Diário de Bordo Projeto Teatro Piollin

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PROJETO TEATRO PIOLLIN DIÁRIO DE BORDO Ana Luisa Camino (Org.) João Pessoa, 2015


FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA PÚBLICA JUAREZ DA GAMA BATISTA

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Projeto teatro piollin: diário de bordo / Ana Luisa Camino (Organizadora) – João Pessoa: UFPB, 2014. 136 p. ISBN: 1. Teatro. 2. Ana Luisa Camino I. Título CDU: 792 Todos os direitos e responsabilidades dos autores.

Preparação de Originais: Ana Luisa Camino Fotos: Andréa Gisele Projeto Gráfico e Diagramação: João Faissal / Imaginária

Impresso no Brasil Printed in Brazil


SUMÁRIO 4. Apresentação 6. Projeto Teatro Piollin – Paulo Vieira 13. O gramado do vizinho – Tiago Germano 19. Lavoura e o eterno retorno – Tiago Germano 24. O “quase” como objeto – Tiago Germano 31. Conto de fadas sem asas – Tiago Germano 36. Apontamentos sobre teatro de grupo – Márcio Marciano 38. A arte invisível do encontro – Tiago Germano 43. Um Ser Tão mais fértil – Tiago Germano 47. Um grau aquém da virtuose – Paulo Vieira 52. Uma conversa entre milhares – Tiago Germano 57. Bom teatro é como um berro d’água – Paulo Vieira 62. Breves notas sobre o trabalho em teatro: princípios e procedimentos do Teatro Máquina – Fran Teixeira 73. Indo ao tutano de Brecht – Tiago Germano 76. Duas engrenagens do Máquina – Tiago Germano 82. A arapuca e o voo cinquentenário de Fernando Teixeira – Tiago Germano 87. Nelson e o carnaval pernambucano – Tiago Germano 90. Ventos do trágico - percursos da Cia Teatro Balagan na criação do espetáculo Prometheus - a tragédia do fogo - Antonio Salvador, Gabriela Itocazzo, Gustavo Xella, Maria Thais e Natacha Dias 99. Uma tragédia em quadrantes – Tiago Germano 103. O lirismo das três marias – Tiago Germano 106. A certidão do Cabra da Peste – Tiago Germano 111. Bailando com Nelson – Tiago Germano 114. Cinco vezes mulher: uma encenação de Dorotéia, de Nelson Rodrigues – Hebe Alves 130. Ficha Técnica


APRESENTAÇÃO BEM-VINDOS AO DIÁRIO DE BORDO!

Estimados leitores, É com muita felicidade que apresentamos nosso Diário de bordo! Durante os seis meses que transcorreram entre setembro de 2013 e março de 2014, vários grupos de teatro do Brasil apresentaramse no Teatro Piollin, debatendo seus espetáculos com a plateia, participando de intercâmbios com seus colegas de profissão, ajudando-nos a promover um evento que encheu de vida os limites do antigo Horto Simões Lopes: o Projeto Teatro Piollin, uma realização do Piollin Grupo de Teatro com patrocínio da Funarte através do edital Prêmio Procultura de Estímulo ao Circo, Dança e Teatro, de 2010. A possibilidade de potencializar o espaço de reflexão suscitado pelas trocas e debates deu-se com a feliz ideia de publicar, no site do projeto, críticas de todos os espetáculos que se apresentariam no Teatro Piollin. Ao jornalista Tiago Germano coube a tarefa de produzir esses textos reflexivos, sempre na noite de estreia dos espetáculos, permitindo, portanto, que o grupo em cartaz e seu público pudessem desfrutar de uma segunda apresentação já à luz das reflexões do crítico. Este Diário representa, essencialmente, o registro das impressões imediatas do crítico diante do espetáculo teatral. E, para manter no impresso um pouco do frescor e da dinamicidade do período que ele retrata, os textos críticos não sofreram nenhuma modificação. Além disso, a sequência das análises na publicação respeita a ordem cronológica de apresentação dos espetáculos no decorrer do projeto. Por outro lado, não se conseguiu fugir do desejo de apresentar este caderno como um espaço de reflexão teórica e crítica sobre o teatro. Uma aspiração, aliás, transformada em necessidade à medida que transcorriam os debates e intercâmbios entre grupos: era evidente que não se podia perder a oportunidade de obter um pouco mais de tanta inquietude intelectual. Paulo Vieira (UFPB), Márcio Marciano (Coletivo de Teatro Alfenim), Fran Teixeira (Teatro Máquina/IFCE), Antonio Salvador, Gabriela

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Itocazzo, Gustavo Xella, Maria Thais e Natacha Dias (Cia Teatro Balagan), e Hebe Alves (Panacéia Delirante/UFBA) são os autores que generosamente escreveram artigos para colaborar com esta publicação. Paulo Vieira, que acompanhou todo o transcorrer do Projeto Teatro Piollin, apresenta-nos um painel do festival, fazendo um breve histórico do Piollin Grupo de Teatro e refletindo sobre a importância de eventos dessa natureza assim como sobre a função e o lugar atual da crítica teatral. O autor também presenteou esta coletânea com mais duas críticas. Refletindo sua trajetória teatral e os pressupostos teóricos que subjazem ao seu fazer criativo, Márcio Marciano apresenta as diretrizes para um teatro de grupo engajado nos âmbitos estético e político. Dos demais autores, contamos com artigos que refletem sobre a linguagem teatral de seus grupos e o processo de construção dos espetáculos que compuseram o programa do Projeto Teatro Piollin. Agradecemos a participação de todos os grupos que conosco estiveram nessa jornada, aos colaboradores deste livro e ao público do nosso teatro, que, com toda a certeza, é fonte inspiradora dos nossos projetos. Bons ventos conduzam nossa leitura! Piollin Grupo de Teatro

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PROJETO TEATRO PIOLLIN POR PAULO VIEIRA Há trinta e cinco anos nascia o Teatro Piollin. Eu lembro muito bem. Estava começando a fazer teatro com Geraldo Jorge, no Grupo Tenda, onde eu estreei como Severino no espetáculo Morte e Vida Severina, direção de Leonardo Nóbrega para o texto de João Cabral de Melo Neto, já naquele instante um clássico do teatro e da dramaturgia nacionais, embora seja um poema dramático, não um texto escrito para a cena mesma. Foi quando eu vi um espetáculo dirigido por Luiz Carlos Vasconcelos, O Aborto, no qual ele e Roberto Cartaxo se entregavam com tanta verdade e tanta emoção no espetáculo forte e tocante, finalizando com a cena do aborto, cuja imagem jamais saiu da minha memória, quando, então, os dois, nus, eram içados por correntes no centro do palco. Talvez tenha sido esse espetáculo que tenha me atraído para a Piollin, que então Luiz Carlos chamava de escola, talvez pelo fato mesmo de a sede do grupo ser em uma sala de aula ocupada numa escola estadual abandonada. Essa escola ficava nos fundos do Convento de São Francisco. Estávamos em meados dos anos setenta. Política dura, repressão, medo, mas, sobretudo, resistência. O próprio fato de a sede de um grupo de teatro situar-se no fundo de um prédio velho, no velho bairro de Tambiá, já dava por si só a dimensão da resistência a qual se entregava um grupo de jovens atores. E eu não creio que fosse programática aquela resistência. Era a tentativa desesperada de respirar, de produzir, o direito de sonhar que todos nós queríamos, fazer teatro, viver de teatro, experimentar teatro. Havia um único teatro na cidade, o Santa Rosa. Que por muito tempo ficou fechado para a única digna reforma que ele recebeu, no primeiro governo de Tarcísio Burity. Então, aquele acanhado espaço na última sala de um prédio velho e quase abandonado (não o era totalmente porque servia de depósito para móveis quebrados das escolas estaduais), sede de um grupo,

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lugar de um desejo, terminou por se tornar um lugar de resistência cultural numa cidade culturalmente falida, ou, nesse aspecto, praticamente abandonada. Eu era um operário daquele teatro, que tinha em Luiz Carlos Vasconcelos e em Everaldo Pontes os cabeças, os líderes, os idealizadores, os realizadores, os aglutinadores, pois foram muitos e tantos os que por lá passaram e por lá contribuíram de alguma maneira com o seu trabalho, mas, sobretudo, com a sua energia criadora. Burity, o construtor, queria reformar igualmente o Convento de São Francisco, e isto incluía demolir toda a parte não histórica, não reminiscente do antigo prédio franciscano. Aquela sala preta e faltosa de recursos que era a sede do Grupo Piollin iria ser destruída. Embora rústica, embora pobre, embora marginal, aquele lugar era onde a cidade cultural se encontrava. Foi lá onde eu vi pela primeira vez um show de Elba Ramalho. Foi lá onde eu vi pela primeira vez um show de Chico César, então chegando de Catolé do Rocha. Foi lá onde eu vi pela primeira vez Eliézer Rolim com o seu grupo Mickey, um bando de garotos, garotos mesmo, crianças vindas de Cajazeiras, Nanego, Soia, Paulinha – os irmãos Lira – e Marcélia Cartaxo, a primeira atriz brasileira a ganhar um dos mais importantes prêmios internacionais do cinema, o Urso de Prata, em Berlim. Foi lá onde eu vi um dos mais lindos e tocantes espetáculos a que assisti, Os Pirralhos, com esses garotos que tinham oito, dez, doze anos improvisando como se fossem atores de velha tarimba. A Piollin já não era mais um projeto de Luiz Carlos e Everaldo Pontes. Era o pulmão por onde a cidade respirava. Tomou uma dimensão para lá do que imaginavam os seus idealizadores. A cidade se mobilizou. Artistas, intelectuais, imprensa, a voz corrente era uma só, senhor governador, a Piollin não poderia morrer. Não poderia ser despejada pura e simplesmente. Burity, por sensibilidade política, mas, eu creio, muito mais por sensibilidade artística, providenciou uma outra sede, esta sim, definitiva, a casa grande do antigo engenho do Paul e o seu entorno. Lembro muito bem quando isto aconteceu. Estávamos em Cajazeiras, etapa final de uma excursão do Grupo Piollin com o Grupo Mickey, a Caravana Piollin, uma aventura artística pelo interior da Paraíba, sem lenço, sem documento, sem subvenção. Era tempo de ir, e nós íamos. Levávamos dois espetáculos: um de rua, infantil (A Viagem do Barquinho, de Sylvia Orthof, feito por atores adultos do Grupo Piollin), e outro adulto, Os Pirralhos, apresentado a noite em algum lugar que pudesse ser transformado em teatro, feito pelas crianças do Grupo Mickey. Luiz Carlos me chamou, pediu para eu assumir o palhaço que ele fazia com Nanego, ele precisava urgentemente voltar para João Pessoa, um chamado de última hora.

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Foi. Alguns dias depois, quando nos reencontramos em João Pessoa, os seus olhos eram somente luz. A luta estava ganha. A Piollin continuaria, até a vitória final. Mas onde é a vitória final? No Vau do Sarapalha, que rodou quase vinte anos pelo mundo?, e é incontestavelmente um dos melhores espetáculos da década de noventa no teatro brasileiro? Mas não há vitória final, felizmente. Há o momento, e basta. E o momento é de comemorar os 35 anos desse que é o mais bem sucedido conjunto teatral da cidade. Para isso, criou o Projeto Teatro Piollin. Este projeto aconteceu entre os meses de setembro de 2012 e março de 2013, quando, então, dezesseis grupos apresentaram espetáculos, realizaram debates com o público e intercâmbios estéticos, nos quais um grupo vindo de outro estado se encontrava com um grupo de João Pessoa, e ambos trocavam as suas experiências, seus modos de trabalhar, suas visões estéticas, numa atitude positiva de relacionamento entre os pares, inicialmente, e depois, como consequência, no mínimo estabelecendo um cordial relacionamento entre os grupos visitantes e os da casa. O resultado desses encontros era visível. Aparecia claramente no jeito como os grupos visitantes se apresentavam, as atitudes respeitosas e cordiais que revelavam o quanto um e outro puderam se compreender nos momentos em que se encontraram longe do olhar do público, e com isso, de certa maneira, o Projeto Teatro Piollin estabeleceu uma rede de relacionamento tão importante para todos, sobretudo nos tempos em que vivemos, nos quais estar em rede, mesmo que estas redes sejam quase sempre virtuais, é um modo de estar no mundo, e isto é uma entre as características mais importantes do ser contemporâneo. Estar em rede significa se relacionar com o que o outro pensa e faz, estabelecer conexões de identidade, encontrar no outro algo que lhe é semelhante e, principalmente, entender que não estamos sós. A sensação que eu tenho em relação a este Projeto Teatro Piollin é que ele é o resultado natural do que foi e é o Piollin nesses seus trinta e cinco anos. Além do encontro propriamente dito entre os grupos, este Projeto se preocupou em lhes oferecer um feedback crítico sobre os seus trabalhos. E é justamente isto o que o leitor tem em mãos neste momento. Houve um tempo no jornalismo e no teatro brasileiros no qual a crítica era uma atividade extremamente importante, não apenas porque o leitor a consultava para saber algo sobre os espetáculos antes de se decidir a assisti-los, mas, o que era bastante significativo para os grupos, lhes oferecia o retorno em nível de recepção sobre a sua obra.

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Além do quê, a crítica dava substância aos segundos cadernos. Atualmente, os segundos cadernos, ao menos na Paraíba, não passam de baboseiras de colunistas sociais. Um triste reflexo do vazio de alma e da total falta de substância humana com a qual vai se moldando a sociedade dos novos ricos, os burqueses que querem ser fidalgos, para não esquecer de Molière. Nesse ambiente não há espaço para o exercício do pensamento crítico. Aliás, não há espaço sequer para o pensamento. Então, os segundos cadernos, que já foram lugares importantes para o teatro brasileiro, não apenas por registrar as realizações dos grupos, mas, principalmente, por oferecer o retorno crítico dos espetáculos, e nem tão somente isto, porque quando o faziam dialogavam de certa maneira com os grupos e assim se estabelecia uma convivência crítica entre a produção e a recepção, num círculo vivo e dinâmico, no qual um influía diretamente sobre o outro, mesmo que muitas vezes essa influência se desse por estranhamento. Com a ascensão das caras e bocas nos segundos cadernos, a crítica especializada migrou para as universidades, sobretudo depois que os cursos de pós-graduação foram criados em várias universidades federais pelo país. Acontece que a crítica acadêmica, por mais especializada que seja, está distante da dinâmica da produção teatral, até porque não é de sua natureza o acompanhamento in loco e diário das produções dos grupos. Com isso, estabeleceu-se um espaço vazio. Pois bem: o Projeto Teatro Piollin também se preocupou com isso, e ofereceu aos grupos um olhar crítico sobre as suas obras. Sendo assim, este Projeto fecha um círculo extremamente importante, porque não se limita apenas a abrir o espaço da Bica para as apresentações de grupos daqui e de alhures, mas de fazer com que os grupos se interconectem e recebam um aporte crítico tão necessário para o diálogo da criação, pois o contrário disto, sem esse oxigênio que faz respirar a técnica e a poética dos espetáculos, o contrário disto é o autorreferente, e aí, o perigo que há é de os grupos realizarem espetáculos sem conexão com o público, porque, por mais que a obra seja um exercício do espírito criativo dos artistas, faz-se necessário o retorno crítico para o aporte criativo e o seu complemento direto, a comunicação da obra e da arte. E é isto o que se encontrará nas páginas seguintes.

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O GRAMADO DO VIZINHO POR TIAGO GERMANO1

Adorno viu: a parede era transparente, e Onira escutava do outro lado. ALTAIR MARTINS, A PAREDE NO ESCURO

Ruy Castro certa vez revelou a intolerância de Nelson Rodrigues à figura do “diretor inteligente”: aquele que, na tentativa dispensável de modernizá-lo, metia-se a “gato-mestre” com o seu texto. Em A Serpente, espetáculo da Cia. Dezequilibrados que abriu o Projeto Teatro Piollin, o diretor Ivan Sugahara dispensa as astúcias que doem nos olhos quando querem falar mais alto que um texto essencialmente moderno como o de Nelson, propondo uma montagem “enxuta” do epitáfio deixado pelo autor nos palcos: a última peça que escreveu antes que a morte, mistério que perseguiu por toda sua obra, viesse enfim a lhe abater. Um gramado levemente orvalhado se estende ao chão, sem interferência alguma de objetos, exceto a de um banco de madeira à lateral do espaço cênico. A iluminação é chapada e o figurino, em sua tonalidade complementar, praticamente uniformiza o elenco. O artifício só é ousado na medida em que, na trama, uma camada abaixo de toda a superfície clicherizada pela crítica dos temas preferidos de Nelson Rodrigues, insinua-se sempre um componente primordial: o da alteridade. No caso de A Serpente, este jogo com o outro se dá entre duas irmãs: Guida (Ângela Câmara) e Lígia (Carolina Ferman), mulheres que vivem sob o mesmo teto, em um apartamento de quartos contíguos, compartilhando seus segredos de alcova através de uma fina parede que separa suas vidas com os maridos, Paulo (José Karini) e Décio (Saulo Rodrigues). O drama se instaura desde a cena de abertura, na qual Lígia

13 1 Tiago Germano é jornalista e escreve diariamente sobre cultura no caderno “Vida e Arte”, do Jornal da Paraíba.


e Décio se confrontam e o homem, que considerava o sexo da esposa “uma orquídea deitada”, abandona de forma violenta a mulher sexualmente frustrada. Simpática à angústia da irmã, Guida oferece o seu leito para aplacar a insatisfação da outra. Resistente, a princípio, Lígia cede, e o primeiro de sucessivos clímaces se desencadeia em uma cena magistralmente articulada, em que a ação é apresentada ao público com a reconstituição de um mesmo momento em dois espaços distintos: o momento em que Lígia comete o que julga ser um incesto com o seu cunhado, enquanto Guida ouve tudo do outro cômodo. Nós, o público, assistimos à cena primeiro sob a perspectiva de Lígia, depois sob a de Guida, e nos transformamos na parede, o intermédio entre a realidade das duas. As interpretações das atrizes são intensas e a violência que há no choque entre estas realidades ambivalente (como de resto se vê em quase todas as cenas que envolvem o enfrentamento mútuo entre os atores) está representada em esbarrões que flertam um pouco com a linguagem corporal do contato e improvisação. Assusta como Câmara, com um dos braços quebrados, sem poupar os movimentos do outro, parece ameaçá-lo quebrar em dois pedaços. A tensão aumenta com os cortes secos da trilha sonora, a agilidade com que a luz se alterna e a disputa silenciosa das duas pela

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camisa de Paulo, que passa de mão em mão como um símbolo singelo do triângulo amoroso que o ciúme histérico de Guida e a cobiça luxuriante de Lígia encaminham para um desfecho dramático. Consumado o ato proposto por uma das irmãs, cristaliza-se a dinâmica que René Girard assim descreve, citando Rougemont: “Chega-se ao ponto de esperar que o ser amado seja infiel, para que se possa novamente persegui-lo e ‘sentir o amor em si’”. O fatalismo, caro a Nelson e às tragédias que, desde Édipo, encharcam com sangue as páginas do teatro, vai dançando diante de nós, assombrando com a luz baça que vem da janela do prédio de 12 andares que é cenário do arrebatador instante final. É uma pena que as transições entre encenação e narração, artifício bastante explorado no início da montagem, seja abandonado no desenrolar do espetáculo. O recurso de paralisar a cena para contar as versões de cada personagem, além de aproximar a linguagem do grupo à estética cinematográfica, o que parece ser uma influência bem quista, faz o espectador penetrar novamente naquele truque de perspectivas. Uma pena também a diluição gradativa do personagem de Décio, o que talvez seja um problema mais do texto que de alguma opção do diretor, não permitindo que Saulo Rodrigues mostre algo proporcional ao que mostra, por exemplo, José Karini, dando vida ao macho em que coabitam as duas personas rodriguianas: o típico canalha oportunista e a criatura cega pelos destemperos do sexo, se reduzindo, ao final, ao menino perene (“experimentado e perverso anão de 47 anos”) à procura do seio materno.

