índia, eles conspiraram para que toda a vida no planeta Terra encontrasse o seu caminho.

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em verso com alguma rima! – GS26/03/2015

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-Que palavras traz hoje? -Trago das frescas e das boas… saídas agora do mar! saltitam e soltam escamas, que se espalham pelo ar! Trazem o brilho do sol nascente e o aroma da flor de sal vindas deste nosso mar, desta língua sem igual. Eu próprio as pesquei Neste mar português imenso O papel, a minha rede, Que apanha tudo o que penso. Não as trouxe todas comigo: as que queria, escolhi, as outras são para outras pescas e ao mar as devolvi. O A E A

destino as levará outra mão e a outra rede por certo serão remédio outra fome e a outra sede.

As que trouxe dão bom petisco Numa esplanada à beira mar. Lidas num verso curto Soltas, livres no ar. Se as preferir numa prosa, Para uma refeição elaborada, 75


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Acompanhe-as de uma boa história, Para uma leitura demorada. É só a “menina” escolher O uso que lhes quer dar As palavras, são sempre boas Desde que saibam a mar!

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O gafanhoto Antunes – GS08/04/2015

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Vá lá baixem-se um bocadinho, afastem-se das estradas e da confusão, desliguem o rádio e a televisão. Escolham um pedacinho de terra, ou mesmo um pinhal e sentem-se mesmo no chão, o Parque do Castelo pode até ser uma boa solução. Agora que estão preparados encostem o ouvido à terra e escutem com muita atenção, pois esta pequena história é passada mesmo no chão, com animais pequeninos que merecem atenção. Conta-se por aí que num campo de trigo muito longe do barulho dos automóveis e da poluição das cidades, vivia um pequeno gafanhoto com a mania que era atleta. Andava sempre aos saltinhos por todo lado que ia, para preocupação da sua mãe que sempre lhe dizia: “Antunes não andes aos saltos que podes mesmo cair!” Mas o rapaz lá das alturas, já não ouvia, ou cá para mim fingia. Continuava a saltar sem nunca mais parar e cada vez melhor, até que um dia lhe disseram: ”Ó Antunes! Com tanta saltaria mais valia ires à olimpíada!” O que foram dizer ao rapaz! A partir daquele dia, o fato de atleta sempre vestia. Que alegria era ver o gafanhoto Antunes a saltar quanto podia, para ganhar a saltaria, ou melhor a olimpíada. Todos no campo de trigo o apoiavam e agora até a sua mãe o incentivava, mesmo que às escondidas pusesse as mãos na cabeça com tanta preocupação e acendesse uma velinha para não lhe faltar proteção. Treinou, treinou, treinou até que o grande dia chegou e sem surpresa para 78


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mim, foi ultrapassando eliminatórias até chegar ao grande fim. No final ficaram só três para ganhar o troféu: Antunes, o nosso herói; a rã Kika e a pulga Rita. Os três mestres no salto, que passavam a vida a saltar, mas qual destes amigos irá afinal ganhar? Começou a pulga Rita que não parava de se coçar, apesar do seu grande salto, decerto não dava para ganhar. De seguida saltou a Kika, vinda do Lago dos Pardais, que depois de ver a pulga, pensou que podia saltar muito mais. Um salto bem sucedido levou a Kika para primeiro, deixando o nosso Antunes nervoso para o salto derradeiro. Com aplausos de incentivo o gafanhoto preparou o seu salto, e se queria ganhar teria de saltar muito mais longe e muito mais alto. Respirou fundo e os olhos fechou e quando deu conta já ia no ar. Saltou tão alto e tão longe que nem queria acreditar, mas esqueceu-se que quem voa, tem sempre de saber aterrar. Estatelou-se no chão e sentiu-se mesmo um pouco dorido. Levantou-se triste e desiludido e pensou que tudo tinha perdido, mas quando o aplaudiram viu que afinal tinha conseguido! “Antunes, o gafanhoto campeão” diziam no dia seguinte os jornais e ele todo contente comemorou no seu campo de trigo, junto dos seus amigos e pais!

