O lado oculto da minha lua
JoĂŁo Cunha Silva
O lado oculto da minha lua (poemas ou muito perto disso)
JoĂŁo Cunha Silva
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O lado oculto da minha lua
João Cunha Silva
Título: O lado oculto da minha lua – poemas ou uma coisa parecida ©2017, João Cunha Silva
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O lado oculto da minha lua
JoĂŁo Cunha Silva
O lado oculto da minha lua (poemas ou muito perto disso)
JoĂŁo Cunha Silva
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O lado oculto da minha lua
JoĂŁo Cunha Silva
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O lado oculto da minha lua
João Cunha Silva
Pórtico Caro leitor,
Aqui, descansam palavras contidas em verso, aquelas que fervilhantes não se espraiam na acalmia da prosa. Palavras febris, palavras com muitas palavras dentro. Às vezes, é assim que quero ver o mundo, numa meia frase em que o eco ou silêncio explicam o resto. Não te peço serventias nem honrarias, aliás não te peço nada: dou-te estes meus estados de alma, na esperança que à imagem de Torga me leves contigo na intemporalidade do verbo que nos junta e nos faz humanos.
O teu,
João Cunha Silva
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O lado oculto da minha lua
JoĂŁo Cunha Silva
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O lado oculto da minha lua
João Cunha Silva
A poesia
A palavra em potência, A multiplicação dos sussurros, Perdidos entre os muros Da minha própria demência. Encontrar-te, sentido, oculto num manto Em algum lado perdido Escrito num qualquer canto. Ilusão antevista. Loucura prevista. Um mundo ante da vista. Dobro, corto, moldo, Cinzelo cada palavra Faço dela um punhal Faço dela minha escrava. Mas escravo fico eu, Dos sussurros e dos muros, Dos sentidos ocultos e perdidos Com que escrevo a minha loucura.
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O lado oculto da minha lua
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Pela escrita me v e r t o Pela escrita me verto, lágrima a lágrima, gota a gota, não estanco os sentidos, pois todo eu sou poros de emoção. e deixo sair letra a letra, gota a gota (quero crer que sou eu que deixo), um esvair de sangue, semântico de mim próprio, impregnado do meu código secreto, espalhado por todos os fragmentos que me tornam uno com o universo!
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O lado oculto da minha lua
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A estátua Pego na tua mão e vou onde queres ir, em troca apenas te peço um sorriso, um lampejo de felicidade. Mostra-me o sorriso que vem da tua alma, Dá-me um esgar de alegria, ou então desata o teu dilúvio de lágrimas; contrai o rosto com a dor que sentes, pois O brilho da lágrima, a dor, tudo é vida. Não te quero ausente Não quero o arrepio do sopro gélido que vem do teu íntimo, Luz, lampejo, sorriso, esgar, lágrima, gélido, triste... Quero ser acariciado pelo teu respirar quente e húmido Mostra-te viva, mostra-te presente; mostrar que és mais do que uma massa de água prateada, pela qual os meus olhos percorrem com saudade; mostra que és mais do que uma nuvem disforme e ausente sobre a qual eu adivinho formas; Mostra que o teu coração bate como o meu e assim, vou contigo ao colo da tua vontade, Para onde me levas, é para onde vou, é para onde sonhei sempre ir. Nada pergunto, nada suspiro, apenas respiro, apenas me deixo ir pelo calor da tua mão.