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LAVOURA E O ETERNO RETORNO POR TIAGO GERMANO

A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez. FRIEDRICH NIETZSCHE

A vida de todo ser humano é um caminho em direção a si mesmo. HERMAN HESSE

(Allegro ou nascimento) Foi com Gogol (na literatura, um mestre da narrativa breve) que o Grupo Lavoura adubou-se para colher sua primeira dramaturgia própria na nem sempre fértil seara do monólogo. Após longa convivência com o texto de Diário de um Louco, André Morais e Jorge Bweres estrearam Bruta Flor no ano passado, no Teatro Santa Roza. A montagem apresentada no primeiro mês do Projeto Teatro Piollin é resultado de uma pesquisa contínua e de um visível processo de maturidade que vai ganhando acabamento a cada apresentação, colhendo frutos das adaptações que a peça foi ganhando pelos palcos que frequentou.

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A vocação da dupla por exceder-se às limitações do monólogo os levou, neste espetáculo, a explorar a música como recurso que já mascarou, para plateias incautas, o caráter teatral e performático da sempre enérgica interpretação de Morais – mais seguro com o texto, inclusive das canções que ele mesmo cunhou. Investindo na música de Marcílio Onofre, cria de Eli-Eri Moura, compositor que acompanha o Lavoura desde o seu início, o grupo encontrou no trio formado por Renata Simões (viola), Michel Costa (violão) e Herlon Rocha (acordeom) um apoio para a solidão do ator em cena. O fole e as cordas enchem o palco e não apenas figuram, fazendo jus ao papel que o repertório tem como suporte para a encenação de uma história fechada, cíclica e centrada na jornada do protagonista rumo à sua semente.

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(Andante ou mocidade) A iluminação de Bweres abre as portas imaginárias que conduzem o personagem pela casa materna, seus jardins e quintais, as metáforas do passeio por uma vida de descobertas. Nuances de azul e vermelho refletidos no branco salpicado de pétalas de tecido erguem um cenário no qual André Morais também obra com sua carpintaria, que dispensa uma atenção a gestos mínimos, mas eloquentes. É do trabalho corporal do ator que brota a sua flor, despetalando-se em um furacão de braços que rodopiam em torno de um mesmo eixo. Ele não perde de vista que, antes de tudo, está sob sua inteira responsabilidade convencer o público de quem incorpora, seja esta flor que desabrocha no seu balé solitário, seja a criança que se faz adolescente por artifícios aparentemente simples mas bastante significativos: como colocar-se de pé depois de uma cena desenvolvida apoiado sobre joelhos ou o dobrar e desdobrar da calça comprida, marcando a transição das idades.

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Provoca o espectador, provoca os músicos, provoca-se. A interação tem maior alcance na formatação original do espetáculo, com o público sentado em volta do espaço cênico, mais à vontade, mas a participação dos músicos cresceu (um dueto com Renata Simões foi acrescentado) e a peça adquiriu mais mobilidade. (Adagio ou fim) Bruta Flor revela o sério comprometimento do Lavoura com a pedra fundamental de seu trabalho dramatúrgico: a experimentação de André Morais descobrindo-se como ator e diretor na companhia de Jorge Bweres, bússola neste caminho que eles têm trilhado com sensibilidade e, sobretudo, tenacidade.temas preferidos de Nelson Rodrigues, insinua-se sempre um componente primordial: o da alteridade.

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O “QUASE” COMO OBJETO POR TIAGO GERMANO

O teatro não responde nada Se dizem que, no cinema, quando a realidade supera a ficção é hora de fazer documentários, no teatro, o que os grupos fazem é ir para a rua colher o drama do povo, a poesia do chão. Nem sempre os anseios se batem ou se correspondem. Quando a arte, seja o cinema, seja o teatro, seja qualquer outra, não encontra sua verdade nem no real, nem no imaginário, o que resta é o limbo: o livre trânsito pelas duas instâncias, de forma tal que já não há mais como distingui-las e, de sujeito, o artista torna-se o seu principal objeto. Em busca de maturidade estética, o Grupo Bagaceira está seguindo este percurso. Já frequentou as calçadas com Por que a gente não é assim? Ou por que a gente não é assado? É em InCerto, penúltimo espetáculo, porém, que o exercício da metalinguagem revela sua inquietação em torno da linguagem teatral e sua eficácia na transposição do “sentimento de mundo” de cada um dos integrantes. O espetáculo começa com os atores empurrando cases em cena. A aparição de elementos usados nos bastidores do teatro já é o ingresso do público às coxias de um grupo teatral em processo de criação. A sensação é que “pegamos o bonde andando”. O impasse do grupo é simbolizado por um alvo no centro do espaço cênico: há que se atingir o alvo, e os atores o perseguem em movimentos circulares nas bordas, em exercícios de entrosamento para “soltar o corpo”. A dinâmica coletiva é um pretexto para desenhar a caricatura do que já se tornou clichê na construção do teatro contemporâneo. Em um dado momento, por exemplo, o elenco se divide em duplas e

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se propõe a desempenhar uma atividade de contato e improvisação (o “último grito da contemporaneidade”, ironiza uma das personagens). O jogo desemboca em uma coreografia puxada pelo refrão de uma letra de axé. O tom de sátira e afronta se mantém quando o assunto é a pesquisa teatral estandardizada pela profissionalização e consequente “academização” do fazer artístico. Sobre o artifício da interação com a plateia, critica-se como uma opção que faz graça às custas do espectador, submetido a uma situação imprevisível da qual o próprio ator não tem o menor domínio. Sobre o improviso, numa esquete, alguém chega a mencionar: “Se isso aqui está se parecendo com um daqueles números de stand-up, não era a intenção”. A peça, como o título sugere, parte de incertezas. A falta de convicção leva ao “longo e árduo processo do que falar”, no qual se fala precisamente do “longo e árduo processo do que falar”. Demora-se para se assumir a “primeira pessoa” do texto e, enquanto ele se perde em interrogações, chega a dar a falsa impressão ao espectador de que seu discurso é nulo, vazio. “O teatro não responde nada”, propala uma personagem sobre quem, a contragosto, recai um bastão que dá voz aos seus pensamentos. Não responder às questões pessoais, ou mesmo às questões gerais, entretanto, não exime o teatro de não afirmar nada. InCerto arrasta-se até afirmar-se, mas quando o faz consegue superar a síndrome de muitos discursos que, na ânsia de expor a inocuidade que há por trás daquilo que se parodia, ou se discute, acaba por tornar-se igualmente inócuo. A encenação tem o mérito de explorar o espaço com soluções criativas diante das limitações e das poucas possibilidades que o cenário oferece. As projeções (apesar de serem, também, uma ferramenta banal dos grupos dados a “invencionices”) proporcionam uma das passagens visualmente mais funcionais da apresentação.

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Apropriar-se do teatro como divã para a terapia pública, exorcizando os demônios que se esconderam na sede do grupo em Fortaleza (CE), provoca a empatia de quem acompanha de perto a sua evolução ou de quem, à distância, sabe que, se existem grupos felizes, diferente de uma família, os felizes o são cada um à sua maneira, enquanto que os infelizes são todos iguais. A catarse de toda a insegurança a respeito de editais, falta de grana, divisão do trabalho, rotina dura, hiatos de brilhantismo, desentendimentos, ou, antes de tudo, a própria inconstância da arte, que solicita do artista a energia que muitas vezes lhe falta como “gente”, é bastante válida e prescindiria da “tirada de corpo” que o Bagaceira às vezes dá, hesitando na exposição de seus “conflitos bestas” em um mundo onde, supostamente, as tragédias são muito maiores. A sinceridade parece realmente não ter um fio dramatúrgico, mas tapar os buracos da criação descascando o seu ovo pode trazer boas surpresas.

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CONTO DE FADAS SEM ASAS POR TIAGO GERMANO

Desenho toda a calçada Acaba o giz, tem tijolo de construção Eu rabisco o sol que a chuva apagou. GIZ, LEGIÃO URBANA

Há um paralelo curioso entre Do Outro Lado da Chuva, infantil do Grupo Graxa de Teatro, e Entre Quatro Paredes, peça adulta mais recente de seu repertório: nesta adaptação do texto sartriano dirigida por Antônio Deol, uma das revelações indiscutíveis de nossa dramaturgia, o público é confinado junto com quatro personagens em um vagão de trem. Já naquela pequena fábula urbana de Joht Cavalcanti, outro talento desta nova safra, o confinamento é também o assunto-chave, sendo que o público, como os dois protagonistas da história, está apartado dos demais por uma rede de proteção instalada entre o palco e a plateia. É sob a ótica destas redes, versões menos agressivas e claustrofóbicas das grades dos condomínios, que vemos o desenrolar do espetáculo e assumimos a mesma visão dos personagens, filhos únicos de pais separados, retratos coloridos digitalmente da família configurada em uma nova estrutura que nos rendeu o prodígio da tal “geração Y”: divorciada, enclausurada, neurótica. Amélia (Adriele Daniel) e Crusoé (Epitácio Souza) não enxergam ainda o mundo através de pixels. Seus brinquedos ainda são

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de uma geração anterior à sua: uma boneca de pano e um carrinho de madeira que são suas únicas distrações e fonte de escapismo além das janelas dos seus quartos. As janelas (que, por ironia, também batizaram as interfaces pelas quais espiamos o mundo dos nossos escritórios compactos) intermedeiam suas experiências sociais solitárias. Dão para a rua, via inacessível onde projetam aventuras imaginárias, incursões deliciosas e proibidas pelos seus pais: típicos sujeitos da urbanidade. A estes adultos lhes falta tempo, essa grandeza que é o capital mais precioso em um contexto no qual o lazer também se tornou um espaço para o trabalho e o bem-estar da pausa e do ócio substituiu o seu proveito no pagamento de contas e manutenção do lar. Na ausência deles, é a Tia Maria (Cely Freitas), uma babá ou, nos moldes mais contemporâneos, uma diarista, que vai atuar compensando esta falta de tempo. A Tia Maria é uma tropical e ensolarada Mary Poppins que encoraja os pimpolhos a olharem além da fina garoa que recobre o vão de uma possível amizade que eles encontraram no espigão vizinho.

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Versada na arte do picadeiro, a Tia Maria traz o circo para a vida das crianças. O circo é o lúdico contaminando uma rotina pragmática, ditada por regras estipuladas pelos pais que há muito esqueceram como é enxergar o mundo sob outra perspectiva. Hoje é o circo, sua itinerância tentadora, que transporta o interiorano, o provinciano, para as grandes cidades. Uma lona enclavada entre os arranha-céus de uma metrópole é um intervalo no caos, um carnaval fora de época no cotidiano. É quando a magia e a palhaçada fazem enfim o tempo correr mais lento, aproximando universos distantes. O jogo de sombras desempenhado pelos atores Ingrid Castro e Léo Viana, se movimentando entre um foco de luz disposto nos bastidores, diante de uma cortina, lembra as nostálgicas noites em que faltava energia e pais e filhos se punham ao redor de velas, desenhando animais nas paredes com o mover das mãos. As músicas também remetem aos saudosos cânticos que embalam uma inocência perdida, que a encenação tenta recuperar com o “sonho azul” de uma fase na qual alegrias e traumas são traduzidos por uma linguagem repleta de metáforas esquecidas. Conhecemos então a narrativa que a narradora, a Tia Maria, esconde: seu passado remoto, a história de amor com um ilusionista que desapareceu, como o pai e a mãe dos pequenos, e seu encontro com um outro artista do circo, simbolizando a esperança que eles devem nutrir de que, também seus pais, no futuro, reestruturem a família com novos companheiros. O final é previsível, mas nem por isso destituído de poesia. E eis a moral da história: Do Outro Lado da Chuva é um conto de fadas que voa sem asas, com um pé no chão de sua época e o outro na época que não passa dentro de cada um de nós.

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APONTAMENTOS SOBRE TEATRO DE GRUPO POR MÁRCIO MARCIANO1

Diante da necessária pergunta: “O que é fazer teatro de grupo?” arrisco algumas hipóteses retiradas de minha modesta e renitente determinação de praticar erros no varejo em busca de pequenos acertos no atacado. Sendo assim, tento responder à indagação dizendo: Fazer teatro de grupo é: Assumir o compromisso perante os demais companheiros de trabalho de que o fazer teatral deve consistir no exercício diário da construção de uma utopia. É fazer valer o desejo, a potencialidade e a liberdade individual em prol de uma ação coletivizante. É entender que o DNA de qualquer que seja o grupo está impresso nas circunstâncias históricas de sua formação, ainda quando essa formação esteja em permanente processo de ajuste e modificação. É entender que o DNA de qualquer que seja o grupo não se reduz a declarações de intenção estética. Fazer teatro de grupo é: Inventar um espaço de exceção permanente. É não esquecer que a suposta crise das ideologias é a afirmação categórica de uma ideologia dominante. É reconhecer que os grupos de teatro surgem como espaço de resistência contra todas as formas de totalitarismo: o totalitarismo dos bons sentimentos, o totalitarismo dos valores eternos, o totalitarismo da subjetividade burguesa, e

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1 Márcio Marciano é dramaturgo e encenador. Fundou a Companhia do Latão, de São Paulo, e o Coletivo de Teatro Alfenim, de João Pessoa.


o mais perverso de todos os totalitarismos, o totalitarismo da mercadoria. Fazer teatro de grupo é pôr em prática o desejo de: Revolucionar a si mesmo; Revolucionar o Outro; Revolucionar a ordem social injusta, em favor da construção de um mundo habitável para todos. É ter consciência de que na Arte, assim como na política e na vida, a omissão aos desmandos do capital é adesão à sua lógica perversa. Fazer teatro de grupo é: Não se deixar levar acriticamente por termos aparentemente anódinos como troca, compartilhamento e similares. Não esquecer que esses termos comportam uma carga semântica ambígua: podem significar o escambo ou a partilha de um produto acabado, que tem valor de troca, em detrimento de um possível valor de utilidade: em suma, termos que podem trair propósitos conservadores, maquiados de reformismo. Fazer teatro de grupo é: Dar-se ao exercício franco do intercâmbio crítico, e ao risco do experimento estético na contramão das tendências universalizantes. É não tentar harmonizar os indivíduos, mas produzir fissuras na recepção da obra artística capazes de revelar as tensões da ordem social. Fazer teatro de grupo é: Ter o compromisso de revelar a produção científica da desordem como fator ordenador do sistema. É lutar contra o mercado com as armas do mercado. É ter a sabedoria de que numa guerra, quando se tomam as armas do inimigo, essas armas devem ser usadas contra o inimigo. Fazer teatro de grupo é: Lutar contra a institucionalização da Arte e do fazer artístico. É ter a compreensão de que é preciso construir um projeto artístico que ultrapasse a mera realização do produto artístico. É não perder de vista que o para quê deve sempre orientar o quê. Fazer teatro de grupo é, sobretudo, ter sempre em mente que: “A história da sociedade até hoje é a história da luta de classes.”

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A ARTE INVISÍVEL DO ENCONTRO POR TIAGO GERMANO

Há em Coisas Invisíveis uma sutil referência a Os Amantes do Círculo Polar, filme do espanhol Julio Medem. No longa-metragem, Oto e Ana são dois jovens cujas trajetórias, como o palíndromo de seus nomes, vão e vêm e sempre coincidem em um mesmo ponto. A Cia. Clara inspirou-se nesta estrutura de idas e vindas para compor seu espetáculo, o segundo do já vasto repertório da Clara que retorna de sua fase incipiente sob a direção agora madura de Anderson Aníbal, comemorando a primeira década dos mineiros. Apresentado no Projeto Teatro Piollin, o texto de Gustavo Naves Franco, retroativamente, ajuda o público paraibano a entender a gênese de Vilarejo do Peixe Vermelho, peça que veio a João Pessoa ano passado no percurso da Clara pelos palcos nordestinos (marcado sobretudo pela relação amigável e producente estabelecida com o Piollin em um projeto de conexão contemplado com o Prêmio Myriam Muniz da Fundação Nacional de Arte, em 2010). Certas passagens de Coisas Invisíveis foram enxertadas em Vilarejo, como a leitura das cartas entre as irmãs Ana e Luísa (que em Vilarejo estão cada uma em uma parte diferente do mundo). O diálogo estabelecido entre as duas nas correspondências rende momentos de grande brilho da atual montagem, com verdadeiras crônicas poéticas e tocantes sobre o cotidiano urbano em locais como aeroportos, onde todos estão “em um lugar que não é este, para encontrar alguém que não somos nós”. É possível dizer que o tema da “solidão compartilhada”

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permeia todas as histórias de Coisas Invisíveis, em que personagens estão constantemente fazendo um exercício de observação que envolve o mundo ao redor: a própria justificativa do título diz respeito a este passageiro de um ônibus que vê na poltrona diante de si um casal de mulheres de mãos dadas. Ele imagina todo um passado, presente e futuro para este casal, sendo este enredo as tais “coisas invisíveis” que se desenrolam diante dos nossos olhos. E há uma porção delas, basta olhar mais ao redor, como somos advertidos desde o início. Egressos de oficinas de dramaturgia que o grupo executou pelo interior de Minas Gerais, os atores Camile Gracian e Felipe Ávlis revelam-se no palco: de riso fácil e frouxo, dicção ponderada e precisa, o jovem Ávlis é um pequeno achado e promessa de arejar os bastidores da Clara nesta segunda década da companhia. Os veteranos Ana Vida e Henrique Cruz. conduzem o elenco estreante com destreza e competência, mantendo o ritmo da peça sempre em um limiar entre o ápice da alegria e o ápice da tragédia, como quando, logo após a morte de um personagem, algo como um velório é reproduzido por um semicírculo formado pelos atores que se abraçam, trocando condolências. A partir destes abraços, o semicírculo percorre todo o espaço cênico, e de maneira crescente os personagens vão se alegrando, mostrando que “a vida continua” e que novos ciclos estão sempre a se iniciar. A música parece ser o único elemento fora do contexto da encenação, com canções um tanto exaltadas e por que não dizer piegas, que por vezes atuam como um anticlímax das cenas, apesar dos temas instrumentais executados ao vivo, que aumentam a tensão em momentos em que a articulação música/ação dramática não desbanca para o melodramático e se desenvolve com mais êxito. Não há como ficar incólume à cena final, o “monólogo do gravador”, que por ironia não tem trilha sonora alguma e artifício algum além de um foco de luz que pousa sobre o aparelho e deixa a plateia a ouvir o melhor de Coisas Invisíveis: seu belo texto, que se alterna entre o prosaico e o profundo, dimensões que nos suspendem e nos elevam e que a Clara tem aprendido a manejar com os pés muito no chão.