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Qual o peso das palavras? – GS22/04/2015

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Será que as palavras têm peso, cor ou sabor? Existirá uma qualquer balança que avalie ao pormenor as gramas de certos vocábulos? Sabemos que abraçamos e nos deixamos acariciar por certas palavras, por nos parecerem leves, doces e amigáveis. Por outro lado, há palavras que nos põem carrancudos, maldispostos e que nos causam repulsa por serem pesadas, carregadas de ondas negativas e que parecem carregar um aroma um tanto ou quanto acre. No entanto, quer umas, quer outras, não deixam de ser aglomerados de letras com sons associados, às quais atribuímos significado e atiramos uns aos outros como beijos, ou como pedras. Há também aquelas que, disfarçadas, nos enganam, e parecem ser uma coisa e afinal quando nos batem, são outra. Ao longe parecem beijos, mas acertam-nos como calhaus pontiagudos. Confesso que me perdi com estas deambulações e antes que avancem para outros lados da página, para uma publicidade colorida, ou mesmo uma figura agradável para lá das páginas deste jornal, façam apenas o exercício que vos peço com a palavra “humano” usada como adjetivo. À primeira vista, quando vos qualificarem com esta palavra será fácil identificar se é beijo ou pedra. Mas será mesmo assim tão fácil? Será que o que conhecemos desta palavra, com todo o seu historial, torna aprazível e não insultuoso ser caracterizado de “humano”?

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Vejamos com mais atenção: quando usamos a palavra “humano” para nos referirmos às qualidades das pessoas, queremos dizer que a pessoa é bondosa, que gosta de fazer o bem e que é sensível ao mal alheio. Se quisermos ir um pouco mais longe na definição, podemos dar a resposta pronta que “humano” é um ser racional e que se opõe à palavra “animal” que designa um ser irracional, bruto, estúpido e grosseiro. Até há pouco tempo senti-me bem com esta distinção e para ser muito sincero nunca tinha pensado muito nisso. Usava as palavras da forma habitual, sem me aperceber que poderia a estar a cometer um erro quando dava um elogio «Tiveste um gesto muito humano hoje!»; ou quando no meio do trânsito dizia a barafustar «Que grande animal!». É o que dá não pensar muito no peso das palavras. Por vezes temos de nos afastar e olhá-las com estranheza, como se as olhássemos pela primeira vez, ou como se tivéssemos de as colocar numa entrada nova no dicionário. Convido-vos a fazer esse mesmo exercício, usando as características predominantes daquele que se assume como “humano”. A mim, deu-me isto: Humano – (adj. Sing.) caracteriza aquele que tudo mata e destrói; aquele capaz de extinguir ecossistemas e provocar genocídios; característica de um ser dotado de comportamentos irracionais e maldosos; característica do ser capaz de provocar o caos, o pânico e a morte de outros seres, encurralando-os entre muros reais e legais, 82


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fronteiras, escarpas e mares; característica do ser capaz de assistir a todos os pontos anteriores com indiferença. Sei que a definição que escrevi apresenta um lado negativo e parcelar da palavra e da realidade que descreve. Concordo! Mas a definição que todos conhecemos e tomamos como válida também o é. E cá para mim, estando apenas um pouco atentos à realidade que nos rodeia, temo que a minha definição sirva melhor o propósito de a descrever. As palavras têm assim pesos, cheiros e cores. Não são é sempre os mesmos e não flutuam em direção ao que seria desejável. Há palavras que descrevem realidades ideais e que o passar dos dias tornou pesadas e vinagrentas, capazes até de nos causar reações muito “humanas” (à luz da minha definição) de repulsa e de resposta violenta. Por isso, da próxima vez que alguém me disser que eu sou muito “humano”, não espere que sorria e agradeça. Não gosto de ser insultado.