Poema publicado na coletânea “Poesia sem Gavetas II, Pastelaria Studios, pp. 194, declamado em 4/2013 no programa “Voz dos Sentidos” da rádio informédia por Maria Mar
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O lado oculto da minha lua
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Reencontro Reencontro-me nos pedaços que tiraste de mim Peça a peça, monto-me a partir de ti Dos teus olhares, palavras e beijos, faço a minha história , Crio para sempre a minha memória, Os meus olhos, nos teus olhos, O meu corpo no teu corpo, Uno, indivisível, uma só massa E crio vida, uma flor, uma pétala… um conjunto de pétalas Palavras, beijos, olhares, Vejo-me a partir de ti, Beijos, olhares, palavras…um texto O meu texto… onde tu estás… onde eu estou Linha atrás de linha, sopro atrás de sopro, batida atrás de batida… E eu vivo, porque tu vives, porque o que é nosso vive e respira e beija e ama E os meus pedaços, estão todos lá, onde tu estás, onde nós estamos… Não mos tiraste, sempre foram teus e agora são nossos, para além de nós os dois… para além de mim, para além de ti. Beijos, palavras, olhares e mais beijos e mais palavras… Sem ver …apenas sentir!
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O lado oculto da minha lua
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Molhei os pés no rio
Molhei os pés no rio E reguei a minha alma. Com o teu correr fiz-te Porto de partida, ponto de chegada O princípio e o fim O fim e o princípio, Onde eu começo e eu acabo; Onde eu sonho, onde eu deliro Onde eu me inspiro e finalmente me retiro.
Poema publicado na Antologia de Poesia Contemporânea “Entre o sono e o sonho, Vol IV, pp. 40
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Algures entre mim…
Passo a passo, vou e volto, num ir e vir, num conhecer e desconhecer, num eterno percurso algures traçado. Sigo a direito, sem recuos; inversamente venho, não protesto, não hesito; apenas sou isto-um pêndulo sem destino. Vou e volto, volto e vou; de cá para lá, de lá para cá, contando o movimento perpétuo de cada regresso e de cada ida. Vou e não volto - Não volto mais! Ponto de repouso eterno, algures entre mim e ti...
…e ti…
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CAPS GRITO BEM ALTO AO VENTO, QUE LEVE AS MINHAS PALAVRAS, AO DESTINO DE UM PAPEL QUE AS ACOLHA SEM CAUTELAS. UM GRITO OU um sussurro, UM NADA OU MESMO UM TUDO, COM SOM OU MESMO MUDO…
LOCK
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Não!
"não" palavra infame; palavra que impossibilita; que proíbe; que impede; que nega o que é; que é o que não chega a ser…
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Café Desperto com o cheiro do café, Pancada suave mas súbita, Que me traz de volta ao Mundo e multiplica o metabolismo dos meus sentidos Um a um, num despertar progressivo e cadente; olho, ouço, toco, Tudo agora é real e presente Pancada que me acorda; Pancada que me desassossega; Pancada que me recorda a tua ausência Quero novamente adormecer os meus sentidos, Percorrer o trilho, dormindo, Vazio do sentir Ausente dos sentidos, Ausente do sofrer.
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Abraço Corres para mim num abraço pronto E eu seguro-te ao Mundo. O teu sorriso, a tua alegria de viver, Me eleva, leva, alimenta… Entrego-me ao teu olhar Que me não julga; Entrego-me ao teu abraço, puro, verdadeiro que nunca acaba Entrego-me à tua cor; À flor que és E pétala sim, pétala sim Sem hesitações Resposta única, sincera e verdadeira.
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Rio de mim
Transborda o rio, transbordo eu Que não rio, Não te seguro nas minhas margens: Água à solta, bravia; Sem clausuras; aleatória e imprevisível. Foges dos meus braços e eu fraco Não te sustenho. És corrente, és onda, És maré, És torrente soprada pelo vento em todas as direções. Só posso largar, desistir, Também solto amarras E sujeito-me à vontade que não minha. Algum porto ou alguma praia me acolherá.
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Passei por ti…
Passei por ti e tu, triste olhavas para tudo, olhavas para nada. Sentada nessa soleira, Calcada, suja, gasta… Essa soleira… metáfora de ti própria, Que todos calcam, Que todos sujam, que todos gastam... local de passagem, Nunca destino, nunca paragem. Em ti, foi a mim que vi: olhos ocos, vazios despojados de tudo apenas cheios de nada, Sou como a soleira onde te sentas, não sou destino, não sou paragem, apenas poiso de bicho faminto, um lugar de passagem.
