O retrato

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JOร O FERNANDES

O RETRATO

Setembro 2005

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JOÃO FERNANDES

O RETRATO

REVISÃO Fernanda Barros Palma da Rosa

Setembro

2005

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O RETRATO PEÇA TEATRAL EM QUATORZE CENAS

PERSONAGENS (em ordem alfabética)

Fernando Gisele Luíza Policial Repórter 1 Repórter 2 Serafim

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O RETRATO

PRÓLOGO

(Em cena, um policial e uma mulher.)

Policial: - A vizinhança ouviu uma gritaria e me ligou. Chamei a senhora para não entrar sozinho. Luísa: -

Fez bem, olhe!!!

Policial: - Está morta... foi morta com esse punhal, acredito eu... parece a senhorita Gisele, mas... Luísa: -

Parece mais velha! Não foi o punhal que a matou, mas uma doença que ataca a alma dos seres homanos!

Policial: - Como? Luísa: -

Nada, apenas devaneios, eu vivo pensando alto!

(O policial encontra uma foto caída no chão. Surge a foto de Gisele.)

Policial: - Veja, é ela. Como está bonita! Luísa: -

Acho que esse era o retrato que Serafim queria.

Policial: - O fotógrafo que desapareceu? Luísa: -

Foi... e como ela está linda aqui! Acho que foi a primeira vez que a vi. Ainda me lembro como se fosse ontem...

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CENA I

(Ateliê do fotógrafo Serafim Basil, homem reconhecido internacionalmente por ter fotografado as mulheres mais bonitas do mundo. Luísa Otis Femm, que já foi uma das mulheres mais lindas do mundo e hoje se tornou dona de uma agência de top models, aguarda as fotos de uma de suas modelos.)

Luísa: -

As fotos da Sandrinha ficaram prontas?

Serafim: - Estão aqui. Fiz o que pude, mas Photoshop não faz milagres! Luísa: -

Você não muda, hein, meu amigo! Ela até que é bem bonitinha...

Serafim: - Bonitinha é uma feia arrumadinha! Você deveria parar de enrolar essas meninas, isso sim! Elas pagam o dinheiro que não têm, acreditando que entrarão no mundo da moda. Você vende a ilusão de que serão conhecidas, enche o ego delas de sonhos! Luísa: -

Ora, meu caro, algumas delas acabam se destacando, é uma peneira! E, na época em que vivemos, tudo você tem que pagar para saber se tem qualidade! O cantor que grava um disco independente e depois fica com tudo empilhado em casa, a atriz que paga para entrar em um grupo de renome, tudo tem um preço a investir! Tem que se pagar um book para poder entrar no mercado. E quem somos nós para decidir o que é belo? A beleza em nossos tempos se torna cada vez mais exótica!

Serafim: - Minha amiga, por favor, não comece a divagar para cima de mim! A única coisa que interessa para você é o dinheiro dessas meninas, não a carreira. Dinheiro para manter o seu glamour! Luísa: -

Ora, assim que encontrar uma modelo em quem compense investir, eu largo tudo e me dedico única e exclusivamente a essa pessoa.

Serafim: - Não é nessa escolinha de modelos que custa o olho da cara que vai encontrar. Eu tenho comigo um achado! Vou fotografá-la hoje!

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Luísa: -

Não acredito, você está fazendo onda para cima de mim...

Serafim: - Para mim não interessa se acredita ou não. A menina é uma simpatia, tem cheiro de pureza, linda, muito linda! Não existe metáfora no mundo para compará-la! Flores... ela é mais, seu odor é melhor! Estrelas... seus olhos brilham mais! Difícil descrevê-la! Luísa: -

Eu, hein! Está apaixonado por ela?

Serafim: - Fique com sua ironia e sua escolinha de patricinhas burguesas sonhando com o estrelato! Luísa: -

Fiquei curiosa em conhecer a menina!

Serafim: - Pode ir tirando seu cavalinho da chuva! Não vai impregnar a menina com seu ar de vaidade! Eu a conheço, vai querer levá-la para esse antro de cobras... Luísa: -

Ela pode ganhar muito dinheiro!

Serafim: - Dinheiro, dinheiro, dinheiro, maldito mundo capitalista! Luísa: -

Deixa disso, você já passou da idade de adolescente rebelde! O mundo é isso aí, meu caro! Vai me dizer agora que você não está cobrando nada para fotografá-la?

Serafim: - Não. Luísa: -

Não?

Serafim: - Não, é um trabalho artístico! Ela resolveu colaborar. Na verdade, estou pagando para fotografá-la! Luísa: -

Você poderia ter usado uma de minhas meninas...

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Serafim: - Olha, minha cara, eu não ganho dinheiro retocando mulheres, você sabe disso! Eu só estou ajudando-a na agência. Meu trabalho é artístico!

Luísa: -

Bom saber, assim da próxima vez não lhe pago! E quando pretende expor as fotos?

Serafim: - Talvez não exponha. Luísa: -

Por quê?

Serafim: - Não tenho que lhe dar satisfações. Luísa: -

Não consigo entender para que serve seu trabalho artístico então!

Serafim: - Eu disse talvez, entendeu? Talvez não quer dizer que nunca exponha. Luísa: -

E quando vai me apresentar a menina?

Serafim: - Negativo! Luísa: -

Por favor, eu prometo não atrapalhar a sessão de fotos!

Serafim: - Luísa, suas fotos estão aí! Luísa: -

Não vou nem falar com a menina!

Serafim: - Não me faça ser indelicado, quem sabe um dia eu a apresento! Luísa: -

Não entendo essa cisma comigo!