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O que me faz feliz! O meu guia da felicidade! – GS- 06/05/2015

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Todos procuramos a felicidade, no entanto parece que ainda não há um guia para a encontrar. Corrijo. Há por aí muitos guias que detalhadamente descrevem o caminho para a felicidade, com promessas de dias de sorriso aberto. Basta comprar aquele guia, fazer tudo como está descrito, na dose certa e zás, trás, catrapás. Às três pancadas, passamos de uma vida triste e cabisbaixa, para uma radiosa felicidade, capaz de iluminar a mais escura das noites. Tretas! A mais pura das tretas! A felicidade não se avia como uma receita e por muito que fosse mais fácil, não podemos obrigar ninguém a ser feliz. «– Toma lá, agora sê feliz!». Ninguém é feliz da mesma forma que o vizinho do lado, ninguém é feliz fazendo as mesmas coisas e da mesma maneira que os outros fazem. Por isso, o que há que fazer é conhecermos a nossa felicidade. Olhar para o espelho e perguntar: «Tu…sim…tu aí! Afinal, o que é que te faz feliz?» Não esperem resposta do espelho, a voz terá de ser a vossa, e a vossa resposta é única, inimitável e impossível de copiar. Mesmo que por vezes se tratem das mesmas coisas, nunca será do mesmo modo e por isso não será exatamente a mesma coisa. Apesar de a felicidade ser um conceito universal, já que toda a gente quer ser feliz (salvo alguém que sofra de uma qualquer patologia), encontraríamos, por certo, inúmeras definições para a explicar. Seguindo o meu próprio conselho, usei aqueles guias de felicidade como pisa-papéis ou como niveladores de mobília, ou mesmo como arma de defesa pessoal, no caso dos guias mais volumosos e comecei o meu próprio método de autoajuda para 85


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a felicidade. Sentei-me de lápis na mão e iniciei a minha lista de dez coisas que realmente me fazem feliz. Depois de elaborar a lista, é tempo de a escrever com letras gordas e afixá-la num sítio da casa que seja impossível de não ver ao iniciar um novo dia. No meu caso, no espelho onde confirmo diariamente o avanço das minhas entradas herdadas geneticamente. A receita (ah, afinal sempre há uma receita, ouço uma vozinha irritante a dizer ao fundo, mas que não passa da minha imaginação, é claro!) passa por procurar fazer todos os dias essas dez coisas que constam da lista. Se me faz feliz, por que motivo, não o faço todos os dias! Assim, nas restantes linhas deste texto, vou escrever as dez coisas que me fazem feliz. Alerto uma vez mais que são as minhas dez coisas e não são copiáveis e no caso de uma transferência direta, não me responsabilizo pelos efeitos que possam causar. Para o bem de todos, cada um que faça a sua. Tenho a certeza que pensarão em coisas muito mais interessantes do que as minhas. Aqui vai: 1. Abraçar a minha família e dar-lhes muitos beijinhos logo pela manhã; 2. Dizer «Bom dia!» a toda a gente; 3. Almoçar com os meus pais; 4. Tomar café e não pensar em nada durante aqueles breves segundos em que mexo o açúcar;

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5. Ficar em silêncio a observar as coisas (o mar, o rio, as árvores, as formigas, os pássaros, as estrelas…); 6. Escrever de noite; 7. Ver os outros felizes com alguma coisa que eu faço; 8. Inventar adormecer;

histórias

para

a

filhota

9. Sonhar com coisas impossíveis; 10.Lembrar-me dos meus avós. Esta é a minha lista. Nem todos os dias a cumpro, e por isso mesmo são dias menos felizes. Desafio-vos a fazer a vossa lista e a experimentar. Para ser feliz, é preciso procurar ser feliz!