Poema publicado na coletânea “Poesia sem Gavetas II, Pastelaria Studios, pp. 196
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Sem Brilho
Hoje não consigo ser poeta! Falta-me o ar fresco de uma manhã nova; Falta-me a corrente de ar, vinda de uma janela aberta; Falta-me um olhar arejado, Próprio de uma mente desperta. Hoje não me deixem ser poeta, pois as minhas palavras, todas elas tardias e desnecessárias, Já não exaltam o que vejo, Nem lhe dão brilho nem cor. Hoje não me deixem ser poeta, pois não quero ser sombra ou manto poeirento, que rudemente cobre a beleza de um momento de silêncio.
Poema publicado na Antologia de Poesia Contemporânea “Entre o sono e o sonho, Vol V,
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Cores Na Lua d'A Maria da Lua
Juntei as palavras Que tinha no coração Ordenei-as com carinho E fiz esta canção. É sobre uma história, Que um dia ousei sonhar Cheia de cores e magia Que a ti quero contar Senta-te sossegada E ouve com atenção esta história de mil cores Polvilhada de ilusão. Uma menina triste Um rapaz sonhador Acabaram por se encontrar Numa história de amor Com flores a Lua pintou, Como por magia E na menina transformou A tristeza em alegria Dois seres de dois mundos Capazes de sonhar Lembrando-nos que o amor tudo pode transformar.
Poema musicado por André Pinho e publicado na coletânea “Poesia sem Gavetas II, Pastelaria Studios, pp. 195
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Epitรกfio de um amor vivo
Vivi Vi Sorri Colhi E amei-te A ti.
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O lado oculto da minha lua
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Febril Quero um desafio febril, Um saque, voraz e bruto Que me tire tudo à força, Que de lágrimas me deixe enxuto. Quero ser frio de serra Quero ser vento que no silêncio berra, Quero ser pó, quero ser terra Quero ser mudo e dizer tudo. Quero ser lâmina que a vida corta, um estilhaço de vidro, Que a planta corta e a faz morta. Quero escrever no abismo da folha, Não ter escolha, não ver o fundo, só ver o mundo. Quero ser verso imperfeito, Um gesto feito sem jeito. Uma frase que não mais termina, Que não rima, que não rima, que não rima. (e esta lágrima que não seca!)
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Crestuma Cobrem-te com mil bandeiras E usam-te de mil maneiras… Ficando apenas o deserto, Sem oásis por perto.
Hoje, vi-te banhada na espuma revolta, estridente, que numa vontade dúbia te arrasta para o mar, e te agarra sem te largar.
Apenas o sino não se cala, contando uma a uma, as almas de quem parte!
Solta-se pedra a pedra, torrão a torrão, peça a peça até nada ficar.
Soltam-se as amarras; soltam-se as imagens da gente alegre, dos dias festivos, e não há ninguém que berre!
És apenas história, querem fazer crer… nada mais que papiro, enterrado no lodo da memória, De onde nada poderá nascer.
E eu imagino, que mesmo fraca resistes, Bela, como só tu consegues ser Digo sussurrando a medo, Que nunca poderás morrer.
E a tua gente? Agarrar-se-á aos teus pés? Ou fraca, é arrastada pelas marés?
Mas o que vejo é imagem de lápide, A fotografia final, E lá no meio da espuma Leio para meu desgosto “Aqui jaz Crestuma!”
E o cortejo segue em marcha fúnebre
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Sorriso Um sorriso … arte, Um quadro de ti feito Sem engano, falha ou defeito. Um sorriso … amar-te, Aguarela de luz Que encandeia, atrai e seduz. Um sorriso … és tu.
...