Serafim:

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-

Luísa: -

Minha amiga, conheço como funciona sua cabeça, as pessoas não passam de um produto vendável! Não quero fazer parte dos seus negócios.

Em que século você vive? Século XIX? Parece um personagem tirado dos livros de Oscar Wide!

Serafim: - Tchau, Luísa! Não me faça perder a paciência com você! Luísa: -

Tudo bem, mas você não tem o direito de impedir que... como ela se chama?

Serafim: - Já lhe disse adeus! Luísa: -

Não seja estraga-prazeres!

Serafim: - Um outro dia eu a apresento, nem sei por que lhe falei dela. Luísa: -

Se ela é como diz, mais cedo ou mais tarde eu acabo conhecendo!

Serafim: - Au revoir Mademoiselle! Luísa -

Seu francês continua horrível!

Serafim: - Merci!

CENA II

Gisele: -

Serafim, oi!

Serafim: - Já chegou? Aguarde só um pouco, estou preparando o set.

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Gisele: -

Tudo bem. A gente tinha combinado uma hora, não?

Serafim: - Isso mesmo, mas se terminarmos antes eu lhe pago a hora inteira. Gisele: -

É que prometi a minha tia passar no médico para pegar os exames dela.

Serafim: - Sem problema. Como acho você tão dedicada a sua tia, tão responsável! Você é uma pessoal especial! Gisele: -

Obrigada! Apenas tento fazer o que acho correto.

Serafim: - Isso é importante, de que adianta beleza sem alma! Gisele: -

Às vezes acho o senhor um personagem de romances do século XIX!

Serafim: - Acho que já ouvi isso antes! Eu não pareço tão velho, pareço? Gisele: -

Não senhor...

Serafim: - Então pare de me chamar de senhor! Gisele: -

Desculpe-me!

Serafim: - Não precisa se desculpar. Vamos às fotos? Gisele -

É para isso que estou aqui!

(Sessão de fotos surge no telão, utilizando recursos de vídeo.)

Serafim: - Prontinho, só revelar!

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Gisele: -

Posso ver as fotos?

Serafim: - Passe na terça-feira, já estarão prontas. Gisele -

Obrigada!

CENA III

(Som de campainha.)

Serafim: - Só um minutinho! (Abre a porta.) Gisele: -

Desculpe o incômodo! Disse-me que podia passar aqui...

Serafim: - Ah, sim! Entre, Gisele, vou pegar as fotos! Perdoe-me você, tinha me esquecido! Gisele: -

Tudo bem. Ficaram boas?

Serafim: - Ficaram maravilhosas! Espere um pouco, vou pegá-las. Fique à vontade!

(Campainha novamente.)

Gisele: -

Pode deixar que eu atendo!

(Luísa entra.)

Luísa: -

Com licença!

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Gisele: -

O Serafim foi buscar umas fotos e já volta.

Luísa: -

Você é...

Gisele: -

Gisele. Você é Luísa Femm? Nossa, você é muito bonita!

Luísa: -

Gisele: -

Você deve ser a jovem modelo de quem Serafim me falou. É muito bonita mesmo!

Ele falou de mim? Engraçado, falou da minha beleza? Ele sempre me diz que a beleza não é importante sem a alma!

(Volta Serafim.)

Serafim: - E ainda digo! Parece que deu seu jeitinho, Luísa! Luísa: -

E eu não tirei nenhum pedaço dela como vê!

Serafim: - Ainda não! Gisele: Luísa: -

Ela até agora foi muito gentil!

Serafim tem restrições sobre minha forma de ver o mundo, mas o mundo é um eterno negócio! Nada lhe é dado gratuitamente! Todo favor que lhe fazem sempre é com o intuito de alguma retribuição.

Serafim: - O mundo não gira em torno de dinheiro, existem pessoas que vivem bem sem ele! Luísa: -

Diga-me o nome de uma, apenas uma!

Gisele: -

É impressionante a afinidade de vocês!

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Luísa: -

Serafim precisa voltar da utopia!

Serafim: - E você do reino de Maquiavel! Luísa: -

Ora, seu...

Gisele: -

E as fotos?

Serafim: - Ah, sim! Aqui estão. Veja, não estão lindas? Luísa: -

Fantásticas! Nisso concordo com você, ficaram boas mesmo! Um pouco de produção, um acessório, e você poderia ficar milionária!

Serafim: - Dona Luísa Femm, por favor, se for aliciar meninas, faça em outro lugar! Luísa: -

Ela não precisa concordar comigo, mas é uma proposta de carreira.

Gisele: -

Posso ficar com uma?

Serafim: - Escolha uma. Gisele: -

Essa aqui!

Luísa: -

E tem bom gosto para fotos também, realmente é a mais bonita!

Gisele: -

Também achei, a gente podia ficar assim a vida toda!

Luísa: -

Concordo com você!

Serafim: - Não diga isso! Existe uma lenda que diz que o retrato mostra a beleza de nossa alma enquanto vamos perdendo a beleza externa!

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Gisele: -

Eu não me importaria nem um pouco se minha alma envelhecesse e eu continuasse jovem e bela!

Serafim: - Você fala sem pensar! Luísa: -

Serafim, meu amigo, não seja infantil! Todas as pessoas que conheço dariam tudo que têm para se manterem jovens a vida toda!

Serafim: - Eu não! Luísa: -

Não seja mentiroso! Você vai me dizer que contratou Gisele pela beleza interna? Lógico que não! Ainda me vem com esse discurso judaico cristão! Minha filha, acredite, se você fosse deformada, horrível, ele não a contrataria! E fica aí com esse discurso de arte! Você não é diferente de ninguém, apenas um pouco hipócrita!

