O segredo vive

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O Segredo vive Jo達o Cunha Silva


© João Cunha Silva, 2015


O Segredo Vive Jo達o Cunha Silva


Aquele ano tinha sido difícil. A morte da avó tinha-a abalado como nunca esperaria. De todos os infortúnios decorridos,

nenhum

a

afetou

como

aquele

desaparecimento. A presença constante de quem amamos nunca nos prepara para a sua ausência e agora o vazio sentia-se nas pequenas coisas. A casa vazia, onde já não morava o marido, também não ajudava e a falta de uma rotina

diária,

quebrada

apenas

pela

apresentação

quinzenal no Centro de Emprego, apena empolava o que já de si era dramático. Mas ela não sentia falta dos barulhos da casa, não sentia falta do sexo maquinal, nem sentia falta do invariável silêncio, mesmo quando falava; ainda estava lá, mas tinha já partido. E um dia, sem préaviso ou anúncio e também sem lhe causar surpresa,


deixou-lhe um espaço vazio no guarda-roupa e vagou-lhe duas ou três gavetas. Também não sentia falta de estar mal sentada todo dia, fazendo invariavelmente a mesma coisa a troco de umas migalhas mensais que caberiam numa única nota. Sentia apenas falta da avó. Ela tinha sido a sua mãe, o seu pai, a sua companheira e agora era apenas

uma

pedra

de

mármore

fria

e

estática,

desconfortável a qualquer tipo de aconchego, mimo ou colo. Dia de reunião familiar. Ainda a carne não mostrou os ossos e já lhes desmembram os bens. Chamam-lhe “Partilhas”. Não deixa de olhar a palavra com ironia. Para si, é claramente uma segunda morte, em que depois da ausência física da pessoa, começa a morte dos seus lugares, a morte do chão que suportou os seus passos, a morte dos objetos por si tocados e que de forma magnética guardam ainda a sua memória. Provavelmente será tudo


demolido e o que sobreviver, será esquecido e atirado para um canto. Um senhor de fato, muito bem vestido e claramente destacado dos presentes deu sinal que se iria iniciar a leitura do testamento. Todos se dirigiram para a cozinha da avó, onde diariamente brincara em criança. Entrou. A memória, acendia frenética, com o regresso dos cheiros, aromas e sabores secretos. Parecia vê-la de costas viradas trauteando uma melodia de outro tempo, mexendo com a colher de pau um preparado que viria a revelar-se delicioso. Era ali, naquela mesa de tábuas lisas, sentada naquele banco sem encosto, que estudara nos tempos de universitária embalada por aquela voz, que ainda hoje a acompanha. Fechou os olhos e viu o sorriso da “vó” segurando um tabuleiro com o seu lanche: café de saco e uma fatia de pão-de-ló, inigualável, soberbo. Abriu os olhos, reparou que a quantidade de saliva tinha


aumentado na sua boca. Aquele sabor seria irrepetível, o segredo ficaria para sempre debaixo daquela pedra de mármore fria. A impressão de frio, trouxe-a de volta do carinho da memória, para a realidade também gélida e tétrica. Enquanto sonhara, a leitura do testamento iniciara e tinhase tornado cómica, pelo menos para si, já que os restantes, num misto de surpresa e de raiva iam sussurrando impropérios, mostrando expressões faciais de claro desagrado. A Avó, dotada de um incomum sentido de humor, elaborara uma lista, no mesmo papel com que embrulhava o pão-de-ló. Deve ter pensado que se resiste ao calor do forno, resistirá de certeza para escrever a sua última vontade. Não deixava de soltar uma gargalhada contida

ao

serem

anunciados

inúmeros

objetos

insignificantes, com que eram presenteados aqueles que a tinham abandonado em vida e agora se apressavam a comer-lhe os restos. Eram alfinetes de roupa, botões


