Revista Piriah

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Carlos Enrique Ruiz Ferreira é Professor Doutor de Relações Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba. Bolsista de pós doutorado da FAPESP/Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. cruiz@usp.br 1 Originalmente publicado na Revista Lugar Comum, UFRJ, n. 30, 2010.




2 Por mais que isso, num determinado período histórico, fosse revolucionário e anti-conservador... agora já não é.


Governador Ricardo Vieira Coutinho Vice Governador Ana Ligia Costa Feliciano Secretário de Estado da Cultura da Paraíba Lau Siqueira Secretária Executiva de Estado da Cultura da Paraíba Fernanda Norat Conselho Editorial Caroline Oliveira, João Faissal, Lau Siqueira, Mariah Benaglia, Mirnah Leite, Raquel Stanick e Thais Gualberto. Jornalistas Responsáveis Caroline Oliveira DRT 0003624/PB Gregório Medeiros DRT 0003669/PB Secretaria de Estado da Cultura CNPJ: 05.830.824/0001-02 Espaço Cultural José Lins do Rêgo Rua Abdias Gomes de Almeida, 800, Rampa 3. Tambauzinho, João Pessoa/PB - CEP: 58042-100 Telefones: (83) 3218-4167 / (83) 3218-4170

Periodicidade: Semestral

ISSN: 2448-0711

AUTORES&ARTISTAS: CARLOS HENRIQUE RUIZ FERREIRA, AMÉRICO GOMES FILHO, AMANDA VITAL, NATHAN CIRINO, MELINA BONFIM, CANDICE DIDONET, HÊVILLA COSTA, ARTHUR MARQUES DE ALMEIDA NETO, KLEIDE TEIXEIRA, SAULO DANNYLCK, ADERALDO LUCIANO, IGOR TADEU, GABRIEL MOURA, GREGÓRIO MEDEIROS, REBECA OLIVEIRA SOUSA, JOANA BELARMINO, EBER FREITAS, LARISSA UCHÔA DANTAS, LUCAS ED. GUIMARÃES, THIAGO TRAPO E JOÃO CASSIANO. PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO DE JOÃO FAISSAL/IMAGINÁRIA. REVISÃO DE CRISTINA LIMA. CONTATO POR PIRIAH.REVISTA@GMAIL.COM

ARTE DA CAPA

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João Cassiano, conhecido também como Cassicobra, trabalha com artes desde o fim dos anos 1990. Nomeando o seu trabalho de artes visuais como “Arte Vagal”, o artista produz desenhos, pinturas, adesivos e lambes influenciados pela arte primitiva, pela arte pop das animações, videogames e histórias em quadrinhos e pela arte urbana. feioesujo@gmail.com


CAMINHANDO... A revista Piriah não chegou disputando espaço. Já nasceu com uma identidade e um lugar determinado. É uma ação do Governo da Paraíba através da Secretaria de Estado da Cultura. As pautas hegemônicas serão sempre arte e cultura. Uma força ainda estranha que precisa se mostrar e, sobretudo, desenhar seus próprios caminhos. Desejamos uma arena de provocações estéticas e filosóficas e não um mero canal de marketing institucional. Nas comunidades ciganas de Sousa, descobrimos que piriah significa “caminhando”, no dialeto Calon. Queremos o refinado pensamento paraibano navegando por aqui. A leveza de caminhar nas margens, no centro e no fundo deste terreiro oceânico. Os estranhamentos da existência. A interpenetração dos contrários. A arte e suas transgressões. As sutilezas da diversidade humana. O aprendizado da gestão. Os movimentos sociais da cultura. “Tudo ao mesmo tempo agora. ” Estamos propondo um ‘olho no olho’ com a nossa responsabilidade histórica. Queremos fazer o debate a partir dos reflexos da produção artística e cultural do Estado. Desejamos que os caminhos da Paraíba se espalhem pelo mundo, que se bifurquem nos caminhos das mais densas reflexões sobre a cultura do século XXI. Tudo no lugar e no tempo que nos pertence. A Paraíba é uma terra de grandes pensadores. Uma terra de artistas fantásticos. Não por acaso elegemos Augusto dos Anjos como a personalidade paraibana do século XX. Temos uma certa vocação para o infinito. Este é o nosso primeiro passo. Na verdade, a revista representará as pegadas de uma memória seletiva. Seja ela passada, presente ou futura. Moldando o barro onde aprendemos a existir. Mesmo sem perceber, por distração ou disfarce, os percursos do trem da história engolindo as nossas distâncias.

Lau Siqueira Secretário de Estado da Cultura da Paraíba

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Texto

ARTHUR MARQUES DE ALMEIDA NETO


É

possível o encontro do erudito e do po-

que envolviam transe religioso fossem aceitas. Iss-

pular? Como se dá o encontro de cultu-

to aponta para uma condição social e política da

ras? É importante verificar a relação en-

cultura que perpassa o controle, onde apenas o que

tre cultura popular e erudita e as classes

obtém o crivo de instituições e/ou de uma classe so-

sociais: não há como desconsiderar ou

cial é permitido, ou afunda-se no campo da margi-

excluir essa relação. É preciso uma ati-

nalização. Esta condição da cultura no Brasil não é

tude, uma postura crítica para atentar ao conteúdo

diferente na atualidade.

dos discursos sobre essa dicotomia da cultura, esta-

Ficou-se entendido que as danças da cultura

belecida pelo abismo entre o que se deu como duas

popular se relacionam com “folclore”. Ainda, o

formas distintas: o erudito e o popular. É preciso

que vem da cultura proletária, mesmo no ano de

deslocar esses discursos - em todas as suas apresen-

2015, como as chamadas “danças urbanas”, não

tações, sejam eles imagéticos, falados ou escritos, e

são consideradas “danças populares”, pois há um

verificar a validade deles em outros ambientes.

traço corrente da dominação ainda em voga da

Mariana Monteiro, pesquisadora na área de

relação entre classes sociais. A dominação é um

dança e professora do departamento de artes cêni-

discurso de exclusão das diversidades, onde se in-

cas do Instituto de Artes da UNESP, propõe o en-

clui uma ideia de homogeneização, “limpeza”: um

contro do erudito com o popular, na perspectiva do

discurso onde as diferenças não são consideradas.

estudo do barroco, não apenas como um período

Esse discurso está na sociedade - diga-se: em nós.

histórico, mas como um pensamento que atravessa

Entretanto, ele “escapa”: não se contém apenas em

tempos e espaços. Os séculos XV e XVI marcam o

uma esfera virtual ou ideológica, pois aparece no

domínio do barroco no Brasil. As danças da corte

corpo dócil (no sentido proposto por Foucault), e é

não se constituíram na corte, mas “beberam” das

possível percebê-la e mais fácil de lutar contra ela

danças do povo. Algumas danças eram aceitas ou

quando a conhecemos. Lembre-se: no Brasil, pá-

não: e o fato de serem aceitas tinha a ver com a

tria paradoxal, a “independência” foi proclamada

sanção da igreja. A igreja não aceitava as danças

pelo Imperador. E a República, por um Marechal,

proibidas, chamadas de “divertimento desones-

da mais alta patente. Fomos educados, de partida,

to”, pois estavam relacionadas

na condição de corpo dócil: um corpo, embora mes-

com a dominação do igreja so-

tiço genética e culturalmente, é também um corpo

bre os corpos (uma dominação

dominado e colonizado.

Arthur Marques de Almeida Neto é bailarino, ator e Coreógrafo. Professor do Departamento de Artes Cênicas do Centro de Comunicação, Turismo e Artes da UFPB. Doutorando em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Mestre e Especialista em Dança pela UFBA e Licenciado em Dança pela Faculdade Angel Vianna (RJ). arthur_marques@yahoo. com.br

de ordem biopolítica, no sentido

Danças nomeadas “urbanas” são produções

proposto pelo filósofo francês

culturais dos “proletários”: como o funk, hip-hop,

Michel Foucault) que dançavam

entre outras tantas. Estas danças estão “no lim-

as danças de transe religioso,

bo”: não têm qualificação nem classificação. Como

como os batuques, os lundús e os

“proletário”, entende-se aquele pobre que foi morar

calundús, por exemplo.

na periferia dos centros urbanos e, como estão “no

Logo, a cultura popular sofria

limbo”, as produções culturais desse proletariado

uma perseguição religiosa. Levou

não são consideradas. Isto se evidencia em discur-

muito tempo até que a situação

sos que persistem ainda nos dias atuais, como: “O

mudasse, ou seja, que as danças

funk é de cultura de massa”; “O funk é de gente

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proletariada” ou, ainda, “o funk é resultado da glo-

redução metonímica para tratar de cultura é sempre

balização”. Com o progressivo desenvolvimento das

uma tentativa falha. Já a exotização é uma maneira

cidades, sua organização não se dá mais em função

de tornar “aceitável” aquilo que culturalmente está

do palácio. Ao invés disso, ela passa a se dar em

muito distante. É também uma estratégia para não

função do trabalho. Por este motivo, a cultura pro-

criminalizar, pois é necessário aceitar. Um processo

telária, que não é do povo que mora “no campo”,

exótico (ex - ótico: aquilo que está distante do olhar)

fica separada. As “danças urbanas” são exiladas do

tenta aproximar o que está distante, mas é um pro-

entendimento de “tradição”, seja ela uma tradição

cesso que acompanha a operação metonímica.

“palaciana” ou “do campo”. Mais uma vez, isto as

Assim, as danças populares eram romantizadas

põe “no limbo”. Entretanto, há que se entender que

e apreciadas como exóticas pelos cortesãos. E redu-

as danças que não são palacianas são populares.

zidas, metonimicamente, como “danças do povo”. No

A dança brasileira é tudo junto, independente do

processo de interação, as danças do palácio são

entendimento de tradição. Validar somente o que é

“contaminadas” pelas danças das festas populares.

tradição é não considerar o processo evolutivo da cul-

Ocorre uma posterior bifurcação: “danças popula-

tura, como se a mesma fosse algo estanque e não

res” e “danças cênicas”. Estas últimas se originam

sujeito a modificações.

quando são levadas dos salões palacianos para os

Os personagens das festas populares iam ao palácio “abrilhantar” as festas palacianas, como “corpos

palcos dos teatros, com a consequente profissionalização da dança.

estrangeiros”. Isto explica-se: é comum que aconte-

Atualmente, no Brasil e, sobretudo, no con-

çam processos ficcionais ou narrativas (romantização) sobre

texto paraibano, as academias de dança ou escolas

as culturas que não se conhece. Exemplo disso são

de classe média não podem reproduzir apenas as

os escritos dos primeiros padres e estrangeiros que

“danças do palácio”. Elas têm de se render às dan-

vieram ao Brasil: mostram o “estranhamento” que

ças populares como o hip-hop, o funk ou o axé. Entre-

eles tinham sobre a cultura dos índios, chamando-os

tanto, para alguns, estas danças ainda são como os

de selvagens. Outro exemplo é como as peculiari-

“divertimentos desonestos” do Brasil colonial: são

dades da cultura japonesa ou chinesa são diluídas,

“proibidas”, “não são cultura”, ou “são vulgares”,

como “cultura oriental”, numa operação metonímica,

dançadas por também “corpos vulgares”, distantes

admirada como exótica e romantizada.