Serafim: - Você não tem o direito... Luísa: -

Poupe-me, Serafim! Pergunte, Gisele, pergunte se ele a contrataria se você não tivesse a aparência que tem! Com toda tecnologia que temos, ainda não inventaram uma máquina que fotografe a alma das pessoas!

Serafim: - Luísa, basta! Retire-se, você já passou dos limites! Luísa: -

Estou de saída nesse momento, Serafim! Gisele, se estiver a fim...

Serafim: - Luísa! Luísa: -

Gisele, se estiver a fim de ganhar um bom dinheiro, reconhecimento e fama, procure-me! Esse é meu cartão. Olhe, se não engolirmos o mundo, o mundo nos engole!

Serafim: - Eu já pedi que saísse!

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Luísa: -

Estou indo, Serafim! Quando vai descobrir que estamos no século XXI? Passar bem!

Serafim: - O mesmo!

(Luísa sai.)

Gisele: -

Serafim, você teria me contratado se não fosse jovem e bonita?

(Serafim em silêncio.)

Gisele: -

Uma resposta sincera, por favor!

Serafim: - Não se deixe levar pelo que a Luísa falou. Ela anda meio desiludida, só pensa em dinheiro! Não aprendeu ainda que o tempo passa! Gisele: -

Não foi isso que eu perguntei.

Serafim: - Para o tipo de foto de que eu estava precisando sim, mas não necessariamente contrato pessoas pela beleza simplesmente. Gisele: -

Serafim, Serafim... Às vezes penso que você não é desse mundo! Tenho que ir agora.

Serafim: - Tudo bem.

CENA IV

(O cenário muda para o quarto de Gisele, onde ela está observando a foto.)

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Gisele: -

Ficou linda mesmo a foto, muito bonita! Não me arrependo do que disse. Eu daria tudo para que essa foto envelhecesse e eu continuasse jovem! Até minha alma eu daria com prazer! Tenho que aproveitar minha juventude! Amanhã vou procurar Luísa, ela deve ter muitos contatos. Minha tia anda muito doente e se eu ganhar algum dinheiro posso melhorar a vida aqui. Eu daria a minha alma!

(A partir desse momento, aparece no telão uma foto. No decorrer do espetáculo, ela vai envelhecendo.)

CENA V

(Escritório de Luísa.)

Gisele: Luísa: Gisele: -

Luísa: -

Gisele: Luísa: -

Gisele: -

Posso entrar? À vontade! Pensei que não viesse mais.

Demorei um pouco porque tive que conversar com minha tia e, não sei se me entende, ela tem todo um medo...

Claro que entendo! Quando fiz meu contrato pela primeira vez, aceitei posar para a revista “O Sedutor", em fotos ousadas! Minha mãe ficou um bom tempo sem falar comigo, mas tudo mudou quando minha carreira deslanchou, e ela acabou entendendo. E na época nem eram tão ousadas assim, eu diria até que inocentes! (Sorri.) Só que mostrar um seio já era um choque para sociedade!

Não sei se teria coragem!

Tudo tem sua hora, é só uma questão de amadurecimento! Então, quer se agenciar?

Seriam fotos em revistas, desfiles... o quê?

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Luísa: -

Gisele: Luísa: -

Gisele: Luísa: -

Não, você merece coisa maior! Passarelas, comerciais, você será uma estrela!

Se chegasse a ser como você já ficaria feliz!

Você será maior, muito maior! Na minha época, não tínhamos a quantidade de mídia que hoje temos. Vou ligar para cada um dos meus contatos, rapidinho você estará na televisão!

Poxa, isso é um sonho!

Não precisa ficar impressionada, tem tanta gente fútil na televisão, mas vamos devagar! Vou agendar umas fotos para você amanhã de manhã. Sábado, Patrick Garou, o homem das etiquetas, lhe dará algumas dicas de posturas, movimentos, e dia 23 já tenho um desfile para você!

Gisele: -

23? Não sei.

Luísa: -

Algum problema?

Gisele: -

É que meu namorado, ele tem uma apresentação na Casa de Dionísio.

Luísa: -

Músico?

Gisele: -

Sim. E tem muito talento! Um dia vai fazer muito sucesso!

Luísa: -

Tocando na Casa de Dionísio eu duvido!

Gisele: -

Luísa: -

Como você mesma disse, tudo tem seu tempo! E ele está começando de baixo.

Converse com ele, deve entender. E se toca sempre, um dia não vai fazer diferença.

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Gisele: -

Luísa: -

Gisele: -

Luísa: -

Gisele: Luísa: Gisele: -

Sabe o que é, ele trabalha numa oficina de autopeças, de onde tira algum dinheiro, e toca de vez em quando porque não consegue viver de música. Você sabe, é difícil!

Gisele, tudo é difícil quando falta ambição, quando não se acredita no que se faz! Cada pessoa é aquilo que acredita ser! Esse seu namorado tem que decidir se ele é músico ou um empregado de autopeças.

Ele é um ótimo músico! E vai acertar, você vai ver! Que tal ir vê-lo tocar num dia desses? Serafim foi e adorou! Achou muito romântico, uma fábula de Cervantes!

Ele quis dizer Quixotesco, não? Se Serafim gostou é porque deve beirar a simplicidade! E eu não sou uma pessoa que freqüenta a Casa de Dionísio. As pessoas vão lá para beber, falar alto, não é o tipo de lugar que gosto de freqüentar! Converse com ele! Você tem um desfile dia 23 e ele, uma apresentação, artistas têm que conviver com isso!

Isso é verdade!

A princípio, como é seu nome? Gisele Cordeiro Silva.

Luísa: -

Cordeiro Silva, simples demais! Que tal Gisele Jolie?

Gisele: -

Por que Jolie?

