ANTOLOGIA
ANTOLOGIA 2018/2019
READ ON é um projeto que aposta nas jovens que leem ou que, aparentemente, perderam o gosto pela leitura ou, de facto, ainda não se tornaram leitores. O projeto visa apoiar e disseminar a paixão pela leitura nos jovens europeus, entre os 12 e os 19 anos, através do seu envolvimento ativo na reformulação das formas de vivenciar, compartilhar e criar literatura. O nome deste projeto é um acrónimo de Reading for Enjoyment, Achievement and Development of yOuNg people, constituindo-se como uma oportunidade para uma nova geração de leitores. Com o apoio do EACEA’s Creative Europe Community Program, o projeto READ ON tem uma duração de quatro anos (junho 2017 - maio de 2021) e conta com sete parceiros internacionais, incluindo escolas, festivais e centros de promoção cultural, todos com foco especial em jovens com menos de 20 anos: Haugaland videregående skole (Haugesund, Noruega), Skudeneshavn Internasjonale Litteratur-og Kulturfestival (Skudeneshavn, Noruega), Festivaletteratura (Mântua, Itália), Escrita West Midlands (Birmingham, Reino Unido), Agrupamento de Escolas Carlos Gargaté (Almada, Portugal), Associació Tantàgora Serveis Culturals (Barcelona, Espanha) e West Cork Music Ltd (Cork, Irlanda). O projeto READ ON está organizado numa série de ações coordenadas, focadas na promoção da literatura nas diferentes vertentes, hábitos de leitura, narrativas e mundo digital, relação entre autores e jovens leitores, procurando estimular a energia criativa dos jovens, expandir o seu conhecimento e dar respostas às suas preocupações e à plena expressão do seu potencial. Algumas das iniciativas planeadas pelo projeto READ ON incluem a criação de antologias colaborativas, a produção de podcasts dedicados a formas emergentes de contar histórias, a criação de uma oficina permanente para fãs de ficção, uma competição para narradores e autores de banda desenhada menores de 20 anos, encontros entre autores e jovens leitores, e autores que envolvem jovens na criação de histórias.
Marta Vicente & Hugo Rolo Escola Secundária Fernão Mendes Pinto
Este livro, que tens nas tuas mãos, a que se chamou “Antologia” teve origem numa das atividades do projeto READ ON. Como deves saber, as antologias escolares habituais são uma coletânea de obras que os estudantes devem ler. A partir deste conceito, os autores deste projeto foram pensando neste assunto e tiveram uma ideia: “E se tentássemos virar a ideia ao contrário, reunindo, numa antologia, os textos que os jovens gostam de ler?” E mais ainda... “E se fossem os próprios jovens a escrevere ilustrar os seus textos/ contos, com a ajuda de autores, e os publicassem, criando uma Antologia?” Foi isto que fizeram jovens de 4 países parceiros, cada um à sua maneira: Uns escreveram textos em conjunto com escritores e ilustraram-nos (Portugal), outros apenas se dedicaram à produção escrita (Inglaterra e Noruega). Os jovens italianos optaram por escolher 16 textos de autores consagrados. A edição portuguesa desta antologia, por uma questão de gestão de custos, publica os 4 textos portugueses, 1 texto escolhido pelos jovens italianos, 4 textos ingleses e 2 noruegueses. Esperamos que gostes da primeira Antologia READ ON, referente aos anos de 2018/2019. O parceiro Português READ ON Maio 2019
ÍNDICE PORTUGAL
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três passos para aprender a voar Moldura do Passado As palavras que nos Habitam Cartas para mim
13 33 51 67
INGLATERRA
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À Procura de Summer FallDeep O Rapaz que Teve o Sol na Palma da Mão 3:1
89 101 117 131
NORUEGA
145
FUGA Teu para sempre
147 157
ITÁLIA
165
FUGA
167
portugal
três passos para aprender a voar
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três passos para aprender a voar
ANDRÉ FERNANDES
ANDRÉ FERNANDES
três passos para aprender a voar Morri pela primeira vez quando ouvi o som do motor arrancar o meu pai de mim. De nós. Foi no olhar dela que senti a dor do que nos tinha sido tirado. Tudo isto foi muito antes de teres passado na minha vida e, agora que penso, estavas já tão presente no que me vieste ensinar. O motor comburia a vontade dos homens de acelerarem para uma guerra que não tinham escolhido, mas que os escolhera a eles, na nobre missão de travarem o mal que se instalara no mundo. Não aprenderam nada com a primeira e precisaram de uma segunda, para garantir que só existe uma forma de se viver neste planeta. Mas paz é forma que não serve a todos os homens. Não servia àqueles, que tiraram o meu pai de nós. Ele partiu com a promessa de regressar, mas o regresso foi uma promessa que ficou por cumprir. A dor que senti vivi-a pelos olhos da minha mãe. Uma criança da minha idade não compreendia a guerra e, para mim, ir para Normandia era tão longe como ir de casa ao parque, ou ao mercado. Lembro-me de ver na sua cara pálida um semblante de petrificação, que agora, mais maduro, reconheço como um absurdo medo de morrer, sozinha, num gelar de entranhas que poucos compreenderão. O olhar baço da minha mãe no primeiro dia escondia a fragilidade do aperto que ela sentia no coração e, sem que me apercebesse, o meu começou, nesse exato momento, a fechar-se com o seu. O meu pai era o pragmático, o colo da razão. A minha mãe, a afetiva, o colo do carinho. Ambos, as raízes que nutriam o fruto que eu podia ter sido, não tivera sido a guerra a cortá-las, como se o amor se tratasse de uma erva daninha. Quando o motor disparou, seco e incrivelmente barulhento, e vi a cabeça comprida do meu pai desaparecer nos montes do horizonte, senti, através do pranto contido da minha mãe, que uma parte de mim se havia apagado, deixando-me só com um pedaço disforme de medo e culpa, como quando a candeia se apagava no quarto, à noite, depois do beijinho dos meus pais. Os monstros podiam, então, vir devorar-me. Naquele dia, a minha mãe começou a ser quem não era. Escondeu as suas emoções, para me proteger das minhas. Desse dia fez rotina e nos seguintes começou a ficar cada vez mais distante. O toque deixou de ser carícia. Os lábios deixaram de ser beijo. A respiração deixou de ser vida. Se no início doeu ver a mesa para três com o lugar do meu pai pronto, mas vazio, nos dias seguintes doeu mais vê-la sem nada. A minha mãe desistiu de viver antes de o meu pai ter morrido. Perdê-lo foi perder-se e perdêlos foi perder-me de mim. Durante semanas, numa tenra idade que, sem dar fruto, amadureceu para lá do número, fui eu a pôr a mesa para três e a jantar sozinho. 14