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Julgavas-te livre…
Julgavas-te livre… bem vi nos teus olhos, reluzentes de sonhos e futuros. Julgavas-te livre… Ingenuamente o sentias, Não haveria recuos Julgavas-te livre… E em ti fervilham ideias e ideais E convictamente disseste «Nunca mais!» Julgavas-te livre… …mas não eras! Tiveste, foi a ilusão da escolha; Uma prisão maior e sem rede. Julgavas-te livre… …mas não eras! Os algozes, mudaram de rosto, Mas permaneceram vigiando, Julgavas-te livre…apenas isso!
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Perdido Espelho meu, espelho meu... Turvo, desfocado, Toca de bicho... Não te vejo, distante, frio; Segue o conselho do lobo E vai pelo atalho, E servirás de carne para o talho. Das três casas quero a de palha, Comida para certo asno, Repasto, espasmo. Ai, país das maravilhas de todas as Alices. -Está na hora! Está na hora! Está sempre na hora! Venha mais ouro, canela e vaidades tolas, Miragens de gigantes, Baloiçando desocupados em cima de um muro. Espelho meu, espelho meu... Picada dormente, ponte de duende; Nem com o osso da galinha te engano, nem verde é a Bruxa, E dentro da galinha? Não há ouro nem tesouro, E as migalhas eu próprio as comi, E o pato será sempre feio; e o sapato? Partiu-se na escadaria Matando o príncipe que te seguia. Espelho meu, espelho teu.
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Empurro a pedra Empurro a pedra, Sou eu o Sísifo dela, E já não sei se não é ela que puxa; Anseio o prazer do alto e nem a A lembrança da avalanche me faz recuar. Hei-de cair, eu sei, mas não sem antes ver o alto, dois pés inchados e braços dobrados, vontade inquebrável, subida, atrás de subida. -Ao menos um copo de água para o que faz de Atlas! Anseio em segredo pelas asas de Dédalo, mas baixo a cabeça, mantendo a sede e empurro ladeira acima. Olham-me e eu olho-os, sem tirar os olhos da pedra. Sombras de grifos, em círculos, voam, mas a carne é viva e rija...terão de ser pacientes, pois não me entrego. Quando me prostrar, há-de sobrar pouco de mim, aí biquem o osso até dar faísca. chego ao topo, penso eu, agora a pedra puxa, leva-me ao início. Nem os olhos lá do alto abri, mas a brisa pura tudo me disse, e desci puxado ao ponto de partida. E recomeço amnésico e alegre, ansiando de novo as alturas.
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O lado oculto da minha lua
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Agirás? E agora que sabes, agirás? ou entorpecido com a luz, Recusarás dar o passo pedido. E agora que sabes, agirás? Ou encontrarás uma fuga, Numa resposta cínica. E agora que sabes, agirás? Ou de régua na mão, Medirás ao limite as consequências. E agora que sabes, agirás? Ou de máscara no rosto, Encenarás até à peça final. E agora que sabes, agirás? Ou continuarás na fraqueza, Envolto num qualquer casulo E agora que sabes, nada farás? Age! Reage! Grita! Luta! Agora já sabes... ...quem sabe tem de agir! 28
O lado oculto da minha lua
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Palavra Nova Hoje, quero apenas uma palavra que de nada seja escrava; Sem duplos sentidos ou ironias, que seja direta e livre, Sem metáforas ou alegorias. Quero que seja pura e nua, Sem condimentos e crua Que nada esconda ou disfarce, Que tudo diga e mostre. Não a quero oculta, nem insinuada; Nem para dizer tudo, abusada, E não signifique nada. Quero uma palavra que seja nova, Fresca e de dicção fácil; Que nada me lembre, E tudo me permita. Mas já não há palavras dessas, Todas que encontro estão gastas: velharias de sótão abandonado; relíquias de igreja vazia; fósseis em museu fechado De onde a brisa não arranca o mofo.
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Joรฃo Cunha Silva
Sem Fim Junto a mim, Assim! Sem objetivo, Ou fim. Sรณ assim! Um abraรงo, Um beijo, Tu, Eu, Assim! Sem verbo no meio, Sรณ assim! Um olhar, Respirar, Os olhos fechar, Assim! Eu em ti, tu em mim, Sem meta, Prazo, Sem fim!