Luísa: -

Mademoiselle, é francês, fica mais chique, não acha?

Gisele: -

Minha tia não vai entender, mas... Femm é seu nome?

Luísa: -

Sim. Para falar a verdade é grande também, Otsi Femm, eu apenas tirei o Otsi. Não gostou do seu nome?

Gisele:

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Luísa: -

Gisele: Luísa: -

Tudo bem, se for ganhar mais por isso!

Lógico que vai! O nome do produto é tudo! A propósito, como se chama seu namorado?

Fernando Máximo Siqueira.

Fernando Máximo Siqueira... Acho que ele precisa mudar o nome artístico também, parece ator de novela mexicana!

Gisele: -

Quem sabe ele não faz sucesso no México?

Luísa: -

Quem sabe.

Gisele: -

Está bem, Gisele Jolie, acho que vou acostumar!

Luísa: -

Que tal assinarmos o contrato então?

Gisele: -

Tudo bem, onde assino?

Luísa: Gisele: -

Leia com atenção antes de assinar para que não haja mal-entendido. Certo.

(Gisele começa a ler o contrato. Imagens no telão com referência a contratos milionários.)

Gisele: -

Luísa: -

Que quer dizer ‘Caso o contrato seja quebrado, nosso acordo será desfeito, mas o sinal não será devolvido’?

Isso é uma cláusula para meninas que se filiam à agência e deixam um sinal em dinheiro, mas você não está entrando com dinheiro, correto? Então não precisa pensar nisso. Você assina aqui abaixo da cláusula.

Gisele:

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-

Ok.

CENA VI

(Um casal na penumbra começa a surgir, Gisele e Fernando.)

Gisele: -

Queria muito vê-lo, você nem sabe o que aconteceu!

Fernando: - Também tenho uma surpresa para você! Acredito que ficará muito feliz! Gisele: -

Surpresa? Adoro surpresa!

(Fernando mostra um anel para Gisele.)

Fernando: - Quer se casar comigo? Eu prometo fazê-la feliz sempre! Você é minha princesa encantada, tudo que mais quis na vida! Então? Gisele: -

É que... Bom, eu posso deixar para responder mais tarde?

Fernando: - Você não me ama? Gisele: -

Amo... é que...

Fernando: - Que foi? Gisele: -

Preciso de tempo para pensar! Eu o amo muito, mas... preciso pensar! Tenho minha carreira agora e...

Fernando: - Maldita carreira, sempre a sua carreira!

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Gisele: -

Não fale assim...

Fernando: - Sempre tem alguma coisa que não lhe permite me ver tocar! Um dia um desfile, outro dia um comercial para gravar, nunca pode me ver tocar! Gisele: -

Essa é a minha surpresa! Esta semana estou livre, quando toca?

Fernando: - Vou tocar na quinta na Casa de Dionísio. Gisele: -

Nada me impedirá de ir! Na quinta estarei lá e comemoraremos nosso noivado! Separe um bom vinho!

Fernando: - Então é sim? Vai tomar vinho? Gisele: -

É isso que se toma na casa de Dionísio, não?

Fernando: - Lógico! Vou avisar a todos! Adorariam vê-la, meu encanto, minha princesinha! Gisele: -

Eu o amo!

(Beijam-se. A luz vai diminuindo.) CENA VII

(Um bar. Muitas pessoas já saíram.)

Luísa: -

É, acho que o Fernandinho não teve uma noite boa!

Serafim: - Luísa! Está aborrecendo Gisele! Luísa: -

Está bem, eu fico quieta! Não fique triste, Gisele! Acredito que foi a noite! Talvez a próxima vez que o virmos ele esteja melhor.

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Gisele: -

Eu não entendo, não compreendo! Acho que faz muito tempo que não o vejo tocar. Sempre foi tão bonito! Nunca desafinou, eu juro, nunca pronunciou uma nota diferente! Sempre tão entusiasmado, hoje...

Serafim: - Acho que não teve um dia muito bom. Em todo ramo se tem dias bons e dias ruins! Luísa: -

Serafim... daqui a pouco vai querer que a menina acredite em Papai Noel! Gisele, ele é muito esforçado, batalhador, mas falta alguma coisa. Ele até canta bem, mas falta vontade! Vontade de ir além! Algumas pessoas nascem assim!

Serafim: - Eu não acredito no que ouço, ora... Gisele: -

Deixe, Serafim, acredito que ele tenha uma explicação!

Luísa: -

Bom, temos que ir, Gisele, não poderei esperar o astro...

Serafim: - Luísa!!! Luísa: -

Está bem, está bem! Eu a vejo amanhã, querida! Vamos então, Serafim?

Serafim: - Não fique assim, Gisele! Procure-me e acredite que as coisas se ajeitarão! Vamos, Luísa, que pretendo chegar cedo em casa! Luísa: -

Vamos.

(Gisele fica sozinha, um pouco abatida. Saem Serafim e Luísa. Entra Fernando todo feliz.)

Fernando: - Que alegria que você veio me ver, não sabe como fico feliz! Nada mais para mim fazia sentido, você é o sentido da minha vida! Principalmente hoje que não fui muito bem.

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Gisele: -

Você foi horrível, extremamente horrível! Nunca o vi tão ruim!

Fernando: - Sabe o que é, ando meio cansado disso tudo! E agora que aceitou minha proposta de casamento eu pensei: acho que vou parar com essa coisa de música, a gente precisa de algo mais sólido! E me chamaram para trabalhar na montadora Borg, um salário fixo, sabe? E quando a gente... Gisele: -

Você está brincando, montador? E o sonho de gravar, tocar na rádio, ouvir suas músicas cantadas por outras pessoas? Vai se submeter a um servicinho de produção? Não acredito que estou ouvindo isso!