da estética palaciana. Logo, dentro da cultura po-

A metonímia é uma figura de linguagem em que

pular, há uma “primeira” e uma “segunda” classe:

se elege um traço característico pelo todo. Na ope-

as danças de “tradição” e as “do limbo”, estas últi-

ração metonímica, há a redução de todo um sistema

mas consideradas como danças “vulgares”. Curio-

complexo como a cultura. E onde se mostram os

samente, o hip-hop parece ter ganho mais campo e

preconceitos, em frases como: “O baiano é pregui-

aceitação por conta da relação com a música ame-

çoso”, “o judeu é sovina” ou “o brasileiro é um povo

ricana e a indústria musical. É importante notar que a ideia de periferia (lu-

que podem ser feitas. Vale lembrar e entender que,

gar do proletariado) não serve mais para algumas

já na constituição do Brasil como nação e território,

sociedades, a exemplo de São Paulo ou Rio de Ja-

havia tribos que não tinham absolutamente nada

neiro, a partir do momento em que a periferia in-

em comum em termos culturais. Logo, qualquer

vadiu o centro e torna-se, também, uma medida de

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dançante”, entre tantos outros exemplos de reduções


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valor. As culturas que possuem as periferias dilata-

também postos em análise crítica. Não há como

das têm maior assimilação do alheio - o que não

tratar questões sobre a cultura sem considerar re-

indica, entretanto, que essas culturas sejam melho-

lações sociais e econômicas, principalmente, ao se

res ou piores. A cultura da periferia sofre pressão

tratar da dicotomia erudito X popular. É preciso

da convenção: as convenções sociais, como discursos de

atentar para as operações metonímicas que tentam “re-

“manutenção da ordem”, ou de “manutenção da

sumir” ou definir algumas culturas, com modelos

família”. Estas convenções lutam para ocupar espa-

estabelecidos a priori. Há a necessidade de se ava-

ços políticos: a luta pela conformidade expulsa o

liar todo o painel conceitual, pois as contamina-

outro, o diferente, para a manutenção da identida-

ções não se dão nem se esgotam em binaridades:

de. As pessoas que se acreditam representantes do

as ambivalências ou oposições parecem não fazer

“melhor” da sociedade tendem a tachar outras

muito sentido no mundo de hoje, pois a mesti-

pessoas/culturas (nordestinos, negros, pessoas

çagem se dá nas nervuras do cotidiano. E não é

com deficiências físicas, gays, entre outros) como

especificidade brasileira.

responsáveis por um “mal”. Faz parte da convenção assimilar as “estranhezas” dos outros e traduzí-las em si mesmas (exotização), quando não há como excluí-los. Entretanto, a mestiçagem ou as misturas ainda perduram, inclusive em ambientes onde pareça estar durando a convenção. As contaminações e os trânsitos de fluxo de informação sempre aconteceram; entretanto, na atualidade, estes trânsitos e fluxos são muito velozes. O alastramento múltiplo de contaminações faz parte do pensamento barroco, que atravessa tempos e espaços. Somos, de partida, colonizados e mestiços, misturados: barrocos. É preciso não cair na cilada do corpo colonizado, tratando de questões sobre a cultura e sobre o corpo com discursos que não sejam reféns da perspectiva colonizada. Afinal, qual a razão de se querer descobrir um “corpo brasileiro”? Essa busca denota um discurso purista e que a salvaguarda se encontra na tradição. A busca pela identidade é sempre problemática: melhor que isto, é buscar por processos identificatórios, ou, como diria Gilles Deleuze, entender a identidade como conjunções em estados de devir. Como se vê, muitas são as questões que implicam o entendimento de mistura ou mestiçagem cultural, onde hierarquias ou valores devem ser

Em questões de cultura, não há melhor ou pior, bom ou ruim: há culturas. É preciso frisar que, de encontro à idéia de mestiçagem, sempre existiram e vão existir dispositivos de poder que operam na constituição de processos identitários. Logo, é necessário ter em foco que a distinção entre o que é erudito e o que é popular é questão de cultura, definida historicamente e mais motivada por questões identitárias, políticas e de poder, do que propriamente de diferenças de fato existentes, pois as expressões da cultura de classes sociais sempre estiveram misturadas, trocando informações em fluxo. 11


DA

CIGA

12

ARAÍBA

PA


A

NOS

DA

Fotos destas páginas

SAULO DANNYLCK

Saullo Dannylck atua como fotógrafo documental e etnográfico e é graduando do curso de artes visuais. É diretor da produtora Azougue Filmes, ministra oficinas de formação audiovisual e participa da coordenação do Jabre - Laboratório para Jovens Roteiristas da Paraíba. flickr.com/photos/saullodannylck

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CIGANO


OS

Texto e fotos destas páginas

KLEIDE TEIXEIRA

NOSSOS 14

E eu nem sabia que havia ciganos na Paraíba, tampouco sabia que eles podiam ser Calon, Sinti ou Rom,;que, além do português, falassem o calon, sinti ou romani; que eram paraibanos e sertanejos, que podiam ser ricos ou pobres; que gostavam de dançar e de cantar;

Kleide Teixeira é fotógrafa. Formou-se em Artes Plásticas pela FAAP. Trabalhou para as revistas: PEGN, Istoé Dinheiro, Franchising. Colaborou para as revistas: Exame, Monet, AutoEsporte, Criativa, Globo Rural, Galileo. Foi coordenadora de fotografia da seção de revistas masculinas da Editora Globo. Na Paraíba, trabalhou para o Jornal da Paraíba, Secom-PB, Secult_PB e Semdh-PB. kleisteixeira@gmail.com


CIGANOS

que tinham uma relação íntima com o violão; que vestiam roupas coloridas nos dias de festa; que as mulheres punham muitos babados em suas saias; que se enfeitavam com pulseiras, brincos, colares; que usavam leques; que amarravam faixas nos cabelos; que os homens eram, igualmente, amigos da cor, que atavam lenços na cintura e que usavam 15


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camisas de cetim, que se orgulhavam de seus dentes de ouro, que eram exímios costureiros, que se sentavam no chão pra jogar cartas,;que pintavam as paredes de azul, verde, laranja, rosa choque; que rezavam, que benziam, que liam a sorte, o azar, que conheciam as ervas curativas, que faziam simpatias, que tinham fé, que cultuavam Santa Sara; que as suas crianças eram iguais a todas as outras do mundo, que as meninas exibiam orgulhosas seus vestidos cheios de brilho; que os adolescentes estudavam ou tentavam estudar; que os jovens reivindicavam cotas, que faziam selfies, que cruzavam os ranchos em suas motos; que toda comunidade se organizava em torno da família; eu não sabia que suas casas eram precárias, que algumas eram um amontoado de tecidos, carpetes ou tapetes sobre ripas de madeira; que nesse quadrado toda família adormece no chão; que existe muita gente doente e sem atendimento médico; que um homem está, há anos, com uma ferida que não cicatriza, que todos, ricos ou pobres, sofrem com desconfianças e preconceitos; que não existe coleta regular de lixo, que a conta de luz está exorbitantemente alta apesar do baixo consumo, que falta


urbanização e rede de esgoto nos ranchos; que muitos são analfabetos e que não dispõem de registro. Não sabia que havia ciganos no mundo que não fossem nômades, que vivessem em casas ou casebres ou barracos ou taperas ou tendas,; que fossem sedentários, mas que ainda assim preservassem algum hábito daqueles que vivem na estrada e, por isto, não é raro que se veja uma cozinha montada no meio do rancho: uma pequena fogueira, alguns tijolos e sobre eles uma panela cozinhando feijão, talvez arroz. Ao lado, sobre o chão de terra batida, uma caneca de alumínio com o café frio que alguém desistiu de tomar. Amarrado a uma árvore, ao lado dessa cozinha, avista-se um bode, outras tantas cabras; numa janela, um papagaio anda de um lado a outro repetindo o nome de alguém, um ultraleve sobrevoa o rancho, as galinhas se organizam em seus poleiros, um cachorro late insistentemente; ao longe, algumas pessoas louvam a palavra, dois jovens cantam “Escrito nas Estrelas”, um homem passa veloz montado no seu cavalo, espalhando poeira e lixo que, iluminados à contraluz, refletem o sol que já se perde e se despede na planura de Sousa. 17


PESSOAS COM DEFICIÊNCIA VISUAL: QUEM PAUTA A ACESSIBILIDADE À CULTURA? Texto

JOANA BELARMINO

O

Censo do IBGE re-

sociocultural, ainda se pode dizer que, em grande

alizado

2010,

medida, elas ocupam um lugar de “invisibilidade”,

apontou que quase

de alienação do usufruto de bens e serviços de toda

46 milhões de brasi-

ordem, sobretudo os bens e serviços culturais, infor-

leiros têm algum tipo

macionais, comunicacionais, cruciais nas sociedades

de deficiência, e, nes-

contemporâneas.

em

te universo, cerca de 23% são

Vivemos um paradoxo. O país possui um dos mais

pessoas com deficiência visual.

competentes conjuntos de leis com respeito às políticas

Na Paraíba, os índices são muito

de acessibilidade para as pessoas com deficiência, re-

maiores do que a média nacional,

forçadas desde 2007 pela Convenção da Organização

com cerca de 27% da população

das Nações Unidas, da qual o Brasil é um dos países

(800 mil pessoas) com deficiência

signatários. A conquista mais recente no plano legisla-

declarando ter dificuldade para

tivo é a sanção, pela presidente da República, da Lei

enxergar ou cegueira total.

Brasileira de Inclusão, conhecida como o Estatuto da

O objetivo desse artigo é pois

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Joana Berlamino é jornalista, mestra em Ciências Sociais, doutora em Comunicação e Semiótica, professora titular do curso de Jornalismo da UFPB. joanabelarmino00@gmail. com

Pessoa com Deficiência.

o de refletir sobre o tema da aces-

No entanto, o desconhecimento dos gestores pú-

sibilidade à cultura para esse seg-

blicos sobre políticas de acessibilidade, aliado à falta de

mento social.

fiscalização e ao precário cumprimento dessa legisla-

De fato, embora as pessoas

ção fazem com que nosso país acumule uma imensa

cegas tenham alcançado patama-

dívida social para com esses indivíduos, que não são vi-

res surpreendentes de desenvolvi-

sibilizados, percebidos, pensados em políticas de aces-

mento, os quais aumentaram em

sibilidade aos produtos audiovisuais, à acessibilidade

quantidade e qualidade a partir

na web, ao usufruto de todo o manancial histórico e

do advento da era tecnológica,

cultural nos acervos públicos de bibliotecas, museus e

do ponto de vista da sua inclusão

outras instituições.