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As cores verdadeiras – GS27/05/2015

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Seria bom virmos dotados de um dispositivo que mostrasse as nossas verdadeiras cores. Acho que se tivéssemos de apostar numa melhoria enquanto capacidade especial, este seria por certo um dos “upgrades” a fazer no nosso código genético. Assim, munidos de um qualquer aparelho em forma de prisma, ser-nos-ia mostrada a decomposição da luz nas suas cores e a partir daí saberíamos de que elementos os outros seriam feitos. No fundo, tratar-se-ia de replicar o que já se faz na astrofísica na descoberta de novos mundos e corpos celestes, em que a partir da análise de um código de cores, é possível identificar os elementos existentes nesses locais a milhões de anos-luz. Neste caso, pouco me interessaria saber os componentes da tabela periódica de que somos compostos. Acredito mesmo que pouca diferença haveria entre uns e outros: somos feitos da mesma massa. O que seria interessante, neste possível “upgrade”, seria que nos fosse revelado as verdadeiras cores das pessoas que encontramos, ou seja, as suas qualidades enquanto “humanos”. Seria certamente mais fácil não ser enganado, desiludido, ou mesmo violentamente surpreendido. Confesso que a escrita deste texto iniciou antes mesmo dos acontecimentos da semana passada. No entanto, esses mesmos acontecimentos revelam a extrema necessidade de não nos deixarmos levar pelas aparências exteriores. Todos já sabemos isso; é aliás uma daquelas frases que ouvimos como certas desde pequenos, mas de uma forma ou 89


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de outra, só nos apercebemos da sua verdadeira validade, na altura em que nos enganamos em relação a alguém. No meio dos meus naturais festejos de sofá, mostrando a quem me é próximo o que eu entendo ser a natural alegria da vitória, um vídeo assombra-me de tal forma que me causa um sobressalto. Hoje é discussão geral e foi tema de noticiários. Na hora não tive dúvidas da importância daquelas imagens e do que revelava do caráter “humano”: quer do fardado que agride; quer do fardado que abraça e tenta acalmar a criança. De seguida, inexplicavelmente, no meio de festejos, uma “intifada”, digna de uma qualquer guerra civil ou revolta popular. Claro que não fiquei bem… não podia. Para mim, o futebol deve ser alegria e festa, e não uma propagação de ódios e de frustrações pessoais. Passada a surpresa e a tristeza, lembrei-me de novo do início do meu texto e da utilidade do dispositivo descrito ou da necessária melhoria genética. É que se o tivéssemos, seria possível ver para além das fardas e para além da cor das camisolas. Aquele polícia, sobre o qual só preciso de saber a data da sua expulsão, seria visto automaticamente como um barril de pólvora e por isso colocado no devido lugar, dentro de um quarto acolchoado ou noutro sítio qualquer onde pudesse usar o bastão sem incomodar ninguém. Ao verem as suas verdadeiras cores, nunca estaria num lugar de comando, nunca usaria uma farda que tem como missão “assegurar a 90


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legalidade democrática, garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos”. Mas nada de confundir uma árvore com a floresta: quase no mesmo frame televisivo, entre o desespero e pânico da criança que me causou um aperto na garganta, consegui ver a verdadeira humanidade do outro agente, muito provavelmente abaixo na hierarquia das divisas, mas muito acima na sua capacidade de ser gente. À primeira vista, as mesmas cores da farda, mas com aquele tal dispositivo ou melhoria genética, seria fácil escolher a quem pedir ajuda se tivesse a minha filha pela mão. E os outros? Usando a mesma camisola encarnada, que deveria significar orgulho, respeito e alegria pela vitória. Eram todos iguais? Claro que não eram! Uns eram criminosos, arruaceiros e bestas e isso há de todas as cores. É preciso ver a verdadeira cor das pessoas, já que a que usam no exterior nada diz da sua qualidade. Cientistas, toca a trabalhar!