Fernando: - Eu pensei que ficaria feliz! Nós dois vamos ter uma vida juntos, filhos... Isso tudo é ilusão! Sabe, esses dias cheguei à conclusão... Gisele: -

Fernando, Fernando... como você não tem ambição! E eu, diga, vou ter que virar dona de casa, lavar, passar? Filhos, quantos, dois, três? Ficar gorda, perna cheia de varizes, é isso que você quer? Acho que sim! Uma mulher gorda lavando e passando para você!

Fernando: - Não entendo! Gisele: -

Não entende? Simples, acabou. Acabou! Ou você acha que eu vou trocar minha carreira para ser dona de casa? Eu tenho sonhos, ambições, eu preciso vencer a qualquer custo! Pensei que pensasse assim!

Fernando: - Não pode estar falando sério! Eu a amo! E você sempre disse que me amava!

Gisele: -

Conjugou bem o verbo, amava! Amava uma pessoa que sonhava, que acreditava que a vida era mais! Uma pessoa que cantava, compunha e acreditava em si! Não um montador, uma pessoa comum que nunca vai chegar a lugar algum! Eu estou cheia! Adeus, Fernando!

Fernando: - Princesa, por favor, você é tudo para mim! Eu juro, faço o que você quiser! Não me deixe, por favor, eu a amo! Gisele:

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-

Você é deprimente, Fernando, muito deprimente! Acredita que eu, eu, Gisele Jolie, seria feliz com uma pessoa deprimente como você? Bye!

Fernando: - Gisele, volte! Volte, Gisele... Não me deixe aqui... Não me deixe...

(A luz vai escurecendo enquanto Fernando caminha melancólico até sair de cena.)

CENA VIII

(Quarto de Gisele. Ela conversando consigo mesma.)

Gisele: -

-

Não agüentei aquela cena patética! Saí. Saí e me entreguei ao primeiro homem que me encontrei! Só queria prazer! Não me interessava mais o amor, sentimento sórdido e estúpido! Percebi como as pessoas se tornam patéticas quando amam, dizem coisas patéticas, têm atitudes patéticas! Como sempre me diz Luísa, nos tempos em que vivemos, não existe espaço para sentimentalismo! Para hipocrisia talvez, mas não para idiotices sentimentais! Naquela noite me embriaguei, bebi muito, bebi como um homem! Só o que me interessava nos homens era prazer! No primeiro bar em que entrei, foi onde me entreguei ao álcool e onde fitei um dos rapazes. Bonito, e era só o que me interessava! Saímos bêbados para um canto escuro, onde havia apenas a luz do poste passando por uma pequena fresta. Fizemos sexo ali, em pé! Depois o larguei, pois para mim não era ninguém e nunca mais o veria. Só o prazer me interessava, amor não, só o prazer! Quando cheguei em casa, fui contemplar a foto que Serafim tinha me dado. Observei uma ruga. Estranho! Tive a impressão de que a expressão da foto havia mudado. Também bêbada, deveria ser apenas ilusão!

CENA IX

(Gisele deitada. Barulho na porta. Ela levanta.)

Gisele: -

Serafim? A essa hora?

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Serafim: - São onze e meia! Gisele: -

Nossa, tenho que estar a uma na agência!

Serafim: - Já falei com Luísa, você não precisará ir hoje. Creio que não esteja bem depois do que aconteceu. Gisele: -

Não, preciso ir! Ai, minha cabeça dói! Poxa, acho que exagerei ontem, mas do que está falando?

Serafim: - Você não está sabendo? Todos os jornais estão noticiando! Gisele: -

Fala logo, está me deixando nervosa!

Serafim: - Seu noivo, o Fernando, ele... se matou. Gisele: -

Como? Larguei ele ontem em casa um pouco... Como?

Serafim: - Um tiro no ouvido! Não se sabe o motivo. Sabe se ele tinha dívidas? Gisele: -

Não, acredito que não, mas talvez a depressão pela péssima apresentação de ontem... Sabe, ele não estava bem, eu o deixei só, não pensei...

Serafim: - Oh, pobre menina! Sei o que deve estar sentindo, sei de seus sentimentos por ele! Gisele: -

Eu não consigo chorar! Eu quero, quero muito, mas não consigo!

Serafim: - Você deve estar em choque, descanse hoje! Luísa disse que não tem problema não ir trabalhar essa semana. Gisele: -

Eu preciso trabalhar!

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Serafim: - Os repórteres logo estarão procurando-a para falar sobre o caso. Gisele: -

O que direi? A culpa foi minha, foi minha, não devia tê-lo deixado naquela noite!

Serafim: - Calma, menina, tudo se ajeita, qualquer coisa! Sabemos que não foi culpa sua!

CENA X

(No telão, aparecem vários desfiles, entrevistas, o prestígio de Gisele crescendo. A partir deste momento, no decorrer do espetáculo, aparece um quadro que mostra o envelhecimento da personagem conforme suas performances.)

Repórter 1: - Gisele, que tem a dizer sobre sua carreira? Gisele: -

Realmente trabalhei muito e tive uma boa assessoria! Sou muito grata à Luísa, que vem me ajudando muito na carreira. Tenho dado duro para poder me manter onde estou!

Repórter 2: - Você não é mais um rostinho bonito da mídia, como as vindas dos reality shows ou concursos de miss, que logo vão sumir assim que perder o atrativo? Gisele: -

Eu sou mais que um rostinho bonito! Minha carreira vem se prolongando há quase dez anos e ainda continuo na mídia.

Repórter 1: - Impressionante! Como faz para manter a beleza durante tantos anos? Eu diria que você continua a mesma! Gisele: -

Uma vida regrada! Malho muito e me utilizo das maravilhas tecnológicas do nosso tempo.