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O lado oculto da minha lua
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(A)Mar Quero ser pedra que ao mar se entrega, Quero ser areia beijada pelo vento a todo o momento; Quero mergulhar até ao fundo e daí ver o Mundo; Quero nascer de novo ao ver-te e voltar fazer castelos que durem um segundo, escavar buracos até não ver o fundo, cobrir-me de areia até não se ver pele e escrever letra a letra o teu nome, arrastando o calcanhar pela areia molhada, até formar a palavra com que te chamo e amo. Prometo voltar a esse areal e escrever poemas em todas as pedras que encontro e atirálas ao mar, ao nosso mar!
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Amor e morte Podes esconder-te no quotidiano dos dias, Vendo a chuva que cai, compassada e feroz; Podes ficar preso na surpresa dos cabelos alvos, Nos ossos presos, dobrados pelo peso dos anos; Podes imaginar que te debruças sobre Todos os assuntos do mundo e que dedilhando percorres melodias; Podes esconder-te num sorriso e num apreço pelo que vês; Podes mesmo pensar que tudo superas, e que nada te calca. Mas tudo se resume a duas notas graves que caminham omnipresentes ao teu lado, notas perfurantes que invadem o conforto do teu silêncio: Amor e morte. O beijo quente, ardente onde a vida se faz; e o beijo frio com que te despedes pela última vez. Amor e Morte, sempre na mesma cadência, Multiplicados em múltiplos espelhos, Visto de inúmeros ângulos, Mas sempre a mesma cadência, Bruta, eficaz, desarmante: Amor e morte; Amor e morte.
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Carta Se ao menos lesses esta carta... saberias que escolhi as palavras uma a uma e as coloquei assim nessa desordem estrutural que me conforta; saberias que atrás destas palavras, estão sorrisos, lágrimas e filmes de memórias partilhadas; Saberias que mesmo com a minha caligrafia desajeitada, gravei no papel o que arde dentro de mim. Se ao menos lesses esta carta...
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Antes que o dia acabe Antes que o dia acabe, Vou inspirar de forma sôfrega, E trazer a mim todo o ar novo que me circunda, Antes que o dia acabe Vou encher o peito de vontade de luz E aprisionar a lembrança do sol. Antes que o dia acabe, Vou usar todos os minutos disponíveis, Para ganhar tempo ao próprio tempo. Antes que o dia acabe, Farei tudo o que não fiz, serei tudo o que não fui Até nada restar por fazer ou ser. Antes que o dia acabe, Escreverei um poema…
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Enquanto a lua brilha Enquanto a lua brilha e o vento passa leve, permanece o aroma dos dias longos nas palavras desentendidas de cigarras e grilos. Um latido explosivo rasga a noite... ...golpes lancinantes... cortantes... a noite esventrada do silêncio que a cobre. a batida acelera e já só ouço a minha respiração e a cadência do bombear do coração. Também faço parte... sou da noite. Sou a cigarra, o grilo, o cão, É ao brilho da lua que junto a minha voz com as minhas palavras não mais entendidas: ora calmas, que embalam e adormecem, ora violentas e explosivas, que sobressaltam e esventram.
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Escuta! É aquela melodia de sempre, Encantatória sereia, Sedução, veludo sonoro, Mel. Dança, redopia…eleva-se no ar pousa na mão e logo foge, Convite tímido, certeiro, Mel. Não resisto…como posso? Pisteiro, sigo-lhe o rasto, Hipnótico, trágico por certo… Mas mel.
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O lado oculto da minha lua
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-Que palavras traz hoje? O destino as levará A outra mão e a outra rede E por certo serão remédio A outra fome e a outra sede.
-Trago das frescas e das boas… saídas agora do mar! saltitam e soltam escamas, que se espalham pelo ar!