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É verdade que algumas iniciativas no campo da acessibilidade começam a ser implementadas. A sociedade, de alguma maneira, está se mobilizando em torno do problema. Soluções pontuais e de excelência têm sido desenvolvidas. Não podemos, entretanto, desconhecer o fato de que há ainda um longo caminho a ser percorrido. Enquanto houver pessoas cegas militando pelo direito ao livro acessível, pela audiodescrição, pela acessibilidade ao transporte, aos museus, aos terminais bancários de autoatendimento; enquanto a acessibilidade não for uma ação sistemática, uma política consolidada, um implemento natural, como a água que jorra da torneira, não poderemos exercitar plenamente uma concepção de sociedade para todos, ou de cidadania plena.

isto, a sua materialização - depende dos gestores, produtores, agentes culturais, em diálogos com as pessoas cegas. Essa é, aliás, a primeira estratégia a ser incorporada em todas as políticas públicas de cultura. Os gestores precisam tomar ciência de que a cultura precisa ser acessível, já no princípio da sua cadeia produtiva. Além desse envolvimento dos gestores culturais, há que se mobilizar forças outras presentes na cultura, as quais podem ser importantes coadjuvantes nos projetos de gestão da acessibilidade. As organizações de pessoas com deficiência, ou mesmo estas pessoas, individualmente, precisam ser agentes ativos nesses processos. Suas ferramentas, a exemplo do Braille, das tecnologias informáticas, devem ser disponibilizadas como importantes interfaces para acesso à abundante informação desses bens e serviços, os quais devem estar acessíveis a esses indivíduos. Uma cultura acessível exige, assim, vontade política para sua implementação, além de processos sistemáticos de formação dos gestores, a fim de que se possa efetivar as inúmeras estratégias já existentes, as quais permitem níveis de acessibilidade à cultura, em todas as suas modalidades. Aqui apresentamos algumas dessas estratégias, que facilitam o acesso de pessoas com deficiência visual aos bens culturais: O relevo Braille e os mapas táteis Esse tipo de interface, desde que a pessoa cega tenha sido alfabetizada para a apreciação de mapas, pode funcionar como excelente ferramenta que lhe permita ter uma ideia prévia do ambiente que

De que maneira pode se convocar/incorporar

visita, como museus, exposições etc. Igualmente,

a cegueira e os seus coletivos nas produções artís-

desenhos em relevo, ou mesmo pequenas réplicas

tico-culturais, na acessibilidade aos museus e a

de objetos os quais ela não pode tocar podem

tantos outros bens e serviços da cultura contem-

funcionar como possibilidades de apreensão em

porânea? A resposta a esta questão - mais que

segunda mão daquilo que se está expondo.

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POR UMA CULTURA E UMA ARTE ACESSÍVEIS


Visitas guiadas, previamente

compreender a importância de tal ferramenta,

alimentadas pela internet:

mas implementá-la em todos os projetos públicos

Embora não haja números estatísticos oficiais, no

de acesso aos bens culturais.

Brasil, milhares de pessoas cegas encontram-se

As tecnologias são outras estratégias primo-

hoje conectadas à rede mundial de computadores.

rosas para se alcançar acessibilidade a todos es-

Utilizam-se das redes sociais, como twitter e facebook,

ses bens culturais. Os livros em formato digital,

criam grupos no whatsapp, usam o correio eletrôni-

assim como áudios-guia em museus e outros

co. Uma visita guiada a um museu, por exemplo,

ambientes culturais, podem ser distribuídos e

pode ser previamente alimentada pela web. Numa

ouvidos por pessoas cegas, através de smartpho-

página de internet, pode-se criar um ambiente

nes, tablets e outros dispositivos tecnológicos

acessível, em que os indivíduos cegos percorram

com acessibilidade.

antecipadamente o local, encontrem descrições de ambientes e suas produções audiovisuais. Quantas pessoas não fazem isso frequentemente ao redor do mundo? Esta é, aliás, uma tendência predominante em nossa época. Apenas um clique nos envia para lugares inimagináveis e saímos dessa imersão com uma gama muito variada de informações de um lugar onde dificilmente poderíamos ir ao vivo. ICONOFAGIA E CIDADANIA: CRIANDO ACESSIBILIDADE ÀS IMAGENS A sociedade contemporânea é iconofágica. Vivemos a era das imagens, que permeiam todos os conteúdos comunicativos e muitas vezes cons-

Lamentavelmente, o mais difícil tem sido destravar as burocracias governamentais, a inércia e o lucro exacerbado dos empresários, que em geral não pensam na acessibilidade, ou a colocam no fim da fila das prioridades, prestando assim um eterno desserviço à justiça social e à cidadania desses grupos sociais minoritários.

tituem-se em barreiras para a compreensão do mundo por uma pessoa cega.

Nos limites desse artigo, somente apresenta-

No cinema, na televisão, nos espetáculos pú-

mos em linhas gerais, dificuldades e soluções para

blicos de teatro, ópera e outros, a estratégia adota-

que a acessibilidade se converta de fato em polí-

da para prover pistas de compreensão dessa ava-

tica de governo. O acesso aos bens culturais, por

lanche de imagens é a audiodescrição.

todas as pessoas, independentemente da sua con-

Audiodescrição é a decodificação de imagens

dição social, e, no caso particular, independen-

e cenas que somente podem ser apreendidas pelo

temente do seu tipo de deficiência, é um projeto

sentido da visão, em pistas textuais ou verbais, as

que deve envolver todos os agentes, dos criado-

quais permitem o entendimento desses conteúdos

res aos gestores, dos distribuidores de conteúdos

por pessoas cegas.

a essa nova audiência que se constitui no âmago

Os agentes culturais precisam não somente

das sociedades tecnológicas.

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Américo Gomes Filho é artista visual e graduado em Artes Visuais pela UFPB. Trabalha com graffiti, vídeo-arte (animação) e ilustração. Integra o grupo DIA de ilustração e o Coletivo Graffiti Paraíba. flickr.com/meiacor


O CARRO PODE MORRER NO MORRO MAS EU NÃO EU NUNCA MORRO SÓ MORRO SE UM DIA VIRAR LINHA RETA

Amanda Vital é poeta, graduanda em Letras na UFPB e declamadora no grupo Aedos. amandavital@ live.com

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Texto

EBER FREITAS Eber Freitas é jornalista e editor do Livreiro Nômade www.livreironomade.com.br

Numa sombra de coqueiro qualquer, mulato Zé enrolava um pé de burro, desafian-

do a quentura e uma catinga braba de esgoto. Cara toda enrugada e mão de roçado, ele vivia na cidade desde a década de 70, mas é como dizem: o matuto sai do mato, mas o mato não sai do matuto. Foi viver como pescador na época em que quase não existia viv’alma na zona leste de João Pessoa. Depois da gentrificação, abriu uma loja de produtos sertanejos, botou três vezes o preço de cada pote de doce de leite, viu que os bacanas pagavam e fez a vida. Criou o costume de, forrado o bucho, puxar um fumo na orla. Não é muito de fazer amizade com clientes, mas ficou próximo de um nonno paulistano que se mudou para essas paragens depois de se aposentar. Lúcio Agostini é o nome dele, um ex-advogado setuagenário que cansou da metrópole e trouxe até a terceira geração da família. O motivo dessa amizade, segundo conhecidos e achegados, é a capacidade de discordarem em tudo. Em tempo de eleição não dá para deixar os dois sozinhos, capaz de se atracarem. Discutem até para decidir qual o melhor volante da segunda divisão do campeonato paraibano.

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– João Pé Duro coloca aquele teu amigo otário no bolso. – Deixa de ideia, Zé. Bicudo é só no desarme limpo, sem falta

E nesse leriado os dois se entendiam mais do que muitos amigos, casais, colegas de trabalho e irmãos por aí. Naquele começo de tarde, com uma bola incandescente torrando o juízo de que se aventurava pela rua, os dois se encontraram ali por acaso e, para variar, resolveram bater boca. – Já tá com esse cigarro seboso na boca, Zé. – Deixe de leseira, seu fresco. Acenda logo esse cigarrinho de filtro aí — disse, com uma caixa de fósforos na mão, mas sem oferecer. – Tentando parar — respondeu o outro, meneando a cabeça. – Depois de velho? – O médico mandou. Parece que eu tenho uma coisa no pulmão, semana que vem vou fazer os exames. – Tive um amigo que morreu de câncer no pulmão. Não foi bonito de ver. Ficou magro feito um cancão, sentiu dor até o último minuto. – Obrigado, me sinto melhor agora. – Capaz desse negócio nem ser do cigarro… fui em São Paulo uma vez, cada puxada de ar era uma dor nas ventas. – Nisso você não mente. De todo jeito, não quero chegar em casa fedendo a fumaça e ouvir a velha reclamar. O que um bronco feito tu foi fazer em São Paulo? – Pobre não pode viajar de avião para conhecer o MASP? – Tu não é pobre, é ignorante, e tá cagando pro MASP. – Minha filha mora em Santo André, animal… esqueceu? – Ah… – Quando tu começou a fumar, Lúcio?


– Segundo ou terceiro ano da faculdade, eu acho. Mas papai incensava a casa inteira, já estava acostumado. – Aprendi a enrolar meu cigarro com doze anos. O velho quem ensinou. – Bons tempos aqueles.

– Certas opiniões têm que ficar guardadas, Zé. Já pensasse se todo mundo saísse por aí dizendo o que acha ou deixa de achar dos outros? – Dos outros, eu não sei… mas quem tem o cetro merece ser esculhambado. Só quando penso no IPTU da lojinha que vou pagar mês que

– Mais ou menos. Foi mesmo na época do golpe militar, os cornos. – O melhor período do Brasil. – Teu rabo. Meu pai era amigo de João Pedro Teixeira, que morreu de emboscada porque era comunista. Hoje ninguém ensina isto na escola. Sujeito trabalhador, da paz, não saía por aí fazendo guerrilha. – Não foi em 1962 que ele morreu? – Tanto faz, o moído era o mesmo. – Tu sabe a bagunça que é em Cuba até hoje por causa desses vermelhos? – Nunca fui lá pra saber não.

vem, dá vontade de montar um palanque. – Tu chora, mas tem dinheiro. – E você é meu gerente pra saber? – Vender pote de cocada por cinco reais deixa qualquer um rico, seu sovina arrombado.

– Se a gente estivesse lá, nem poderia ter essa conversa, mulato. Deixa de birra. – E eu quero saber de Cuba, eu moro no Brasil. E aqui aquela raparigagem de governo militar não prestou pra nada. – Afastou o comunismo. – Quem eu ouvia falar muito dessas coisas de comunismo era um tal de Mocidade, um doido que arrumou apadrinhamento com João Agripino. De dia, fazia discurso revolucionário; de noite, dormia na casa do governador. – Comunista não tem coerência, diz que simpatiza com o trabalhador mas na verdade só quer uma vida boa. – O problema é dele. Eu só não achava certo o abuso de poder contra o cabra… capaz de ter contado todos os tijolos da delegacia só porque falava o que dava na telha.

– Homem, eu vim de São Paulo, eu conheço as peças do partido. Ainda sonham com uma revolução armada. – Se não acabarem com meu fumo nem com minha loja, não ligo. Em todo caso tenho uma garrucha debaixo do balcão. De todo jeito, é mais fácil tirarem tua mamata no Governo  —  disse, emendando uma gaitada. – Vai cagar no mato, Zé, que foi de lá que tu veio. Vou embora, senão morro antes do tempo nesse inferno de clima e fedor. – Vá simbora, seu frouxo. Vou ver se tem movimento na loja. – Até mais, corno. – Até lá, trouxa.

Mulato Zé respondeu ao gracejo com a eloquência do dedo médio. – Falando nesse negócio de ditadura, com esse governo comunista é o que a gente vai ter. – Tu já viu alguém tacar fogo na galinha de ouro, doido? Existe esse negócio mais não.

E cada um foi para seu lado, mais felizes do que antes.