Repórter 2:

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Gisele: -

É verdade que não fez nenhuma plástica ainda?

Vocês precisam aprender a perguntar coisas diferentes! A entrevista acabou, obrigada!

(Os repórteres saem. Entra Luísa.)

Gisele: -

Nossa, como estou cansada!

Luísa: -

Largue disso, menina, você parece a mesma que conheci há tempos!

Gisele: -

Luísa: -

Gisele: Luísa: -

Gisele: -

Luísa: -

Talvez por fora, mas parece que estou um bagaço por dentro! Luísa, quem era o rapaz que estava sentado ao lado da senhora Matarazzo hoje?

Era Gaston, não se lembra dele? O menino da casa da tia Ágatha, irmã de Serafim.

Nossa, mas ele cresceu! E que belo homem se tornou!

Também está com vinte anos de idade, na época tinha treze, mas ainda é um menino, Gisele!

Luísa, quem determina o tempo somos nós! Nós criamos o relógio e os calendários, sem eles a idade não faria a menor diferença e sim a aparência!

Você tem andado muito comigo, Gisele!

(Entra Serafim, afobado.)

Serafim: - Perdoe-me o incômodo! É que tinha que falar com você urgentemente! Gisele: - Olá, Serafim! Quanto tempo!

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Luísa: -

Quer que eu saia?

Serafim: - Não precisa, não precisa! É sua tia, Gisele! Está muito mal e precisa vê-la, não sei quanto tempo pode durar, tinha que lhe avisar! Gisele: -

Tenho um desfile amanhã e umas fotos na sexta, dou uma passada no sábado para visitá-la.

Serafim: - Pode ser tarde! Luísa: -

Não seja trágico, Serafim! Temos que pensar positivo, ela vai melhorar e vamos comemorar juntos o final desse ano!

Serafim: - Vim só comunicar-lhe, pois foi ela quem me pediu. Eu a vi, ela está muito mal, Gisele! Eu vim fazer a minha parte, informar. Gisele: -

Então, eu já disse que irei visitá-la no sábado!

Serafim: - Tudo bem. Eu tenho que ir. Gisele: -

Não vai ficar para tomar um drink? Tanto tempo que a gente não se vê!

Serafim: - Muito obrigado, mas tenho mais o que fazer... Ah, Gisele, você se lembra das suas primeiras fotos que fiz? Gisele: -

Sim.

Serafim: - A revista Película, especializada em fotos, gostaria de publicá-las, mas uma das fotos eu lhe dei. Você não me emprestaria? Não sei o que aconteceu, não acho nem os negativos dela. Gisele: -

É que faz muito tempo... Se eu encontrar lhe envio, Serafim.

Serafim:

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-

Muito obrigado! Agora tenho que ir mesmo.

CENA XI

Gisele: Luísa: -

Gisele: -

Luísa: Gisele: -

Que doce foi Gaston, não?

Cuidado com o menino, ficou babando por você! Tem algum interesse nele?

Não, apenas diversão! Ele é jovem! O bom dos jovens é que esquecem rápido, não sofrem e não matam a gente de tédio!

Ele ficou apaixonado por você!

A paixão é um sentimento que se tem na juventude, um sonho eterno! Acho que já passei dessa idade!

Luísa: -

Fala como uma anciã!

Gisele: -

Verdade!

(Entra Serafim.)

Gisele: -

Serafim!!! Aconteceu algo?

Serafim: - Sua tia, você ficou de ir vê-la, lembra? Gisele: -

Sim, havia me esquecido, mas nesse sába...

Serafim: - Tarde demais! Faleceu essa manhã.

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Gisele: -

Não!!! Não é possível! Não se brinca assim, Serafim...

Serafim: - Sinto muito, não estou brincando! O que houve com a menina dedicada que conheci há tempos, que se preocupava, cumpria promessas? Luísa: -

Calma, Serafim, você está fora de si!

Serafim: - Você sua... sua... Eu falei para ficar longe dela, mas não, você tinha que influenciá-la com suas idéias vis! Luísa: -

Liberdade, meu amigo! As pessoas crescem e assumem compromissos!

Serafim: - As pessoas perdem a ingenuidade e ganham isso que você chama de liberdade! Gisele: -

Saiam os dois!!!

Serafim: - Gisele, eu... Gisele: -

Saiam, eu falei!!! Pensam que sou criança! Eu sei me cuidar, saiam!

(Saem Luísa e Serafim. Gisele observa a fotografia: está com um sorriso maligno, com rugas e mais rugas.)

Gisele: -

O que está acontecendo comigo? A culpa não é minha! Não, eu não tenho culpa! O meu trabalho, não tive tempo... eu sempre estive ao lado dela... eu tenho um contrato a cumprir, eu não tenho tempo... É, não tenho tempo, ela sabia disso... Olha, tia, como estou linda... muito linda... você entende?

(A luz se apaga vagarosamente.)

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CENA XII

(No telão, cenas picantes de sexo e orgias.)

Luísa: -

Gisele!!!

Gisele: -

Hummm... minha cabeça! Luísa, que horas são?

Luísa: -

São quatro horas da tarde, minha querida!

Gisele: -

Perdão!

Luísa: -

Quem é Luiz?

Gisele: -

É o menino da Loocks Line, ai, por quê?

Luísa: -

Ele é menor, sabia?

Gisele: -

Não parecia.

Luísa: -

Gisele: -

Luísa: Gisele: -

Olha, se quer se deitar com a cidade inteira eu não ligo! Se quer iludir meninos, beber até tarde, eu não me importo! Agora se meter com menor, você não precisa disso! A mãe está pensando em processá-la!