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A rosa vaidosa e a visita inesperada. – GS- 13/06/2015

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Conta-se por ai que em certo jardim lá para os lados do Marão, vivia uma rosa muito bonita e cheirosa, mas terrivelmente vaidosa. Para esta rosa, era importante ser a flor mais bonita, esmerada e organizada do jardim. Era uma questão de honra! Só assim se percebia a sua mania das limpezas. Passava os dias a reclamar com a bicharada que pousava nas suas pétalas, pois vinham carregados de pólen e sujavam tudo, deixando-a sempre maldisposta e carrancuda. Entravam sem limpar as patinhas, «Que maleducados!» Pensava em voz alta a rosa vaidosa, sem se importar que a ouvissem. Ficava mesmo irritada! É que quando falamos de insetos, temos de nos lembrar que são logo três pares de patas, seis ao todo, a deixar pegadas de pó amarelado por todo lado. Era todo o dia a mesma coisa: mal acabava de varrer, lá vinha uma abelha ou um zangão ou mesmo uma borboleta armada em modelo a sujarlhe a arrumação. Sempre de vassoura na mão, sem aspirador que lhe valesse, a rosa apressava-se por ficar mais brilhante do que as gotas de orvalho, que de manhã caiam das suas folhas. À sua volta, consta que acontecia o mesmo às suas vizinhas, mas estas, mais relaxadas, até gostavam de toda aquela animação e recebiam de sorriso aberto todos os hóspedes temporários, por muitos desastrados que fossem. 93


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Um dia, farta de tanto limpar, e irritada com o constante descuido dos seus visitantes, resolveu escrever um letreiro com a frase “Proibida a entrada a insetos e a animais similares”. A frase não deixava dúvidas, ela não queria visitantes, muito menos visitantes de patas empoeiradas. Pela primeira vez sentou-se descansada a olharse ao espelho, apreciando de todos os ângulos as suas pétalas, caule e folhas. Era realmente uma rosa bonita, cheirosa e agora sem pó. Ao olhar-se ao espelho, julgava-se mesmo a rosa mais bonita daquele jardim, plantado lá para os altos do Marão. Sem nunca perceber os efeitos da polinização, não ficou de imediato alarmada quando viu as suas pétalas perderem a cor ou quando viu cair algumas das suas folhas, outrora muito verdes e seguras. Ao seu lado, todas as outras rosas se mantinham viçosas e vistosas e com grande atividade social, tanto quanto uma rosa pode desejar. Todo o jardim se mostrava sorridente, com flores coloridas e bem-dispostas, borboletas e abelhas a voar por todo o lado, oferecendo aos mais atentos uma composição de zumbidos, escrita em lá menor. Uma dessas abelhas, um pouco míope e habitualmente desastrada, acabou por não ler o letreiro que estava na entrada da rosa e aterrou aos trambolhões numa das suas pétalas, deixando 94


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a rosa aparentemente furiosa com toda aquela confusão. «Não sabes ler!», disse-lhe de modo pouco simpático. No entanto, apesar da rispidez da sua resposta, a rosa vaidosa não deixou de apreciar aquela entrada imprevista. A verdade é que tinham sido dias de tédio a conversar sozinha com o seu espelho e a admirar a limpeza e organização das suas pétalas, que de dia para dia pareciam menos brilhantes e saudáveis. A abelha Augusta pediu desculpa pela intromissão, e quando se preparava para voar para outra flor, logo a rosa, visivelmente mais satisfeita, a convidou para um chá. Passaram horas a conversar e as cores voltaram de imediato à flor, conta quem viu. Agora à sua porta havia já outro letreiro: “A entrada a insetos e a animais similares é muito bemvinda!”

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O primeiro dia de aulas – GS30/07/2015