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Falava com elas como falava com a minha criança interior, a quem as suas perdas haviam sido transmitidas pela vida de formas tão abruptas. Perdas que me tinham feito sentir que, de uma maneira que nunca encontrei, as devia ter salvo, como se fosse minha obrigação. Falamos sempre a linguagem que aprendemos, não é assim? Talvez fosse isso que me estivesse a fazer falta. Aprender uma nova linguagem. Aprender uma nova vida. Foi com ela que tudo isso começou. Quando vi os seus olhos cor de mel no bloco operatório, a adormecerem para a anestesia que recebera, senti o que não sentia desde a infância: conforto. Foi a primeira vez que a olhei nos olhos e, ainda assim, parecia estar a vê-la pela enésima. Quem seria aquela mulher? Que história e que estórias esconderia? Que efeito era aquele que tinha tido em mim? A intervenção cirúrgica correu bem e, quando despertou, coube-me dar-lhe a notícia do sucesso. A sua serenidade amolecia a minha frieza. A bondade do seu olhar despertava o sorriso do meu. Poderá existir algo assim? A ti te digo: não só pode como existiu. E foi uma das experiências mais bonitas da minha vida. Estar-te-ás, então, a perguntar porque morri eu pela segunda vez, não é verdade? Não tenhas pressa em conhecer as respostas. Muitas vezes, elas estão no caminho que nos leva até si. Assim que despertou da operação e me viu, deixou-me, com um sorriso, palavras que diziam mais do que aparentavam: “Há tanto tempo que não o via, doutor”. Não soube reagir. Disfarcei a vontade que senti de sorrir, que não era para isso que ali estava. Foi nos dias a seguir, nas minhas – literais – visitas de médico, que ela começou a ter acesso a uma parte de mim que estava adormecida desde que aprendera que amar era sofrer. Numa delas, enquanto lhe comunicava o quão positiva estava a ser a sua recuperação, deixou o olhar atravessar a janela do quarto e disse-me: “Tomamos tudo por garantido, não acha?”. Sempre o meu silêncio defensivo. “Aquelas árvores. Aquelas folhas. Aquele vento que as atravessa”. Ainda o silêncio. “A vida, doutor. Tomamos sempre a vida por garantida”. Comecei a ficar agitado. Aquela generalização não me servia. “Uns tomam a vida por garantida, outros a morte”, disse-lhe. “É o seu caso?”, olhou-me nos olhos. “Foi por isso que escolheu a sua profissão?”. Como pode a serenidade de alguém desafiar tanto a nossa? “Já está a querer saber demais!”, disse entre a cordialidade e a rispidez. “Não sei quem perdeu, doutor. Mas é ali que eles continuam a viver”. Desviou o olhar de novo na direção da janela e o meu acompanhou-o, ficando por momentos que pareceram eternidades a observar as delicadas folhas daquela árvore a fluírem com o vento. “É o sopro da vida. Nenhuma morte o para”. Sorriu. “Quando sair daqui, vou cercar-me do sopro. Gosto de fazer piqueniques na natureza, para me assegurar de que nunca me esqueço do sopro que sou”. Olhava-a com a desconfiança de quem quer saber mais e com a curiosidade de quem desconfia de mais querer saber. 17
três passos para aprender a voar
Esperava que a minha mãe descesse, que o meu pai voltasse e que a comida pudesse tornar a deslizar por mim com o prazer com que um dia a saboreara. Mas a minha mãe não vinha e o meu pai deixou de poder escolher o regresso. “Mãe, quando é que o pai volta?”, perguntava-lhe todas as noites em que lhe ia dar o beijo que antigamente recebia. Nunca me respondia. Um dia, arrastou no ar palavras que não esqueço: “O teu pai já não volta”. Continuei a pôr a mesa para três. Não chorei durante dias. Meses, talvez, que na dor o tempo parece deixar de existir. Até que ouvi aquela notícia na telefonia. Os Aliados tinham vencido. O sacrifício de todos não tinha sido em vão. Chorei. Chorei muito. “Ele venceu. Ele vai voltar!”. Mas os dias passaram e o único regresso foi o daquelas palavras da minha mãe, que voltavam então para, mais do que se arrastarem no ar, se arrastarem em mim. “O teu pai já não volta”. Continuei a pôr a mesa para três. Foi quando num dos meus solitários jantares ouvi na telefonia as notícias do pós-Guerra, dos regressos, da reabilitação da destruída Europa que comecei a chorar a derrota que aquela vitória me trouxera: perdi os meus pais. Perdi-os em nome de um sacrifício que não tinha sido eu a escolher viver. Porquê a mim? Atirei a loiça ao chão. Porquê a nós? Quebrei a telefonia. Nem assim a minha mãe desceu para ver o que se passava. E eu deixei de rastejar pelo amor que não vinha. Estava sozinho. Sentia-me sozinho. E era assim que ia ser, a partir daquele dia. Não mais ia permitir que o amor me fizesse sofrer. Se amar era sofrer, estava decidido que não mais sofreria. A segunda vez que morri pode não ter sido exatamente a segunda cronologicamente, mas é a que recordo como tal. Quando se morre várias vezes como eu morri naquela infância que me foi roubada, o pedaço que nos tiram nunca volta a ser tão grande como o primeiro. É gradualmente mais pequeno e cada vez nos custa menos despojarmo-nos do que quer que seja nosso, porque cada vez somos menos. Mais leves. Menos compostos. Desculpa se deambulo pelas explicações da minha dor, mas há no limite da vida a enorme lucidez de ver o que em tempos foi obscuro. Talvez o fim seja a hipótese que a vida nos dá de finalmente compreendermos o percurso. Mas tu és uma boa ouvinte, não és? Foste sempre. A segunda vez que morri, dizia-te, foi a meio do caminho. Não estava preparado para aquele amor. Mas teria sido amor se tivesse existido preparação? Médico cirurgião. Jurara a mim mesmo viver no casulo daquela missão: salvar vidas, sem que para isso tivesse de combater. A frieza das perdas que a minha juventude me fizera herdar permitira-me abraçar uma profissão que convivesse com a perda como uma certeza. Preparei muitas famílias para o pior e entreguei a várias outras notícias de sucesso. Às primeiras, não sabia adequar as palavras. Às segundas, faltava-me a euforia, que nunca ia para lá da sensação que ecoava de “não fizeste mais do que a tua obrigação”.