Ei, que estresse! Não foi você quem disse que a vida é para ser vivida? E ele não é um garotinho, é uma garotão! E quer saber, é homem! Para o pai dele será uma vitória... (Ri.)

Ele é menor! E a gente tem um contrato!

Ok, ok, da próxima vez que eu for transar com alguém, peço para ver o documento de identidade!

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Luísa: Gisele: -

Soube do Gaston? Está internado numa clínica para viciados.

Vai me culpar por isso também? Ele sabia muito bem onde estava se metendo, e eu não tenho nada com isso! Ai, minha cabeça!

Luísa: -

Temos uma gravação às dezoito horas, vá se vestir!

Gisele: -

Tudo bem!

(Gisele começa a tirar a roupa. Chega bem próximo de Luísa.)

Gisele: -

Luísa: -

Gisele: Luísa: -

Não impressiono você? Não me acha linda também? Todos acham! Você tinha razão, a beleza é tudo!

Só que não dura para sempre! Temos um contrato, lembra? Não me provoque!

Perturbo você? Acho que sim! Perturbo todos que estão a meu redor!

É, minha cara, cuidado, não polua sua alma demais! Tenho que ir. Eu a espero em uma hora no estúdio, não se atrase. Temos um contrato!

CENA XIII

(Quarto de Gisele.)

Serafim: - Com licença! Gisele: -

Serafim, o que deseja?

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Serafim: - Eu, eu passei esse tempo morrendo de saudades e descobri que estava em casa hoje, resolvi passar por aqui! Gisele: - Que bom, aceita um chá? Serafim: - Sim, mas não é só isso!

Gisele: -

Diga! Você me dá medo, Serafim! Sempre que traz notícias, elas nunca são boas.

Serafim: - Lembra que lhe falei da revista Película? Ela agora está me cobrando. E não que precise do dinheiro, mas preciso emprestada aquela foto que lhe dei no começo de carreira. Gisele: -

Quem diria, o homem que vivia contra o capital, que repudiava a exploração da beleza... Como as coisas mudam! Já disse que havia perdido tal foto, não?

Serafim: - Não acredito que tenha feito isso! Foi um presente e... Gisele: -

Realmente não perdi, Serafim, mas tenho curiosidades! Por que me escolheu na época? Por que nunca expôs as outras fotos minhas?

Serafim: - Ora, ora... está brincando comigo, Gisele! Gisele: -

Vamos lá, um segredo seu por um segredo meu!

Serafim: - Resolvi fotografá-la pela beleza, mas não a beleza em si. Você tinha um quê de ingenuidade que me intrigava! O que me deixa triste é que mudou com o passar dos anos, não fisicamente, mas tem mudado suas atitudes.

(Gisele se aproxima, chega os lábios bem perto de Serafim.)

Gisele: -

Só isso, Serafim? Nenhum interesse masculino?

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Serafim: - Não estou entendendo! Gisele: -

Eu acho que está!

Serafim: - Você sempre foi uma jovem bonita, mas não passava de um anjo para mim!

Gisele: -

Não seja hipócrita, seu velho babão, diga a verdade! Nunca chamei sua atenção?

Serafim: - Não fale assim comigo! Eu... eu confesso que tive uma pequena atração, um amor platônico, mas nada além disso! Não ria de mim... E você anda tão diferente ultimamente! Gisele: -

Quer ver o retrato, seu trabalho mais brilhante?

Serafim: - Sim, onde está?

(Gisele traz o álbum e mostra o retrato.)

Serafim: - Onde está a foto? Gisele: -

Esta é a foto. Este foi o seu trabalho!

Serafim: - Uma velha com fisionomia horrível e olhos... olhos malévolos! Não acredito! Gisele: -

Creia, é o seu trabalho! Ou acredita que alguma plástica me manteria assim por tanto tempo?

Serafim: - Isso é amaldiçoado, está transformando você, temos que destruir!

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Gisele: -

Destruir? Destruir??? Nunca! Vou pegar seu chá.

Serafim: - Isso não é normal, Gisele, você não precisa disso! Nós destruímos e inventamos uma desculpa para a sociedade!

(Gisele sai.) Serafim: - Isso não é obra minha, é só uma foto! Podemos mudar isso!

(Gisele retorna, serve um chá a Serafim e começa a massagear seus ombros.)

Gisele: -

Não há por que destruir. O retrato, Serafim, é algo magnífico! Que outro autor conseguiu uma foto que tomasse lugar do modelo?

Serafim: - Isso é demoníaco, não é normal!

(Gisele pega um punhal e penetra na cabeça de Serafim, que se debruça morto sobre a mesa.)

Gisele: -

Perdão, Serafim, mas não posso deixar que isso atrapalhe minha vida! Eu não queria, juro que não! (Beija a boca do morto.) Você não entende! O que vou fazer agora? Pense... pense... já sei! Vou para casa que tenho em Campos! Lá acendo a lareira e tudo resolvido! Espalho as cinzas no jardim! É só um velho, ninguém vai sentir falta! É só ter calma!

CENA XIV

(Na sala, Gisele. Entra Luísa.)

Luísa: -

Olá, Gisele!

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Gisele: -

Oi! Nossa, como dormi!

Luísa: -

Tínhamos um ensaio hoje, lembra?

Gisele: -

Luísa, desculpe-me! É que cheguei tarde ontem, eu tive...

Luísa: -

Você estava numa festa! Felipe, o repórter daquele Pasquim, o Tubarão, ele a viu.

Gisele: -

Olha, Luísa, desculpe-me, é que...

Luísa: -

Gisele, tem visto Serafim?

Gisele: -

Faz muito tempo que não o vejo. Por quê?