As que trouxe dão bom petisco Numa esplanada à beira mar. Lidas num verso curto Soltas, livres no ar.
Trazem o brilho do sol nascente e o aroma da flor de sal vindas deste nosso mar, desta língua sem igual. Eu próprio as pesquei Neste mar português imenso O papel, a minha rede, Que apanha tudo o que penso.
Se as preferir numa prosa, Para uma refeição elaborada, Acompanhe-as de uma boa história, Para uma leitura demorada.
Não as trouxe todas comigo: as que queria, escolhi, as outras são para outras pescas e ao mar as devolvi.
É só a “menina” escolher O uso que lhes quer dar As palavras, são sempre boas Desde que saibam a mar!
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O lado oculto da minha lua
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Muro E o muro caiu, libertou, abriu, E a pomba branca voou, Para longe, lá no alto Onde o nada se avista Visão, miragem, Olhos turvos, Entontecidos pela luz do sol! Liberdade, mera geografia, “ -Até onde vão as tuas grades?” Liberdade: faminta pelas ruas, Descurada, ignorada, E outros muros se ergueram, Altos, muito altos! Até onde o nada se avista. E por isso nem os vejo! “-Onde estão os meus muros?” Nem sei sequer de que lado estou; É preciso ver o muro, dar-lhe com a cabeça; MOSTREM O MURO Temos de saber que o muro existe… …para o derrubar!
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Palavra Maldita E a palavra, soletrada, presa nos dentes, ou livre com vento nas asas. Que seja dita pois nunca será maldita. Que procure tempo ameno, No voo em bando de uma frase Ou enfrente tempestades, num verso bravio que não rima …mas, que seja dita, pois nunca será maldita. Que não fique presa, pesada, Carregada da cor do tempo e lhe fuja o momento. Que seja apenas dita com cadência, ou tropeção, verso nobre, ou palavrão …mas que seja dita, pois nunca será maldita!
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Mar poema O que eu quero é o mar; sorver a maresia, deixar-me salgar. Quero escrever na areia, versos efémeros, passageiros, que durem a eternidade da onda e se misturem na espuma. Quero o mar poema, cheio de lágrimas e versos, calmos, na ordem certa, ou revoltos, indomáveis, tomados pelo vento. Quero o mar, poema eterno, tecido na cadência das ondas, escrito no seu desmaio, declamado na sua força. Quero o mar, livro em branco que me receba palavra a palavra Verso a verso quadra a quadra Quero ser mar, Quero ser onda, espuma, Quero ser sal Quero ser a palavra que, temperada pela maresia, seduz o sabor dos dias. Aí o mar se faz poema, e o poema é nada mais do que mar! 40
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Há na rua por onde passo Há na rua por onde passo uma porta de cor vermelha. Todo o dias a vejo Naquele sorriso tímido Escondido no vestido escarlate Juro que fala E me diz bom dia Respondo, é claro! Não fica a falar sozinha. Por vezes apanho-a distraída E aí sopro os bons dias primeiro. Abrando e aguardo a resposta Que me ilumina o resto do dia. Ao passar tiraria o chapéu, por certo ...isto se o tivesse. Tenho mesmo de arranjar um chapéu... É isso! Um Fedora, como o meu avô. Dar-me-á o ar distinto que a ocasião pede Irá gostar, por certo, mas não posso ter a certeza: Nunca lá entrei; nem espreitei; Apenas vi o sorriso da caixa de correio entreaberta À espera de novas em forma de carta Escrever-lhe-ei uma carta, Sim, da próxima vez que passar Hoje não, que já lá não passo de novo.
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O lado oculto da minha lua
João Cunha Silva
Uma palavra Brinca no ar Soprada de lado para lado Leve, fresca Brinca, rodopia Brinquedo de menino Grande ou pequenino Descansa cansada na folha Finge ser orvalho de uma manhã fria Que depressa escorre até ao rio, até ao mar só para depois voltar a brincar no ar.