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UM SER TÃO MAIS FÉRTIL POR TIAGO GERMANO Ao adaptar Flor de Macambira para o espaço fechado, ainda que pouco convencional, do Teatro Piollin, o Ser Tão Teatro se vê destituído de seu verdadeiro habitat: a rua, este espaço aberto onde o grupo sempre esteve muito à vontade e cujos ares foram fundamentais para seu sucesso, por exemplo, no 18º Festival de Teatro Nordestino de Guaramiranga (CE), no ano passado. Na edição especialmente voltada para espetáculos de rua do festival, não era de se estranhar que a nova empreitada do Ser Tão (que já tinha pisado nas calçadas com o pé direito em 2009 com A Farsa da Boa Preguiça, projeto colaborativo com os potiguares do Clowns de Shakespeare) tivesse sua sagração pública levando o prêmio de melhor espetáculo segundo o júri popular. No Projeto Teatro Piollin, um elenco cada vez mais entrosado mostrou por que a apoteose de Flor de Macambira é por essência incontida: o Ser Tão não só está cada vez mais afiado como também transparece, a olhos vistos, uma felicidade transbordante e uma crença inabalável no próprio trabalho. Contagiando o público desde o início da peça, com o “aquecimento” em cena, exibindo com desenvoltura uma mostra do canto e da dança que vão predominar no espetáculo, o grupo nos introduz no universo da cultura popular de maneira alegre, solta e despreocupada, sem hesitar em fazer do ritual da encenação uma experiência que, a princípio, vai proporcionar prazer e satisfação aos atores, para só depois tocar a plateia com igual emoção. Esta felicidade é algo digno de ostentação, é a moeda com que primeiro se compra quem assiste. A ostentação que também está presente no visual de Flor de Macambira, que encontra sua imponência no precário, porque só é dele que, ao fim e ao cabo, Catirina (Isadora Feitosa) e Mateus (Winsthon Aquilles) podem se orgulhar. Figurinos

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feitos com sacos de estopa, mocassins furados exibindo os dedões dos personagens, tudo é cuidadosamente talhado numa bela estetização desta precariedade. Ela encontra correspondência na magreza raquítica de Aquilles, perfeito na pele e osso do típico “matuto amarelo”, incorporando a fragilidade de Mateus e parecendo que vai se quebrar em cena com a plasticidade de suas piruetas. Ou da barba farta de Zé Guilherme, cujas feições se transformam ao narrar a saga de Joaquim Cardozo e conduzir com maestria a trilha sonora do espetáculo, esta cartilha musical que abrange o frevo, maracatu, cavalo marinho, ciranda e toda uma gama de ritmos nordestinos. Como os três personagens, que se desdobram fazendo as vezes de coro e incorporando as forças do mal que querem roubar a pureza de Catirina (e é um mérito da adaptação conseguir atenuar esta metáfora, sem nunca ser de fato explícito), a direção consegue se mostrar versátil e criativa: é quase imperceptível quando um mero tecido vermelho, que podia passar despercebido em cena, torna-se, numa ágil sequência, uma roupa oferecida a Catirina e, logo após, uma mesa farta que também lhe é ofertada em troca do seu bem mais precioso. Os mascarados Gladson Galego, Maisa Costa e Thardelly Lima (desnecessário ressaltar os atributos deste último, um talento genuíno da comédia, daqueles que só se encontram raros em cada geração de atores que pisa num palco) estão soberbos: é singular a maneira como inserem no texto elementos atuais (telemarketing, sites de compra coletiva, funk carioca…) sem se distanciar sobremaneira do contexto e parecer fazer graça gratuita, uma linha tão tênue e tão ultrapassada por quem se aventura a caminhar nela. Por fim, o modo como o terceiro ato contrasta com o restante da peça, com sua iluminação sombria, a exploração da figura fantasmagórica de Cida Costa e o suspense manejado com destreza fazem de Flor de Macambira uma experiência teatral ímpar, uma chuva de renovação no tema regional – solo castigado, mas ainda fértil.

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UM GRAU AQUÉM DA VIRTUOSE POR PAULO VIEIRA Há uma grande diferença entre um bom ator e um ator virtuose. Ambos dominam as técnicas do seu ofício, não há dúvida. Entretanto, um ator virtuose é mais do que um profissional em pleno gozo de sua arte, é alguém que se entrega a arte como um monge à sua fé. A arte é um meio de desenvolvimento pessoal, espiritual por assim dizer, e cujo resultado nunca é o fim, mas um ponto de um processo que somente terminará quando o fim for o encontro do ser com a mais indesejada das gentes, como escreveu Manuel Bandeira. Não sei se isto que eu escrevo se aplica aos atores do grupo O Pessoal do Tarará, de Mossoró, Rio Grande do Norte, que participou no último final de semana do Projeto Teatro Piollin, com dois espetáculos: Aurora Boreal e Sem Palavras. Não sei se no cerne do teatro que fazem jazem em algum instante essas minhas considerações que são, ao mesmo tempo, mística e filosófica, sobre o caráter da arte do ator, mas é essa a minha sensação pessoal sempre que eu assisto a um espetáculo no qual o ator age como um virtuose, não apenas representando, mas buscando o limite interpretativo do corpo, libertando-o de gestos presos e de concepções apriorísticas sobre a cena, demonstrando em seu trabalho que o caminho para a libertação do gesto contido no corpo passa por uma reeducação corporal, e esta, por sua vez, por uma aceitação do sacrifício ritualístico, que é o caminho do ator compositor de gestos e ações, um ator criador de vozes e sussurros, mesmo que sem palavras. E é o que O Pessoal do Tarará apresenta e faz. Com dois espetáculos no Projeto Teatro Piollin, o Tarará surpreendeu ao público

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que não o conhecia. Dois espetáculos nos quais há em comum o ator como performer. O primeiro espetáculo, Aurora Boreal, tem a concepção, dramaturgia e atuação de Dionízio do Apodi. Este é um espetáculo reduzido ao seu mínimo denominador comum: um ator, uma cadeira e nada mais. Um show de performance do ator, que apresenta um bom domínio técnico em toda a escala do corpo, com ritmo sob absoluto controle, quando o ator conduz a percepção do público para o ponto onde ele deseja, criando sonoridades as mais diversas, indo da fala ao canto e a fala, executando uma partitura sonora com excelente resultado, demonstrando que o corpo do ator é mais do que um corpo civil representando algo ou alguém ou alguma coisa. Por esse caminho, o corpo é a própria obra de arte, dançando atoralmente o seu ritmo e a sua projeção no espaço. O segundo espetáculo, Sem Palavras, é um dueto com outros atores igualmente afinados: Antônio Marcos e Maxson Ariton, com direção de Dionízio do Apodi. Novamente o mesmo palco nu, livre de qualquer cenário ou mesmo de objeto: os dois atores criam vários quadros, desta vez explorando o universo da comédia, inspirados em desenhos animados, como Tom e Jerry, o Pateta, enfim, coisas que por sua natureza já são bastante divertidas.

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O mesmo domínio técnico que se encontra no primeiro espetáculo vai ser encontrado no segundo, e desta maneira o grupo O Pessoal do Tarará demonstra um apurado senso estético e uma esmerada procura por um ator virtuose. E estão quase chegando. E eu digo que estão quase porque algumas pequenas coisas me pareceram que precisam ser revistas pelo grupo. Por exemplo: no espetáculo solo, Dionízio do Apodi utiliza a narrativa como princípio do espetáculo e logo cede ao drama, numa passagem que transmite movimento ao texto. Neste segundo momento, os olhos do ator miram para um objetivo além do espectador, um ponto no infinito além da plateia, e dessa maneira me parece que distancia o ator do público, se considerarmos que os olhos do ator, a menor musculatura entre as musculaturas visíveis, são, ao mesmo tempo, responsáveis pelo olhar do espectador, uma vez que este olha para onde olha o ator, enfim, o público vê o que o ator vê. Não me pareceu que isto fosse uma escolha do ator, mas um tão profundo mergulho em sua sensibilidade que o fez esquecer esse detalhe técnico, que, me parece, o levaria a um maior ganho na sua representação, do ponto de vista deste espectador. Assim como me pareceu que muitas vezes faltava um link entre uma ação e outra, e essa falta provoca passagens bruscas de ações que são como quebras e não como continuidade de uma mesma linha interpretativa, na qual uma ação cede vez à outra, numa linha

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contínua de movimento, que me pareceu que é o que busca o ator. Mas esses são detalhes que chamaram a minha atenção em particular porque me pareceram que eles impedem uma interpretação perfeita, mas são detalhes que não formam nenhuma mancha na interpretação, salvo um único detalhe, e este tem a ver com a respiração. O corpo do ator é um instrumento acústico (e isto foi explorado brilhantemente pelo ator, quando usa as pernas como tambor para marcar o ritmo e o canto de determinada cena), mas é também um instrumento de sopro, exigindo do ator uma limpeza na voz, sob pena de borrar a interpretação vocal. Todo o tempo, quando o ator precisou de ar, encheu os pulmões provocando um desagradável som na aspiração. Parece-me que uma interpretação perfeita, virtuosística, necessita corrigir este que é, sim, um detalhe técnico da maior importância. No espetáculo duo, o ator Maxson Ariton leva todo o tempo a expressar o mesmo texto, no mesmo tempo e ritmo. Mas como o mesmo texto, se não há texto no espetáculo?, alguém poderia me perguntar. E eu diria: em teatro, o corpo desenhando um plano no espaço é um texto; uma voz que emite um som, mesmo que desarticulado, é um texto. E neste sentido eu digo que o espetáculo não é sem palavras, como diz o título da obra, mas construído com essa intenção, acaba criando, a despeito dos atores, um texto desarticulado, monótono, e que somente suja a cena, não porque nada diga, mas exatamente porque quer dizer e não diz, algo que me pareceu uma tentativa ainda não resolvida de construir grammelot. Tanto assim que, em brevíssimo momento, o ator Antônio Marcos consegue expressar algo em grammelot, e quando o faz, o faz em voz profunda e baixa, causando um agradável impacto na

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plateia. A falta de um grammelot, uma língua inventada, faz com que o texto de Maxson Ariton perca em ritmo, em sonoridade e em intenção, ficando a graça muito por conta das situações físicas, perdendo-se o suporte da voz enquanto expressão e arte. Outra coisa que chama a minha atenção é quanto ao uso algo clichê de recurso cômico, como, por exemplo, os risos de Antônio Marcos fingindo que foi tomado de surpresa pela atuação do companheiro. Desnecessário, do meu ponto de vista. Desnecessário porque a pesquisa que realizam os atores os conduz para um patamar superior de representação, onde clichês não são bem vindos, mesmo que queira expressar a tradição não de uma linguagem, mas de um truque, um truque barato para atores idem, o que não é o caso de Antônio Marcos nem de Maxson Ariton. Enfim, esses pequenos detalhes impedem que os espetáculos do grupo O Pessoal do Tarará não atinjam totalmente o estágio superior da representação, aquele que transforma representação em performance, virtude em virtuose.

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UMA CONVERSA ENTRE MILHARES POR TIAGO GERMANO

O Quincas do Grupo Osfodidário sempre traz à memória a frase de uma leitora que, certa vez, venceu o concurso de uma editora que fazia a seguinte pergunta: “O que é um clássico?”. “Um clássico é uma deliciosa conversa entre milhares”, dizia a perspicaz resposta ganhadora. Neste aspecto, a adaptação de A Morte e a Morte de Quincas Berro D’Água (1958) conduzida por Daniel Porpino em sua surpreendente estreia na direção já nasce um clássico da dramaturgia criada em torno da obra de Jorge Amado (1912-2001), outro autor centenário lembrado pela programação do Projeto Teatro Piollin. Ou pelo menos um clássico para o futuro (espera-se que duradouro) de um grupo que deu um salto qualitativo no seu trabalho: do exercício da paródia na incipiente A Farsa do Poder (2009) a uma produção original e bem acabada, que se livra dos grilhões da literatura libertando um universo que parece ter sido feito para ser encenado. A “deliciosa conversa entre milhares” opera-se primeiro a partir da imersão que os quatro atores fizeram na ficção do imortal baiano para compor os “órfãos” de Quincas, personagens que se desenham com enorme expressividade: Curió (Ana Marinho), Negro Pastinha (Dudha Moreira), Pé de Vento (Odécio Antonio) e Cabo Martin (Thardelly Lima). Depois, emerge na multiplicação dos focos narrativos, que substitui o narrador onisciente, em terceira pessoa, do original, pelos quatro narradores que dão seus testemunhos sobre a história do “senador das gafieiras”. Vendo o elenco encharcado do

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universo em que viveu, morreu e tornou a viver o “patriarca do baixo meretrício”, embriagado pela boemia, a malandragem, a sensualidade e o misticismo amadianos, fica fácil mergulhar também nesta comédia inteligente e provocativa. As soluções do espetáculo não reconhecem os limites da imaginação: vão de ideias simples como bolinhas de malabarismo que viram rãs de estimação de Pé de Vento ao uso de um pé de madeira, uma espécie de ex-voto daqueles que colocam nos santuários, que vira um defunto inteiro. Ou a melhor: uma meia furada no dedão que vira o figurino de Quincas e que, quando vestido pelos atores, possibilita que qualquer um deles possa ser, além do seu próprio personagem, o herói da peça. O espetáculo beneficia-se tanto do talento de cada um d’Osfodidário, um núcleo versátil que se vale da experiência de artistas que trabalham linguagens diferentes como, por exemplo, a circense (no caso de Odécio Antonio), quanto da formação do diretor. Com um currículo centrado no aperfeiçoamento do ator, Porpino imprime sua marca em Quincas trazendo a atuação para um plano privilegiado. Não que os outros elementos não se coadunem em harmonia com o desempenho do elenco. A direção musical, só para citar uma, é eficaz até no silêncio: quando os quatro beberrões sacam alguns instrumentos danificados, que não emitem som algum, e fazem uma seresta na madrugada soteropolitana. A sonoplastia recorre à água acumulada na carcaça de uma geladeira ou em um barril, espaços nos quais todos eles se esbaldam, esbanjando intimidade com o cenário. A cena do banquete, em que um frango assado cai do alto do teto e é devorado pela família do morto, é um verdadeiro achado. Palmas aos criativos discípulos de Dario Fo, que tiraram Jorge Amado das páginas, da telona e da telinha onde tão bem ele se acomodou, e encheram um palco com ele.

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BOM TEATRO É COMO UM BERRO D’ÁGUA POR PAULO VIEIRA Quincas é o segundo espetáculo do grupo Osfodidário, de João Pessoa. Nascido dentro da Universidade Federal da Paraíba, o grupo é formado por ex-alunos do curso de Especialização em Representação Teatral, além de uma professora do curso de letras, Ana Marinho, convidada para este espetáculo, e é um dos bons grupos surgidos nessa nova fase dos cursos de artes cênicas na UFPb, promessa de renovação do teatro com a chegada de uma nova geração de atores e artistas do teatro. Quincas ainda guarda uma outra curiosidade, que é a estreia, como diretor, do ator Daniel Porpino. Excelente estreia, sem dúvida, pois além de comandar um grupo da mais absoluta competência, Daniel realizou a adaptação do texto de Jorge Amado para o palco, o que não é uma tarefa fácil, pois que o escritor baiano realizou em A Morte e a Morte de Quincas Berro D’Água um dos mais concisos entre os melhores dos seus romances, e a sua adaptação exigiria igualmente concisão, absoluta visão dramatúrgica, tarefa que em princípio parece bastante temerária para quem, como é o caso de Daniel Porpino, não tem a escrita dramática como exercício artístico. A boa surpresa deste espetáculo é também se perceber que o diretor também se saiu muito bem neste quesito, agindo como um dramaturgista, um meio caminho para o trabalho da dramaturgia enquanto arte e ofício. O dramaturgista Daniel Porpino houve por bem distribuir a narrativa do texto entre os quatro amigos de Berro D’Água, e isto por si só já se configura um excelente achado dramatúrgico, pois do contrário o espetáculo resvalaria facilmente para o puro narrativo, que vem se

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configurando uma tendência de moda no teatro de João Pessoa nos últimos anos. E moda em teatro é na verdade um vazio de ideias teatrais. Ao invés de uma pesquisa que pode muitas vezes se mostrar árdua para se confeccionar uma cena com elementos de ação, a moda gera a forma e esta a fórmula para se solucionar de maneira mais simples os desafios da cena. O que quase sempre pode gerar uma cena de alguma beleza, sim, mas de nenhuma surpresa. Por não cair na tentação narrativa, o que seria fácil, repito, devido a própria origem do texto de Jorge Amado, Osfodidário apresenta um espetáculo de absoluta inventividade. Tanta inventividade em cada cena que faz desarmar os mais críticos espectadores, que se desligam de observar os elementos técnicos e se deleitam em apreciar os achados poéticos. Não bastasse a construção de cenas surpreendentes a cada instante, este que é um elemento visível no espetáculo, há ainda o outro lado, os elementos não visíveis mas palpáveis, fundamentais para a condução das cenas, que são o ritmo e a pulsação do espetáculo. O ritmo como base para a pulsação. E por o ter muito bem assimilado, os atores conseguiram superar uma pulsação inicial que não estava “surround”, para usar uma palavra da atriz Dudha Moreira em determinado momento da cena, pois isso era exatamente o que acontecia nos dez primeiros minutos: uma pulsação abafada, que exigia atitude coletiva para que o brilho do espetáculo surgisse, envolvendo o espectador, trazendo-o rendido e entregue ao deleite de um bom teatro, e isso, que se poderia constituir um problema para a recepção, logo após os primeiros minutos foi vencido pelos atores graças a correta marcação rítmica das ações. Entretanto, um elenco com tão bons atores, conduzindo um espetáculo que possui tantos méritos, do meu ponto de vista deve cuidar para não cair nas facilidades que o gênero propicia. Até porque não precisa. As facilidades do gênero cabem em espetáculos menores, não neste. Outro mérito do elenco como um todo é o time cômico que cada um apresenta, e aí eu destaco a atuação de Thardelly Lima. Um ator que tem enorme talento para a comédia, Thardelly é um artista com escalas muito maiores de interpretação, mas o gênero cômico o atrai de maneira absoluta. Do meu ponto de vista, para fazer graça Thardelly não precisa de palavras, pois o seu repertório gestual é enorme, e muito menos de textos improvisados e infelizes, como o de falar o nome de determinada atriz do teatro paraibano, não apenas porque a atriz em causa merece todo o respeito não apenas pelo tempo de atuação, mas porque é uma grande atriz e deve ser olhada desta maneira, não com