Luísa: -

Gisele: -

Ele tinha uma exposição em Londres nesse mês e sumiu, ninguém sabe dele há uma semana. Ele tem uma irmã que mora em outro estado. Liguei para ela. Disse que falou com Serafim há duas semanas e que ele comentou que iria pegar uma foto com você para uma revista, depois não falou mais com ele.

Não chegou a falar comigo não! Que estranho! E... você sabe como essa cidade é violenta, assaltos, seqüestros relâmpagos, a polícia falou alguma coisa?

Luísa: -

Não, só perguntei para ver se você sabia de alguma coisa e...

Gisele: -

Diga logo!

Luísa: -

Luiz, ele matou a mãe envenenada, nessa quinta, e disse à imprensa que você pediu para que colocasse um calmante no remédio da mãe. Só que a substância era veneno.

Gisele:

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-

Não me lembro disso... mas ela havia dito a ele que eu era uma... e queria me processar! Bom, agora ela já não está entre nós e não é certo falar dos mortos!

Luísa: -

No que você se tornou?

Gisele: -

Não, eu não... e Luiz? Está bem?

Luísa: -

Gisele: -

Luísa: -

Gisele: -

Luísa: -

Gisele: -

Ele se matou na cela com um comprimido idêntico ao que deu para a mãe. Vim falar-lhe, pois amanhã estará estampado em todos os jornais. Luísa, você precisa se cuidar!

Eu me cuidar? Eu Luísa? Eu não vou para a prisão! Tenho dinheiro, fama, sou bela, muito bela, é uma coisa que vou ter até o fim da minha vida! E é o que interessa! Cuidado eu? Eu posso fazer tudo, tudo o que quiser: matar... mentir... sexo com quem quiser... eu posso! É, eu posso!

Tudo tem limites Luísa, tudo! Sabe que nosso contrato pode acabar a qualquer momento!

Pois termine o contrato! Amanhã vão chover empresários atrás de mim! Eu faço o que quero, como quero e a hora que quero... e sabe de uma coisa? Eu matei! Eu matei o Fernando, eu matei o Serafim e eu matei a mãe de Luiz! Eu destruo tudo, tudo o que se põe no meu caminho porque eu posso, eu...

Nosso contrato termina aqui! Acho que sua alma anda poluída demais, preciso de uma mais pura! Estou indo, você não fala coisa com coisa!

Não preciso de você, eu não preciso de ninguém!

(Luísa sai. Gisele, sozinha, pega a foto.)

Gisele: -

Então, está vendo? Eu posso! Você com esse riso escroto, esse rosto velho, não é meu rosto! Você não sabe como é bom ser linda e todos viverem para mim, você não sabe! E eu sou isso, linda e desejada! Minha

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tia, Serafim, Fernando, Gaston, Luiz, Luísa, todos me amavam e se foram! Eu estou aqui, sozinha, porque eu não preciso de ninguém, não preciso, apenas de mim! Eu sou o centro, eu... eu... eu!

(Pega um punhal. Continua seu surto.)

Gisele: -

Pare de rir, pare! Você é horrível, horrorosa, não pode sorrir! Eu é que posso estar alegre e rir... não estou rindo porque não quero! Eu amo Fernando, amo Serafim, amo Gaston, amo Luiz, eu sei o que é amor, pensa que não? Pensa que só você sabe? Eu estou na TV todos os dias, você me vê, você me ama, você tem vontade de estar no meu lugar! Pense! Você tem vontade de estar aqui em cima, no meu lugar, mas eu estou aqui! Você está aí embaixo, na frente da televisão, e acredita em tudo que digo! Pare de rir, pare de rir... Pare de rir!

(Parte para cima da foto com o punhal e começa a esfaqueá-la, rasgá-la, destruí-la. Começa a caminhar. Vai envelhecendo, envelhecendo e cai no chão. Entra Luísa e um policial.)

Policial: - A vizinhança ouviu uma gritaria e me ligou. Chamei a senhora para não entrar sozinho. Luísa: -

Fez bem, olhe!!!

Policial: - Está morta... foi morta com esse punhal, acredito eu... parece a senhorita Gisele, mas... Luísa: -

Parece mais velha! Não foi o punhal que a matou, mas uma doença qua ataca a alma dos seres humanos!

Policial: - Como? Luísa: -

Nada, apenas devaneios, eu vivo pensando alto!

(O policial encontra uma foto caída do chão. Surge a foto de Gisele como da primeira vez.)

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Policial: - Veja, é ela. Como está bonita! Luísa: -

Acho que esse era o retrato que Serafim queria.

Policial: - O fotógrafo que desapareceu? Luísa: -

Foi... e como ela está linda aqui! Acho que foi a primeira vez que a vi. Ainda me lembro como se fosse ontem...

Policial: - Vou avisar a chefatura para retirarem o corpo e fazerem autópsia. Luísa: -

Sim, senhor. Eu vou indo. Obrigada por me ter chamado!

(O policial sai. Luísa se dirige à boca de cena.)

Luísa: -

O ser humano! Indecifrável, incontrolável e incompreensível! Quanto mais convivo com a raça humana mais fico impressionada de como o ser humano é terrível! Ele crê num deus que ele mesmo matou! Ele cria uma realidade e acredita piamente nessa verdade, que é a sua verdade! E assim vai vivendo seu dia a dia, sua realidade virtual, sua verdade egocêntrica! Esse é o ser humano! Indecifrável, incontrolável e incompreensível!

(Para alguém na platéia.)

Luísa: -

Você é muito linda(o)! Já pensou em ser atriz, modelo? Esse é meu cartão, Luísa Otsi Femm!

(Luísa sai de cena.)

FIM

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