25


DESAFIOS ATUAIS DA GESTÃO E DA POLÍTICA CULTURAL

Texto

REBECA OLIVEIRA SOUSA

Em se tratando de políticas culturais nacionais,

sociais, pincelou o que mais tarde pôde se perceber

partimos da eleição de Lula, e da nomeação do

delineado como uma efetiva participação da diver-

músico Gilberto Gil para o Ministério da Cul-

sidade nas preocupações das políticas culturais do

tura no ano de 2003, para compreender a mu-

governo petista iniciado em 2003.

dança na política cultural que vem sendo cons-

Certamente, o conceito de cultura é amplo e

truída até então, elencando os desafios atuais da

diverso e sua definição utiliza como parâmetro o

gestão e da política cultural.

caráter ideológico de quem o

De fato, a chegada de Gilberto Gil ao Ministério

delimita, por sua definição ser

da Cultura norteou uma política cultural bem dife-

permeada de conceitos de mun-

rente da praticada desde a criação do ministério, pelo

do e práticas políticas. Ao expor

decreto 91.144 de 15 de março de 1985. Nem mes-

que o conceito de cultura a se-

mo a chegada de Celso Furtado no Ministério, no

rabordado pelo recém-chegado

ano de 1986, modificou a visão sociológica da cultura

governo seria a cultura em sua

para o governo, fazendo com que sua participação

dimensão

mais ativa tenha sido a criação da Lei Sarney, sendo

do esta a produzida através da

a primeira lei de incentivo fiscal à cultura.

interação social dos indivíduos,

antropológica,

sen-

o então ministro Gilberto Gil inaugura um novo pensar e fazer

do de patrimônio cultural e a memória dos grupos

cultura no país.

26

A reorientação das noções de cultura e de patrimônio pela Constituição de 1988, inserindo o senti-

Rebeca Oliveira Sousa é graduada em Arte e Mídia pela UFCG, especialista em Artes Visuais pelo SENAC e mestra em Artes Visuais pela UFPB. Atuou nas políticas públicas culturais da Paraíba e trabalha como produtora cultural em diversos segmentos artísticos na região. culturarebeca@ gmail.com


Quando o foco passa a integrar não apenas as culturas cultas, ou chamadas eruditas, mas também abre espaço para as culturas populares, afro-brasileiras, ciganas, indígenas, de gênero, de orientação sexuais, das periferias, entre outras, o estado e a cultura se entrelaçam assumindo verdadeiramente o protagonismo para promoção e proteção da diversidade cultural.

formulação de estratégias políticas para a construção da Política Nacional de Cultura. Além dos sistemas dos entes federados, são componentes do Sistema Nacional de Cultura os subsistemas ou políticas setoriais (bibliotecas, museus, artes, patrimônio etc.), com fóruns para cada segmento cultural. As proposições dos entes federados e de todos os setores culturais contribuíram para a formulação do Plano Nacional de Cultura, debatido pelos representantes da sociedade nas Conferências municipais, estaduais e nacional. A participação popular nas políticas públicas culturais nunca antes da história foi tão expressiva. Para se ter uma ideia, na III Conferência Nacional de Cultura, realizada no final de 2013, calcula-se que cerca de 450 mil pessoas tenham participado de sua

Houve também a necessidade de interiorizar as

construção. A Conferência contou com a presença

preocupações e a priorização dada, pela primeira vez

de 953 delegados vindos de todos osestados do Bra-

na história, à preservação e divulgação da diversida-

sil, debatendo as 614 propostas extraídas das Con-

de das expressões culturais espalhadas pelo território

ferências Municipais, Estaduais e Livres para que se

nacional se expressa na valorização da dimensão sim-

definissem as 64 diretrizes para a gestão cultural do

bólica da cultura.

país. Porém nem tudo são flores quando se fala em

A delimitação dos novos eixos condutores da

gestão e políticas culturais na atualidade, pois ainda

ação política compreendeu a Cultura como política

há muito o que modificar e caminhar até chegar em

de Estado, Economia da cultura, Direito à memória,

um momento satisfatório. O governo já compreen-

Cultura e comunicação, Transversalidades, além da

deu a impossibilidade de elaborar uma política cultu-

Gestão democrática. É nessa gestão que irá se expres-

ral efetiva sem a participação popular. A população

sar a dimensão cidadã na nova política que passa a

passa a ter vez e voz, mas é preciso colocar em prática

atuar na configuração das estruturas, nos processos

as solicitações.

de decisão e na universalização do acesso aos bens e serviços culturais. No processo histórico que gestou o Sistema Nacional de Cultura, inspirado em outros sistemas já implantados no país como o Sistema Único de Saúde, são enfrentadas e combatidas a centralização das decisões políticas, a desvalorização das culturas locais e periféricas, e o desconhecimento da diversidade de expressões componentes do país. O Sistema delimita o papel do Estado na gestão pública da cultura e na

27


Um grande desafio da atualidade é fazer da cultura prioridade não apenas para o segmento cultural, fazer com que todas as esferas do governo possam compreender a cultura como um transformador social que interfere nos mais diversos segmentos governamentais como saúde, educação, entre outros. A partir desta compreensão, é possível que a cultura tenha força política suficiente para aprovação de leis e propostas de emendas constitucionais que possam efetivamente modificar o cenário atual.

receita tributária federal, 1,5% da receita estadual e 1% da receita municipal. Mais um importante desafio é desburocratizar a máquina pública que se relaciona com a cultura. Ao citar o tema, é importante ressaltar que a desburocratização aqui exposta não se trata de abolir a burocracia, pois esta é alicerce de qualquer sistema administrativo, sendo imprescindível para impessoalidade, profissionalismo e formalidade das ações, mas se trata de atuar em suas disfunções, eliminando-as e aumentando o grau de sua eficiência e efetividade. O maior questionamento que vem sendo enfatizado sobre o tema é que a atividade meio, que seria a burocracia para se participar de editais, por exemplo, tem se transformado em atividade fim. Os artistas e grupos culturais precisam dispensar tanta energia para compreender e se adequar aos trâmites burocráticos que em muitos casos, a atividade fim, que seria o fazer cultural, se coloca como coadjuvante no processo. Outro desafio é atuar na reformulação de leis de incentivos fiscais. Estudos elucidaram que as leis de incentivo fiscais, tal como se efetivam, centralizam

Recentemente, no dia 8 de abril de 2015 o Mi-

os recursos nos grande centros e em atividades artís-

nistério da Cultura lançou a Política Nacional de

ticas consolidadas. Colocar a cultura dentro de um

Cultura Viva e, com isso, os Pontos e Pontões de Cul-

modelo neoliberal de mercadoria não segue os ideais

tura passaram a ser parte de uma política de Estado. A

propostos pelo Sistema Nacional de Cultura e, apesar

política, que foi criada a partir de consulta pública e da

de constatados há tempos, os grandes problemas das

criação de um grupo de trabalho específico, tem como

leis de incentivos fiscais, pouco se fez para uma real

objetivo desburocratizar, a partir de meios alternativos

modificação das mesmas.

de repasse, e apresenta como públicos prioritários mes-

É bem verdade que são muitos os desafios a serem

tres da cultura popular, crianças, adolescentes, jovens,

superados pela gestão e pela política cultural. Mais certo

idosos, povos indígenas e quilombolas, comunidades

ainda é que muitos outros desafios virão a partir da su-

tradicionais de matriz africana, ciganos, população

peração dos atuais, de acordo com as novas necessidades

LGBT, minorias étnicas, pessoas com deficiência e pes-

que surgirão. Porém o que não se pode deixar retroceder

soas ou grupos vítimas de violência, entre outros.

é na participação popular nos espaços alcançados junto aos governos, pois esta participação é a garantia que a política caminhará lado ao lado dos anseios da socieda-

propostas na PEC150/2003, por exemplo, que versa

de, mantendo o foco na cultura em sua dimensão antro-

sobre o repasse anual para cultura que seria de 2% da

pológica e na diversidade inerente à cultura brasileira.

28

De fato, um grande avanço político para cultura, mas ainda bem aquém das necessidades orçamentárias


O

Brasil vive um mo-

a Constituição Federal brasileira

Cultura; (iv) Comissão interges-

mento

de

institu-

(artigo 216-A, § 2º), o SNC pro-

tores; (v) Programa de Formação

cionalização

das

põe um modelo de gestão com-

na Área da Cultura; (vi) Sistema

públicas

posto pelos seguintes elementos:

de Informação e Indicadores Cul-

de Cultura, marca-

(i) Órgão Gestor da Cultura; (ii)

turais; (vii) Sistemas Setoriais de

do pela aprovação

Conselho de Política Cultural;

Cultura; (viii) Plano de Cultura; e

do Plano Nacional de Cultu-

(iii) Sistema de Financiamento à

(ix) Conferência de Cultura.

políticas

ra (PNC, Lei nº 12.243/2010), bem como pelo atual processo de implantação do Sistema Nacional de Cultura (SNC, artigo 216-A da Constituição Federal, incluído pela Emenda Constitucional nº 71/2012) e dos sistemas estaduais e municipais. Este texto tem foco no Sistema Estadual de Cultura da Paraíba e no Sistema Municipal de Cultura da capital Parahyba e visa analisar as fases de instituição de três fundamentais elementos desses sistemas - os Conselhos, Planos e Fundos -, com a finalidade de servir de registro histórico desse processo, contribuir com reflexões e estudos soGabriel Moura é gestor cultural e graduado em Direito. Atua junto ao Ateliê Multicultural Elioenai Gomes e é um dos associados fundadores da ONG Maracá Cidadania. Integra o Movimento Cultura é Prioridade, o Observatório de Políticas Culturais da UFPB e o Conselho Estadual de Política Cultural da Paraíba (20142016). gabrielmourapb@gmail.com

bre os sistemas de cultura do estado e, por fim, convocar e estimular a participação social nos processos de debate e aprovação dos Planos de Cultura

(OU A RESSURREIÇÃO DE CELSO FURTADO E A PELEJA DOS PLANOS DE CULTURA NA PARAÍBA)

em

questão. Segundo

Texto

GABRIEL MOURA 29


Com a esperada aprovação dos planos estadu-

sui Fundo Municipal de Cultura (Lei Municipal

al e municipal, os dois Sistemas de Cultura estarão

nº 9.560/2001) e Conselho Municipal de Política

com três de seus principais elementos instituídos, o

Cultural (Lei Municipal nº 11.900/2010) - regis-

chamado “CPF da Cultura”: Conselho de Política

tre-se que este último permanece paralisado desde

Cultural, enquanto instância colegiada permanente,

dezembro de 2013 pela atual gestão municipal. Por

de caráter consultivo e deliberativo e composição pa-

sua vez, o estado da Paraíba dispõe do Fundo de In-

ritária, com metade dos integrantes da sociedade civil

centivo à Cultura Augusto dos Anjos (Lei Estadual

e metade do poder público; Plano de Cultura, como

nº 7.516/2003) e do Conselho Estadual de Política

instrumento de planejamento e implementação de

Cultural (Decreto Estadual nº 32.408/2011), além

políticas públicas de longo prazo para a proteção e

de uma lei específica que institui o Sistema Estadual

promoção da diversidade cultural em foco, elaborado

de Cultura (Lei Estadual nº 10.325/2014).

pelo respectivo conselho de política cultural a partir

Assim, ambos sistemas possuem Fundo e

das diretrizes definidas nas conferências de cultura; e

Conselho, faltando a aprovação dos respectivos

Fundo de Incentivo à Cultura, com o objetivo de pro-

Planos para seus “CPFs” estarem completos. (Até

porcionar recursos e meios para financiar a execu-

o início de 2015, dos 223 municípios paraibanos,

ção de programas, projetos ou ações culturais, dado

115 aderiram formalmente ao SNC, estando em

seu papel de principal instância de financiamento

fases distintas do processo de institucionalização

da política pública.

de seus elementos.)