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deboche que não fica bem nem em comédias menores nem em artistas com o talento de Thardelly. Dudha Moreira é outra atriz indelevelmente seduzida pela comédia. Está em momento brilhante, representando e cantando, algo que não é fácil para o ator, pois frequentemente as vozes dos atores não alcançam escalas e projeções que deem brilho ao timbre musical, e isto se dá por descuido na preparação da voz cantada. Dudha canta e o faz bem, mas eu penso que não deve abrir mão de um trabalho técnico específico, a fim de que a vivacidade do seu canto apareça do modo como deve ser. Odécio Antonio vem aparecendo de maneira interessante em outros espetáculos, mas neste está igualmente em momento sublime. Odécio é de tanta entrega a cena que às vezes acontece de perder o tempo dela, não porque não a domine, mas porque me parece que é dominado pela emoção, algo que o ator deve ter sob absoluto controle. E se perder o tempo por alguma razão, como aconteceu na cena do elevador, usar do seu amplo recurso para improvisar, a fim de impedir que o público perceba, afinal espetáculo redondo não pode ter aresta de forma nenhuma. Ana Marinho é uma agradável surpresa, não porque não seja conhecida, mas porque eu, particularmente, nunca a vi em comédia, e creio que ela se sai muito bem. Embora deva ter razões para que ela utilize o nariz de palhaço nos primeiros momentos do espetáculo, eu creio que Ana não necessite dessa que é a menor das máscaras, mas a mais reveladora de todas. O nariz em si não confere graça a quem o usa, mas em Ana ele tem graciosidade sim, embora eu pense que ele é perfeitamente dispensável. Tanto que quando ela retira a máscara a sua graça se mostra e revela que não depende do nariz como suporte. E por fim, o diretor, Daniel Porpino. É responsável por um trabalho vistoso, alegre, sério enquanto cômico, respeitoso com o gênero e com o teatro, Daniel soube usar de sua experiência com Márcio Marciano na transposição do texto e na construção geral das cenas, o que antes de tudo é um mérito pessoal para ele, Daniel, que se mostra um diretor com amplos recursos, e a despeito de esta ser a sua primeira direção, ele o faz com segurança de veterano, realizando em Quincas um espetáculo que dignifica o bom teatro da Paraíba, com achados extremamente bem construídos no cenário, que não está lá para enfeite, mas para ser parte integrante da ação. Não apenas as peças de tonéis, mas a própria água usada com parcimônia, compõem elementos valiosos para o cenário do espetáculo. Talvez o mais valioso, proporcionan-

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do a criação de quase todas as cenas, e de uma, que em particular me chama a atenção, que é a fonte. Tanta água que dá a dimensão do mar e do álcool no qual o Berro D’Água afoga a sua vida. Em determinado momento o espetáculo cheira a cachaça, e este é o golpe fatal que faltava para dar a magnitude da personagem. Nada é gratuito no espetáculo, nem a luz, nem os figurinos, no qual uma meia furada no dedão se transforma na metáfora da própria personagem, e mesmo o recurso de flash na iluminação, que provoca a passagem do tempo e sincroniza momentos diferentes que sintetizam a ação no romance, nada, do meu ponto de vista, absolutamente nada está fora do lugar. Enfim, um bom teatro é algo misterioso e embriagante como o berro d’água.

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BREVES NOTAS SOBRE O TRABALHO EM TEATRO: PRINCÍPIOS E PROCEDIMENTOS DO TEATRO MÁQUINA POR FRAN TEIXEIRA1 Para que possamos refletir sobre o trabalho em teatro, proponho que discutamos a interface forma e política contemporaneamente, antes de tratar da prática em grupo. Algumas perguntas de base são importantes para podermos discutir o trabalho em teatro sob essa perspectiva: como chegar a uma forma artística que seja expressão de um conteúdo político? Essa preocupação é relevante ou toda forma artística é eminentemente política? A arte precisa se preocupar com a expressão de conteúdos? Qual a dimensão política da arte? É intrínseco ao fazer artístico a relação fundante entre forma e conteúdo? Todo conteúdo pressupõe uma forma? Toda forma é expressão de um conteúdo? Em que medida a arte é em si política?

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1 Fran Teixeira é artista do grupo Teatro Máquina, de Fortaleza (CE). Encenadora. Professora da Licenciatura em Teatro do IFCE. Atualmente investiga a experimentação prática com o Material Fatzer de Brecht como modelo de ação. Doutora em Artes Cênicas pelo PPGAC/UFBA e mestre em Artes pela ECA/USP. É autora de “Prazer e crítica: o conceito de diversão no teatro de Bertolt Brecht” (Annablume, SP: 2003).


Sabemos que o dramaturgo alemão Bertolt Brecht foi o primeiro a confrontar o intelectual com uma exigência fundamental: não abastecer o aparelho de produção sem o modificar (Benjamin, 1994, p.127). O teatro épico, para que possamos entender de que forma pode se dar essa exigência, expressa-se, por exemplo, através de meios técnicos utilizados pelo cinema e pelo rádio, refuncionalizando-os ao se utilizar destes meios na linguagem teatral. Brecht criou o conceito de refuncionalização para caracterizar a transformação de formas e instrumentos de produção por uma inteligência progressista e, portanto, interessada na liberação dos meios de produção, a serviço da luta de classes. Walter Benjamin (1994, p.217) já havia feito uma analogia entre a interrupção da ação - provocada pelas diversas formas de efeitos de estranhamento - e a montagem como recurso técnico utilizada pelo cinema, pelo rádio e pela fotografia, quando afirmou que “o teatro épico avança aos saltos, de um modo comparável ao das imagens de uma película cinematográfica. A sua forma básica é a do choque”. Jameson (1999) discute o estranhamento brechtiano justo pelo seu poder de desvelar a aparência, fazendo com que o familiar perca o acréscimo de natural. O estranhamento historiciza: “[...] a isso deve-se acrescentar, como corolário político que é feito ou construído por seres humanos e, assim sendo, também pode ser mudado por eles ou completamente substituído.” (JAMESON, 1999, p.65). É perceptível aqui, de forma muito simples, como o teatro, através do procedimento estético do estranhamento, pode transformar o desenvolvimento da ação em representação de uma condição social, ao interromper o curso da ação. O papel do estranhamento é o de promover uma atitude crítica diante de uma experiência estética, através da naturalidade, do caráter humano, do humor, da renúncia ao misticismo, características do teatro épico. Mas não sem assombro. Essa passagem do texto de Benjamin (1994, p.81) sobre o teatro épico trata da relação entre interrupção-reconhecimento-assombro: O teatro épico conserva do fato de ser teatro uma consciência incessante, viva e produtiva. Essa consciência permite-lhe ordenar experimentalmente os elementos da realidade, e é no fim desse processo, e não no começo, que aparecem as “condições”. Elas não são trazidas para perto do espectador, mas afastadas dele. Ele as

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reconhece como condições reais, não com arrogância, como no teatro naturalista, mas com assombro. Com este assombro, o teatro épico presta homenagem, de forma dura e pura, a uma prática socrática. É no individuo que se assombra que o interesse desperta; só nele se encontra o interesse em sua forma originária. No nosso trabalho em grupo, o uso do estranhamento e de cenas-modelo se tornam metodologia na abordagem dos textos. Encaramos os textos como modelo de ação2 e escolhemos muitas vezes nos aproximar de uma dramaturgia já consagrada como a de Büchner, Tchekhov e Brecht por sua potência como modelos fabulares, onde acreditamos poder experimentar os textos em jogos de aproximação e apropriação. O material textual é continuamente manejado para produzir proposições improvisacionais. A idéia é experimentar o texto de forma mais dinâmica e profunda, porque especialmente física. O trabalho com a fábula, encarado na perspectiva dos textos como modelos, deixa ainda mais potente a defesa brechtiana da autonomia entre todos que participam do processo criativo. Esta promoção da autonomia dá aos que integram o espetáculo a oportunidade de tornarem-se mais que fabuladores; transformam-se em produtores ao assumirem suas escolhas como matéria fabular, e determinar, ao contar a história, que elementos devem ou não integrar a narrativa. A encenação é uma opção dramatúrgica que, por sua vez, também é uma leitura da fábula. A idéia que perseguimos é a de que os elementos do teatro sejam desnaturalizados e refuncionalizados. O conceito de refuncionalização desenvolvido por Brecht ao longo de sua obra é central na discussão sobre forma e política porque toca diretamente nas possibilidades geradas pela técnica. Uma inovação técnica instaura uma modificação no próprio fazer artístico, alterando, fundamentalmente, a forma de produção e de recepção. Quando no teatro se opera uma inovação técnica, quando se instaura uma ruptura com uma convenção, se dá também uma ação política. No teatro - tomando aqui a estrutura dramática como uma convenção que se afirma no teatro ocidental há pelo menos duzentos anos - podemos entender como revolução formal e ato político, por exemplo, todas as tentativas de superação dos aspectos dramáticos. Por drama se entende prioritariamente ação imitativa, que supõe por sua vez uma certa sucessão de acontecimentos, encadeados pelas problemáticas vividas por seus personagens. Se não há mais drama,

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2 O conceito de modelo de ação (Handlungsmuster) implica em uma atitude diante do texto, em abordá-lo como um material poético sobre o qual uma ação se dará. É, junto do estranhamento, um instrumento metodológico para a abordagem das peças didáticas e compõe instrumentalmente a teoria e a prática da Pedagogia do Teatro (KOUDELA, 1991).


pelo menos não nessa acepção, também não há mais ação, nem muito menos personagem. O teatro, ao promover uma crítica à convenção dramática dentro dessa mesma estrutura, instaura novas formas de exposição e tratamento dos problemas sobre os quais se dedica que não recorrem às formas da representação ou às da imitação. O teatro hoje se serve, antes, de formas que se utilizam do próprio teatro para organizar processos instrutivos e daí operar politicamente. Com Benjamin (1994) a discussão em torno das tensões forma e conteúdo, tendência e qualidade artística, arte e política se aprofunda, porque parte do entendimento prévio de uma relação de interdependência e necessidade. Seus conceitos de experiência (Ehrfarung), vivência (Erlebnis) e vivência do choque (Schockerlebnis) surgidos do seu envolvimento com as obras de Baudelaire, Proust, Brecht, entre outros artistas, organiza a reflexão filosófica em estreita relação com o aprofundamento nos fenômenos estéticos. Para pensarmos sobre a função política do teatro hoje, Benjamin traz, antes de tudo, método. Para Benjamin (1994), a noção de experiência individual ou vivência (Erlebnis) substituiu, na sociedade moderna, a experiência coletiva e compartilhada (Erfahrung). A vivência do choque (Schockerlebnis) é uma espécie de choque perceptivo, fruto da tecnicização, do automatismo, da velocidade da vida moderna. A arte, para expressar e discutir essa nova percepção, cria princípios de trabalho como a collage, a montagem, a interrupção da ação. A montagem, aqui entendida como recurso estético, é um jogo para promover o choque entre elementos heterogêneos e por vezes contraditórios (RANCIÈRE, 2008). A montagem parte do princípio da descontinuidade. A modernidade, para Benjamin, pode ser resumida nos sintomas de sua urgência (LISSOVSKY, 2005), no interesse e na provocação da descontinuidade. Para Benjamin o tempo da descontinuidade encontra representação no exercício artístico do choque. O choque para Brecht é articulado em seu teatro através das diversas formas de interrupção da ação, que se organizam no teatro épico sob a prática do estranhamento. Através do estranhamento o procedimento da identificação com o personagem – seja do espectador, seja do ator – é interrompido, a fim de criar uma certa distância crítica. Com esta atitude estimulada pelo estranhamento, a obra (em si mesma, o que ela trata e onde ela se insere) ganha a possibilidade de ser observada reflexivamente, porque com assombro. As alternativas artísticas para o uso do choque perceptivo apontam caminhos políticos sobre o lugar da arte contemporânea

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e suas possibilidades de ação e criação. Hans-Thies Lehmann (2008) alerta também que o simples espelhamento ou reprodução do discurso político, criando uma situação ilustrativa e superficial entre teatro e ação política, não contribui em nada para efetivar uma ação política através da linguagem teatral. O urgente, e Benjamin (1994) já havia refletido bastante sobre essa questão, é promover uma alteração radical na forma de percepção do que é político. Buscar essa alteração já indica uma ação política. A compreensão do trabalho em teatro a partir dessa discussão tem nos feito rever os princípios e os procedimentos da prática teatral do grupo em que atuo como encenadora e dramaturgista, o Teatro Máquina3. O esforço concentrado para realizar uma primeira síntese, mesmo que provisória, dos nossos procedimentos de trabalho, é um passo importante para a revisão de nossa prática e para os futuros encaminhamentos de pesquisa e exploração da linguagem teatral. Entendemos aqui procedimentos como exercícios que oferecem caminhos de treinamento, organização e aprofundamento dos princípios estruturantes que nos dão base. Os princípios são abstrações formais de determinado pensamento em arte. Eles ganham corpo - no caso do teatro - através dos procedimentos e das estratégias de encenação, já que os princípios não podem operar sozinhos. Acreditamos poder contribuir de forma operacional para a discussão das tensões entre forma e política em arte, apresentando, mesmo que brevemente, as possíveis relações entre princípios e procedimentos do nosso grupo. Em nossa prática podemos definir nossos princípios de trabalho em: - O corpo na cena é presença; - O teatro é um lugar para a revisão de si mesmo; - O trabalho em teatro inventa a sua realidade; - É preciso atingir o que ainda não pode ser alcançado. Esses princípios, assim isolados, podem dar alguma indicação estética para a leitura do nosso trabalho, mas precisam ser operacionalizados através de procedimentos técnicos que busquem atingi -los. Como princípios norteiam nossa criação, mas não a cristalizam. É preciso ficar claro que cada novo processo criativo abre a possibilidade de revisão dos princípios e do surgimento de novos.

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3 Teatro Máquina é um grupo de teatro de Fortaleza (CE) que tem na linguagem teatral sua principal tarefa investigativa, com base nas dimensões da pesquisa e do processo colaborativo. Possibilidades narrativas, aspectos épicos e diferentes modelos de composição gestual e vocal são desenvolvidos a cada novo trabalho. Na nossa criação buscamos nos orientar por princípios formais de composição que encontram especialmente na exploração do gesto, em sua construção, definição e decupagem, e na noção expandida de narração, como contraponto aos elementos dramáticos, os principais focos de investigação. Em nossa trajetória se destacam os espetáculos “Quanto Custa o Ferro?” (2003), “Leonce e Lena” (2005/2012), “O Cantil” (2008), “Répéter” (2009), “João Botão” (2010) e “Ivanov”(2011).


Trazemos aqui a descrição de um exercício que praticamos em oficinas e pequenos cursos como apresentação e demonstração de nossos procedimentos de trabalho. Tecnicamente é um exercício avançado que categorizamos, para fins didáticos, como treinamento improvisacional avançado. Para a sua prática plena, é necessário um treinamento prévio. Chama-se ‘Cena de família’. Seguem as etapas de realização, bem como a descrição da situação improvisacional: Exercício: “Cena de família” Situação: “O exemplo mais primitivo: uma cena de família. A mulher está amassando um travesseiro, para jogá-lo na filha; o pai esta abrindo a janela, para chamar a polícia. Nesse momento aparece na porta um estranho. Tableau, como se costumava dizer, no princípio do século. Ou seja: o estranho se depara com certas condições – travesseiro amarfanhado, janela aberta, móveis destruídos. Mas existe um olhar diante do qual mesmo as cenas mais habituais da vida de família apresentam um aspecto semelhante”. (Benjamin, 1994, p.81-82) Objetivos: - Descobrir uma condição, através do exame da situação; - Desfamiliarizar; - Decupar os gestos, a fim de chegar na sua transformação, negação e comentário; - Compreender que o gesto é criado de forma complexa, sua ênfase narrativa depende de sua base de composição artificial. Orientações: 1. Combinar os antecedentes em grupos de quatro pessoas (a mãe, a filha, o pai, o estranho). 2. Apresentar a situação dramatizada, sem narrador, com ou sem falas. 3. Apresentar uma segunda vez para que a audiência possa anotar os verbos de ação. 4. Apresentar novamente, seguindo a leitura dos verbos de ação ditos pela audiência. 5. Observar o quadro (tableau) formado pela entrada do estranho. 6. Analisar a transformação dos gestos e discuti-los.

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Esse exercício recria uma cena de família e explora a transformação do conjunto de gestos, que quando interrompidos revelam uma situação, a partir da chegada do estranho. Esta cena, simples e modelar, deixa às claras a função do estranho: desfamiliarizar. O estranho mostra àquela família como, mesmo em família, suas ações podem parecer estranhas. Mostrar é o primeiro passo, o seguinte é poder tratar criticamente da condição aberta ao exame. É importante frisar o caráter material dessa situação, o que justifica a definição de Benjamin (1994) como exemplo primitivo. Nessa situação, se expõe a vida diária, com indivíduos concretos. Há uma passagem no texto A nova técnica da arte de representar escrito por Brecht (2005, p.110) que descreve tecnicamente o estranhamento como efeito e reitera o que Benjamin (1994) descreve na cena de família: “Os acontecimentos e as pessoas do dia-a-dia, do ambiente imediato, possuem, para nós, um cunho de naturalidade, por nos serem habituais. Distanciá-los é torná-los extraordinários.” Os procedimentos de descrição, separação, repetição, permanência, auto-observação, controle e disciplina – bastante caros ao nosso trabalho em grupo – são materializados nesse exercício. Através dos exercícios, como procedimentos de aproximação concreta aos princípios que nos organizam como grupo, podemos entender o que fazemos. Assim nos colocamos criticamente diante da linguagem que produzimos, refletindo sobre nossa prática e sobre o teatro de grupo. O jogo com o texto e com os elementos épico-narrativos como a repetição e a fragmentação e a representação como um ato de mostrar, já experimentados com o Teatro Máquina em diversos processos criativos, apontam recursos metodológicos para a cena, a partir de procedimentos como a collage, a ambigüidade ator-figura, a construção corporal através da observação e da análise dos próprios gestos. Os textos são abordados para serem discutidos e experimentados como modelos para podermos efetuar uma revisão no teatro a partir de seus próprios elementos. Essa operação, a de poder realizar a partir de seus próprios elementos uma ação política, é que articula para o grupo a tarefa política do teatro: a de discutir-se a si mesmo como teatro. A estrutura aberta, epicizante, descontínua, fragmentada que aparece como marca em nossos trabalhos dão uma pista importante para o entendimento de que entre forma e conteúdo não há hierarquia, mas necessidade (Pareyson, 1997). Podemos pensar que o teatro é político quando permite realizar a partir de seus próprios elementos uma ação política, discu-

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tindo-se a si mesmo como teatro. Não é através de uma apropriação indevida do teatro como meio, seja terapêutico, seja social, seja pedagógico, ambos absolutamente doutrinários, que o teatro pode explorar contemporaneamente as tensões forma e política. Não é tratando abertamente de questões sociais que o teatro pode rever-se e redimensionar sua função, mas explorando a si mesmo como linguagem. Assumimos esse esforço à medida que resistimos em nosso cotidiano de grupo que pesquisa e experimenta.