ANDRÉ FERNANDES
Reparou e disse-me, com o seu característico sorriso: “O doutor também devia vir. Há um espaço tão bonito, no parque da cidade. Ia gostar”. Despedi-me, mas levei aquelas frases comigo. Secretamente, à noite, começava a ansiar pela manhã da visita seguinte, para ouvir mais do que tivesse para me dizer. Não podia afeiçoar-me. Poucos dias depois, ela estaria a fazer o que o amor fizera na minha vida: ir embora. No dia da alta, fiz por não olhar para si. “Parece que hoje é o seu último dia aqui. Espero não a ver mais!”. Talvez a única mentira que lhe disse, sabias? Pelo canto do olho, via-a contemplar-me, em pé, junto à cama, já arranjada para se ir embora, sempre com um sorriso bondoso e sereno. “Obrigada”, soprou no seu doce timbre. Não estava habituado a agradecimentos verbalizados. Ou, se os ouvia, não estava habituado a escutá-los. Mas ela garantiu que o faria: “A gratidão, doutor, é o que torna o sopro suave. Até quando ele vem sob a forma de rajada. Há que agradecer. Agradecer à vida... a vida que ela nos dá a viver. Por isso, agradeço-lhe. Pelo que fez por ter aparecido na minha”. “Não fiz mais do que...”, interrompeu-me. “Não, doutor. Não é a sua obrigação que eu agradeço: é a escolha de a ter seguido”. Estendeu-me a mão. Olhei-a nos olhos e estendi-lhe a minha. Quando a palma da minha mão direita tocou a palma da sua, as nossas sinas sobrepuseram-se e o arrepio que senti foi o primeiro estilhaço da armadura em que me fechara desde pequeno. Quando a conheci, algo me disse que aquela não tinha sido a primeira vez que a tinha visto. Quando me despedi, a mesma voz interior fez-me crer que não seria a última que a veria. Não estava errado. No sábado seguinte, resolvi ir ao parque da cidade. Não sei se a procurava ou se me procurava a mim, mas sei que, nesse dia, encontrei um pouco dos dois. Dos três, que foi aí que te conheci. Levei a toalha com que a minha mãe punha a mesa e a lancheira que o meu pai levava para o trabalho. Não as usara desde que os perdera. Estendi-a na relva, distribuí a refeição rápida que preparara e sentei-me lanchar. Vi casais a passear de mãos dadas, cães a correrem à solta, crianças a dar as suas primeiras corridas.
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Contei-lhe das vezes que pus a mesa para 3, numa esperança que me magoou tanto que me tirou toda a que tinha. Contei-lhe de como procurei a minha mãe até deixar de a encontrar. Chorei. Sem limpar as lágrimas, chorei. “A perda é a hipótese de preencher o vazio com a memória do amor que foi ou do amor que gostávamos que tivesse sido”, disse-me. A sua mão continuava pousada sobre a minha, na relva. Nisto, apareceste tu. Pela primeira vez, apareceste tu. Deixaste-te pousar sobre as nossas mãos e, como alguém que reencontra um amigo antigo que não via há tempos, ela sorriu, no momento em que te viu aparecer e pousar em nós com a tua suave beleza. “Sabe, nós somos como ela”, disse, num delicado gesto com a cabeça que apontou até ti, para não te afugentar. “Amamos em 3 fases. Na primeira, rastejamos por amor e confundimos esse amor com dor; na segunda, fechamo-nos num casulo de proteção que garanta que não mais nos magoaremos como achamos ter aprendido que o amor faz”. Fez uma pausa. As tuas asas flutuavam ao ritmo das suas palavras. “E na terceira fase?”. “Na terceira? Na terceira, usamos a força da dor que nos fechou para romper o casulo, na coragem de ganhar asas e, enfim, voar, rumo ao que o amor verdadeiramente é: um permanente ato de deixar ir”. Deixei-me ir pela beleza das suas palavras e dei-lhe o primeiro de tantos dos nossos beijos. Senti a minha alma rasgar o corpo de dor em que me tinha envolvido todo aquele tempo, em estilhaços que quebraram o tempo que, naquele instante, desapareceu, que também no amor o tempo parece deixar de existir. Quando larguei o beijo que não mais me largou, olhei para as nossas mãos sobre a relva, ladeadas pela toalha da minha mãe e pela lancheira do meu pai. Tu permanecias sobre elas, a fluir com o todo. Sorri. Ela sorriu de volta e disse-me: “Fico feliz por saber que voltou a pôr a mesa para três”. Emocionado, respondi: “Talvez esteja na altura de nos tratarmos com a proximidade que sentimos”. “Tens razão”, respondeu. Tu desapareceste e eu deixei de viver no casulo em que me tinha encerrado até então. Os tempos que se seguiram foram um crescendo na descoberta de uma entrega que julguei não mais viver. Todos os dias, no final de cada jornada de trabalho, tinha alguém com quem partilhar as minhas aventuras e desventuras. Saboreava os momentos que vivia com a certeza da partilha. Engraçado como a garantia de uma partilha nos torna mais presentes nos nossos momentos a sós. De vez em quando, ela surpreendia-me e aparecia-me no trabalho, para matar saudades sem aviso. Às vezes, levava-me uma refeição que tivesse preparado. Outras, um bolo e um café. Outras, aparecia sem nada, mas ela sabia que era tudo. Foi quando comecei a querer retribuir os gestos que me apercebi de que não me dizia onde morava, nem me permitia ficar a saber. 21
três passos para aprender a voar
Olhei para cima, com o intuito de contemplar o céu, e lá estavam as folhas da árvore a que me encostara, a abanar com suavidade do sopro que era tudo aquilo. Fechei os olhos e deixei que as lágrimas escorressem. Seria isto a gratidão por tudo o que tinha sido, por tudo o que era e por tudo o que seria? Quando os abri, tinha um sorriso sobre mim a contemplar-me. “Eu sabia que viria, doutor”. Fiquei sem reação. Limpei as lágrimas num instante. Não queria que me visse assim. “Porque as limpa?”, perguntou. “É sempre assim?”. “Curiosa?”. “Impertinente”. Sorriu. “Eu sei que essa sua frieza esconde lágrimas, doutor. Ninguém nasce frio. Além disso, sabemos sempre reconhecer o olhar que já foi nosso nos olhos que são do outro”. “Já limpou lágrimas?”. “Já, sim. Mas não o faço mais”. Sentou-se junto de mim. “E porque as chorou?”. “É nisto que somos diferentes. O doutor pergunta-me porque as chorei, eu pergunto-lhe porque as limpa”. Olhámos o silêncio que aquelas palavras deixaram no ar. “Porque elas me lembram o motivo por que choro”. “E que motivo é esse?”. “Ter amado”. “Talvez deixe de limpar as lágrimas, quando perceber que não é o amor que o faz chorar”. “Talvez deixe de achar que sabe tudo, quando souber realmente tudo o que tenho para lhe contar”. “Que amor foi esse que o fez deixar de amar?”. “O amor dos pais que me faltaram”. Contei-lhe das minhas perdas. Sem que desse por isso, a armadura continuava a quebrar-se. “E, depois de me contar isso, ainda acha que é o amor que o faz chorar?”. “Se não é o amor, o que será?”. “A perda. É ela que dói”. “E o que sabe sobre isso?”. “O mesmo. A minha história é a sua”. Olhei-a com espanto. “Também perdeu os seus pais?”. “Sim, para a guerra”. Contou-me a sua história. Era um reflexo simétrico da minha. A empatia daquelas palavras começou a reconstruir as pontes quebradas que me tinham desligado dos outros. Pela primeira vez, chorei a dor de alguém que não eu e, no que dessa dor existia de semelhante, percebi que não estava só. O meu casulo continuou a estilhaçar-se. Quando a minha mão ia alcançar o meu rosto, para as secar, a sua travou-a. “Não as limpe. Não compreende? Elas são a prova de que o amor existiu”. Deixei a minha mão guiar-se pela sua. Pousou-a na relva. “Não culpe a vida. Não culpe os seus pais. Acima de tudo, não se culpe a si”. “Como, se foi a vida que mos tirou, se foram eles que me faltaram e se foi a mim que aconteceu?”. “Porque a vida que lhos tirou foi também a vida que lhos deu, porque eles foram presentes a ponto de lhe fazerem falta na ausência e porque tudo isso fez parte da construção de quem é, precisamente porque lhe aconteceu a si”. “Sabe a falta que faz o toque de uma mãe quando a vida nos agride?”. “A sua mãe estava doente. Não foi a sua mãe que não lhe deu o toque. Foi a doença da perda que lhe tirou essa capacidade, que perder é, para tantos, uma enfermidade”. “E não é?”. Contei-lhe de como esperei pelo amor que não vinha.