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Parece contraditório falar do primeiro dia de aulas em plenas férias, mas tenho os meus motivos. Ele há dia mais especial do que este? Quase todos os anos o revejo nos rostos e olhares da pequenada. No entanto, este ano vai ser especial: o friozinho na barriga vai ser a dobrar. Alerto que a memória deste dia foi certamente alterada pelo tempo e pela vontade racional de tudo bater certo e estar articulado num texto com princípio, meio e fim. Era manhãzinha cedo e entramos na sala com olhos brilhantes, ainda que ligeiramente assustados. Envergonhados e um pouco sem jeito, sentamo-nos pouco a pouco, seguindo as indicações da professora, que parecia tão grande, enorme. Tão grande como as cadeiras onde nos sentávamos, que deixavam os nossos pés lá fora no recreio, ainda a brincar no baloiço. A voz da professora ouvia-se em todo lado, parecia que trovejava e por vezes até pareciam sair faíscas. Assustados, todos nos encolhemos, olhando para baixo enquanto alguns rodopiavam com os pés. Estávamos juntos pela primeira vez! Era mesmo um grande dia. Sentados dois a dois por ordem alfabética, enfrentamos pela primeira vez o desafio de termos um estranho ao nosso lado, a respirar mesmo à nossa beirinha e a partilhar o nosso espaço. Um olhar ou outro trocado, uns sorrisos escondidos, mas sem muita coragem de nos 97


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olharmos diretamente, não vá estarmos a fazer alguma coisa de errado. Um barulho fora do comum ouve-se do exterior, como se arrastassem muitas cadeiras ao mesmo tempo, mesmo por cima de nós. De forma automática, virámos todos a cabeça lá para fora. De pescoço esticado, como se de um filme se tratasse, conseguimos ver aparecer na janela da sala um Caterpiller gigante, ou no nosso dizer uma catrapilha. Era de um amarelo muito vivo que contrastava com o cinzento dos paralelos da rua, e parou mesmo em frente da janela da nossa sala com os seus braços mágicos a subir e a descer. Alvoroço! Agitação total e pela primeira vez, todos soltamos completamente a respiração, sem medo de sermos ouvidos. Levantamo-nos uns atrás dos outros de forma espontânea para espreitar à janela, e como alguns ainda eram muito pequenos, trataram mesmo de subir para cima das mesas, na procura do melhor lugar para ver aquela máquina de sonho. Mas já estávamos na escola, e na escola parecia que já não havia lugar para sonhar ou agir de forma verdadeira, nem saltar quando vemos alguma coisa entusiasmante. Era preciso manter a ordem e à ordem de trovão da professora, todos corremos aflitos para o lugar. Foi aí que vi o meu companheiro de carteira verdadeiramente pela primeira vez. Quis o destino e o nome que 98


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ele se sentasse ao meu lado e a partir daí se tenha tornado no meu melhor amigo.

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Ensaio sobre o absurdo! – GS27/8/2015

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Uma das piores coisas que nos pode acontecer é imaginarmos uma situação absurda, (ou nem sequer a conseguir imaginar, de tão absurda), e passado algum tempo sermos confrontados com essa mesma realidade. Não há nada pior para o nosso ego! Por um lado revela que a nossa imaginação é muito limitada, e que os nossos horizontes são de alguma forma curtos; por outro lado revela que não estamos bem enquadrados com o mundo em que vivemos e que há toda outra realidade que nos ultrapassa e o que nos parece absurdo, afinal não é assim tanto. São vários exemplos de absurdidades que me lembro para ilustrar esta situação. Se perguntassem a qualquer contemporâneo da segunda Grande Guerra que 6 000 000 (seis milhões) de pessoas seriam mortas de forma industrializada, todos achariam absurdo; no entanto aconteceu; pela mesma altura se perguntassem às mesmas pessoas se algum dia seriam lançadas bombas que destruíssem cidades inteiras de uma só vez, todos achariam absurdo. Mesmo que fosse tecnicamente possível, isso nunca seria feito; no entanto faz este mês 70 anos que as bombas “Little Boy” e “Fat Man” arrasaram as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki. O absurdo novamente aconteceu. E não faltam mais exemplos e nem será necessário ir a grandes enciclopédias e a manuais de história, (se bem que isso não faça mal nenhum). 101