Referências bibliográficas BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. 6ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994. BRECHT, B. Estudos sobre teatro. Trad. Fiama Pais Brandão, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. JAMESON, F. O método Brecht. Petrópolis: Vozes, 1999. KOUDELA, I. D. Brecht: um jogo de aprendizagem. São Paulo: Perspectiva, 1991. LEHMANN, H-T. A escritura política do texto teatral. São Paulo: Perspectiva, 2009. LISSOVSKY, M. A memória e as condições poéticas do acontecimento. In: GONDAR, J.; DODEBEI, V. (Org.) O que é memória social? Contracapa: Rio de Janeiro, 2005. PAREYSON, L. Os problemas da estética. São Paulo: Martins Fontes, 1997. RANCIÈRE, J. As desventuras do pensamento crítico. In: Crítica do Contemporâneo. Conferências internacionais. Política / Educação / Biologia. Porto: Fundação de Serralves, 2007. SZONDI, P. Teoria do drama moderno (1880-1950). São Paulo: Cosac&Naify, 2001.

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INDO AO TUTANO DE BRECHT POR TIAGO GERMANO Pedra fundamental da dramaturgia do Coletivo de Teatro Alfenim, Bertold Brecht (1898-1956), autor que perpassou pelos três outros espetáculos do grupo (Quebra-Quilos, de 2008; Milagre Brasileiro, de 2010; e Histórias de Sem Reis, também de 2010), é celebrado em O Deus da Fortuna, peça que parte das reflexões do fundador do teatro épico sobre o capital, este elemento que interessa também a Marx – o mesmo Marx que, nas palavras do próprio Brecht, era o seu espectador ideal. Os dois teóricos penetram até o tutano desta montagem que recorre à mitologia chinesa para dar subsídio a uma parábola sobre a luta de classes, a exploração do trabalho e a acumulação de riquezas. O Sr. Wang (Daniel Araújo) é um proprietário que arrenda suas terras para o plantio do arroz e vive do espólio dos lucros obtidos a partir da venda do produto e do trabalho das almas que possui. Ele tem como credor o agiota Cai Fu (Adriano Cabral), que por sua vez multiplica seus metais valendo-se da usura de empréstimos a devedores. Quando se vê endividado até o pescoço, o Sr. Wang precisa “empenhar a virtude” de sua filha (Lara Torrezan) para o agiota, que na verdade revela ser a forma humana de Zhao Gongming, divindade que figura nos templos orientais montado em um tigre e a quem os adoradores rendem ofertas na esperança de que um dia ele lhes traga a boa sorte. Ocorre que o Sr. Wang não acredita que o Deus da Fortuna vá um dia bater à sua porta, e considera a sua imagem austera um engodo, alvo de “rituais efeminados” e fruto da alienação do povo. O

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encontro entre os dois irá se dar quando a mão da jovem herdeira de Wang for ofertada ao filho de Cai Fu, momento no qual o senhor de terras, pressionado por uma rebelião dos seus arrendatários, será julgado por seus pecados e faltas. Os entreatos da peça são contrapontos ora cômicos ora filosóficos à ação que basicamente se sustenta nas relações de poder estabelecidas entre os personagens, seja o poder do capital, das terras ou mesmo da “virtude” do ser humano, negociada como uma mercadoria e sujeita às mesmas regras de compra, venda e crédito. A dupla de “chapinhas” (interpretados por Verônica Sousa e Paula Coelho) que tentam desatar os nós filosóficos da história por trás das tábuas de madeira que, durante as cenas, se adaptam em vários suportes, dividem os intervalos em que os atores trocam de roupa e modificam o cenário com a dupla de peregrinos (interpretados por Vítor Blam e Cecília Retamoza) que falam uma língua própria feita de sons desconexos que tentam se aproximar do sistema fonético chinês. A música, como em Milagre Brasileiro (que chegou a merecer indicação ao Prêmio Shell na categoria correspondente, em 2011), é executada ao vivo, e não é o único procedimento retomado pelo Alfenim de montagens anteriores: o trabalho com as máscaras (presente também em Milagre) está ali na cena de abertura e na cena em que Wang é atormentado pelos fantasmas dos seus mortos; o teatro de bonecos (idem) retorna na cena em que a filha mostra os dotes para o seu noivo; o figurino parece ser o elemento que ganhou maior esmero por parte do diretor Márcio Marciano e do coletivo: das vestimentas rudes de Quebra-Quilos e Milagre para os quimonos bem desenhados e con-

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feccionados em tecidos grossos. Após mudanças em seu núcleo duro, o Alfenim arejou seu elenco com novos atores como Cecília Retamoza, Vítor Blam – este uma grata surpresa revelada desde a estreia desta montagem em João Pessoa, na Casa de Cultura Cia. da Terra, em 2011; aquela, recém incorporada ao elenco principal da peça – e Lara Torrezan – que ainda parece desconfortável como uma das protagonistas. Os veteranos Daniel Araújo, Adriano Cabral, Paula Coelho e Verônica Sousa (que retornou ao grupo após um período de afastamento), seguem com o vigor e a coerência inspirada por Marciano, que se aprofunda cada vez mais no discurso brechtiano investindo em recursos audiovisuais que estabelecem um diálogo temporal entre sua obra e as etapas históricas do capitalismo.

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DUAS ENGRENAGENS DO MÁQUINA POR TIAGO GERMANO

JOÃO BOTÃO “O pequeno pode ser grande”, constatam os quatro prosaicos habitantes do reino de Pequeno, uma ilha imaginária enclavada no meio de um oceano frio e infinito a perder de vista. O pequeno é grande em João Botão, espetáculo infantil do Teatro Máquina que faz do lento quase estático, do repetitivo quase monótono, características que surpreendentemente dão progressão a uma montagem que nada tem de chata ou maçante. O Rei Reinaldo (Aline Silva) e seus súditos Sr. Gravatinha (Levy Mota), Sra. Hein (Ana Luiza Rios) e Max, o Maquinista (Edivaldo Batista), quase não saem de suas marcações durante toda a peça, compondo seus personagens a partir da manipulação de objetos que desenham no imaginário do espectador a função de cada um no vilarejo. O telefone real, sempre a tiracolo do monarca, é o símbolo maior de sua rotina burocrática e ordeira como o cotidiano de Pequeno, cronometrado pelo relógio de bolso do Sr. Gravatinha (o metódico ajudante de ordens do rei) e anotado na ponta do lápis na caderneta rosa da Sra. Hein (dona do mercadinho que abastece os moradores). A dileta Iva, a locomotiva, passa sempre pilotada por Max, um maquinista com ares de lobo do mar que vive pitando o seu inseparável cachimbo. São sujeitos de hábitos, os habitantes desta ilha que, um dia, recebem pelo correio uma encomenda misteriosa. O pacote os

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mobiliza em torno primeiro do seu destinatário, depois do seu conteúdo. A intromissão deste elemento – eles descobrem na caixa um bebê, logo batizado de João Botão por sua “cara de João” e por um botão que está preso em sua roupa (o botão é o objeto de João e o que também vai identificá-lo por seu tamanho e pela outra conotação da palavra: a de “broto” prestes a crescer, prestes a tomar o lugar dos outros cidadãos da reduzida Pequeno) – é o estopim de uma fábula sobre ordem e desordem, inclusão e exclusão, inércia e proatividade. Pequeno é um microcosmo social onde uma revolução está para acontecer pela ação de uma criança (representada na peça por um simples boneco) que, ludicamente, choca-se com o pragmatismo dos adultos. João é a anomia que vai mexer com os paradigmas estabelecidos, que vai, literalmente, “mexer com as peças” daquela sociedade que parecia imutável e encerrada em si mesma. Inspirada pela leitura de Jim Knopf e Lucas, o Maquinista (1960), de Michael Ende (1929-1995), Fran Teixeira oferece com esta curta e singela montagem um contraponto aos longos e super produzidos espetáculos que não dão espaço à reflexão com sua pirotecnia. Uma peça de mecânica fácil mas infalível, como uma locomotiva que diverte e fascina dando suas voltas sem sair dos trilhos.

LEONCE E LENA Coincidência ou não, Leonce e Lena é outra incursão do Teatro Máquina pelas páginas alemãs, desta vez pela comédia homônima em três atos de Georg Büchner (1813 - 1837), dramaturgo que precocemente ingressou no cânone germânico e deixou nesta peça em três atos seu trabalho de maior influência shakespeariana. A história de amor entre os dois príncipes prometidos ao casamento que fogem de seu destino para encontrá-lo mais tarde em uma floresta (onde se conhecem e decidem se casar como dois autômatos) foi completamente transposta pelo Máquina do século 19 para o século 21, estabelecendo um paralelo entre a existência individualista, tediosa e escapista dos jovens protagonistas do período romântico à não menos individualista, tediosa e escapista existência dos jovens protagonistas de nossa época. Estes jovens que usam tênis sneakers e se refugiam em lugares ermos para varar a madrugada em raves ao som da música eletrônica (executada com grande funcionalidade e, por que não di-

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zer, virtuosidade – na medida em que a manipulação de uma picape e de um iPad permite o emprego do adjetivo – pelos atores Levy Mota e Joel Monteiro) estão perfeitamente adequados aos personagens em crise com arranjos políticos que interferem em suas vidas pessoais dominadas pelo confronto entre seus ideais e a realidade à sua volta. O figurino vintage e o uso do plástico bolha, fetiche de uma geração que transforma tudo em passatempo, sugerem uma atenta pesquisa que serve à renovação visual de uma adaptação que, por outro lado, pouco modifica o texto original, mantendo o seu tom de sátira evidenciado desde a nomeação dos reinos: Popo, de onde vêm o rebelde Leonce (Márcio Medeiros) e o pândego Valério (Edivaldo Batista), e Pipi, de onde vêm Lena (Ana Luiza Rios), uma nefelibata que vaga acompanhada por sua ama (Loreta Dialla). Ridicularizado, o rei de Popo (Mota) é um absolutista vaidoso (há aqui uma sutil e não predominante referência a Hitler, em

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uma das cenas do primeiro ato) que massacra seus asseclas (as “abelhinhas” interpretadas por todo o resto do elenco) com seus abusos de ordem ao mesmo tempo em que é pateticamente manipulado pela criadagem, incompetente na execução dos seus mandatos. Esta caricatura vai se ampliar no terceiro ato, quando a cerimônia de casamento está a ponto de ser encenada sem a presença dos noivos, os atores espalham-se, misturando-se à plateia que é cada vez mais solicitada, culminando na sua franca participação quando os noivos, já como os autômatos criativamente compostos por cabeças de tecido e arranjos de plástico bolha, entram em cena e o público é convidado a sacar os convites do casamento que foram distribuídos junto com o programa do espetáculo. Cenas como esta mostram o crescimento do Máquina no decorrer dos atos, puxados sobretudo pela energia do ator Edivaldo Batista, que faz de Valério, na verdade uma escada para as aventuras amorosas de Leonce, o personagem central desta montagem de Leonce e Lena, engrandecendo o tom crítico deste trabalho: Valério é pária, um boêmio que considera o trabalho o pior dos crimes e cuja única ambição é se tornar ministro de um reino utópico onde o hedonismo substituirá a labuta com o suor do rosto. Não à toa, é ele que encerra a peça, com um discurso inflamado em que prega seus primeiros atos como ministro deste reino erigido a partir da união entre os dois príncipes, da qual ele é o grande pivô. Se o grande desafio de um grupo é imprimir um traço autoral em uma dramaturgia estruturalmente pesada como a de Georg Büchner, por exemplo, o Máquina, mais até que com Tchekhov (18601904) em Ivanov, apresentado em 2011 no Centro Cultural Piollin, conseguiu um ótimo resultado e pode se considerar no direito de partir, daqui, para empreitadas ainda mais ousadas.

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A ARAPUCA E O VOO CINQUENTENÁRIO DE FERNANDO TEIXEIRA POR TIAGO GERMANO Fernando Teixeira saudou meio século de atividade teatral com o monólogo Esparrela, no qual ele demonstra o vigor que lhe permite escrever, atuar e dirigir uma produção enxuta, que já circulou o Nordeste ocupando desde espaços consagrados, como o Teatro Santa Roza (que foi testemunha de boa parte desta história de 50 anos), até os mais modestos, nos recônditos de um Brasil que é o cenário desta singela crônica sobre um homem e sua mascote. Antropomorfizando um urubu (Arquimedes), narrador desta crônica desde o seu encontro com o adestrador Manoel, um homem em degredo que tem um passado marcado por uma tragédia, o ator mobiliza toda a técnica que dispensa outros recursos cênicos além de seu trabalho físico na composição dos dois personagens. Fernando Teixeira induz o espectador a um estranhamento inicial até fazê-lo compreender que está diante da ave capturada, submetendo o seu ponto de vista do episódio da captura e da relação a princípio temerosa que se estabelece entre o abutre e o seu dono no cativeiro. Aos poucos, da mesma maneira como o animal selvagem vai sendo privado de sua liberdade e se adaptando à nova rotina, o público

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também se molda àquele ponto de vista, acompanhando os dois em suas incursões pelas feiras públicas onde o urubu se apresenta, dançando em cima de uma lata. A música incidental inspira os movimentos do ator, que arrisca um balé desengonçado sempre que ela é ouvida, como a reação programada do bicho que foi condicionado a mexer suas patas e bater suas asas em cima da lata esquentada com brasas por Manuel. O sucesso da performance da dupla vai fortalecendo a amizade entre os dois: Arquimedes torna-se uma espécie de confidente, que ouve os desabafos de Manuel e, à sua maneira, conversa com ele. O passado do personagem, um ex-guerrilheiro perseguido, que teve a família dizimada e refugiou-se longe das zonas urbanas, começa a ser descortinado em uma cena comovente, na qual os companheiros passam pelas ruínas de um casebre e Manuel conta como

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encontrou sua esposa e sua criança como dois “carvõezinhos” depois de ter a casa incendiada pelos milicos. Notando a tristeza no semblante de seu amigo, Arquimedes tenta animá-lo com o seu número artístico. O vínculo emocional está firmado, agora, não apenas entre os protagonistas, mas entre eles e a plateia. Banhado, quase livre de seus instintos primitivos, Arquimedes e Manuel são agora um só. É quando um acidente ocorre e o urubu finalmente se vê confrontado também com a sua memória, que lhe traz a herança predatória e lhe expõe o dilema entre a sua humanidade conquistada e a sua verdadeira natureza. Metáfora da condição do indivíduo, dividido entre o confinamento imposto pela sociedade e a liberdade de seus ideais, Esparrela consegue, com uma linguagem própria e regional, falar de valores absolutos e universais.

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NELSON E O CARNAVAL PERNAMBUCANO POR TIAGO GERMANO Demorou pouco mais de uma semana para que a notícia chegasse: o Grupo Magiluth, que acabava de apresentar Viúva, porém honesta em João Pessoa, ganhara três troféus da Associação dos Produtores de Artes Cênicas de Pernambuco (Apecepe): melhor espetáculo de teatro, melhor diretor (Pedro Vilela) e melhor ator (Erivaldo Oliveira). Talvez a mais inventiva montagem da dramaturgia de Nelson Rodrigues (1912-1980) entre as que passaram pela Paraíba desde o centenário em 2012 (e foram muitas, a julgar pelas três que estiveram em cartaz nos sete meses do Projeto Teatro Piollin), Viúva, porém honesta rompe com o preconceito incutido pela crítica, pela academia e, em grande parte, pelo próprio Nelson, de que as intervenções de um diretor astuto em um texto pleno como o do cronista dos subúrbios não seriam desejáveis. Tudo menos uma montagem quadradinha de Nelson (se é que isso é possível), a versão do Magiluth está aí para provar que, quando se tratam de intervenções criativas como as de Pedro Vilela e seus atores criadores (que nos fazem compreender a razão de um termo tão cafona estar tão em voga no jargão teatral), sim, elas são muito bem vindas. Os jovens de Pernambuco acrescentaram o frescor e a euforia da experimentação ao debochado texto de seu conterrâneo, fazendo-lhe soar ainda mais ferino, ainda mais cafajeste. A folia que o grupo faz começa desde a apresentação dos personagens como em um programa de auditório, com direito a trilha sonora de show de calouros e coreografias de vedete. Nesta apre-

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sentação, cada personagem será dotado de características específicas que irão nortear os atores (que, ao longo da peça, irão interpretá-los alternadamente) na sua composição. Estas características vão de um sotaque afetado, como no caso da prostituta Madame Cri-Cri, a um cacoete com a língua, como no caso do Diabo da Fonseca. É assombrosa a desenvoltura com a qual o elenco transita por personagens tão diferentes e peculiares. Mais assombroso ainda como nenhum deixa a dever ao colega que “lhe passa o bastão”. A discrepância entre um ator e outro é mínima, de modo que a transição quase dá um tiro no pé exatamente por sua perfeição: ela é tão bem feita que quase não é notada pelo espectador. E até para esta diluição do efeito o Magiluth tem uma solução: mais de uma vez o ator “sai do personagem”, como a nos lembrar de que o que estamos vendo é uma peça de teatro. Ora é um que confessa que não sabe interpretar direito tal papel, e brinca com a sua partitura gestual, ora é outro que

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reclama por sempre ser escolhido para desempenhar um papel que o coloca em uma situação constrangedora. Dá gosto de ver o clima de entrosamento que certamente foi fundamental para o surgimento de brincadeiras típicas de bastidor que acabam se tornando bastante funcionais em cena, como a de jogar batatas no personagem que acaba de falar a palavra (uma gíria antiga, quase em desuso, bastante recorrente nas peças de Nelson Rodrigues). A carnavalização culmina com a bagunça que o grupo faz no palco: termina o espetáculo e ele está repleto de folhas de jornais, cadeiras espalhadas, pedaços desmembrados de bonecas, e os espectadores completamente envolvidos com a vibração dos seis rapazes. Ao crítico, resta a sensação de, no melhor estilo Dorothy Dalton, ter sido atropelado por eles.