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a fazer”, continuei com os meus rodeios. “Podes, por favor, falar dos teus medos com amor?”, pediu-me. “Prometo que os escutarei com o mesmo amor”. “Tu não tens ido para casa”. Desta vez, foi a testa dela que se franziu. Abanou a cabeça, olhou para baixo e, esboçando um ligeiro sorriso, disse: “Nunca te ocorreu que talvez chamemos casa a sítios diferentes?”. Fiquei intrigado. “Porque é que, em vez de me espiares e de te torturares com rodeios e suposições, não me perguntas diretamente tudo o que queres saber?”. Inspirei a coragem que não tinha e expirei a pergunta que temia: “O que vais fazer tantas vezes ao hotel a que te vi ir?”. “Eu moro lá”. “Tu moras num hotel?”. “Não é bem isso. É temporário”. Seguiu-se uma pausa. “Só não me zango verdadeiramente contigo, porque tudo isto é parte de algo que te tenho andado a esconder”, disse-me. A minha ansiedade intensificou-se. Apercebendo-se disso, ela fez por me tranquilizar. “Calma. Não penses que te faltei ao respeito. Nunca o faria”. “Então que raio me estás tu a esconder? Conta-me de uma vez!”. “Eu não te contei, porque nem eu mesma sei como expressar tudo isto. Quando te conheci, tinha vendido a minha casa, porque aceitei uma proposta de trabalho no estrangeiro. É o meu trabalho de sonho, esperei uma vida inteira por esta oportunidade e quero muito ir e viver a missão que sinto ter no mundo. Mas não te queria perder. Quando apareceste, adiei a ida. Usei parte do dinheiro da venda da casa para viver naquele hotel. É por isso que me vês ir para lá todos os dias e é por isso que nunca te contei onde moro, nem te alimentei a chance de ires visitar-me ou surpreender-me. Eu amo-te, mas sei que te vou perder e tenho andado a adiar lidar com esta realidade, para não sofrer e, acima de tudo, para não te ver sofrer”. O misto de emoções que se apoderaram de mim é difícil de colocar em palavras. Algures entre a tristeza, a revolta e a raiva, segui o impulso de me levantar e ir embora. Confirmava-se o que temera quando a conheci: tínhamos chegado ao ponto em que era mais seguro ir-me embora do que ver alguém que amava partir novamente. A segunda vez que morri, como te tinha dito, foi aí, a meio do caminho. A vida não podia estar a repetir-se. Não podia! Não era possível que aquele amor me fosse retirado assim. Quantas vezes mais teria eu de perder um grande amor, para me convencer de que amar me fazia sofrer? Comecei a caminhar sem rumo. O motor da minha caminhada era tão ruidoso como o que roubara a presença do meu pai. A palidez do meu rosto tão amedrontada como a que roubara o semblante da minha mãe. Ela permaneceu sentada e não me seguiu. Quando dei por mim, estava no outro extremo do parque. Deitei-me junto a uma árvore e chorei todo aquele turbilhão de emoções. Estava zangado. Zangado com a ocultação que me fizera, zangado com a verdade que agora me contara. Zangado. Muito zangado. Dei alguns socos na relva e, como reação, levantaste voo. Nem sequer tinha reparado 23
três passos para aprender a voar
O medo começou a apoderar-se de mim: o que me estaria a esconder? Num dos dias em que me visitou, sem que soubesse que o meu turno terminava no fim da sua visita, resolvi segui-la. A ansiedade e culpa com que o fiz ainda hoje marcam a certeza de que aquela não foi a melhor abordagem, mas foi a que o meu medo alimentou. Ela apanhou um táxi e eu limitei-me a mecanicamente ditar que o meu carro replicasse os movimentos deste. O coração no peito acelerava com o carro e o estômago girava com os movimentos das rodas. Onde se dirigia ela? Quando o táxi fez sinal de que iria parar, garanti que parava a alguns metros de distância para que não condicionasse as suas ações. Vi-a pagar a conta do táxi e sair. Dirigiu-se ao hotel em frente ao qual o carro tinha parado. Fiquei sem saber o que fazer. “Um hotel? O que faz ela num hotel?”. Ainda permaneci umas horas no carro, mas acabei por me ir embora sem que a visse descer. Nessa noite, não consegui dormir. O abandono da minha infância estava a testar-me, nas imagens de medo que me criava: com quem teria ido ela ter ali? Por que motivo não me falara nunca em visitas a hotéis? E por que motivo evitava dizer-me onde a poderia encontrar eu, caso a quisesse visitar? As dúvidas não verbalizadas são sempre respostas interiorizadas e eu comecei a interiorizar as minhas, no comportamento distante que passei a manifestar consigo. Cheguei a repetir a prática de a seguir e era sempre para ali que ia. O que esconderia aquele hábito? Foi no nosso parque que encontrei a resposta. Combinámos outro dos nossos piqueniques e, embora a medo, aceitei ir. Havia nas dúvidas que tinha uma fome por respostas que me fazia não fugir totalmente do medo que ela me estava a fazer sentir. Quando chegou, beijou-me a testa. Trazia o ar sereno de sempre. Era o meu que não estava e ela parecia sempre aperceber-se de quem eu era, para lá de quem eu mostrava ser. “É sobre essa testa franzida que temos de falar”, disse-me. “O que se passa contigo?”. Nada, não se passava nada. Essa tarde foi preenchida por silêncios de medo e de tensão. Queria muito perguntar-lhe sobre o hotel, mas fazê-lo seria admitir os meus comportamentos clandestinos que, aos seus olhos, me fariam parecer um psicopata. Depois de uma luta interna, venceu a vontade de perguntar. “Para onde vais depois de estares comigo?”. “Como?”. “Para onde costumas ir, depois de estares comigo?”. “Para onde costumo ir? Para casa, naturalmente”. Aquela resposta acertou-me o estômago e descontrolou-me as emoções. “Porque mentes?”. O ar dela manteve-se sereno e isso estava a incomodar-me ainda mais. “Mentir? Que raio estás para aí a dizer? O que tens tu?”. “Acho que é altura de terminarmos tudo o que temos vivido”, disse-lhe. Queria magoá-la antes que me magoasse. “Porque é que eu sinto que isto é o teu medo a falar e não o teu amor?”. “Talvez porque saibas o que tens andado
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Antes de ouvir o que tinhas vivido, estavas já tu a vivê-lo e a quebrar-me a solidão. Nunca estamos sós, se nos lembrarmos da empatia que nos liga aos outros. Foi contigo que aprendi isto”. Os seus olhos brilhavam a escutar-me. O misto de nostalgia e o orgulho que me transmitiam confirmavam-me que estava a amá-la como nunca tinha sido capaz de amar na vida. “O que o teu amor me recorda é que, na memória do que foi vivido e na esperança que ele alimenta do porvir, eu nunca te perderei. E só quero para ti o que quiseste sempre para mim”. Fiz uma pausa. Nesse momento, não lhe olhei os olhos. Olhei-lhe a alma. “Não quero que rastejes por mim. Não quero que te protejas de mim. Quero que voes. O mais alto que conseguires, embalada pelo sopro da vida que és e que me recordaste ser. Não sei se foste o amor da minha vida, mas foste certamente o amor que mais mudou a minha vida. Nunca te esquecerei, porque me ensinaste a nunca me esquecer de mim. Espero, com isto, estar a fazer o mesmo por ti: voa. És bonita pousada em mim, mas és ainda mais bonita a voar”. Beijou-me. As minhas asas estremeceram. Não me lembrei que as tinha, até ter aceitado que ela podia usar as suas. Até a ter incentivado a fazê-lo. Há no ato de deixar voar tanto do nosso próprio bater de asas. Ela voou. Eu estava apenas a começar.