Em âmbito federal, o PNC consolidou a amplia-

Nas palavras do MINC, “Plano de Cultura é um

ção do conceito de Cultura adotado desde 2003 com

instrumento de gestão de médio e longo prazo, no qual o Po-

o início da gestão de Gilberto Gil no Ministério da

der Público assume a responsabilidade de implantar políticas

Cultura (MINC), a partir de quando as políticas pú-

culturais que ultrapassem os limites de uma única gestão de

blicas passaram a considerar suas dimensões simbó-

governo. O Plano estabelece estratégias e metas, define prazos

lica, cidadã e econômica. Esta ampliação conceitual

e recursos necessários à sua implementação. A partir das dire-

permitiu a expandir a transversalidade das políticas

trizes definidas pela Conferência de Cultura, que deve contar

culturais propostas pelo poder público federal, sendo

com ampla participação da sociedade, o Plano é elaborado

essencial para o reconhecimento da centralidade es-

pelo órgão gestor com a colaboração do Conselho de Política

tratégica da Cultura para o desenvolvimento do país.

Cultural, a quem cabe aprová-lo. Os planos nacional, esta-

Com enfoque na dimensão econômica, des-

duais e municipais devem ter correspondência entre si e ser

de 2011 o MINC vem trabalhando, por meio da

encaminhados pelo Executivo para aprovação dos respectivos

Secretaria da Economia Criativa, a construção

Poderes Legislativos (Congresso Nacional, Assembleias Legis-

de políticas públicas dedicadas à economia cria-

lativas e Câmaras de Vereadores), a fim de que, transforma-

tiva brasileira, tendo como principal referência

dos em leis, adquiram a estabilidade de políticas de Estado.”

teórica o pensamento e a obra do economista

(2011).

paraibano Celso Furtado, cuja essência pode ser

Quanto à atual fase dos seus sistemas, o muni-

simbolizada pelo princípio da “valorização da cul-

cípio e o estado possuem algumas semelhanças: são

tura como vetor do desenvolvimento sustentável”, inscrito

dois Sistemas de Cultura passando por processos de

no artigo 1º, inciso VIII, do PNC.

estruturação em ambientes governamentais onde a

30

No âmbito municipal, a capital paraibana pos-

Cultura ainda não é reconhecida como vetor estraté-


gico do desenvolvimento sustentável local e regional.

Dessa maneira, conforme indicam as observa-

Além disso, nas duas esferas, com as consultas públi-

ções feitas por Isaura Botelho, no texto Dimensões da

cas já feitas, os Planos devem ser apresentados aos

Cultura e Políticas Públicas (2001), a Cultura passará

respectivos Conselhos para serem discutidos, me-

a ser vista como articuladora de programas con-

lhorados e aprovados e, em seguida, encaminhados

juntos perante as diversas áreas governamentais,

ao poder legislativo competente para votação e

de modo transversal. Nesse sentido, os Planos de

aprovação em forma de lei.

Cultura a serem aprovados têm o desafio de trazer

Um apontamento deve ser feito: a falta do

para o plano estadual e municipal a ampliação do

marco legal norteador das políticas públicas de

conceito de Cultura consolidada na esfera federal

Cultura continua possibilitando o direcionamento

por meio do PNC, em 2010.

discricionário dos recursos por parte dos gestores

Em texto publicado no Plano da Secretaria da

públicos. Isto é, enquanto não houver critérios,

Economia Criativa, Cláudia Leitão diz que Celso

objetivos e metas definidos em lei, os recursos

Furtado “lutou durante toda sua vida por um desenvolvi-

continuarão sendo executados de acordo com a

mento desconcentrador, fundamentado na diversidade cultural

vontade do gestor do momento.

regional brasileira” (2011). No atual contexto de estruturação dos Sistemas

Nesse cenário, os Planos de Cultura devem ser vistos não apenas como um conjunto de metas e diretrizes a serem respeitadas pelos poderes públicos na execução de seus orçamentos, mas, principalmente, como o documento político capaz de simbolizar e consolidar um compromisso global de governo, que reconheça o papel central e transversal das políticas públicas de Cultura nos processos de desenvolvimento municipal, estadual e regional, por meio da ampliação do espaço das políticas culturais nas estruturas e programas governamentais.

de Cultura da Paraíba, a sociedade – e em especial o Movimento Cultural – tem a oportunidade de invocar Celso Furtado como símbolo da luta social pelo reconhecimento da Cultura como vetor estratégico do desenvolvimento humano, político, social e econômico das comunidades. Arrisco dizer: é hora de reivindicar o reconhecimento de Furtado nas políticas públicas de Cultura estaduais e municipais – ou seja, nos Planos de Cultura – como forma de ressuscitar o espírito inspirador das ideias do paraibano. A conjuntura de disputa política pela construção de uma democracia participativa no Brasil transforma os processos de debate e aprovação dos Planos de Cultura em valorosas oportunidades para o exercício da cidadania por parte das populações envolvidas, ao mesmo tempo que os debates públicos a serem gerados poderão servir para a expansão do espaço político da Cultura. Nesse quadro, para exercitar o direito humano à livre participação nas decisões sobre política cultural, vamos aos Planos! Cultura é prioridade! Celso Furtado vive!

31


GRITOS 32

naturalize meus cabelos registre minhas ideologias


S RUA DE Ilustrações

HÊVILLA COSTA Poema

AMANDA VITAL

desconfigure meus padrões legalize minhas minissaias

me empodere!

33


não arranque as rosas inocências de minhas meninas

34

deixe que encontrem força em suas raízes e permita que cresçam


minha alma é nua, é autônoma, desfolhada ninguém manda em mim

35


36

Hêvilla Costa é graduanda do curso de Design de produto pela UFPB. Trabalha como ilustradora freelancer. Como artista, tem focado em intervenção urbana de cunho feminista através de aplicações de lambe-lambe. behance.net/ hevillacosta


eu mesma cuido desse jardim.

37


38

céu, volumes, recortes, texturas

concreto armado pronto para ser habitado.

do teto ao chão, ao descer pelas linhas, movimentam-se passagens.

o abandono das janelas transforma aberturas em contatos enquadrados.

ao performar geometrias, resistência e possibilidades de existir:

são presenças e cores na cidade.


com sutileza os corpos despertam escalas sensórias;

abrem-se frestas de vida com suas materialidades provisórias nos vãos.

aterrissamos no cotidiano assimétrico do centro de João Pessoa

O estar que habita em fluxo.

39


\ Esse trabalho é o resultado da articulação de um coletivo provisório de pessoas que transitam entre performance, dança, arquitetura, urbanismo, fotografia e moda, interessadas em perceber e discutir as relações entre o corpo e a cidade. FICHA TÉCNICA Concepção

Melina Bomfim Texto

Candice Didonet e Melina Bomfim Direção de Fotografia Paulo César Lopes Fotografia

Thayse Gomes Performers

Candice Didonet e Melina Bomfim Figurino

Fábio Rodrigues Maquiagem

Bianka Emiliano

Agradecimentos Paula Carrubba, Milena Medeiros, Tadeu de Brito e Seu Manoel.

40

melina.bomfim@gmail.com


41

\


REFORMULAÇÃO DA FUNARTE PASSA PELA CRIAÇÃO DO SELO “CONEXÃO NORDESTE” ENTREVISTA COM FRANCISCO BOSCO, PRESIDENTE DA FUNARTE Por

GREGÓRIO MEDEIROS Foto

42

S. CASTELLANO


A

pesar do contingenciamento que segue há um ano desde sua posse, além da crise econômica ter diminuído o orçamento do Ministério da Cultura a cada ano, o presidente da Fundação Nacional das Artes (Funarte), Francisco Bosco, anuncia a reformulação das ações da Funarte, em meio a nova proposta de gestão compartilhada dos equipamentos. Além da pretensão de descentralizar sua forma de atuação, de executora para articuladora, Francisco Bosco ainda ressaltou a organização dos gestores culturais do nordeste com a criação do selo “Conexão Nordeste”,

baseado no apoio a circulação de espetáculos culturais pretendendo, assim, alinhar às novas transformações almejadas pela Funarte neste próximo ano.

Qual o papel do Estado na democratização da cultura?

Como você enxerga a atual situação da Funarte?

Em primeiro lugar, penso que o Estado deve agir

Num país com o tamanho e a complexidade do

no sentido de criar condições igualitárias: de

Brasil, uma Fundação Nacional de Artes deveria

fomento à produção, de acesso, de infra-estrutu-

ter um orçamento bem maior, assim como uma ló-

ra cultural, de participação social na formulação

gica de atuação diferente, mais clara e com atribui-

de políticas públicas e na avaliação de seus resul-

ções melhor definidas. Um ecossistema equilibrado

tados. Mas isso não é simples, porque o campo

e eficiente no campo das artes deve ser formado

da cultura é heterogêneo e irregular, e até certo

por fomento direto do Estado, relação de parceria

ponto é natural que seja assim. Por exemplo, há

entre o empresariado e a produção artística (esse

centros, grandes cidades, que reúnem e atraem

é o espírito da renúncia fiscal), doação de pessoas

pessoas do Brasil inteiro. Então elas extrapolam

físicas, linhas de investimento (não exclusivamente

o caráter regional; têm uma dimensão nacional.

no modelo do BNDES, onde o risco é todo do

Não se deve menosprezar isso. Mas, por outro

produtor) e iniciativa privada. Ora, sabemos o

lado, deve haver uma política descentralizadora,

quanto a renúncia fiscal, no modelo distorcido

que procure identificar as singularidades de cada

a que ela chegou, domina esse

território, a fim de formular e implementar polí-

ecossistema, desequilibrando-o.

ticas públicas que desenvolvam a arte e a cultura

O Procultura almeja retomar o

locais. Outra perspectiva fundamental é que o

espírito original e adequado das

Estado deve agir no sentido de relativizar - e não

leis de incentivo. E, por meio

de duplicar - a lógica do mercado. O mercado

do fortalecimento do Fundo

tende à repetição e à concentração. Ao Estado

Nacional de Cultura, a Funarte

deve interessar que todas as pessoas tenham

poderá ter um tamanho e uma

acesso à produções simbólicas diversas e desafia-

ação mais adequados às suas

doras, que ampliem suas experiências subjetivas

atribuições. Aí sim não haverá

e, logo, sua visão crítica do mundo.

dúvidas sobre sua importância.

Gregório Medeiros é Especialista em Inovação de Projetos Culturais pela UFPE/ FINEP, graduado em Comunicação Social pela UFPB. Atua na Assessoria de Imprensa da Secretaria de Estado da Cultura. gregorio.neto. medeiros@gmail. com

43


É possível falar na consolidação de uma Política Nacional das Artes?

diálogos com cada estado da federação, a fim de formular políticas públicas específicas. Com isso, vemos diversos ganhos: de estrutura e eficiência, pois evitam-se sombreamentos; de recursos, pois

Estamos numa etapa ainda de formulação, mas

os estados se co-responsabilizam pelas políticas,

já avançada. Nesse primeiro semestre de 2016,

agregando recursos aos repassados pela Funar-

submeteremos nossas propostas à sociedade civil:

te (os critérios que orientarão a porcentagem

estabeleceremos o diálogo com os colegiados seto-

a ser agregada pelos Estados levarão em conta

riais do CNPC (que só tomaram posse no finzinho

sua população, o quanto já capta na Rouanet e

de 2015), percorreremos o país e teremos uma pla-

seu IDH); de acompanhamento e avaliação dos

taforma digital para receber contribuições. O plano

resultados (atualmente, a Funarte não consegue

é já a partir do segundo semestre desse ano iniciar

avaliar nada); e, claro, o ganho fundamental da

uma transição da forma de atuação da Funarte.

maior adequação das políticas às necessidades dos

Após um ano a frente da Funarte, qual o diagnóstico realizado pela Comissão Nacional das Artes?

territórios. 2) Dentro dessa lógica federativa, a Funarte se encarregará de programas de circulação das artes. Estamos desenvolvendo um programa de circulação com características inovadoras, baseado no apoio a espaços culturais, e cujo me-

Não houve propriamente uma comissão, e sim um

canismo assegura que os espaços é que dirão que

trabalho de gestores públicos (Funarte e MinC),

espetáculos desejam receber em seus territórios.

junto a pessoas da sociedade civil contratadas

3) A Funarte colocou em discussão pública, desde

para esse fim, periodicamente aberto a participa-

o fim de 2015, o tema de seus equipamentos

ções sociais mais amplas, e que agora irá alargar

culturais. A Funarte tem cerca de 20 equipamen-

ainda mais essa participação, a fim de submeter as

tos culturais, concentrados nas 4 capitais que

propostas à crítica, ao aperfeiçoamento e, se houver

estão entre as que mais têm equipamentos no

algum consenso (ou clara maioria), começar a

país (Rio, São Paulo, Belo Horizonte e Brasília).

implementá-las.