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Basta abrir os jornais diários para vermos testados os nossos limites de absurdidade. Há dez anos (isto para ser cuidadoso com os espaços temporais) alguém imaginaria que um exPrimeiro-Ministro estivesse preso, isto sem recorrer à piada fácil e à vox populi que normalmente qualifica os políticos. Nem aqueles que o queriam muito, com ou sem razão, acreditavam mesmo que isso fosse possível. Era absurdo? Era, mas mais uma vez aconteceu. E sobre o BES a mesma coisa. O absurdo novamente a pregar partidas à nossa imaginação. E a revolta social, justa, devo dizer, motivada pela morte do leão Cecil, comparada com a quase indiferença com que se tratam as mortes diárias dos refugiados que tentam entrar na europa. É absurdo não é? Mas está a acontecer mesmo agora! Apesar de tudo, há um lado positivo na busca do que para os outros é absurdo; atrevo-me a dizer que depende quase sempre da salubridade dos sonhos. Vejamos: quando Kennedy disse em 1961 que antes do final dessa mesma década tinha como grande objetivo colocar um homem na Lua, e trazê-lo de volta vivo, uma grande maioria deve ter achado absurdo, muitos dos quais elementos da própria NASA. Neste caso ainda bem que o absurdo aconteceu. E a circum-navegação de Fernão de Magalhães? Absurdo aos olhos de muitos, por certo, mas aconteceu. E o que dizer de Galileu e a absurdidade de defender o Heliocentrismo? Absurdo por certo!

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Se não se lutasse pelo absurdo ainda haveria escravos, as mulheres não votariam, as crianças não tinham direito a ser crianças, a democracia, mesmo que aparente, não existiria. Para uns, todos estes passos foram passos dados no absurdo. (Ainda bem que alguém acreditou que o absurdo era o inverso.) Há este lado positivo da procura pelo absurdo; este alargamento contínuo dos nossos limites e das nossas possibilidades enquanto humanos. Muitos disseram que seria absurdo tentar lançar um livro. Entretanto, lancei três e estou a dois meses de lançar o quarto e não consigo parar de escrever e de criar histórias. Se me perguntassem há pouco mais de quatro anos se eu imaginaria isto, eu diria que era absurdo. Se calhar continua a ser… Às tantas, mesmo nos dias de hoje, continua a parecer absurdo um neto de um sapateiro e de um afinador de máquinas industriais querer ser escritor e não ter medo de o dizer e lutar por isso todos os dias que se levanta, independentemente da indiferença geral. Há por isso diferentes tipos de absurdos, mas que não deixam de ser absurdos, uma vez que contrariam a razão e a normal lei das coisas, com que muitos gostam de viver. Por isso, dotar-me-ei de metas impossíveis, objetivos intransponíveis e de absurdos saudáveis. Essa será a minha revolta, acho mesmo que sempre foi e sempre será, pois não me importo de continuar como Sísifo, a carregar a 103


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pedra do meu sonho até ao ponto mais alto da montanha, para quando ela inevitavelmente descer, a fazer subir de novo, e de novo, e de novo… Mas isto pode muito bem ser um absurdo.

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A realidade e a ficção –GS-13/08/2015

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É cada vez mais difícil distinguir o que é a realidade do que é ficção. O que era realidade transforma-se em ficção e o que parecia ficção transforma-se assustadoramente em realidade. Para quem escreve isto é verdadeiramente um desassossego: pensamos que estamos a criar algo novo e somos subitamente acordados com a realidade, uma realidade suficientemente parecida com que imaginamos, de modo a mandar o que escrevemos para o lixo. A ficção é a verdade assente na mentira, isto é: o possível e verosímil daquilo que simplesmente não é verdadeiro. Não tenho um crocodilo como animal de estimação, mas se tivesse teria de criar o seu espaço, teria de o alimentar, passear, e entretanto … esperar não ser comido. A imaginação só têm rédea solta até certo ponto; há sempre uma âncora que nos prende aos nossos valores e vivências e que por isso nos limitam. A ficção assenta assim em algo que apesar de não ser real, poderia muito bem ter sido ou poderá ainda ser, caso se verifiquem determinados parâmetros e determinadas circunstâncias. Não imagino nenhuma que me levasse a ter um crocodilo como animal de estimação, mas se isso acontecesse eu teria de ter todas essas preocupações, isto se quisesse que a minha história fosse aceite por um leitor, que vejo sempre como exigente. Nem sempre apliquei estes mesmos princípios ao longo da minha escrita, mas reconheço que o deveria ter feito. Lembro-me sempre daquele dia, quando 106