três passos para aprender a voar
que estavas ali, pousada, a contemplar a minha agitação. Fiquei, entre lágrimas, a observar-te o voo. Ameno. Melodioso. Brando. Tudo o que eu não estava. Tudo o que me convidavas a ser. A cada bater de asas teu, um novo flash surgia, lembrando-me tudo o que aprendera. A larva que fora, o casulo em que me fechara e as asas que ganhara. Foi quando fizeste as tuas suaves acrobacias no ar e pousaste no meu nariz que me apercebi do que estava a fazer com as dela: impedi-las de voar. Pousada entre os meus olhos, parecias observar-me como quem me desafiava. As minhas lágrimas abrandavam. Os meus soluços tornavam-se mais espaçados. Estava a voltar a ti. Estava a voltar a mim. Pisquei os olhos e vi as tuas asas acompanharem-lhes o movimento. Quando as pálpebras cediam, elas cediam consigo. Quando as pálpebras se reerguiam, elas acompanhavam o seu movimento ascendente. Era isso. Enquanto os meus olhos abrissem e fechassem e as tuas asas batessem, o sopro continuava e nós éramos parte do todo. Tornei-me tão consciente do movimento das minhas pálpebras que me lembro de ter sentido o medo de não te voltar a ver, de cada vez que elas ascendiam, depois de se terem fechado à tua imagem, na fração de segundo em que o faziam. Na consciência dessa fração de tempo, ficou uma certeza para a eternidade: estavas sempre lá, de cada vez que confiava fechar os olhos na incerteza do que veria quando os abrisse. Podias não estar na presença, mas estavas na esperança de te voltar a ver, alimentada pela certeza das memórias vividas que para sempre poderia rever. Voltei a ceder à fração de segundo. Os olhos fecharam. Confiei. Esperei. Recordei. Os olhos abriram. Tu não estavas. Mas eu continuava a ver-te. Eras bonita pousada em mim, mas eras ainda mais bonita a voar. Sou-te grato pelos ensinamentos. Não estava preparado para um amor assim, mas a tua sabedoria compensou a ausência da minha. Consciente de tudo, levantei-me e, num passo que gradualmente acelerou e se converteu em corrida, fui ter ao sítio de onde não devia ter saído. Esperava vê-la. Esperava que ainda não tivesse voado. “Voltaste?”. Abracei-a. Num abraço que trazia consigo a apreciação de poder ser o último. “Desculpa”. “Eu também te devo pedir desculpa, não te devia ter escondido isto”. “É verdade, mas isso não justifica a minha reação. Quero que me escutes, porque não sei se te conseguirei dizer o que te vou dizer noutra altura que não esta”. Dei-lhe as mãos. “Obrigado. Obrigado por tudo. Pelo companheirismo, pela cumplicidade, pelo afeto, pela dedicação, pelos ensinamentos... pelo amor. Por todo o que me deste e por todo o que me mostraste que consigo ser. Tenho um medo terrível de te perder, porque me habituei a achar que só o sou contigo, mas isso nunca foi o que o teu amor me ensinou. Esses são os ensinamentos do medo. O da minha infância. O das minhas perdas. Nossas, que a tua empatia me mostrou que nunca estive só, até quando não sabia de ti.
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METAMORFOSE
três passos para aprender a voar
Aproveitámos cada dia que se seguiu, até ela partir para a viagem que a levaria rumo aos seus sonhos. Os primeiros tempos sem ela custaram, mas o eco dos seus ensinamentos permaneceu: não era o amor que me fazia sofrer, era a dor da perda. Senti-la fazia parte, mas não era o todo. Não voltei a confundir os conceitos, ainda que tenha voltado a experimentá-los na vida. Contei-lhe todas essas experiências nas cartas que fomos trocando um com o outro. Sabê-la feliz fazia-me feliz. Isso amenizava a saudade. Se calhava ela poder visitar-me, fazia-o. Se calhava eu poder visitá-la, fazia-o. Mas sempre sem a existência de qualquer obrigatoriedade que nos deixasse expectantes. O nosso compromisso era com a permanente apreciação do voo de cada um. Foi assim até ao fim. Foi assim, até hoje. Tenho nas mãos a última carta que ela me enviou depois de me ter vindo visitar para se despedir de mim. Sabia que seria a última vez que me veria, nesta vida. A minha saúde, tão compatível com a minha idade, não nos permitia ilusões. Foi bom revê-la pela última vez e recordar que, na vida, uma vez basta, para se saber o que é o amor. Releio o último parágrafo que me escreveu. Uso as suas palavras como me habituei a usar a sua existência: para me inspirar. “Lembras-te quando me ajudaste a voar e te recordaste que tinhas asas? Pois bem, chegou a hora de as usares na sua plenitude e abraçares a próxima transformação. Não tenhas medo. A vida preparou-te para este momento e ensinou-te que, no amor, a transformação seguinte é sempre para melhor. Até quando não vemos o que aí vem. Não é por acaso que a palavra metamorfose tem amor pelo meio. Sempre que uma mudança ocorrer, se a viveres em amor, ela será para melhor. Confia. Ama até ao fim e eu prometo amar-te para lá dele. Assim, nunca teremos de conhecer um”.