Isso por si só é discutível (“discutível”, repito, pois

A partir desses dados, quais as reformulações podem ser apresentadas em 2016?

o problema é complexo, dado o que falei sobre heterogeneidade do campo cultural mais acima). Além disso, há o aspecto econômico: em 2015, a Funarte gastou, com esses equipamentos, 45 mi, enquanto teve, para a totalidade de suas ações finalísticas, em todas as linguagens, 40 mi. Nossa

de atuação da Funarte, fazendo com que ela passe

proposta é passar os equipamentos para modelos

a agir a partir de uma lógica de sistema federati-

de gestão compartilhada, onde o interesse público

vo. Isso implica torná-la menos executora e mais

pode ser realizado pela sociedade civil (o que

articuladora. Há três aspectos concretos quanto a

portanto não deve se confundir com “privatiza-

isso: 1) em vez de a Funarte formular e executar

ção”, onde o interesse público é desconsiderado).

seus editais nacionais, ela passará a estabelecer

Assim, a Funarte não teria gastos de manutenção

44

A proposta é de mudar a mentalidade e a forma


com esses equipamentos, e poderia colocar esses recursos em outros programas finalísticos. A questão, entretanto, não é simples. Há argumentos importantes de objeção. Por isso a necessidade de submetê-la a ampla consulta pública, como já

Como repensar a estrutura políticas para as artes, em especial para circulação das produções, com a criação do Selo “Conexão Nordeste” para 2016?

começamos a fazer.

Com o atual contingenciamento de recursos orçamentários, a Funarte sofre com a redução financeira para realização de novos o programas. Como superar esta conjuntura? Nenhuma gestão faz milagres. O que estamos tentando fazer é montar equações onde os recursos sejam empregados com maior clareza de propósitos, aumentando, assim, a sua eficiência (eu,

Penso que o “Conexão Nordeste” já é uma materialização dessas ideias de descentralização (e ênfase na circulação) a que vim me referindo ao longo dessa conversa.

Até o momento, há confirmado a participação de seis estados no Conexão Nordeste. Quais serão os mecanismos de financiamento entre a Funarte e as secretarias estaduais de cultura para a circulação desses projetos?

que me inscrevo no campo da esquerda, penso que não devemos ter a tosqueira ideológica de

A Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura

anatematizar certas palavras - “gestão”, “efici-

(SEFIC) está estudando esses mecanismos. Observo

ência” - como se elas fossem letras escarlates que

que o Conexão Nordeste é uma iniciativa que não

logo identificam um pensamento de direita). O

partiu da Funarte, e sim envolveu os gestores de cul-

desafio da Funarte em 2016 é conseguir estabe-

tura da região nordeste, junto a representantes do

lecer uma transição que a um tempo garanta os

MinC e da Funarte. A iniciativa está perfeitamente

mecanismos atuais (editais nacionais, gestão dos

alinhada ao espírito das transformações almejadas

equipamentos etc.), mas já inicie experiências

pela Funarte. Vamos ver como, concretamente, nos

rumo a uma nova lógica (um programa piloto de

associaremos a ela.

descentralização, com um número limitado de estados; o novo programa de circulação, ainda que apenas em uma ou duas linguagens; etc.). Estamos trabalhando para conseguir mais recursos, dentro e, sobretudo, fora do MinC. Do contrário, levando em conta o passivo que temos (e é prioridade liquidar) será muito difícil tocar a transformação que almejamos.

45


O

sol resolveu rasgar o horizonte

disposto,

raiando sobre um céu sem nuvens e deixando todos com um calor medonho

por volta das seis da manhã. No pátio da pequena cidade, ao lado do coreto, uma enorme estátua de pedra assomava, encarando o leste como quem contemplava o astro rei e toda a sua imponência naquela manhã. Era linda. A obra de arte estava sendo talhada já no seu lugar de destino porque o prefeito não tinha dinheiro para pagar o deslocamento de algo tão grande e pesado, a não ser que fosse quebrado em partes.

PARLA Texto

mem jovem, musculoso, uma

NATHAN CIRINO

tentativa de Apolo que poderia

Ilustração

Era a imagem de um ho-

muito bem se passar por um primo distante do original se não fossem dois detalhes: as pernas. Da

46

Nathan Cirino é professor do Depto. de Arte e Mídia da UFCG, cineasta, roteirista e doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFPE. nathancirino@ yahoo.com.br

para

cintura cima,

podíamos ver o emblemático dorso nu, a beleza dos cabelos

ca-

cheados e a

VITO QUINTANS


expressão plácida da juventude bela. Entretanto,

bloco de pedra ao meio. Partes desiguais, é verda-

da cintura para baixo havia apenas um enorme

de, mas já conseguia ter dois protótipos de perna

bloco de pedra cheio de lascas arrancadas, disfor-

sob a cintura. Moveu-se então. Passo após passo,

me, pesado. Era meio a meio. Suave e grosseiro em

pesado, ele andou.

proporções iguais.

Quão desconfortável deveria ser… Andar

O artista, um escultor já de idade, chegava

com tanto esforço, como quem carrega o mun-

sempre às seis e trinta e, lentamente, cravava a sua

do nas costas, e nem sequer poder gritar uma

ferramenta no bloco. Naquela manhã, no entanto,

dor. Movimentou-se silencioso a passos pesa-

não apareceu. Morrera na madrugada, deixando

dos que cansavam até quem lhe assistia. Não

a obra de arte incompleta e diz-se que sua alma,

ameaçava ninguém, apenas seguia para algum

por algum motivo dentro das intenções divinas,

canto. Caminhou para frente. Parou alguns mo-

adentrou seu meio Apolo quando o relógio mar-

mentos e tentou falar alguma coisa, mas a boca

cou a hora da chegada do velho. O escultor não

permanecia

veio, mas o primeiro segundo ultrapassado desta

gritos com as mãos e a barriga contraídas, mas

hora pelo grande relógio na torre da prefeitura foi

ainda assim mudo. Chorou, ao que parece, mas

a hora exata em que a estátua abriu os olhos.

não lhe caíram lágrimas… Nem reais, nem de

Olhou em volta devagar e não pareceu se inco-

fechada.

Desesperava-se,

dando

pedrinhas de seixo.

modar com o sol à sua frente. Aqueles poucos que

Foi pesado para fora da cidade, arrastando-se.

passavam na praça saíram em desespero, acordan-

Andou bravo, vencendo seus limites, enquanto al-

do o resto da cidade aos gritos. Não demorou para

guns curiosos acompanhavam-no de longe. Subiu

que em pouco tempo houvesse centenas de pes-

ladeiras, desceu-as. Passou campos e estradas. Atra-

soas ao redor do monumento, vendo-o se mover

vessou dois pequenos riachos que lhe bateram nos

lerdo, conhecendo os movimentos de suas grandes

flancos, fazendo borbulhas e ruídos bons de se ouvir.

mãos e de seu rosto delicado. Fazia caretas e toca-

Chegou então à pedreira. A mesma de onde saíra sua

va seu próprio rosto, mas, não importava como se

grande pedra original.

movesse, a boca não abria. Quis falar para todos

Subiu até onde pôde e olhou para baixo…

em alto e bom som, mas não conseguiu. Via-se

Falou seus motivos, mas ninguém os ouviu. Bai-

que gritava de boca fechada, em silêncio, e aos

xou os ombros de cansaço, e arranhou os olhos

poucos mostrava-se em agonia profunda por não

com o dedo de pedra. Queria que saísse algu-

poder sair do canto. Começou a bater com o pu-

ma coisa dali, mas nada se quebrava nem escor-

nho fechado, enfurecido, no bloco de pedra que

ria de seu rosto. Deixou-se cair, então, como

tinha por pernas. Bateu, bateu, bateu. As lascas

quem cai na cama depois de um dia difícil. Lá

voavam para todo lado e afugentavam a multidão.

em baixo partiu-se em vários e, simplesmente,

Pandemônio na praça. A estátua, enfim, rachou o

voltou a ser pedras.

47


ESSES QUADRINHOS

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FORAM CRIADOS


POR IGOR TADEU

Igor Tadeu é ilustrador atuante desde 2005, quando começou a produção de tiras e quadrinhos. Com o Coletivo WC, além de webcomics, publicou tiras no Jornal A União e as Revistas Sanitário. Tem duas revistas solo publicadas de forma independente: One Hit Wonders (2012) e Uma História em cada Garrafa (2013). fb.me/igortadeu85

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“O BICHO, MEU DEUS, ERA UM HOMEM” OU UMA BREVE RESENHA SOBRE “LAVAGEM”, DA EDITORA MINO Texto

LUCAS ED. GUIMARÃES

50

Lavagem de Shiko. Editora Mino, graphic novel em capa dura, 72 páginas, preto e branco. R$ 44,00 (à venda no site da editora).


N

uma área alagadiça e isolada, as únicas

genuinamente brasileira. Como isto ficaria

formas de contato com o mundo exter-

em papel? Seria uma adaptação direta ou uma

no são as barcas e a tevê, transmitindo

variação do tema do curta?

o culto hardcore pelo menos para quem

A tensão só passou quando o pessoal da Mino

deseja esse contato. Doutro lado, um

me mandou o material de divulgação da história.

homem bronco se divide entre seus por-

Maldito Shiko! Ele conseguiu outra vez!

cos e a companheira, isolada pelo mangue e pela

Já disseram antes de mim, Lavagem, a graphic

ignorância. Até que chega uma improvável visita:

novel é um soco na boca. Um cruzado direto, na

será o Demônio em pele de cordeiro, ou não há

forma de uma edição crua, sem introdução, sem

pele nenhuma?

posfácio, sem texto de apresentação na quarta

No mundo da cultura de massa, existe uma for-

capa. Nada. Tão isolada do mundo externo quanto

ça que é uma faca de dois gumes: a divulgação pré-

seus protagonistas, Lavagem é mostrada só, sem

via. Indiscutivelmente necessária para fazer com

preparações, sem desculpas no final. Só o soco.

que uma produção se destaque no imenso mar de

Juro, sem favorecimento nenhum, Lavagem

lançamentos simultâneos, a divulgação prévia pode

é uma baita história em quadrinhos. A arte

gerar aquilo que é, ao mesmo tempo, a melhor e

realista do velho Shiko já é conhecida desde O azul

a pior coisa que uma produção pode ter - sim, eu

indiferente do céu ou o safadinho Talvez seja mentira,

estou falando de expectativas.

ambos publicados de maneira independente. Aqui

Pense no filme do Superman de Brian Singer. Ou

ele transpira ainda mais suas influências dos comix

nos Guardiões da Galáxia. Excesso de expectativa por

norte-americanos misturados ao liquidificador com

um lado e total ausência dela, pelo outro, definiram

as escolas mais clássicas de desenho: são hachuras,

o fracasso e o sucesso de cada um deles, respectiva-

sobreposições e um controle do timming incrível.

mente. Com isto, nasce a máxima: de onde menos

Tudo casa com perfeição: seu

se espera, é de lá que não vem coisa nenhuma mes-

“vilão” é excelente, e deixa claro

mo. Não, não, perdão. A máxima na verdade é: o

que nenhuma piração técnica

que atrapalha tudo é a expectativa.

ou de narrativa é necessária

“Lavagem” poderia ter sido um caso destes.

quando se tem o olhar apurado

Quando a editora Mino anunciou que produzi-

para

ria a adaptação do curta-metragem (que eu tive

histórias estão - no absurdo das

ver

onde

as

grandes

acesso no FIQ de 2013, em breve disponível no

coisas mais banais.

site da própria Mino), eu fiquei na pilha. Lava-

Em resumo: Lavagem é

gem, o filme, é um trabalho de força, um soco

aquele tipo de álbum de histó-

no estômago: ao juntar neopentecostalismo e po-

rias em quadrinhos que você

breza (não só pobreza material, pelo contrário), o

deve ter sempre ao alcance da

paraibano Shiko (autor do remake do personagem

mão - é aquela cartada fatal

Piteco pelo selo Graphic MSP, da Mauricio de Sou-

quando alguém insinuar que

sa produções) havia criado uma obra de terror

HQ é coisa de criança!