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numa escola, numa sessão de apresentação do meu primeiro livro “A Maria da Lua”, um aluno me perguntou como é que os passarinhos, que plantaram as flores na lua, passaram a atmosfera da terra. Bem tentei dizer que deveriam levar uns capacetes especiais, mas percebi naquele momento que deveria ter dado uma resposta melhor no texto, já no momento, foi a melhor resposta que saiu. Sabemos que ao entrar no mundo da fábula e da ficção logo se aplicam outras regras e outras fórmulas. O ”Era uma vez…” abre-nos um portal infindável de possibilidades. No entanto, mesmo quando nos deparamos com a existência de animais falantes, ou com naves espaciais a saltar de planeta em planeta, repletas de seres estranhos de múltiplos membros e olhos a lutar ou a conviver, há sempre uma organização de base já conhecida que deverá ser verosímil e plausível de ter acontecido naquelas circunstâncias. Com Alice tudo estava bem até aparecer um coelho falante que a levou a um mundo onde toda a lógica é desafiada. No entanto, mesmo nesse mundo do faz de conta há uma ordem e regras próprias. É assim tão diferente do que que se passa no mundo real? Quantas vezes não pensamos o mesmo de costumes de povos diferentes ou mesmo de costumes de comunidades dentro do nosso país? Queimar um gato não vos parece estranho e próprio de ficção (doentia é certo!)? A realidade derrota a ficção por KO. 107


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Na ficção começa-se sempre com uma premissa silogística “Se estamos em 2045, logo as nossas roupas serão de uma forma estranha, as nossas armas serão lasers, as nossas viagens rotineiras serão feitas de pequenos aviões e as nossas vias serão a 200 metros do chão… deixo que a vossa imaginação tome conta do resto, mas desde já aviso que estava a com a imagem da série Jetsons na cabeça. A partir daqui, toda a construção tem de fazer sentido, e quando não o faz é porque se procuram efeitos de pura ironia ou efeitos cómicos como o avental do robot da série mencionada. A este propósito e para demonstrar que as minhas referências não passam apenas pelos desenhos animados, tenhamos em atenção os livros de José Saramago, quer o Ensaio sobre a Cegueira quer o Ensaio sobre a Lucidez. Todos começam com uma ideia “E se…” A partir daqui, de uma forma brilhante (o Nobel não é certamente por acaso) somos levados para um mundo em que se o “E se…” fosse real, não tenho qualquer dúvida que o descrito seria o mais próximo da realidade. Para mim seria exatamente assim que tudo aconteceria. Só um conhecimento profundo da humanidade permitiu Saramago chegar a esse ponto de perfeição pois é exatamente assim que nos comportamos perante aquelas mesmas situações. Antes não fosse, mas a história tem demonstrado o contrário… O ano é de estreia é 2006 e o protagonista do filme é Clive Owen e conta com outros atores de 108


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renome como Julianne Moore e Michael Caine. O filme com o título original “Children of Men” apresenta-nos um cenário apocalítico no ano de 2027 onde as mulheres deixaram de conseguir engravidar e a humanidade caminha para a extinção. No entanto não é isso que me chamou particularmente a atenção: no filme as fronteiras estão fechadas à volta do Reino Unido, e pessoas desesperadas tentam entrar. Não sei… apenas me lembrei desta ficção tão afastada da realidade dos nossos dias. Longe de nós isto estar a acontecer mesmo agora!

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©João Cunha Silva/2015 Todos os direitos reservados O uso destes textos é autorizado em contexto escolar desde que se faça referência ao autor e à publicação. www.facebook.com/EscritorJoaoCunhaSilva www.joaocunhasilva.blogspot.pt 110


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