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O lado oculto da minha lua
João Cunha Silva
Eliminar o mofo Sofrer é ver antes a inevitável tempestade que nunca vai abrandar. Sofrer é antever o trovão sem ver o raio E nada ser capaz de fazer para o parar. Sofrer é ver o mundo num regresso óbvio, Catástrofe em tempo real…tão real…tão real. Calem-me o gajo! Prendam-lhe as mãos, Retirem-lhe a coroa e ceptro … Afastem-lhe a mão dos botões. Afastem-lhe a mão dos botões. Com bolos se enganam os tolos E todos gostam de bolos, mesmo que feitos por tolos Dá para pensar… Dividir para reinar Dá que pensar Será assim tolo Aquele que por tolo Se faz passar? Mesmo assim… Afastem-lhe a mão dos botões Enquanto penso para com os meus Que a culpa é também toda minha Que não me levantei, Que não me importei E que com o meu ar de superioridade abri caminho ao bisonte albino. Que na sua irracional esperteza Na sua estupidez galante Nos levará, de novo, a uma guerra errante. Ainda há tempo! 43
O lado oculto da minha lua
João Cunha Silva
Há que chamar alguém Que lhe dê o antibiótico certo. Por vezes penso, Se em 33, Pudesse fazê-lo ao de bigode no beiço Não teria usado, nem que fosse uma colher Mais uma vez!!! Não! Já vi este filme Há um cheiro a deja vu no ar! É alegria dos artistas, Fartos do equilibro que tolhe, Precisam do mau da fita Um lobo que tudo come. Viva a poesia, agora que se lembra Que é preciso resistir. Eles, sejam lá quem forem, são sempre maus Mi bom, tu mau Argumentação de uma criança de dois… …e não é que resulta?
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E se o sorriso não sai Preso, amordaçado É um mundo que cai É cheiro de derrotado. Nem desejos Nem memórias Nem flores na terra morta, nem abril nem águas a mil que lavem as rugas tristes.
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O lado oculto da minha lua
João Cunha Silva
Hoje A palavra está difícil, Parece encravada, de língua lenta. Parece que pesa Por estar presa. E eu, preso, peso letra a letra, numa lentidão desesperante. E não há assunto que a solte, Não há tema que a exalte, Agora que tudo se exalta. Venha o verbo fácil Que tudo diz, Que voa às costas do vento. Venha essa energia De tudo querer dizer. Venha tudo isso, mas não hoje… Hoje, não. Não as procuro mais, Se a vontade não as leva ao papel… Que fiquem a vaguear por aí.
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O lado oculto da minha lua
João Cunha Silva
Há um pássaro que de manhã me acorda Há um pássaro que de manhã me acorda Num chilrear de alegre canto E eu, surpreso, não pelo canto, Mas sim, surpreendido Com o meu próprio espanto. Como se não fosse normal Um pássaro cantar E eu, de habituado, Não me espantar. Há! Como é bom sentir Que afinal, ainda me espanto, Que os sentidos, afinal, Ainda me trazem, logo pelo espreguiçar do sol nuances sonoros, tons melódicos, e me recordam que viver, é sentir; é reagir; é sair da gruta; é lamber com gula todos os raios de sol e sorver uma a uma todas as gotas da chuva. Não pares, pássaro, Continua a tua missão De me saber vivo, Ciente de que existo E, nem que seja só Pelo som do teu canto, 47
O lado oculto da minha lua
João Cunha Silva
Lembrar a minha humanidade.
Expira, Solta de um só lanço o ar cansado, Esse ar sujo, macilento e pesado. Inspira, Deixa-te preencher na cadência certa, pelo aroma da rosa que te desperta. Expira, Liberta-te do peso do ar rarefeito, Que estreito te comprime o peito. Inspira, Há no ar novo uma força que arrasta, Cheio de promessas efémeras que o tempo logo afasta. Expira, Inspira, Expira, Inspira.
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