Lucas Ed. Guimarães é colunista do site melhoresdomundo.net, especializado em cultura de massa, principalmente histórias em quadrinhos e cinema. O autor é psicólogo, mestre em psicologia social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e professor na Faculdade do Futuro/Sociedade de Ensino Superior de Manhuaçu/MG. lucas.edpp@ gmail.com

51


NÃO RESOLVA PEPINOS DEIXE QUE TUDO VIRE UMA SALADA AFINAL, A VIDA É BREVE QUE SEJA LEVE!

52

AMANDA VITAL


AMÉRICO GOMES

53


N

ão foi a protuberância glútea da já qua-

letras e produzem literatura no Brasil como me-

se esquecida Mulher Melancia, seus re-

nores. Transitam o caminho do exótico, enclausu-

quebros e reflexos auditivos, tampouco

rados no folclore (esta palavra infame), sucumbem

seu minúsculo “short” e pernas bron-

às falsas teorias, harmonizam-se com a margem,

ze-torneadas. Nada disso. Também não

são naufragados pela ignorância geral. É uma

foi a barba do também quase esqueci-

pena. Mas a resistência pede passagem e nós es-

do Fidel Castro e sua renúncia a comandante da

tamos aqui como bastiões da tradição cordélica.

outrora onírica ilha. Nada disso. Minha emoção

De Leandro, disse Carlos Drummond de An-

tem sido nutrida nos últimos dez anos pela apro-

drade: “Em 1913, certamente mal informados,

ximação dos 150 anos de nascimento de Leandro

39 escritores, num total de 173, elegeram por

Gomes de Barros: o criador do sistema de produ-

maioria relativa Olavo Bilac príncipe dos poetas

ção do cordel brasileiro, codificador e primogê-

brasileiros. Atribuo à má informação porque o

nito de sua poética.

título, a ser concebido, só poderia caber a Le-

Esse Leandro, além de ter escrito aproxima-

andro Gomes de Barros, nome desconhecido no

LEANDRO GOMES DE BARROS damente mil folhetos de cordel -

54

Aderaldo Luciano é paraibano de duas cidades, Pilões e Areia. Na primeira foi gestado, na segunda foi nascido. Entende o cordel brasileiro como parte fundamental da literatura brasileira e considera seus autores como fundadores da única forma poética nacional. Autor de O Auto de Zé Limeira (Confraria, 2008) e Apontamentos Para Uma História Crítica do Cordel Brasileiro (Adaga/Luzeiro, 2012), entre outros. Gosta de jaca. luizcangaceiro@ gmail.com

Texto

vertendo para sextilhas, décimas

ADERALDO LUCIANO

ou quadrões, velhas histórias

Xilos de Minelvino Francisco

da Península Ibérica - fundou a tradição do herói nordestino,

Rio de Janeiro, local da eleição promovida pela

oferecendo caracteres épicos à

revista FON-FON, mas vastamente popular no

literatura feita por poetas que

Nordeste do país, onde suas obras alcançaram

não frequentaram a escola nem

divulgação jamais sonhada pelo autor de ‘Ouvir

se deixaram moldar pelos mo-

Estrelas’.”

dismos europeus da época. Sim,

Acrescentava que Leandro “... não foi prín-

porque o cordel nasceu parale-

cipe de poetas do asfalto, mas foi, no julgamento

lo à escola romântica sem dela

do povo, rei da poesia do sertão e do Brasil em

tomar conhecimento.

estado puro”. Disse-nos, desse mesmo Leandro,

Apesar de ser a única for-

o velho e bom Câmara Cascudo: “Um dia, quan-

ma original de poesia brasileira,

do se fizer a colheita do folclore poético, reapare-

com temas e forma únicos, essa

cerá o humilde Leandro Gomes de Barros, viven-

poesia e esse poeta são vistos

do de fazer versos, espalhando uma onda sonora

pela maioria dos que estudam

de entusiasmo e de alacridade na face triste do


sertão”. Sofremos desse mal de memória e de

Acredito mesmo que tenha sido o autor mais lido

preconceito.

e publicado naquela época. Se a famigerada lista

Mais ainda foi dito de Leandro: “Viveu unicamente do produto de suas histórias rimadas,

de mais vendidos atentasse para isso teríamos um best seller.

que ainda hoje são as melhores da literatura de

É uma pena, sob o signo da irresponsabili-

cordel”. A sua importância transcende o simples

dade e preconceito, que o cordel brasileiro e Le-

fazer e editar e comercializar versos de cordel.

andro, em particular, não figurem nos manuais

Foi o primeiro a se preocupar com o material fí-

de história da literatura brasileira com a devida

sico, com o folheto em si. Passou a imprimir fo-

reverência. Se o cordel é marca identitária nor-

tografias em suas capas e desenhos de arte. Fun-

destina, nada deve à produção poética dos gabi-

dou sua própria tipografia, criou campanhas de

netes e das academias, dos poetas herméticos e

marketing para seus folhetos, distribuiu-os pelo

dos círculos literários do sul do país. A espera da

Nordeste afora, deu-lhes dignidade.

colheita, como disse Cascudo, não surtirá efeito

Foi ainda o primeiro a se preocupar com di-

algum. O que conta é a semeadura. Ainda esta-

S, O PRIMEIRO SEM SEGUNDO reitos autorais. Passou a escrever acrósticos nos

mos relegados à curiosidade.

versos finais de seus folhetos e, não conseguindo,

Portanto, senhores, reitero minha emoção

assim, vencer a “pirataria” - sim, porque muitos

construída não com a bunda da Mulher Melan-

se aproveitavam para reproduzir seus folhetos,

cia, nem com a barba empoeirada de Fidel, mas

assinando-os - passou a estampar sua fotogra-

com a pena e a atitude empreendedora do maior

fia na contracapa dos mesmos com os seguintes

poeta nordestino de todos os tempos, aquele

dizeres: “Aos meus caros leitores do Brasil — Ce-

que descortinou uma pátria nova, que fundou

ará, Maranhão, Pará e Amazonas — aviso que

um caminho e uma tradição, que nos ofereceu

desta data em diante todos os meus folhetos com-

a dignidade de não esperar migalhas das gran-

pletos trarão o meu retrato.”

des editoras nem de incentivos do governo ou

A seguir, dá o motivo de tal decisão: “Faço

de empresas multinacionais, que acreditou em si

este aviso afim de prevenir aos incautos que têem

e na sua veia, o príncipe de nós todos: Leandro

sido enganados na sua boa fé por vendedores de

Gomes de Barros.

folhetos menos sérios que têem alterado e publi-

Certa vez um poetastro dissera ter superado

cado os meus livros, comettendo assim um crime

Leandro. Seguramente tal falso bardo não co-

vergonhoso”. Assina e data: Recife, 9 de 7 de

nhece a obra leandrina, e deveria se enxergar

1917. Como se vê, a fama de Leandro extrapo-

em sua pequenez. Para superar o maior poeta

lou o Nordeste e enveredou pelo Norte do Brasil.

de cordel de todos os tempos, ele teria de pelo

55


menos possuir quatro atributos: ser poeta, editor, vendedor e crítico. Sendo poeta, precisaria estar

O mesmo ímpeto que leva um poeta de cor-

à altura dos pés de Leandro tanto em produção

del a declamar sextilhas de cantadores como

quantitativa como qualitativa. Uma obra míni-

exemplos de poesia deveria movê-lo em direção

ma, defeituosa, lacunar não pode ser parâmetro

a conhecer as passagens poéticas de Leandro ou

para aquele cuja obra foi pautada pela veia poé-

de outros ícones do cordel brasileiro. Em outras

tica verdadeira, pela excelência dos versos, pela

palavras, parece que há uma frustração por não

ousadia e experimentação em diversas modalida-

se ser cantador, por não se fazer repente e, como

des poéticas. Leandro foi da sextilha às paródias,

vingança, não se nega a leitura, o estudo, a pes-

aos padres-nossos, às parcelas, aos marcos, às pe-

quisa, ficando-se apenas na masturbação literá-

lejas, aos romances, à crítica social, ao olhar crí-

ria, que nada faz brotar de novo e que, quando

tico sobre os costumes. Não ficou criando glosas

brota, é vulto desprovido de vitalidade, de tônus

a partir de motes de sua própria lavra. Sintamos

literário, de vida plena. Vejam o que Leandro co-

sua veia poética ao abrir o poema As Aflições Da

loca na boca de Antonio Silvino quando escreve

Guerra na Europa:

Antonio Silvino, No Júri:

56

Detonam tiros medonhos De peças demasiadas Soam grandes estampidos Estremecendo as quebradas Descendo rios de sangue Como água em enxurradas.

És como as folhas que secam Nos frondosos laranjais Ou como as aves nos ninhos Que empenam e deixam os pais Dizem no primeiro voo Adeus para nunca mais.


Como dissemos, Leandro Gomes de Barros é, sem qualquer sombra de dúvida, o pai do cordel

faltar-lhe-á a construção de um marco, como o fez Leandro:

brasileiro. Pioneiríssimo nas publicações e inventor da profissão de autor-editor-revendedor de folhetos, como também já apresentado. Ninguém o superou. Pelo contrário, qualquer referência à poesia cordelística obrigatoriamente deverá citar o filho de Fazenda Melancia. Mais de Leandro, em A Seca Do Ceará:

Vê-se uma mãe cadavérica Que já não pode falar, Estreitando o filho ao peito Sem o poder consolar Lança-lhe um olhar materno Soluça, implora ao Eterno Invoca da Virgem o nome Ela, débil, triste e louca, Apenas beija-lhe a boca E ambos morrem de fome.