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VENTOS DO TRÁGICO: PERCURSOS DA CIA TEATRO BALAGAN NA CRIAÇÃO DO ESPETÁCULO PROMETHEUS - A TRAGÉDIA DO FOGO TEXTO ESCRITO COLETIVAMENTE POR ANTONIO SALVADOR, GABRIELA ITOCAZZO, GUSTAVO XELLA, MARIA THAIS E NATACHA DIAS1 Os processos criativos têm um caráter pedagógico, pois permitem a formação continuada dos artistas envolvidos e, em uma segunda instância, por meio do espetáculo, a formação dos espectadores. É no espetáculo que se organiza e para onde convergem as vozes criadoras – da cenografia à atuação, da dramaturgia à iluminação, da produção à direção e ao público – que, juntas, geram a polifonia da cena.

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1 A Cia. Teatro Balagan existe desde 1999, em São Paulo. Reúne artistas em torno de uma prática teatral na experimentação.


Vento que venta não venta Mar que urra não urra Se atrás de mim não vem gente, oh meu Deus! Quem é que tanto me empurra? MÚSICA DO FOLCLORE SERGIPANO

Nós, da Cia Teatro Balagan, aprendemos esta canção ao final de uma circulação com o espetáculo Prometheus – a tragédia do fogo por seis estados brasileiros. Desde Belo Horizonte (MG), no inverno de 2012, até o verão de fevereiro de 2013, apresentamos o espetáculo e realizamos oficinas e encontros com grupos de teatro em cada lugar visitado. Em nossa caminhada, os espaços cada vez mais abertos e os ouvidos atentos, enquanto os olhos pareciam entender que, às vezes, é preciso repouso. E, sim, durante o percurso todo, ventava muito. Para um espetáculo que nasceu para a mobilidade, isso é tudo o que se deseja. No início, quando este espetáculo ainda não tinha um corpo (nem pés), uma das referências importantes que pesquisamos foi a Teogonia, de Hesíodo, cujo início se dá com a evocação do ser-nome das Musas. A seguir, o poeta nos conta que elas, as Musas, “têm grande e divino o monte Hélicon”, fazendo uso de um verbo, ékhousin, que significa ao mesmo tempo “ter-ocupar-habitar” e “ter-manter-suster”. Como as Deusas o têm por habitação, elas o mantêm na grandeza e sacralidade em que ele se mostra. É pela presença delas que ele, o monte Hélicon, se dá em sua presença imponente e sagrada. Descobríamos, então, que a presença da palavra numinosa do poeta, inspirado pelas Musas, é capaz de criar o espaço. No início, quando este espetáculo não tinha corpo (nem asas), fomos movidos por muitas perguntas: como fazer com que nossa palavra seja ato criador? Como encontrar aquilo que os gregos chamaram de mélpomai, ou seja, uma ação que significa, ao mesmo tempo, cantar e dançar, e que tem o poder de presentificar o mito? Desde as primeiras perguntas até agora se passaram quatro anos. Inicialmente, o nosso objeto principal de pesquisa era o trágico, e a matéria principal era o texto Prometeu Acorrentado, de És-

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quilo. Em 2008, a Companhia deteve-se por dois meses no universo da tragédia e no pensamento grego da antiguidade. Na ocasião, produziu um Estudo Cênico a partir da cena de encontro entre Prometeu e Coro de Oceaninas. Em 2009, a equipe de artistas voltou ao material, experimentado um ano antes. Com muitas faces a serem exploradas, as matérias do Estudo exigiam-nos um movimento interno e de pensamento muito grande; mantivemo-nos predispostos às alterações constantes de nossos pontos de vista. No percurso, observávamos que o mito de Prometeu, sobre o qual trata a tragédia, recusava-se a se enquadrar em um campo de perspectivas absolutas, nem mesmo se revelava de natureza única. Afinal, estávamos diante de ladrão, um herói, um bufão? Apenas parecia claro que estávamos diante de uma figura que transita junto a realidades e existências diferentes da sua; um ser que age contra os seus, inclusive. Depois de se colocar contra seus irmãos Titãs, lutou a favor de Zeus e ajudou a estabelecer uma nova ordem; a seguir voltou-se contra essa própria ordem, tomou partido dos mortais, ao lhes entregar o fogo roubado de Zeus. No abismo onde foi acorrentado, Prometeu não cumpriu simplesmente sua condenação, cumpriu seu próprio mito, seu destino. A nossa abordagem daquele mito exigia-nos a percepção de que, em nossa própria ação de compor, era necessário que reconhecêssemos as matérias e estruturas que exalavam do mito, do texto de Ésquilo, com suas formas, suas sonoridades, seu ritmo, sua gramática própria. Tendo, entre os integrantes do trabalho, o ator Jean-Pierre Kaletrianos (grego, músico e pesquisador da língua e da cultura grega arcaica), tivemos acesso ao texto da peça original, transliterado por ele. Depois de uma primeira versão do espetáculo, então nomeado Prometheus Nostos, em 2010, percebemos que ainda havia muito que se conhecer, muito a se desbravar para encontrar o espetáculo que vislumbrávamos. Voltamos às bases, às perguntas ainda não respondidas. Como abordar e por que abordar “um mito” numa composição teatral? Qual o modo de se constituir e pensar que dá a “essa memória” uma qualidade específica? Por que partir de um mito? Lévi-Strauss diz que o mito tem sua própria lógica e é, em si, uma forma de pensamento. Ele aborda os mesmos objetos que a filosofia, a ciência etc., utilizando-se do raciocínio, de reflexões, das mesmas questões, só que o faz através do sensível, é constituído de certa memória “inventada” que media, simbolicamente, a vida daqueles que

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participam dele. Diz ainda que o que chamamos mito inclui todas as versões que foram produzidas sobre ele. Ou seja, nos inclui. Um tempo mítico é um tempo em que tudo convive. Não se separam acontecimentos por aquilo que o antecede ou o que sucede, e não se chega a um único acontecimento. Prometeu não é o mito de um “herói” que rouba o fogo aos homens, Prometeu é um percurso, é um caminho, é uma séria de mudanças e acontecimentos diante, através e com outras figuras. É a ira que atraiçoa e engana Zeus, é a cautela previdente que condena o irmão imprudente, é a fúria e o desprezo humano acorrentado em Tífon e condenado nas garras daqueles que consomem seu fígado. É o esquecimento provedor de nossas tecnologias potentes e arrasadoras, é a pulsão de uma força de vida que irrompe a própria vida. Prometeu é um percurso, um testemunho da experiência humana, de um tempo. Nas versões ou partes desse mito, sobretudo na dramaturgia encontrada nas obras gregas, que estudamos então, era recorrente uma ideia de síntese em relação à figura de Prometeu: “um homem”, “uma ideia”, “um destino”, “um herói”, “uma vontade” – essas ideias, inclusive, dialogavam com a obra Poética, de Aristóteles, que desenha a figura de uma “força”, a hybris de um herói que move o mundo. Indo mais a fundo nos estudos, mesmo na obra de Platão, Protágoras, começamos a visualizar outra figura fundamental: o duplo de Prometeu – Epimeteu. Eis que nosso “não-querido-herói” fora revelado; ele não é um, é um duplo, é Prometeu – “aquele que vê antes” – e seu irmão, Epimeteu – “aquele que vê depois”. A descoberta do duplo veio iluminar uma escolha: quebrar com a noção de unidade, de percurso linear, de uma lógica de fatos, que o próprio mito de Prometeu (como tantos outros) guardara como essência. A partir do momento da escolha de contar esse mito, descobrindo e revelando as figuras que o permeiam, nasceram escolhas importantes para a construção da peça. Era preciso elaborar uma obra que não se baseasse na tradicional estrutura de início, meio e fim, rompendo com a “escola” aristotélica, fundada no diálogo que leva “a trama” para frente, para um ápice. Era preciso revelar o percurso do herói por meio das vozes de outras figuras, construir uma narrativa pela forma, pelo tempo, vibração e ritmo. Passamos a pensar em uma estrutura que acontecesse no espaço, rompendo com os limites da linearidade e da unicidade. Aquilo que é começo poderia ser um meio, poderia ser uma passagem, poderia

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se saber depois. O entendimento se constrói da forma como o conhecimento nos é transmitido. Era necessário trair a forma que nos levasse ao mesmo conhecimento linear de uma dramaturgia clássica. Por fim, rompemos com a premissa de um raciocínio que privilegiava a superação “do outro” (o outro de Prometeu). Para nós não era importante contar a história de Prometeu ou de Epimeteu, porque entendemos, por esse percurso, que não existe um sobre o outro. Se um prevalece, o outro some, logo, não existe. Da raiz sânscrita mu surgem duas palavras, μῦθος (mythos) e mudo, o que nos levou a especular que o mito narrado deveria guardar, em si, um silêncio intraduzível, capaz de atingir o ser humano universal. A nossa peça deveria ser como um rito silencioso, uma prece feita de palavras mudas e gestos invisíveis. Deveria poder acontecer em qualquer lugar, desde que ali soubéssemos consagrar o espaço, ao encontro dos curiosos espectadores. Por isso, abandonamos a primeira ideia dos muros moldáveis, que se dobravam e se refaziam, com estruturas largas que se impunham como limites sólidos no espaço. Preferimos as cortinas, que sabiam bem cortar os espaços sem bases fixas, que sabiam desaparecer, que respiram com a brisa e que são suficientemente finas para revelar as sombras das coisas que acontecem (e sempre acontecem) em seu avesso. Foi com essa estrutura que estreamos, em outubro de 2011, em São Paulo. Depois, voltamos para a estrada, até chegar a João Pessoa, no início de 2013, na sede do grupo Piollin. Ali, uma grande construção, entranhada no chão de terra, sustentada por cimento, grades e imensas pedras expostas. Tudo isso coberto por telhas e madeiras antigas. Aquilo que um dia foi um engenho, espaço de fabricação de rapadura e aguardente, preserva ainda, encoberta, uma grande fornalha. Vizinhos do zoológico da cidade, a noite guardava o silêncio dos bichos, e ouvíamos, vez em quando, o rugir do leão. Sentíamos como que resguardados pelo cheiro e pela umidade da terra, como se nossa peça fosse de fato acontecer na clareira de uma floresta, feito um ritual primitivo. Essas sensações foram mais fortes do que qualquer preocupação técnica, sabíamos que a acústica do lugar era boa, que o tamanho era mais do que suficiente, mas, de algum jeito, a caminhada até ali vinha nos ensinando a prestar atenção em qualidades mais sutis de cada espaço. Enquanto o público descia as escadas que levavam ao espaço, víamos passarem apenas os seus pés, pelas grades vazadas da janela.

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Ao abrir a cortina, os rostos. Olhares de novo curiosos. Um dos integrantes do grupo que nos acolhia, depois, diria que se sentiu, como espectador, conduzido para algo que ele sabia que não era uma experiência comum. Mas a sensação que tínhamos era a de que o público adentrava sem esforço em cada passagem da peça, como se tudo aquilo lhes fosse natural: o sabor da oralidade, o prazer da escuta, a dimensão de uma teatralidade que, provavelmente, ainda não foi sufocada pela realidade da vida cotidiana urbana. No último dia de apresentação em João Pessoa, inesperadamente, as luzes se apagaram no exato momento em que Epimeteu, rastejante, era atropelado pelo galope de Prometeu. Enquanto a cena que retratava o roubo do fogo começava no escuro, e os atores continuavam a cantar, alguém acendeu a luz do aparelho celular. Do outro lado, alguém fez o mesmo. E, pouco a pouco, mais e mais espectadores passaram a iluminar a cena com seus aparelhos, de modo que, até reacenderem as luzes do teatro, os contornos visíveis das figuras daquele mito só existiram pela ação do público. Completávamos noventa e oito apresentações. E, juntos, o grupo de atores e o público materializavam o invisível vôo da águia sobre o deserto, cumprindo seu rito, em memória dos deuses.

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UMA TRAGÉDIA EM QUADRANTES POR TIAGO GERMANO O mito em questão é outro, mas a sina do público, após assistir pela primeira vez a Prometheus – A Tragédia do Fogo, é semelhante à de Sísifo: tornar ao teatro e voltar ao começo, buscando a nova perspectiva que, em um primeiro olhar, a Cia Balagan escondeu de nós em uma encenação ardilosa, que divide o palco em quadrantes e nos convida a voltar ao espetáculo pelo menos quatro vezes, em todas as quatro, nos deparando com uma versão diferente da história. Pena que, em João Pessoa, só tenha sido possível vê-la três vezes. Faltará ao quebra-cabeças o último encaixe, a peça que quiçá oferecerá a centelha que iluminaria ainda mais o que compreendemos da abordagem que a diretora Maria Thais fez desta dramaturgia de Leonardo Moreira que costura as leituras que a saga prometeica obteve ao longo dos quase mil e quinhentos anos de cultura ocidental. Uma incompletude assumida pela concepção do espetáculo, que absorve exatamente esta impressão do mito que o abstracionismo preciso de Fernando Pessoa definiu como “um nada que é tudo”, um discurso que se faz discurso exatamente dos vazios, das lacunas que oferece. Razão pela qual aqueles quadrantes estão ocultos de cada “fatia” da plateia que assiste à peça: antes de “quebrar paredes”, a Balagan prefere erguê-las, e as cortinas, que tradicionalmente separam o ator do público, servem para reuní-los em uma das faces do mito, poupando-lhe ou distanciando-lhe da outra, que já está sendo oferecida a outro grupo.

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A imersão neste misterioso universo é feito ao som de grego arcaico, um “mantra” ancestral que aumenta este distanciamento e, paradoxalmente, nos traz mais para perto do mito fundador da humanidade, invocando, em uma língua que foge ao domínio da maioria, deuses esquecidos de um tempo precedente. Desta atmosfera, o elenco emerge como se ascendendo do barro – elemento que encontra correspondência também nas fábulas cristãs como insumo da vida, gênese do homem. O barro impinge a pele dos atores, é o que fica de mais aparente de um visagismo que acompanha o que, no cinema, se tem chamado de “desenho de produção”, feita aqui com um cuidado soberbo, vide a cadeira de rodas na qual se senta o ator Jean Pierre Kaletrianos (autor do projeto original da peça, que data dos anos 1990), adaptada em madeira talhada com capricho para não destoar, por exemplo, dos instrumentos artesanais manuseados em cena. A música é outro elemento importante da montagem para chegar a esta atmosfera ancestral: de caráter primitivista, a sonoridade de Gregory Slivar (premiada com o Shell, no ano passado) é retirada pelos seus intérpretes de artefatos percussivos que remontam à origem das manifestações artísticas, quando paus e pedras eram utilizados para a evocação mística. O principal instrumento, entretanto, é a voz: e o coro composto pelas variações de timbres dos homens e mulheres que se aglomeram em cena é o grande prodígio da direção musical.

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O LIRISMO DAS TRÊS MARIAS POR TIAGO GERMANO Um dos espetáculos que, heroicamente, conseguiu se manter em longa temporada em João Pessoa no ano passado, Anáguas marcou sua passagem pelo Projeto Teatro Piollin após uma bem sucedida trajetória nos palcos. Aclamada como a melhor peça segundo o júri popular da Mostra Nordeste do 19º Festival Nordestino de Guaramiranga (no Ceará) e convidada do 40º Festival Nacional de Teatro de Ponta Grossa (no Rio Grande do Sul), a montagem deu novo impulso à carreira das atrizes Margarida Santos, Mônica Macedo e Palmira Palhano após um feliz encontro com a dramaturgia de Lourdes Ramalho. O diretor José Maciel soube enxergar, neste texto composto por monólogos, uma triangulação que ele escolheu levar geometricamente para a cena, jogando com a perspectiva: enquanto convencionalmente o público está na frente ou nas bordas do palco, um espaço quadrado ou circular, aqui ele está na parte interna de uma figura imaginária de três lados, ou seja, no centro da ação dramática. Em cada um dos catetos, posicionam-se as irmãs Maria Exaurina (Mônica Macedo) e Maria Cândida (Palmira Palhano). Na hipotenusa, isolada como um velho patriarca na ponta de uma mesa, está a mãe Maria das Graças (Margarida dos Santos). Concebida para apresentações intimistas como as que ocorreram em sua primeira temporada, em 2011, no Teatro Lima Penante, o esquema cênico consegue se manter e até se fortalecer diante de grandes plateias como as que acompanharam o projeto. Elas foram recebidas por uma iluminação bruxuleante, com a luz das velas acesas em um pequeno corredor na entrada do teatro, e por uma cantiga en-

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toada pelas atrizes que nos transporta ao reduto de uma típica família que herdou a estrutura e os costumes de um passado aristocrata. A decadência deste passado faz parte de uma das camadas da narrativa que começa a se desenvolver a partir da “presença da ausência” do marido e do pai, que inspira as primeiras falas das personagens e as origens de um conflito que vai se cristalizando até trincar no golpe causado pela decisão de Maria das Graças de deserdar as duas filhas e deixar as posses da família aos outros filhos doentes (que são apenas citados). Há um forte lirismo na interpretação do coro formado pelas três atrizes das canções compostas por Angélica Lacerda, Marcos Fonseca e Misael Batista, que intercalam os embates entre as Marias: a abnegada Das Graças, a ambiciosa Exaurina e a desgarrada Cândida. As canções são como o laço sanguíneo que prende as três mulheres, como fica evidente na cena do banho, em que o figurino de Tainá Macedo é despido e elas se lavam em bacias com água e colônia. Todos os adereços são caprichosa e minuciosamente pensados para reforçar uma identidade interiorana: os álbuns de retratos, os cantis em que as atrizes bebem água, os terços que utilizam para fazer suas orações. O figurino (elemento que seria indisfarçável, dado o título da peça) alça outro patamar quando é “compartilhado” com a distribuição de véus de luto na cena de um velório. O truque contagia a ponto de, pouco depois, dezenas de cabeças estarem cobertas pelo pano de luto sem que ninguém solicite. Visualmente, é o momento mais plástico do espetáculo. Nascimento, vida e morte; pureza, pecado e castigo; ignorância, cultura e memória são algumas variantes que a Cia Oxente põe na equação que rege Anáguas, uma obra com muito mais do que três dimensões.