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ANDRÉ FERNANDES
três passos para aprender a voar
Pouso a carta no meu peito. Aberta, para que o mundo possa encontrar o amor que encontrei. Estou deitado, cercado pelas paredes do quarto onde tantas vezes trabalhei, mais concretamente o quarto onde a fiquei a conhecer melhor. Cheira a cal. Da janela, a mesma árvore que ela me ensinou a olhar como o sopro que fica para lá do nosso último. O calor aquece o meu corpo e a luz envolve-me num beijo que não cessa e que me convida a adormecer sem medo. E cá estás tu, a observar-me. Sorrio. Sabia que não me faltarias neste momento. Contemplo-te com a certeza de uma despedida iminente. A primeira que aceito sem dor. Vejo, ao canto, sobre a mesa da minha última refeição, algumas memórias que um dia pensei descartar. Também elas passaram pela sua metamorfose e se converteram em algo que hoje vale a pena recordar. Na lancheira guardo agora mais do que o som daquele motor. E na toalha migalhas que acrescentei a um amor fragmentado que, hoje, me faz sentir por inteiro. Há sempre num lugar de dor a hipótese de um lugar de amor. Estás pousada no parapeito. A mesma luz que me toca atravessa as tuas asas. Sopra a vida que as embala. As tuas. As minhas. As nossas. Estamos, enfim, preparados para voar. Vivi pela primeira vez, quando aprendi que amar é deixar ir.
ESCOLA SECUNDÁRIA CACILHAS TEJO
ANDRÉ FERNANDES Nascido a 1 de Fevereiro de 1991, em Lisboa, licenciou-se, com 21 anos, em Ciências da Comunicação, na vertente de Jornalismo e Cinema/TV, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Um ano depois, publicou a sua primeira obra “Tia Guida”, contando a experiência que viveu ao lado da sua tia Margarida, no momento em que a vida a forçou a enfrentar um cancro terminal. Aos 25 anos, lançou o seu segundo projeto literário: “25+ A vida é uma Escola”, um livro onde partilha as lições de vida mais importantes do seu primeiro quarto de vida, nas quais inclui reflexões sobre realização profissional, bullying, espiritualidades e muitos outros temas.
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TURMA DE LÍNGUAS E HUMANIDADES
TURMA DE ARTES
Alexandra Montez Ana Cecília Rodrigues Ana Rita Faia Beatriz Cardoso Carolina Mendes Cátia Baptista Daniela Conceição Diogo Arjones Érica Nambua Gabriel Gea Martins Inês Flores Silva Inês Tatiana Marques Joana Maria Barroso Márcia Sofia Capelas Margarida Rodrigues Mariana Pires Marta Caramelo Nicole Castanho Núria Pegudo Pedro Rebocho Raquel Ribeiro Tiago Afonso Vinicius Souza Joana Gramaça Rebecca Carvalho
Ângela Maria Silva Beatriz Palmeirim Ester Tinoco Serra Eva Pinho Guerreiro Gabriela Horta Inês Silva Lopes Lara Sofia Praça Mafalda Figueiredo Marcelo Tavares Margarida Rey Costa Maria Ourives Pratas Mariana Purificação Vitória São Pedro Filipe Carrilho Gonçalo Santos Joana Bastos
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– Como assim? – perguntou o Miguel à enfermeira, o coração a mil. – Conseguimos uma vaga e mudámos a tua avó para um quarto individual. Ao fundo do corredor à direita. – A enfermeira apontou-lhe o caminho. Miguel respirou fundo. Quando a enfermeira lhe disse que a ficha da avó não estava arquivada na gaveta do costume, o Miguel pensou que algo terrível lhe teria acontecido. Mas agora seguia silenciosamente pelo corredor, a caminho do novo quarto da avó. O corredor era tão sombrio como tudo o resto naquele edifício. Estava pintado em tons frios de cinzento e azul, como o mar num dia de tempestade. Enquanto caminhava, Miguel espreitava pelas janelinhas rectangulares de cada quarto. Algumas tinham uma cortina a cobrir, mas outras não e através dessas o Miguel via os habitantes de cada quarto. Eram todos de muita idade, curvados, sentados em poltronas ou deitados em camas. Passou-lhe em cima uma enorme onda de tristeza ao ver dentro dos quartos e senti-los cheios de longas vidas, ainda que cansadas, ainda que antigas, ainda que sós. Foi um alívio chegar à porta do quarto da avó. O Miguel abriu a porta e entrou, fechando-a atrás de si. O quarto estava cheio da luz quente do sol, entrando pela janela, espreguiçando-se pelo quarto. Miguel passou os olhos pela cama larga, pelo armário semi-aberto no canto, pela mesinha de cabeceira e, finalmente, pousou o olhar na avó. Estava sentada na poltrona ao lado da cama, virada para a janela, recebendo o sol. O cabelo branco brilhava, quase ofuscante, à luz dourada. Parecia uma nuvem, fofa e branca. Na mão segurava amorosamente a moldura de prata que a mãe do Miguel lhe oferecera. Miguel aproximou-se. – Olá avó! Deu-lhe um beijo leve na testa rugosa que era, ainda assim, tão macia como a pele de um bebé. Inalou aquele cheiro que era só dela. A avó cheirava a rosas. Ou seria alfazema? Cheirava a flores, pronto. O Miguel não percebia nada de flores. Mas sabia que a avó cheirava sempre bem.
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CONSTANÇA FREIRE DE SOUSA
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Sorriu com saudade ao recordar como o avô quase o comeu vivo quando o encontrou. - Vamos pensar noutras coisas, avó, para não estares sempre a olhar para esta foto. Queres que te leia? A avó acenou com a cabeça de um modo quase impercetível. O Miguel pousou a moldura na mesinha de cabeceira com todo o cuidado e puxou da mochila um livro. Era um livro de poemas do Alberto Caeiro que a avó adorara quando era nova. O Miguel abriu o livro na página onde tinha terminado na última visita e começou a ler.
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- Avó? - chamou o Miguel. Puxou de uma cadeira do canto do quarto, pousou a mochila no chão e sentou-se. - Avó, olha para mim. Segundos passaram até a avó olhar. Os olhos dela tinham sido azuis, de um azul forte e brilhante, impenetrável, único. Agora tinham perdido muita da sua força. Eram uns olhos leitosos, cansados e, infelizmente, vazios. - Sabes quem eu sou? A avó não respondeu. Limitou-se a olhá-lo como se visse através dele. - Sou o Miguel, o teu neto. Sou o filho da Ana. Avó, sou eu. Devagarinho, o Miguel tirou-lhe das mãos a moldura. A fotografia dentro dela era de uma moradia de dois andares, pintada de amarelo e com um terraço de tijoleira a toda a volta. Na janela do primeiro andar via-se um focinho de cão e, encostado à porta de entrada, estava um ancinho enferrujado e um regador. Num dos cantos da fotografia via-se parte de um pneu gigante, que o Miguel sabia pertencer ao antigo trator verde do avô. Lembrou-se daquela vez, quando ainda era um miúdo, em que se escondeu na traseira do trator, entre os caixotes, e foi com o avô para o campo.