banais, talheres avulsos... A ira começava a ser o sentimento geral dos presentes naquela sala e o senhor de fato tinha cada vez mais dificuldade em ler aquele pedaço de papel. Todos receberam o seu pequeno quinhão e a caixa de papel com a etiqueta “Herança” colocada ao lado do leitor do testamento, ficou finalmente vazia. Lembrara-se de todos, todos menos dela começou a pensar: nem um botão, alfinete ou mesmo talher. De repente foi lida a frase: «A casa fica para …». Ao silêncio, seguiu-se um burburinho crescente, até se ouvir, vezes sem conta, a frase: «A velha estava tola, só pode!». Barulho, confusão total, choros e saídas intempestivas. Confirmava-se: a segunda morte, para muitos, consegue ser mais dolorosa do que a primeira. No funeral não se tinham ouvido choros nem gritos de injustiça, parecia um piquenique na quinta, um evento social em que o negro era usado como cor de gala e não de luto.


Teria sido o seu nome que ouvira, não prestara atenção. O seu olhar estava longe e ela mais uma vez permaneceu embalada com o olhar profundo da memória, ao olhar o frasco com o nome AÇÚCAR escrito, reconhecendo, de imediato, a caligrafia da avó. No meio daquele alvoroço, só reparou de verdade que era dela que se tratava, ao notar que era o centro das atenções. O foco passou do testamenteiro para ela. Se para ele olhavam de forma esperançosa, para ela aqueles olhares lançavam faíscas de raiva. Compreendia, mas não podia deixar de achar justo o ato da avó. Nunca pedira nada a quem, em vida, lhe tinha dado tanto. A verdadeira herança tinha sido a partilha dos momentos que vivera com ela, das brincadeiras, dos cheiros e aromas da sua cozinha, do seu avental sempre cândido, das confissões mútuas, dos ombros que ampararam lágrimas, do colo que mesmo em adulta se recusava a abdicar. E depois o inverso, quando o corpo da avó começou a fraquejar, de


ser ela o apoio, o colo, a mãe de quem tinha sido sua mãe duas vezes. de não sair da beira da sua cama nos últimos dias, onde com um lenço húmido lhe hidratava os lábios, que já raramente se abriam para falar. Era com o sentido de justiça que aceitara a herança, mas também sentindo alívio ao saber que nada iria ser demolido e retalhado. Todos saíram. Iria, por certo, demorar muito tempo até lhe dirigirem novamente a palavra. Não pensou muito nisso naquele momento, até porque pouco lhe falavam antes. Ficou sentada no mesmo banco de madeira de sempre, olhando sonhadora para o balcão, onde antes, a avó, juntava ingredientes secretos e parecia fazer magia. O testamenteiro passou-lhe uns papéis para a mão com umas cruzes onde deveria assinar. Assinou. No fim, quando se prepara para sair, o homem, de fato caro e à medida, pegou nos documentos e deixoulhe um envelope e uma chave em cima da mesa. Já com a porta aberta e com um pé fora da soleira, virou-se e


disse-lhe o que ela já sabia: «A sua avó era uma mulher sábia! Tenha uma boa vida!» Anuiu com um simples mas suficiente acenar de cabeça. A porta fechou-se a sua segunda vida iniciara, ao evitar de forma involuntária a segunda morte da avó. Ela viveria e não apenas debaixo de uma lápide fria.


Segunda Vida “Querida Neta, Se estás a ler estas linhas é porque tudo foi feito como desejei. Sei que até agora a tua vida não te trouxe o que sempre mereceste. Procurei sempre que também tivesses um ninho onde encontrasses amor, um colo quente. Não há justiça quando se perde os pais aos dez anos e eu também perdi um filho nesse dia. Os teus pais amavam-te, lembra-te sempre disso. Era com eles que devias estar e não comigo. Mas todos os segundos que passei contigo foram segundos preciosos que levo comigo e que para sempre deverás lembrar. A casa agora é tua, não podia ser de mais ninguém. Se eu conheço alguma coisa da vida