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A CERTIDÃO DO CABRA DA PESTE POR TIAGO GERMANO A caminhada que Joaquim (Edilson Alves), Das Dores (Madalena Accioly) e o Menino (Dadá Venceslau) fazem ao redor do cenário, no silencioso prólogo de Como Nasce Um Cabra da Peste, é o eterno retorno da dramaturgia nordestina a um tema que confere e, talvez mais infeliz que felizmente, conferirá atualidade e contundência ao espetáculo da Agitada Gang por muito mais tempo que os 16 anos em que a peça se encontra em cartaz. É o eterno retorno aos retirantes de Portinari, com a mulher a sustentar no topo da cabeça, com uma habilidade retesada, três nacos de rapadura e um pote d’água envolvido em uma muda de roupa. É o eterno retorno às “vidas secas” de Graciliano, os homens menos humanos que os animais e as crianças sem nome nem identidade. É o eterno retorno, enfim, a um Nordeste que, ainda que gerações posteriores a Mário Souto Maior, Altimar Pimentel ou Eliézer Rolim as deixem de ver, no palco, os filhos dos filhos dos “cabras da peste” as verão (como as têm visto) nos noticiários. Louvável que o verniz do cômico, tão facilmente dado a estereotipias, aqui não escamoteie questões densas como seca, fome, êxodo, emergindo de um folclore forjado por um povo que, se é antes de tudo um forte é porque sabe enfrentar as adversidades com um humor que, como o solo da região, é árido, erodido, sofrido, mas rico, fértil e precioso para os que dele se valem. E o trio em cena sabe se valer dele, a julgar pelo versátil Dadá Venceslau, o valente e resignado Menino que, cumprindo a sina de tantos, antes e depois dele, deixam(?) o magro seio materno e a

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imagem do abandono: os poucos pertences em um pano, amarrado em um toco de vara verde. Ou a futriqueira Dona Zefinha, uma matriarca sem filhos como as tantas vizinhas das nossas cidades que não passam tranca nas portas e se comunicam com as janelas abertas. E ainda a parteira Dona Jerusa, arauto das crendices e do sincretismo religioso dos apadrinhados do Padre Cícero benzidos no manto de capim-santo mas batizados no sangue do coração de Jesus. Edilson Alves mostra seu talento no gesto: Joaquim anda desconjuntado, um braço a segurar a mala e o outro pendendo de contrapeso do lado oposto do corpo, um olhar de sisudez e de esperança rude, como é também o esboçado por Madalena Accioly, uma Das Dores com a barriga “a lhe sair pela boca” enquanto mói o de comer com as pancadas no pilão.

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Partituras que se guiam pelos acordes do Quinteto da Paraíba, o pandeiro de Jackson, e os risos de um público que, seja pelo estranhamento, em Portugal, na África ou em um dos Brasis desse Brasil de tantos, seja pela profunda empatia das mãos das palmas de casa, que já sentiram a textura de outras palmas e o espinho do xique-xique, rendem a merecida vitalidade de um espetáculo divertido e colorido como um folheto de cordel.

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BAILANDO COM NELSON POR TIAGO GERMANO Em virtude da comemoração do centenário do dramaturgo, Nelson Rodrigues (1912- 1980) teve presença marcante nesta primeira edição do Projeto Teatro Piollin: da abertura da programação, com a encenação de A Serpente (1978), da companhia carioca Dezequilibrados; ao encerramento, com Dorotéia (1949), das baianas da Panacéia Delirante; passando por Viúva, Porém Honesta (1957), do grupo pernambucano Magiluth; as duas últimas, montagens classificadas no edital da Fundação Nacional de Artes (Funarte) “Nelson Brasil Rodrigues: 100 Anos do Anjo Pornográfico”. Os dois espetáculos nordestinos guardam uma semelhança curiosa e uma discrepância irônica: ambos se valem do rodízio de personagens entre os atores, sendo que um conta com um elenco inteiramente masculino, o outro com um elenco inteiramente feminino. Orientadas por Hebe Alves, diretora de larga experiência na obra rodriguiana, as atrizes da Panacéia Delirante protagonizam a “farsa irresponsável em três atos” que faz parte do “teatro desagradável” de Nelson, fase de sua carreira na qual a resposta pública conquistada com Vestido de Noiva (1943) minguou com peças vulgares ao gosto comum, como Álbum de Família (1943), Anjo Negro (1946) e Senhora dos Afogados (1947). No texto que se segue à tríade, esta “vulgaridade” estaria representada pelas aberrações sexuais que acometem as viúvas D. Flávia, Carmelita e Maura, afloradas após a chegada da personagem-título, uma prostituta que busca refúgio no parentesco das três senhoras que vivem em uma casa sem quartos, somente com salas, obliterando a privacidade de cada uma dormindo no chão, em um leito penitente. O palco vazio é a sala sem quartos onde as seis atrizes se revezam nos papéis das quatro, da adolescente Das Dores, filha de D. Flávia, e D. Assunta da Abadia, futura sogra que cede o filho (represen-

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tado apenas por um par de calçado) à jovem. A cultura flamenca, referência à dramaturgia de Federico García Lorca (1898-1936), outro autor que paira nos estudos de Hebe Alves na Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia (UFBA), se imiscui às cores do espetáculo a partir, principalmente, da dança, que cadencia a movimentação em cena. A dança, com seus passos firmes e compassados, é o que rege este balé em que cada uma das atrizes tem como par o personagem que lhe é cedido em ordem aparentemente aleatória. A transição dos personagens está marcada por um figurino funcionalmente concebido para tornar o processo compreensível ao público: Dorotéia traja um corpete vermelho que fica evidente ao cair do véu que caracteriza as viúvas, peça que faz parte de uma longa saia preta cujo corte, dependendo também das personagens, pode ou não insinuar as pernas vestidas com meias três quartos semitransparentes. Das Dores está, na maioria das vezes, envolta por um tule, a redoma permeável que fragilmente protege a menina da influência nefasta de sua mãe e de suas tias, que carregam “a náusea” como signo de sua repugnância pelo sexo masculino, cujos membros elas enxergam apenas parcialmente, pois são dotadas de uma espécie de cegueira em relação aos potenciais parceiros. Iluminação sutil, em tom rubro, ambienta esta versão textualmente fiel à obra de Nelson, que por outra coincidência fortuita estreou no mês de março, próximo ao Dia Internacional da Mulher, e trouxe o olhar feminino ao choque entre a atitude sexual e os tabus sociais nesta pequena saga de repressão e liberdade.

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CINCO VEZES MULHER: UMA ENCENAÇÃO DE DOROTÉIA, DE NELSON RODRIGUES POR HEBE ALVES1

Qualquer novidade em teatro tem de exigir do espectador uma lenta, progressiva acomodação visual e auditiva. O sujeito está vendo e ouvindo o que nunca viu e ouviu, o que desafia toda sua experiência e todo o seu raciocínio. Portanto, uma incompreensão inicial é obrigatória. E, de mais a mais, por que a obra de arte há de ser de uma transparência burríssima? Até um soneto parnasiano preserva um mínimo de mistério (Rodrigues, 2007: 359.). A encenação de Dorotéia ocorreu no âmbito do projeto intitulado “Da Negação do Amor - Um estudo da Anatomia Emocional das personagens da peça Dorotéia de Nelson Rodrigues”, realizado ao longo de

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1 Hebe Alves é Professora Adjunta e Diretora do Centro de Difusão Cultural da Universidade Federal do Sul da Bahia. Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA. Mestre (2001) e Doutora em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia (2008), com Doutorado-Sanduíche na Universidade de Nanterre - França. Bacharel em Direção Teatral. Tem recebido diversos prêmios, ao longo de sua carreira: Prêmio Braskem de Teatro Homenagem Especial em 2008, pelo conjunto da obra; Braskem de Teatro melhor espetáculo de Teatro em 2009, com o espetáculo Uma vez, nada mais; Special Prize for Innovation and creativity, no VIII International Student Theatre Festival em 2011, Minsk, Bielorússia, com o espetáculo Dorotéia. Tem experiência na área de Artes, com ênfase em Interpretação e Direção Teatrais.


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dois anos de orientação de bolsistas do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), com cinco estudantes do Bacharelado em Interpretação Teatral realizado na Escola de Teatro – UFBA. Para abrigar as atividades/ações do projeto foi criado o Núcleo de Estudos, Processos e Criação da Cena, projeto de extensão do Departamento de Fundamentos do Teatro da Escola, composto pelas estudantes: Camila Guilera, Jane Santa-Cruz, Lara Couto, Lílith Marques e Milena Flick. No texto, o autor problematiza aspectos da moralidade feminina, regras de boa conduta e necessidade de aprovação social impostos à mulher. Mudanças sociais como a lei do divórcio, diversificação de meios contraceptivos e o trabalho fora de casa, abalaram as estruturas do pensamento vigente sobre a postura feminina na sociedade atual. Entretanto, a mulher brasileira, em sua maioria, ainda é educada prioritariamente para o lar e sua sexualidade ainda constitui um tabu em muitos núcleos familiares. Embora se possa inferir do texto elementos que remetam a uma ancestralidade e a costumes perpetuados através dos tempos, não houve a intenção de uma abordagem estritamente histórica ou sociológica dos avanços feministas nas últimas décadas, mas sim, sempre sob o prisma artístico, a tentativa de uma aproximação com o feminino. Assim sendo, o que orienta o processo é o desejo de problematização de aspectos particulares do universo feminino presentes no texto que auxiliem na compreensão dos objetivos impressos na obra. Então, com uma proposta apoiada na ideia de que, no teatro, toda investigação parte do corpo do ator/atriz, de sua presença cênica, o foco do trabalho recaiu sobre as relações da mulher consigo mesma, confrontando personagens femininas de Dorotéia com as configurações atuais da mulher brasileira. Afinal, o teatro possibilita a retomada de temas universais para investigação de circunstâncias reveladoras dos modos e motivos que despertam grande interesse em períodos distintos da história da humanidade. Escrita em 1949, Dorotéia é a última peça do ‘Ciclo mítico’ de Nelson Rodrigues. Numa casa sombria, vivem as primas viúvas: Carmelita, Maura, D. Flávia e sua filha natimorta Maria das Dores. Fechadas em si mesmas, elas são mulheres secas, feias, que não se permitem o prazer carnal e que se policiam para nunca dormir, com medo de sonhar e, em sonho, cair em tentação. São mulheres que nunca viram um homem, pois se casam com maridos invisíveis e, na noite de núpcias, têm a ‘náusea’ do amor do ho-

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mem. Os maridos apodrecem e se decompõem diante delas. Na peça, Nelson esboça uma situação onde as personagens se enclausuram em uma casa sem quartos e sem janelas, em obstinada negação do amor. A palavra amor aparece aqui como sinônimo de vida. As primas D. Flávia, Carmelita e Maura, carregam consigo a maldição das mulheres da família. Em nome de um exacerbado senso de moralidade, estão privadas de viver plenamente suas núpcias, pois o sexo está diretamente associado à degradação moral feminina. No início da peça, elas vivenciam a ansiosa espera de realização de mais um ritual de noite nupcial, quando Dorotéia, que se apresenta vestida como as profissionais do amor do início do século passado, retorna a casa das primas em busca de abrigo, decidida a se regenerar. Nesse universo opressor, Maria das Dores, filha natimorta de D. Flávia, ansiosa, tem o seu primeiro encontro com o noivo invisível. Ela que, até então, estivera em um mundo à parte, sem se dar conta de que a aparente atmosfera de sonho não era mais que o cenário de um pesadelo, descobre o amor. Para impedi-la de interromper a tradição familiar, sua mãe lhe revela que nasceu morta, e que, portanto, ela não existe. Porém Das Dores não se detém diante da revelação, pois, uma vez tendo conhecido uma possibilidade de amor, resolve voltar ao útero materno para renascer, se fazer mulher e viver o amor.

Referências e Pressupostos O projeto, estruturado para dar suporte ao desenvolvimento das atividades de iniciação científica das bolsistas, foi desenvolvido ao longo de dois anos e teve sua primeira etapa dedicada à abordagem de questões introdutórias da metodologia de pesquisa e à realização de práticas cênicas. Um processo contínuo de investigação cênica teve início, constituído de estudos teórico-práticos, improvisações e análise do texto. Foram seminários, encontros, oficinas e debates realizados em teatros e auditórios. Para tratar de aspectos específicos da arte do ator, o estudo proposto dividiu-se em cinco vertentes principais, cabendo a cada atriz -pesquisadora a abordagem dos elementos de composição do espetáculo a partir desses enfoques. Durante este período, houve um constante trabalho de conexão entre os conteúdos específicos que compunham os estudos de metodologia de pesquisa e aqueles referentes ao conhecimento da arte teatral e a prática cênica.

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Assim, o Continuum de Reflexo de Susto, conceito desenvolvido por Stanley Keleman, que investiga a constituição da estrutura muscular do indivíduo a partir do enfrentamento de obstáculos ao seu desenvolvimento, ficou a cargo de uma das bolsistas. Uma segunda atriz-pesquisadora se encarregou do estudo do Gesto Psicológico, de Chékhov, que compreende a elaboração de uma estrutura corporal que reflita a dinâmica do comportamento da personagem vivida pelo ator através das “Ações Físicas”. Uma terceira abordagem tratou de averiguar aspectos do grotesco, do feio por intermédio das formulações teóricas de Victor Hugo em Do grotesco e do Sublime e Umberto Eco em História da Feiúra. O estudo dos quadros de Degas e Toulouse-Lautrec, desenvolvido pela quarta bolsista, forneceu as referências imagéticas para a construção de partituras corporais na composição das personagens e constituição de atmosfera cênica de austeridade, reclusão e libertinagem própria dos bordéis freqüentados por Dorotéia. Estes elementos convergiam para o estudo da obra de Nelson Rodrigues, por meio da apreciação de suas recorrências temáticas, textuais e categorias de personagens, como auxiliares na análise de texto e construção das personagens, a cargo da quinta bolsista. Nas etapas dedicadas aos estudos teóricos, o cronograma da pesquisa previa dois encontros semanais com duração de duas horas e meia. Esta carga horária foi ampliada para atender as exigências de produção de seminários, oficinas e, posteriormente, para realização da montagem teatral. Do ponto de vista do trabalho do ator, tratava-se de encontrar e apresentar procedimentos alternativos de construção do desempenho teatral através da abordagem corporal/emocional em conjunção com um criterioso trabalho de mesa2. O uso das imagens para elaboração da estrutura do caráter das personagens da peça e caracterização de atmosferas próprias de cada ambiente teve em Chékhov sua referência mais acentuada. Através dele foi introduzida a técnica de incorporação de imagens. Para ele, a memória tem um papel destacado no processo criativo do ator, pois imagens se imprimem e, por intermédio da imaginação, outras imagens, denominadas Imagens Criativas, que não fazem parte do repertório do ator, mas que acionam nele o estado criativo, são estimuladas por meio das sugestões contidas no texto e no processo como um todo (Chékhov, 2003: 26). A discussão sobre o grotesco forneceu o alicerce sobre o qual as personagens foram esboçadas. A percepção de tipos diferenciados de

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2 Esta expressão se refere às atividades de análise de texto que, no método utilizado, compreende ainda um detalhado estudo da obra do autor.


expressão do grotesco foi de grande importância na solução de alguns problemas de atuação, pois bastava que a atriz compreendesse a natureza de cada momento de conflito da personagem para que encontrasse um tom adequado às situações do texto. A utilização de obras de mestres da pintura é um recurso recorrente em meu trabalho de encenação. Nelas se pode observar a dinâmica de linhas e cores informando atmosferas, tensões e ritmos de situações, com economia e intensidade. Durante o processo de construção do desempenho, o contato com uma pintura ou desenho pode produzir mais insights que horas de discurso inflamado, com a vantagem de, por meio delas, o ator desenvolver uma elaboração própria do caráter ou cena estudada. Como se pode notar, cada fator da montagem é investigado em sua dimensão específica. Durante a fase explanatória, é feito o levantamento daquelas características que, combinadas com outras referências, contribuem para a composição cênica global. Vale notar que um diferente plano de trabalho foi elaborado para cada bolsista a partir das vertentes descritas acima. Durante o período de discussão teórica e experimentação prática, as informações sobre o andamento da pesquisa e construções das pesquisadoras eram compartilhadas com o grupo. A conclusão de cada etapa do estudo se dava com a elaboração de um relatório submetido à avaliação de examinadores externos ao projeto.

Com a palavra as atrizes-pesquisadoras Como se pode observar em trechos desses relatórios transcritos abaixo, este método buscava explorar e desenvolver nas atrizes uma capacidade de articulação dos conteúdos cujo resultado é um comportamento criativo autônomo. Milena Flick relata como se deu o contato com o assunto que lhe cabia desenvolver: A situação-limite em que vivem as mulheres da trama delineia-se pelo uso do grotesco, do patético e da farsa, para a qual lançamos o olhar de atrizes/pesquisadoras, num confronto histórico com o perfil da mulher brasileira do período em que o drama se desenrola. Para investigar as possibilidades de uso do grotesco em cena [...] realizei junto ao Núcleo de Estudos, Processos e Criação da Cena, um percurso investigativo que se desenvolveu a partir das seguintes etapas: Primeiro, as imagens: uma invasão anterior às letras, aos textos, às pesquisas escritas e idéias formuladas; imagens acompanhadas, criadas e recriadas; significadas e re-significadas pelo senso co-

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mum. Depois, as formulações confusas, escondidas, e desenvolvendo um diálogo inicial com o grotesco. Em seguida, um estudo mais abrangente, revisando e aprofundando o referencial teórico acerca do trabalho do ator, da obra de Nelson Rodrigues e também das possíveis metodologias de suporte para o desenvolvimento e a abordagem da pesquisa. No texto que se segue, Lara Couto discorre sobre suas descobertas a respeito de um dos tópicos do projeto, o qual lhe caberia estudar: O Estudo do Continuum do Reflexo de Susto é uma vertente da pesquisa realizada [...] que se debruça ainda sobre os conceitos e exercícios de atuação propostos por Michael Chékhov e sobre o grotesco [...]. Esses temas são investigados pelas demais orientandas do projeto; toda a pesquisa converge para a experimentação cênica através de estudos teóricos e laboratórios teatrais conduzidos pela orientadora. Através da sua metodologia, faz-se um recorte do estudo da Anatomia Emocional para analisar o comportamento do corpo feminino, em especial o das mulheres na obra de Nelson Rodrigues. Para esse fim, a peça Dorotéia foi escolhida como texto norteador. As personagens oferecem rico material de experimentação das Pranchas do Continuum do Reflexo de Susto, pois apresentam diferentes níveis de agressão à forma. A correlação existente entre a aparência física e o desequilíbrio emocional das personagens é apontada no texto, seja na descrição das personagens, seja no discurso apresentado nas falas. Para Camila Guilera, encarregada de organizar fluxo das imagens capturadas em sites e em livros especializados e articulá-las com elementos do ballet clássico e dança flamenca, o trabalho possibilitou a construção de uma via de abordagem corporal que lhe permitiu retomar o contato com a dança: A dança, em suas expressões mais formalizadas, treina dançarinos para a cópia e assimilação mimética de códigos corporais. Assim, o aprendizado de uma técnica perpassa um período longo de repetições e lapidação da forma, sempre na busca do corpo mais “puro”, da conquista de uma corporeidade semelhante aos modelos de cada escola. [...] esta pesquisa vai por outro caminho, direcionado à com-