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Parou antes da última estrofe quando viu pelo canto do olho um movimento do cadeirão da avó. Levantou os olhos. A avó pegara novamente na moldura. Nos olhos dela havia, indubitavelmente, amor. – Morreria contente... – sussurrou a avó. O Miguel não gostava de ser confrontado com a perda da avó. Mas a avó fora sempre muito clara e objectiva quanto à sua própria morte. Pelo menos enquanto a memória lho tinha permitido. E, sendo realista, o Miguel sabia que a avó não duraria para sempre. Agora dava por si a fazer um esforço grande para empurrar as palavras que lhe queria dizer. – O que é que te falta, avó? Para... – tentou dizer as palavras “morrer contente”, mas a voz falhou-lhe. A avó pareceu ler no silêncio as palavras que ele não dissera. Virou a moldura para o Miguel, mostrando-lhe a casa. E, por uns momentos, o Miguel sentiu que a avó sabia exactamente quem ele era, quem ela própria era, onde estavam e o que lhe faltava. Viu no olhar dela uma vida inteira. E sentiu que gostava ainda mais dela quando a via assim. Sorriram um para o outro.
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E depois o telemóvel tocou, o Miguel despediu-se com outro beijo na testa, sussurrou “gosto muito de ti” ao ouvido da avó e atravessou o corredor para a saída, onde a mãe o esperava dentro do carro. Antes de sair pelas portas cinzentas, o Miguel olhou para trás e pensou para si mesmo: “tenho de levar a avó à quinta, custe o que custar.” Na quarta-feira seguinte a mãe foi buscar o Miguel à escola e deixá-lo em frente ao lar da avó, como de costume. O Miguel foi todo o caminho a pensar na avó, na quinta, na casa e na fotografia. A mãe encostou o carro e tirou da carteira o telemóvel. Antes de sair, o Miguel ganhou coragem. – Mãe? – Hum? – a mãe não levantou os olhos do telemóvel. – Achas que um dia destes podemos... Podemos levar a avó à quinta? A mãe demorou a reagir, como se as palavras tivessem feito um longo percurso até serem processadas. Baixou o telemóvel. – À quinta? Miguel, sabes bem que a quinta já não é da avó. – Sim, mas podíamos pedir à Alice e ao Mário para visitar, já que vocês são amig... – a mãe interrompeu-o. – Não vamos tirar a avó do lar. Ela não está bem, nem física nem mentalmente. Não ia saber apreciar, filho, nem ia dar conta que lá estamos! – Oh mãe, mas eu tenho a certeza... – Miguel. Não sejas insistente. Quem me dera poder levar a avó a passear. Mas ela já não... Já não é bem ela. – A mãe passou a mão pelo cabelo e olhou para dentro do lar com um misto de medo e tristeza. Depois voltou a si, prática, enérgica. – Venho-te buscar daqui a uma hora. Porta-te bem! O Miguel saiu do carro altamente desanimado. Já suspeitava que a mãe fosse reagir assim. O maior problema desta recusa era que o Miguel não podia levar a avó do lar sem autorização do adulto responsável pela avó: a mãe. Mesmo se o Miguel tivesse carro e idade para conduzir – o que não tinha, faltavam-lhe alguns anos – não podia levar a avó mais longe que o café da esquina sem uma assinatura da mãe. Ou do tio. Mas o Miguel não gostava do tio, que era bruto e falava mal e que, acima de tudo, nunca vinha ver a avó. Estava fora de questão pedir-lhe ajuda.
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“Quando vier a Primavera, Se eu já estiver morto, As flores florirão da mesma maneira E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada. A realidade não precisa de mim. Sinto uma alegria enorme Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma. Se soubesse que amanhã morria E a Primavera era depois de amanhã, Morreria contente, porque ela era depois de amanhã. Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo? Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo; E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse. Por isso, se morrer agora, morro contente, Porque tudo é real e tudo está certo.”
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poltrona, de moldura na mão e olhos fixos, e veio-lhe à cabeça a ida à Disneyland, há uns bons anos. Lembrou-se de como se tinham sentado juntos naquela montanha-russa enorme, o Space Mountain. Lembrou-se de como tinha tido medo, como achava que, mal o comboio se virasse de pernas para o ar, ia escorregar pelo cinto fora e esparramar-se no chão. Lembrou-se como a avó lhe deu a mão, lhe sorriu naquele sorriso que era só dela, e lhe disse ao ouvido: “Enquanto eu estiver aqui, nada de mal te vai acontecer. E acho que ainda nos vamos divertir muito.” O Miguel pôs-lhe um dedo no queixo e levantou-lhe a cabeça de modo a olharem bem um para o outro. Nos olhos da avó havia só meiguice. O Miguel teve de repente vontade de chorar. – Tu protegeste-me a mim, eu protejo-te a ti. Ainda te vou levar à quinta, avó. Prometo. Da vez seguinte que o Miguel foi ao lar ia determinado. Ia falar com a dona do lar e descobrir como é que conseguia tirar a avó do lar sem uma assinatura da mãe. Marchou pelos corredores até à porta que sabia ser a certa. Bateu e entrou. O Miguel ainda não tinha aberto a boca e já sabia que não valia a pena. A dona do lar era uma senhora austera e ríspida, com um puxo apertado no cocuruto da cabeça. Tinha uns óculos rectangulares pousados a meio do nariz e uns lábios finos e apertados, tão pequenos que o Miguel achava impossível que ela fosse capaz de sorrir. Gaguejou uma explicação falsa sobre como a mãe lhe tinha pedido que saísse com a avó no carro do lar, mas esquecera-se de deixar uma assinatura antes de ir para fora em trabalho. – Ninguém sai da residência sem um formulário assinado pelo adulto responsável. – respondeu a mulher do lado de lá da secretária, sem olhar para ele. – Esperas até a tua mãe voltar. O Miguel queria insistir, mas não sabia bem como o fazer com uma senhora tão seca e desinteressada. Quando abriu a boca para falar, a dona do lar levantou a cabeça e fitou-o por cima dos óculos.