tu deves estar sozinha nesta altura. Ainda bem. Ele não te ama, sinto-o. Quem ama entende quem ama e ele nunca te entendeu. Agora levanta a cabeça, não no sentido metafórico (mas também). Sei que estás sentada nesse banco da cozinha. Dei instruções para que o testamento fosse lido nesse local, tu mais do que ninguém sabes porquê. Ao lado do frasco do açúcar, encontra-se uma lata sem nome com uma tampa vermelha. Dentro da lata encontras tudo aquilo que precisas, não para ser feliz de forma instantânea (sabes como detesto essas coisas modernas, já viste o sabor daquele puré!!) mas para estares pronta para encontrar essa felicidade que teima em fugir de ti. Da tua avó, tua mãe duas vezes. Tem uma vida feliz!” A emoção de ler e de ainda encontrar a voz da avó na sua memória,

que

docemente

lhe

sussurrava

aquelas

palavras, encharcou os seus olhos de água pela primeira vez naquela noite. Levantou o olhar para a prateleira onde,


exatamente ao lado do frasco do açúcar, tal e qual a avó tinha escrito, se encontrava a lata de tampa vermelha. Enquanto se levantava e se dirigia para a estante que estava à sua frente, não deixou de admirar a capacidade da avó ler a realidade que a rodeava: sempre nas doses certas, sempre no tempo certo, tal e qual dizia ser necessário para que o seu pão-de-ló, cuja receita sempre se recusara a partilhar, tivesse a textura e o sabor tanto apreciado por toda a gente. «Segredo é segredo», dizia em tom de brincadeira. «Se eu te disser deixará de o ser….» E assim se pensou que o segredo tinha morrido com ela, até porque no livro de receitas que escrevera ao longo da sua vida, faltava uma página: a página do pãode-ló. Levantou

a

tampa

um

pouco

a

custo.

Estava

completamente cheia de notas que logo formaram um monte considerável em cima da mesa. No fundo da lata


estavam três papéis dobrados em pequenos quadrados, cada um numerado: leu o primeiro: “Minha querida neta, Mais uma vez vejo que estás no caminho certo e que os meus últimos desejos estão a ser cumpridos. Só tu saberás se desejas fazer o que te peço. A tua vontade será sempre mais forte, mas acredita em quem te conhece como conheço a textura deste papel que escrevo. Aquele dinheiro é agora teu Só tu poderás decidir o que fazer com ele. Mas se há alguém que algum dia poderá fazer o meu pão-de-ló és tu, mais ninguém o poderá fazer daquela maneira. Fecha os olhos, saberás o que fazer. Lembra-te da música que eu sempre cantava, enquanto aprendeste a escrever, a ler as primeiras palavras, em que estudavas para os primeiros testes e depois para os exames, em que de nervos em franja fazias a lista dos convidados para o teu casamento. Fecha os olhos, tu tens a música dentro de ti, tu tens o segredo, pois os ingredientes, que encontrarás


no papel com o número dois, são conhecidos por todos. A ti e a mais ninguém passo o segredo que a minha mãe me cantou. Passarás a quem a tua consciência ditar. No papel com o número três encontrarás os locais e as casas onde poderás encontrar os ovos e a farinha certa. Sabes que isso não vai com ovos de aviário, nem farinha de pacote. Encontrarás também uma lista de clientes com as respetivas

moradas

que

ao

longo

dos

anos

encomendaram o meu pão-de-ló. Levarás um a cada uma dessas casas e dirás a seguinte frase «O segredo vive!» Não te preocupes que isso te pareça um pouco estranho. Não te vão achar louca, assim que disseres que és minha neta. Da tua avó, tua mãe duas vezes.” Retirou da lata os restantes papéis, também de almaço e abriu o número dois. Como a avó tinha dito apenas encontrou os ingredientes conhecidos de todos, nada que se assemelhasse a uma receita secreta. Apenas uma lista,