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preensão de princípios e elementos de cada uma das linguagens utilizadas, pois a aproximação com ambas as técnicas [abordadas] foi sempre pautada pelo objetivo de apreender mecanismos corporais que pudessem servir à construção das personagens. Cada “estilo” foi associado ao universo imagético de um dos pintores citados: Toulouse-Lautrec, no seu retrato dos cabarés, do submundo da prostituição, do ambiente de boémia e vivência sexual intensa, se relaciona com a atitude feérica da dança flamenca, e a construção da personagem Dorotéia. Já as cenas líricas e delicadas de Degas, suas meninas em banho e aulas de dança, serviram de base para a construção da partitura da personagem Das Dores, em associação com as qualidades físicas do balé clássico. Restou à constituição corporal das castas viúvas (D. Flávia, Carmelita e Maura) o padrão de vigor da postura e de movimentos que resultam de um conflito muscular permanente – qualidades presentes na base do corpo da bailarina clássica e da “bailaora3” flamenca. Como atriz, ao associar ao texto de 1949 [...] elementos de escolas de dança, que remontam a séculos de tradição e representações imagéticas da mulher figurada no período impressionista e romântico, apresento a articulação de um discurso corporal multifacetado e polissêmico em diálogo com a realidade social, íntima e sutil da mulher contemporânea. Por meio do relatório de Lílith Marques, podemos observar o quanto as integrantes do núcleo de estudos estavam cientes das possibilidades de desdobramento oferecidas por cada plano de trabalho em desenvolvimento: O seminário As Faces de Nelson, evento aberto à comunidade acadêmica e ao público externo, ocorreu nas dependências do Teatro Martim Gonçalves da Escola de Teatro da UFBA no período de 09 de setembro a 01 de outubro de 2008, uma vez por semana. No evento, profissionais de outras áreas acadêmicas, bem como pesquisadores-encenadores que fazem parte do corpo docente da Escola de Teatro e outros profissionais ativos no mercado de trabalho teatral puderam expor, debater e aprofundar suas pesquisas e visões acerca do universo rodrigueano e suas inúmeras faces possíveis. O seminário reuniu oito palestrantes e foi documentado em áudio, depois

3 Dançarina de flamenco.

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transcrito pelo núcleo de estudos Processos e Criação da Cena do qual fazem parte as bolsistas desta pesquisa e a professora orientadora. O seminário teve, também, transmissão direta pela Rádio de Teatro da UFBA, através da colaboração preciosa de Gideon Rosa. Este seminário rendeu frutos ainda impalpáveis, mais que com certeza serão de grande valor no desenrolar da minha pesquisa. [...] Tabela de Apoio à Atriz: uma tabela elaborada [...] para possibilitar um conhecimento consciente das possibilidades de perfil nas personagens femininas da dramaturgia rodrigueana e apontar um caminho substancioso para a atriz na construção de sua personagem. Ainda é um projeto em andamento, que precisa de muitos afluentes de conhecimento para se fazer efetivo, mas que também tem apontado muitos caminhos dentro de outras áreas da minha pesquisa. Reproduzo aqui trechos de um dos primeiros relatórios da quinta bolsista, Jane Santa Cruz. Nesse período, ela expressa sua expectativa em relação ao processo de pesquisa em desenvolvimento: [...] o núcleo se dedicou à organização dos seminários para a comunidade, intitulados As Faces de Nelson, onde profissionais de diversas áreas palestraram sobre temas diversos que envolvem as obras e a vida do autor, e procedeu a transcrição das palestras proferidas nos seminários. Os seminários, que tiveram a duração de um mês e foram transmitidos pela Rádio – UFBA, me deram a oportunidade de continuar exercitando o campo da produção na organização dos eventos. Fui também mediadora e, no momento, estou na fase final da transcrição da palestra feita no dia 24 de outubro, protagonizada pelos professores Hebe Alves e Luiz Marfuz que falaram sobre: Diálogos Cênicos: A dramaturgia de Nelson e os desafios que ela representa, ou representaria, para o ator, de onde será extraído um texto escrito por mim e que será incluído ao material produzido pelas outras pesquisadoras. Os fragmentos de relatórios das bolsistas, apresentados acima, possibilitam a avaliação do engajamento das atrizes-pesquisadoras em uma proposta dedicada a torná-las aptas a executar, com precisão, uma partitura cênica composta de múltiplas conexões. O texto Dorotéia se constituiu na referência fundamental que

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tornou possível, além da aproximação com procedimentos e instrumentos próprios da metodologia de pesquisa, proceder a um extenso trabalho de análise de texto. Isto para capacitar as estudantes bolsistas a produzir novas facetas de personagens e situações por meio da exploração das possibilidades oferecidas pela obra, evitando a recorrência ao uso redutor do clichê. À definição do texto da montagem, seguiu-se a elaboração de uma concepção cênica para atender ao objetivo de garantir uma participação equilibrada de todas, quanto à dimensão e à extensão do papel de cada atriz, criando-se, dessa forma, condições efetivas de aproveitamento e avaliação das bolsistas envolvidas no processo. Estes foram fatores determinantes na definição do texto, além da identificação do elenco com a própria estrutura da proposta. Ao longo do processo, ocorreu o redimensionamento do trabalho. O que antes estava destinado à apreciação restrita ao laboratório cênico ganhou nova proporção e assumiu a feição de um espetáculo endereçado a um público mais amplo. Com esta decisão, surgiram novas indagações: como contextualizar a obra de modo a justificá-la defendida por um elenco tão jovem? Como tratar cenicamente, hoje, os símbolos utilizados pelo dramaturgo na apresentação do conflito? Numa prova de sua universalidade, estes símbolos, considerados uma ousadia na época de seu lançamento, se revelaram de uma inquietante atualidade.

Dorotéia, Adaptação A indagação sobre sentido e tom do discurso cênico pretendidos conduziu a uma seleção de procedimentos adequados à investigação e construção de novas circunstâncias da cena, com o objetivo de realizar uma composição harmônica e equilibrada. A primeira questão se encaminhava de acordo com os elementos centrais da pesquisa. Havíamos proposto uma construção teatral, na qual as atrizes, num gesto intencional de apropriação das sugestões cênicas contidas na obra, agiriam como contadoras de histórias, destacando motivações e estratégias das personagens na conquista de seus objetivos. O levantamento das características da obra de Nelson Rodrigues foi decisivo para aproximar as atrizes da força de suas personagens femininas. Através da referência da alucinação destas personagens, foi possível desdobrar vários aspectos (ou possibilidades de leitura), para a compre-

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ensão da forma obstinada com a qual elas traziam suas reminiscências. A convenção inventada pelo autor, para dar conta de sua narrativa, se mantivera atual, pois esclarecia e indicava caminhos na resolução de problemas levantados pela encenação. Em meio às tentativas de atualização dos elementos alegóricos contidos na peça, ficou patente que eles conservavam sua carga expressiva. Tratava-se, pois, de elaborar uma partitura do espetáculo de forma a oferecer ao público a apreciação do comportamento daquelas personagens, para que ele identificasse, em texto escrito em 1949, traços definidores de uma perspectiva de vida que se mantém, em nossos dias, em estreita convivência com a contemporaneidade. Uma das contribuições mais importantes para a definição da atmosfera do espetáculo resultou da investigação acerca da influência de outros autores na obra de Nelson. A situação de clausura daquelas mulheres remeteu à peça A casa de Bernarda Alba, de Federico Garcia Lorca. Com isto, incluímos o universo da dança flamenca. O raciocínio construído para encenação adquiriu novos contornos quando à situação de clausura se somou a força de um desejo incoercível, para usar uma das admiráveis expressões de Nelson, manifestado pelas bailaoras. Este dado foi tão significativo que inspirou a concepção do figurino com xales, grandes saias e sapatos apropriados à dança flamenca que explodia sobre o luto fechado das viúvas com grande força poética.

A Escrita Cênica de Dorotéia O estudo prolongado da obra de Nelson Rodrigues revela, além dos pensamentos encadeados de forma notável, a recorrência como um de seus procedimentos basilares: O meu processo é repetir. Arranquei de mim mesmo, a duras penas, uma meia dúzia de imagens. E, um dia sim, outro não, repito a metáfora da antevéspera. A televisão vive das reprises dos seus filmes, eu vivo das reprises das minhas imagens. (Rodrigues, 2007: 322). No texto original, em sua trajetória, uma característica marcante é ressaltada. O uso do tom farsesco confere à personagem uma aparência caricatural. Normalmente, em uma encenação os papéis são destinados a cada intérprete especificamente. Então, o público pode ver naquela atriz a representação do conflito que ela carrega ao longo da tra-

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ma. Na presente adaptação, os papéis são defendidos por todas as atrizes e a ação é construída a partir de procedimentos e recorrências observados na obra do autor, com a clara intenção de apontar o caráter excepcional das cenas apresentadas e enfocar a pressão de seus valores românticos, morais e religiosos sobre elas. As cinco passam pelas várias personagens da peça, com exceção daquela que é nitidamente apresentada como estranha ao núcleo familiar protagonista4. Desta forma, a atenção do espectador, inicialmente voltada para o desdobramento da trama a partir de uma configuração acomodada pela visão de determinada intérprete, se vê confrontada com sutis variações da personagem acrescentadas a cada novo gesto de coringagem5, a partir do qual é instigado a inventar, juntamente com o elenco, o quadro global composto pelos vários elementos do espetáculo. Além disso, o recurso utilizado seguiu a lógica de encontrar a coerência da ação dentro da própria obra do autor. Assim, está presente na adaptação o desfile de características de várias personagens rodrigueanas. A visão de uma precoce Dorotéia, aquela que se perdeu, desviando-se da norma familiar, pois “era garotinha e via os meninos”, e sobre quem pesa o julgamento social. Das Dores, em sua alucinação, tão terna com seu delicado noivo, fantasia um encontro romântico como tantas outras personagens da dramaturgia rodrigueana. Eusebiozinho, figuração do homem inacessível e belo, presente em vários de seus textos, dramáticos ou não: Edmundo, Bibelot, Maurício (Núpcias de Fogo), Carlos (Núpcias de Fogo), Paulo (Valsa N. 6.). Por outro lado, o estudo das telas de Degas e Toulouse-Lautrec convergiu para caracterização daquelas mulheres e buscaram identificar as forças que as oprimiam, de modo a apresentar uma visão crítica, através do grotesco, além de permitir um tratamento poético aos impulsos de evasão das personagens. Sussurros, gemidos e imprecações constituem uma partitura vocal que traduz a força da opressão dos costumes que sufocam anseios femininos. O silêncio de Das Dores, raras vezes quebrado, expressa a determinação da construção de uma trajetória baseada no princípio da autonomia. Ela sabe que o discurso do Outro, sustentado por sua mãe, tias, prima e futura sogra, não a define, não traduz seus desejos. Ela tampouco se reconhece no vestuário e no gestual das velhas mulheres. Tais elementos apoiaram a construção da narrativa e a montagem articulada da adaptação do texto Dorotéia, de Nelson Rodrigues.

4 D. Assunta da Abadia chega à casa da viúva levando o filho, Eusebiozinho, para que se dê o enlace matrimonial entre ele e Das Dores. 5 Procedimento inspirado no recurso inventado por Auguso Boal em 1967, que consiste num jogo de atuação no qual uma mesma personagem pode ser interpretada por certo número de atores, segundo interesses e objetivos proposto para a montagem.

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Partitura de Ações e Qualidades Num gesto largamente assimilado por aqueles que se dedicam à produção do objeto artístico, as leis da composição artística são tomadas em sua totalidade ou subvertidas em alguns de seus aspectos no ato de trabalhar a matéria sobre a qual se construirá uma nova obra. O trabalho de montagem teatral se desenvolve a partir de sucessivas aproximações afetivas e recuos analíticos, para que se avalie a pertinência da construção cênica, em vista do objetivo pretendido, qual seja, a efetivação do fenômeno por meio da comunhão com o público. Distância é o compromisso com a significação total; presença é o compromisso total com o momento vivo; as duas caminham juntas. Por isso, o ecletismo absoluto nos exercícios durante os ensaios — para desenvolver o ritmo, a capacidade de escutar, o tempo, o tom, o pensamento de equipe e a consciência crítica — é muito valioso, desde que nenhum dos exercícios seja considerado um método. O que podem fazer é aumentar a percepção do ator em relação às questões da peça. Se o ator senti-las verdadeiramente como suas, terá uma necessidade inevitável de compartilhá-las — necessidade de público. Desta necessidade, de um vínculo com um público origina-se outra necessidade, igualmente forte, de absoluta clareza. É esta necessidade que finalmente produz os meios. É ela que forja um vínculo vivo com a matriz do poeta, que é, por sua vez, o vínculo com o tema original (Brook, 1994: 96-7). O fato é que o corpo e a voz do ator são os principais recursos de que ele dispõe para concretizar sua criação artística. É através deles que se comunica a síntese formada pela sugestão do autor, aliada à visão do diretor, por sua própria concepção da personagem, e pelos demais membros da equipe do espetáculo, responsáveis pelos demais aspectos da montagem. Com este procedimento de avaliação técnico-artística, também verifica-se o grau de apetência dos estudantes para exercícios e técnicas corporais e vocais, para laboratórios, improvisações e estudos teóricos necessários ao processo. A definição de um padrão de treinamento segue em direção à afirmação de uma visão particular de mundo. Sua expressão de modo artístico teatral se constitui numa declaração de princípios ao qual se filia o artista.

Considerações finais Num espetáculo teatral, arte do coletivo por excelência, o que

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se vê no palco é resultado do trabalho de uma equipe. Entretanto, quanto mais um de seus membros se empenhe na solução de problemas específicos da encenação, a verificação de seu êxito se dará na exata medida de sua capacidade de produzir algo notável e estabelecer uma conexão tão fina com o resultado cênico final alcançado que ele quase tornase invisível. Portanto, conseguir esta invisibilidade exige um singular domínio técnico do artista. Por isto, assim como em uma pintura se imprime a sua história como expressão artística, também a cena traz consigo o peso da referência de experiências artísticas anteriores, assimiladas. O elemento balizador de sua qualidade é o espetáculo, resultante desse trabalho comum acima citado. Num processo como o que aqui se apresenta, o ator assimila uma dinâmica de atuação cênica através da apropriação de conceitos e princípios intrínsecos ao fazer teatral por intermédio da realização de peças teatrais. Nelas, seqüências textuais ou cênicas, constituídas de uma sucessão de instantâneos, são articuladas resultando na elaboração do espetáculo como um todo. É quando o conhecimento implícito cede lugar ao explícito e eles descobrem que o achado é, também, uma construção. Portanto, a abordagem sensorial, “sensualista” é, também, de grande importância nesse processo, pois que há também sentidos que se formam a partir da experiência sensorial, de sua expressão e comunicação entre os atores e o público, razão primeira de nossas intenções. Sem o qual o fenômeno teatral não acontece. É nas relações de contraste e harmonia, de texturas e volumes, cores, sons e pensamento, gesto e sentimento, que se forma o espetáculo, no qual se elabora a possibilidade de comunhão com o público. Assim, abordagem intelectual e sensorial são os dois lados da “moeda” teatral, as trilhas que dão acesso à cidadela na qual se vislumbrará, espera-se, a imagem de um tempo, refletida no semblante da platéia. Como se sabe, teatro é arte coletiva, onde cada integrante do grupo é responsável pela execução do projeto artístico. De modo que em toda montagem é formada uma equipe mínima para sua concretização. Esta equipe se constitui de indivíduos responsáveis por distintos aspectos da montagem, subdividindo-se em dois grupos: os que respondem pela parte artística e aqueles cuja tarefa é cuidar da parte administrativa da proposta com vistas à sua viabilização. A ficha técnica do espetáculo foi composta da seguinte maneira: Direção/Adaptação de texto, Hebe Alves; Diretor Assistente, Lucas

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Modesto; no elenco, Camila Guilera, Jane Santa-Cruz, Lara Couto, Lílith Marques e Milena Flick; Figurino/Maquiagem, Agamenon de Abreu; Assistência de Figurino/Costuras, Irá Moitinho; Cenário, Agamenon de Abreu/ Hebe Alves; Iluminação, Fernanda Paquelet; Trilha Sonora, Hebe Alves/Luciano Bahia; Programação Visual, Lucas Modesto; Operação de som, Lucas Modesto; Operação de luz, Fred Alvim; Produção Executiva, Elaine Pinho e Clarissa Bartilotti e Assistência de produção, Joedson Silva. Assim é que pesquisa no teatro, de uma maneira geral, tem como objeto os elementos que o estruturam, articulados em torno da tríplice conexão necessária à produção do fenômeno teatral, qualquer que seja o tempo ou espaço em que ele se dê. Neste aspecto, a adequação de um ambiente às necessidades operacionais do projeto, frequentemente, é substituída pela adequação das necessidades do projeto às condições presentes no ambiente no qual se desenvolve. Em todo caso, a grande tarefa é garantir o entrelaçamento das abordagens teóricas e práticas específicas, de modo a oferecer um campo propício à realização de projetos que abriguem as atividades de pesquisa, ensino e produção de conhecimento teatral através da prática cênica.

Referências bibliográficas ARNOLD, Matthias. Henri de Toulouse-Lautrec - O teatro da vida. Taschen: Köln, 2001. BOAL, Augusto. 200 exercícios e jogos para o ator e o não-ator com vontade de dizer algo através do teatro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. BROOK, Peter. Ponto de Mudança: quarenta anos de experiências teatrais: 1946-1987. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1944. CHÉKHOV, Michael. Para o Ator. São Paulo: Martins Fontes, 2003. FERNANDES, Sílvia & MEICHES, Mauro. Sobre o trabalho do Ator. São Paulo: Perspectiva, 1988. GARCIA LORCA, Federico. A casa de Bernarda Alba. São Paulo: Imprensa Oficial, 2000. KELEMAN, Stanley. Anatomia Emocional: a estrutura da experiência. São Paulo: Summus, 1992. RODRIGUES, Nelson. Núpcias de Fogo. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. _______. O óbvio e ululante: as primeiras confissões. Rio de Janeiro: Agir, 2007. _______. Teatro completo, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. VALSECCHI, Marco. Galeria delta da pintura Universal. Rio de Janeiro: Delta, 1972.

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FICHA TÉCNICA DO PROJETO Curadoria: Nanego Lira Consultoria de projeto: Buda Lira Produção Executiva: Cristhine Lucena e Nanego Lira Assistente de produção: Suzy Lopes Administração do teatro: Marcelina Moraes Assessoria de Comunicação: Calina Bispo Críticos convidados: Astier Basílio e Thiago Germano Editoria e Organização dos Textos: Ana Luisa Camino Designer gráfico (Site e Livro): João Faissal / Imaginária Montagem do site: Giseudo Oliveira Registro fotográfico: Andréa Gisele Iluminador: Eloy Pessoa Equipe de montagem de luz: Erivanilson Lima e Yalys Lira Serviços Gerais: Sonia Maria Lima Bilheteria: Naylane Cavalcante

www.piollingrupodeteatro.com/projetoteatropiollin/

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