Eu edifiquei um marco Para ninguém derribar E se houver um teimoso Que venha experimentar Verá que nunca fiz cousa Para homem desmanchar. Mas entendamos: minha alegria de ter cruzado com Leandro e com sua obra é o que deve ser contado. Leandro foi um homem de seu tempo. Filho da primeira revolução industrial, não vacilou e aliou-se à máquina. Dessa forma, ilustrou a capa de seus folhetos com fotografia, mídia recémdescoberta. É célebre a estampa de seu busto na contracapa de seus folhetos para evitar falsificação. Montou sua própria tipografia e começou a publicação em série de seu lavra. Contactou distribuidores e pensou uma estrutura de marketing positivo. E aqui há uma observação a fazer. Quan-

Agora suponhamos que aquele poeta que disse

do se diz que Leandro viveu do que escreveu, é

ter superado Leandro chegue perto dessas cons-

informação incompleta. Pois não só escreveu,

truções poéticas, que tenha alcançado mesmo um

como produziu, diagramou, distribuiu, contabili-

fio de bigode leandrino, que tenha se aproximado

zou, imprimiu, corrigiu, enfim foi o super-homem

da sombra do pai de todos nós, que tenha conse-

na linha de produção. Pela concepção, escrita, im-

guido se escorregar pela poesia. Mesmo assim, te-

pressão e distribuição, foi ele o responsável. Viveu

ria lhe faltado, com certeza, uma cavalgada pelos

de seu trabalho diuturno. Leandro só pensava em

arredores de Guarabira, na companhia de outro

cordel e em como aprimorá-lo, transformando-o

titã, Francisco das Chagas Batista. Além do mais

em um item agradável aos olhos, ao tato e à mente. Nunca será demais repetir: Leandro nasceu na Fazenda Melancia, hoje pertencente ao município de Paulista, mas em 19 de novembro de 1865, data do seu nascimento, pertencia ao município de Pombal, na Paraíba do Norte.

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58 AMÉRICO GOMES


AMANDA VITAL

59

SOU TODA DEFEITOS.

RESOLVA-ME PORÉM NÃO CONSERTE-ME


60


Arthur Bispo do Rosário, considerado, atualmen-

remanejado para o Quartel Central do Corpo de

te, artista contemporâneo, foi um sujeito que fu-

Marinheiros Nacionaes de Villegagnon, na cidade

gia aos padrões da sociedade. Negro, filho de

do Rio de Janeiro.

ex-escravos, pobre, nordestino e louco, Bispo do

Aos 29 anos, no dia 22 de dezembro de 1938, Ar-

Rosário passou quase toda a sua vida interno em

thur Bispo do Rosário sofreu um surto de alucinação

um hospital psiquiátrico.

que mudou para sempre o rumo de sua vida. Dizia

Bispo nasceu em 1909, na cidade de Japaratu-

ter recebido uma mensagem, vinda de sete anjos, que

ba, interior do Estado de Sergipe. Aos 15 anos de

informava ser ele o escolhido pelo “Pai Divino” para

idade, alistou-se na Escola de Aprendizes da Mari-

uma missão na Terra. Segundo Marta Dantas, auto-

nha, na cidade de Aracaju, sendo, um ano depois,

ra do livro Arthur Bispo do Rosário - a poética do delírio,

UM NORDESTINO: DA MARGEM AO CENÁRIO DA ARTE BRASILEIRA Texto

Larissa Uchôa Dantas é mestranda em Artes Visuais (UFPB), Especialista em Design de Jóias (PUC-RIO), Graduada em Licenciatura em Pedagogia (UNIPÊ),) e professora assistente do Curso de Design de Moda do Centro Universitário de João Pessoa – UNIPÊ. larissauchoa@ hotmail.com

LARISSA UCHÔA DANTAS Imagem: Divulgação

o qual aborda analiticamente o

ser o “filho de Deus”.

contexto biográfico de Bispo e de

Após este acontecimento, foi diagnosticado esqui-

suas obras, sua missão era “julgar

zofrênico paranóico ficando interno na Colônia Julia-

os vivos e os mortos e recriar o

no Moreira – Rio de Janeiro, onde viveu por quase 50

mundo para o Dia do Juízo Final”.

anos e produziu o seu grande legado.

Bispo peregrinou por dois dias

Guiado por vozes divinas que dizia ouvir, Bispo

pelas ruas do Rio de Janeiro até

criou um grande acervo de peças diversas. Sua cria-

chegar ao Mosteiro de São Bento

ção, portanto, nasceu de uma missão que assumira

e anunciar a sua missão, dizendo

na terra: reconstruir o mundo em miniaturas para se

61


apresentar a “Deus” no dia de seu chamado final. Dantas (2009) comenta que havia momentos em

Manto da Apresentação, este, considerado a principal peça do seu acervo.

que Bispo ficava recluso em sua cela, trabalhando

Suas obras foram construídas com objetos des-

incessantemente dia e noite a mando das “vozes

cartados do uso cotidiano, recolhidos durante sua

divinas”. Lá passava dias ou até meses jejuando,

permanência na Colônia como: madeira, papelões,

sem receber a luz do sol e sem contato com pes-

utensílios domésticos, recipientes plásticos, frascos

soas. De acordo com a autora Luciana Hidalgo

de perfumes, pentes, calçados etc. As peças em teci-

(2011), Bispo sofreria uma transformação e para

dos, bordadas manualmente por Bispo, foram con-

tanto necessitaria estar transparente para ficar

feccionadas com o reaproveitamentos de lençóis

leve e subir aos céus no dia de sua “passagem” e

velhos; já os bordados, no início de suas criações,

encontro com Deus. Hidalgo foi a primeira auto-

eram feitos com linhas desfiadas dos uniformes

ra a registrar a trajetória da vida de Bispo, em seu

velhos da colônia.

livro Arthur Bispo do Rosário – O senhor do labirinto, que traz uma minuciosa biografia sobre o artista, como, também, faz alusão ao contexto dos serviços de saúde mental na época.

Bispo, por toda sua existência, incorporou um discurso sagrado: ora dizia ser “Jesus Cristo”, ora dizia ser o representante de “Cristo”, e assim viveu com veemência, como se essa fosse a verdade única de sua vida. Seu diálogo estava sempre relacionado à morte, ao sagrado e ao contexto religioso, aspectos estes, fundamentais para a produção do seu legado. O acervo de Bispo é composto por mais de 800 peças diversas, que se misturam entre instalações (assemblages), miniaturas em madeira revestidas com linhas azuis (Orfas), fichários, estandartes, faixas de

62

miss e algumas vestes, como paletós, casacos e o

Mesmo sem ter acesso a materiais mais elaborados, Bispo criou com grande maestria, peças de tamanha plasticidade estética, com virtuosismo e riqueza de detalhamento. O Manto da Apresentação é um exemplo disto. Peça profusamente bordada, com minuciosos detalhes, foi confeccionada a partir de uma manta reaproveitada, planejada, modelada e adornada pelo próprio Bispo. Para sua confecção utilizou torçais coloridos, pequenos pingentes de cortina, galões, franjados e bordados. Neles, estão expostos elementos figurativos, signos, palavras, números, textos, símbolos náuticos, religiosos, entre outros.


O manto foi produzido ao longo de quase 30

porâneo, sendo alvo de discordâncias entre críticos

anos e seria usado no dia de sua “passagem”, o en-

de arte, pesquisadores e conhecedores de arte. O que

contro com Deus e do grande Julgamento Final.

sabemos é que Bispo, mesmo à margem do contex-

É uma espécie de cartografia da vida de Bispo, que

to da arte, Bispo criou, no período de quase 50 anos,

através dos bordados, apresenta registros de pas-

obras de grande referência plástica. Algumas chegam a

sagens de sua existência, podendo ser considerado

apresentar estreita proximidade em seu aspecto formal

um autorretrato do próprio artista. A imponência

com obras de renomados artistas do circuito nacional e

e o caráter sagrado que a obra possui dão à peça

internacional da arte contemporânea. Talvez seja por

um teor mítico e enigmático, despertando sentidos

isto, como afirma Ricardo Aquino, ex-diretor do Mu-

e fruição no espectador.

seu Bispo do Rosário Arte Contemporânea, um dos

Bispo não se considerava artista, nem entendia a

motivos porque tantos se preocuparam em reconhecer,

sua criação como obra de arte. Na verdade, elas fa-

entre as suas obras, semelhanças com a de outros artis-

ziam parte de sua missão: o inventário que havia cons-

tas, de cujo desenvolvimento Bispo nunca ouvira falar.

truído para “Deus”. Recusou alguns convites para

Outro aspecto que também aproxima suas obras

participação de exposições de arte, abrindo mão, com

do universo artístico contemporâneo é a temática utili-

muita resistência, de participar de uma mostra que

zada para as suas criações. Nelas, Bispo fez uso do seu

reunia trabalhos de internos de hospitais psiquiátri-

repertório comum, de suas memórias, vivências e do

cos. Assim, expôs apenas os estandartes e algumas de

seu cotidiano na Colônia. Cada obra conta um pouco

suas vestes. Esta mostra foi chamada À Margem da Vida,

de sua história, de tal modo, que é possível estabelecer

realizada em 1982, no MAM-RJ.

relação à suas experiências vividas, como: marinhei-

Seu acervo só pôde ser contemplado pelo públi-

ro, pugilista, funcionário doméstico, segurança, dentre

co após a sua morte. Bispo morreu aos 80 anos, em

outras vivências as quais fazem alusão a momentos de

5 de julho de 1989, vítima de infarto do miocárdio,

sua infância em sua terra natal.

broncopneumonia e arteriosclerose. No dia 18 de ou-

Na arte contemporânea, são recorrentea temas re-

tubro, no mesmo ano de seu falecimento, uma grande

ferentes à memória, às crenças, às questões particula-

exposição foi realizada sob a organização e curadoria

res e do cotidiano, bem como aos sentimentos, como:

do crítico de arte Frederico Morais, principal dissemi-

emoções, medos, angústias, entre outros. Millet, crítica

nador da obra de Bispo no cenário da arte contempo-

de arte, afirma que “a arte tornou-se contemporânea,

rânea. Intitulada Registros de minha Passagem pela Terra, a

falando-nos da vida de todos os dias” (1997, p.19).

exposição aconteceu no Parque Lage – RJ, e reuniu

Embora possuindo todos os estigmas de mar-

aproximadamente 600 obras do artista, alcançando

ginalização social presentes ainda na sociedade, ou

grande repercussão no campo da arte.

seja, negro, pobre, nordestino e louco, Arthur Bispo

Suas obras percorreram museus e galerias dentroe

do Rosário, suplantou a tudo e a todos com a suas

fora do Brasil. Em 1992, participou da Mostra Viva

magníficas criações e com o seu reconhecimento

Brasil Viva, em Estocolmo, Suécia; e, em 1995, da 46ª

no mundo artístico. Suas obras e sua vida são cons-

Bienal de Arte de Veneza, Itália.

tantemente pesquisadas nos mais diversos campos

Muitas críticas, elogios e questionamentos surgi-

do conhecimento, contribuindo para a dissemina-

ram em volta de Bispo e de suas criações. Até hoje, há

ção de sua história como um sujeito nordestino com

controvérsia sobre sua posição como artista contem-

ampla referência cultural regional.

63


64

Thiago Trapo é artista e graduando em Filosofia pela UFPB. Atualmente se dedica a intervenções urbanas, trabalhos de direção de arte, designgráfico e identidade visual. cargocollective. com/trapo



CONEXÃO

NORDESTE Esta revista faz parte das ações do Selo “Conexão Nordeste” cujo resultado surgiu a partir do Encontro Nordestino de Produção Cultural Independente, realizado em novembro de 2015, pela Secretaria de Estado da Cultura da Paraíba e sua vinculada FUNESC. O Selo “Conexão Nordeste” propõe

intercâmbio dos segmentos culturais de seis estados do nordeste, com o objetivo de criar a unidade regional, a fim de atender a meta 25 do Plano Nacional de Cultura que prevê um aumento em 70% nas atividades de difusão cultural em intercâmbio nacional e internacional.


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