nada mais: ovos, farinha e açúcar. No último dos papéis, maior do que os restantes, encontrou nomes e moradas de clientes. Na parte de baixo, separado por um risco de lápis, encontravam-se duas moradas rodeadas com duas palavras escritas ao lado: ovos e farinha. Fechou os olhos por momentos, mas nem a melodia nem as palavras entoadas pela avó apareciam na sua memória. Eram muitas emoções e acontecimentos para um dia: acabara de herdar uma casa e ganhar um projeto de vida que recolocavam algum brilho nos olhos, mas ainda tinha muitas pontas soltas por resolver e a melodia teimava em não aparecer. Voltou a pôr o dinheiro dentro da lata e tapou-a com a tampa vermelha, colocando-a no lugar de sempre, ao lado do frasco do açúcar. Pegou na carta, nos manuscritos e na sua nova chave e foi para casa. O sonho trará uma solução, pensou. A viagem de carro foi curta, pois vivia a poucos minutos da casa da avó. Pelo caminho, a intermitência das luzes dos


candeeiros de rua pareciam querer indicar uma qualquer melodia, uma cadência compassada com uma ordem definida, um sussurro luminoso ao ouvido. Mas a melodia não aparecia, continuava enterrada no seu íntimo. Estacionou o carro, foi à caixa do correio e agarrou sem atenção as cartas que estavam no seu interior. Subiu de elevador os dois andares para o seu apartamento. Entrou, pousou as chaves e as cartas que trouxera do correio. Para o quarto apenas levou o envelope da carta da avó com os três manuscritos no interior. Pousou o envelope na sua mesinha-de-cabeceira de onde tirara já algum tempo a fotografia do seu casamento. Preparou um chá de tília para adormecer mais depressa, pois apesar de estar cansada a sua cabeça rodava sem parar de tantas ideias e coisas para fazer. Já na cama, bebeu o chá enquanto relia a carta da avó, tocando ao de leve as reentrâncias feitas pelo lápis no papel. O chá fez efeito mais depressa


do que pensava e rápido adormeceu, deixando a carta da avó aberta em cima da cama. O sono, reparador silencioso do nosso corpo, parece arranjar o que nós teimámos em estragar durante o dia e depressa articula o desarticulado, ordena o desordenado e clarifica o que é pouco claro ou completamente obscuro. Acordou e tudo na sua cabeça estava decidido, mesmo que ainda não tenha completa consciência disso mesmo. Enquanto

tomava

pequeno-almoço,

abriu

a

correspondência do dia anterior: umas contas para pagar, ainda com o nome do marido, publicidade e por último uma com o nome de um advogado qualquer carimbado no remetente. Eram os papéis do divórcio. Instintivamente e sem qualquer tipo de hesitação, assinou no local marcado para o efeito. No mesmo envelope, encontrou a indicação que iria receber a visita de um agente da imobiliária para tratar da venda da casa. Dobrou os papéis assinados e colocou-os no envelope RSF enviado para o efeito. Nem


uma lágrima, nem um qualquer arrependimento. Estava decidida a abraçar esta nova vida e, no meio destas últimas horas caóticas, tudo se encaminhava para um equilíbrio que não se lembra de alguma vez ter sentido. Levou a carta e os três manuscritos e partiu. Haveria de voltar para levar as suas coisas, mas aquela partida era a verdadeira despedida. Sabia no íntimo que nada a impediria de realizar a vontade da avó e agora a sua: haveria de ter uma vida feliz. Entrou no carro e pegou no manuscrito número três. Antes de chegar a casa da avó, que agora era sua, fez duas paragens. Já na cozinha, virada para o balcão, onde sempre vira a sua avó ao longo de tantos anos, era ela que usava o avental branco. Ao seu lado estava o açúcar, os ovos e a farinha, os ingredientes nada secretos do tão apreciado pão-de-ló da avó. Fechou os olhos e começou a trautear a tal melodia acompanhada por uma sucessão de palavras que pareciam ter vida própria. Primeiro aos


soluços e depois escorrendo em torrente, a melodia saía igual à que ouvira da sua avó anos a fio. Agora tudo era claro: as quantidades e porções, as vezes que mexia e em que sentido, a temperatura do forno, o tempo de cozedura, a maneira específica de forrar a forma com o papel de almaço...tudo estava explicado na canção da sua mãe duas vezes. «O segredo vive!», gritou cheia de esperança. FIM


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