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Foi pelo corredor fora a caminho do quarto sempre a pensar nas hipóteses que tinha. E, sinceramente, começava a pensar que não tinha nenhuma. Mas gostava tanto da avó que não suportava a possibilidade de falhar. A avó queria ir à quinta e o Miguel levá-la-ia lá nem que fosse ao colo! Quando entrou no quarto, o Miguel deu de caras com a avó, na poltrona de sempre, e a Amanda a ajeitar-lhe a mantinha pelas pernas. A Amanda era a enfermeira responsável pela avó. O Miguel cruzava-se com ela muitas vezes nos corredores e no quarto da avó e nutria por ela um carinho muito grande. Amanda tinha uns olhos verdes brilhantes e um sorriso enorme e sincero, cheio de dentes brancos. Era meiga e delicada e o Miguel achava que não havia ninguém no mundo inteiro que fosse melhor para cuidar de pessoas de idade que ela. – Miguel! – exclamou a Amanda. Depois virou-se para a avó. – Já viu a sua sorte? Um neto que a visita todas as semanas é uma maravilha! – Boa tarde, Amanda. – respondeu o Miguel, devolvendo-lhe o sorriso. – Olá avó! Desta vez a avó sorriu-lhe. Mas imediatamente torceu o corpo na poltrona para chegar à moldura na mesinha de cabeceira. – Espere lá, eu chego-lhe a sua fotografia. – A Amanda passou a moldura para as mãos da avó e virou-se para o Miguel. Falou baixinho quando disse: – Ela hoje tem estado muito melhor. Usou algumas palavras e tudo. Mas volta e meia lembra-se e pede a moldura. A casa da fotografia ainda existe? – Existe sim, mas já não é nossa. – Já pensaram em levá-la lá? Acho que lhe podia dar alguma paz. – Os olhos da Amanda ficaram sérios e redondos. – A minha mãe não a quer levar... – O Miguel desviou o olhar da Amanda. Sentia-se envergonhado que até a enfermeira percebesse a importância da quinta quando nem a mãe percebia. – Diz à tua mãe que nós temos carrinhas especiais para a levar. Só precisamos de uma assinatura dela e nós tratamos do resto. – A voz da Amanda sorriu e o Miguel sentiu que podia levantar os olhos outra vez. – Vou dizer. Obrigado. A Amanda saiu e o Miguel ficou a sós com a avó. Olhou-a, tão pequena na sua
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– Ninguém sai da residência sem um formulário assinado pelo adulto responsável. – Repetiu antes que o Miguel conseguisse dizer o que quer que fosse. – C-certo. Então vou-lhe pedir que assine. – O Miguel estava mortinho por sair dali. – Tem o formulário? – O... O quê? – perguntou o Miguel, já com a mão na maçaneta. – O formulário, o formulário! – ralhou a mulher impacientemente. – Tome lá o formulário, é este que tem de vir preenchido e assinado. O Miguel tirou-lhe o papel, murmurou um “obrigado” quase inaudível e saiu a correr. Já no quarto da avó, respirou de alívio. Precisava de outra solução. Mas por enquanto estava na hora de estar um bocadinho com a avó. Ainda só tinha lido um poema quando a Amanda entrou no quarto. – Olá Miguel! – disse-lhe na voz simpática de sempre. – Vinha ver se a tua avó quer ir ao café. Ainda não saiu do quarto hoje e está bom tempo, acho que lhe fazia bem. Sim? O Miguel assentiu. Ajudou a Amanda a vestir o casaco à avó e depois deu-lhe o braço de um lado e a Amanda do outro. Seguiram assim pelo corredor, atrelados uns aos outros, devagarinho porque a avó não conseguia andar mais depressa. Só quando passaram as portas para a rua é que o Miguel se lembrou de outra solução. – Amanda, há alguma maneira de levar a avó à casa da fotografia sem uma assinatura da minha mãe? A Amanda olhou-o com desconfiança. O Miguel apressou-se a explicar: – Ela foi para fora em trabalho e esqueceu-se de assinar! – mentiu. – Não, Miguel, ninguém está autorizado a fazer isso. E se eu o fizesse por ti perdia o emprego. – A Amanda pensou em silêncio um segundo. – Mas fico contente que a tua mãe tenha aceite. Não há pressa, esperamos que ela volte e pedes-lhe que assine. Quando é que ela chega? – Amanhã. – Aldrabou o Miguel, o peito apertado pelas mentiras todas. A Amanda sorriu-lhe. Seguiram para o café, onde lancharam com a avó, e regressaram novamente ao lar de braços dados. Antes de ir embora o Miguel abraçou a avó. Ao ouvido disse-lhe o quanto gostava dela. A avó apertou-o com força e o Miguel sentiu naquele abraço tudo aquilo que ela não conseguia dizer. Teve nesse momento mais certezas que nunca de que tinham de ir à quinta. E agora o Miguel tinha um plano que ia resultar. Da vez seguinte, o Miguel chegou ao lar com o formulário assinado apertado na mão. Dentro do corpo do Miguel ia um nervosismo tal que era como se uma corrente elétrica lhe corresse no sangue, um formigueiro que lhe ocupava cada centímetro de pele.
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Saíram do carro e a primeira coisa que os atingiu foi o cheiro a maresia, transportado nas asas de uma brisa suave. Estavam num penhasco largo, com a casa que tinha sido da avó quase na ponta e um relvado a perder de vista, que se transformava num pomar e depois numa vinha. O pomar e a vinha dançavam ao vento, numa dança suave, quase romântica. A casa tinha sido pintada novamente e o amarelo já não era o tom desbotado da fotografia, mas sim um amarelo vivo que reluzia ao sol. Também uma hera tinha crescido na lateral da casa. O carvalho grande e antigo, no entanto, continuava igual, repousando pacientemente. As folhas ao vento pareciam acenar-lhes. A Amanda tirou a avó da carrinha com cuidado. O Miguel observou a reação dela, na esperança de a ver reagir ao espaço que tanto tinha amado toda a vida. Mas nada. A avó olhava em volta como se nunca lá tivesse estado, os olhos semicerrados por causa do sol. Mesmo assim, agora não podiam voltar atrás. O Miguel avançou a medo e carregou no botão ao lado do portão. Ao longe ouviu tocar a campainha da casa. – Que quinta bonita, Miguel. Quem mora aqui agora? – Uns amigos da minha mãe, a Alice e o Mário. 43
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No dia anterior tinha pescado do fundo da mochila uma autorização para uma visita de estudo, assinada pela mãe. Pousara o papel na secretária, com o formulário por cima, e copiara cuidadosamente a assinatura. O sentimento de culpa era tão grande que o Miguel não tinha conseguido olhar a mãe nos olhos desde que o fizera. Sabia bem que falsificar uma assinatura não só era errado como também ilegal. O Miguel quebrara a lei. Mas a avó já não tinha muito tempo e a prioridade era ela. A primeira coisa que o Miguel fez quando chegou foi ir falar com a Amanda, que ficou mesmo feliz de ver que finalmente podiam levar a avó à quinta. Depois foi entregar o formulário à senhora assustadora que era a dona do lar. Ela fitou-o por cima dos óculos uns segundos, depois analisou o formulário. O Miguel susteve a respiração até a ouvir dizer: – Tudo em ordem. E nessa altura murmurou um agradecimento e saiu a correr, para avisar a Amanda e a avó. Estavam ambas no quarto. O Miguel entrou de rompante, todo sorrisos. – Já está! Avó! Vamos à quinta! A avó olhou-o com aquele olhar vazio. No colo tinha a moldura. – Hoje tem estado muito perdida... – disse a Amanda num tom triste. – Não tem mal. Quando chegarmos à quinta tudo muda. Então a Amanda foi preparar a carrinha. O Miguel ficou com a avó. Pensou como costumavam fazer tanta coisa juntos, as idas à missa, as tardes na quinta a lavar peluches no alguidar azul, as noites a ver “sozinho em casa” e a comer bolacha Maria. Aí vinha mais uma aventura. Talvez a última. E, quem sabe, talvez a melhor. A Amanda não tardou a regressar. Empurrou a avó na cadeira de rodas, subiram a rampa para a carrinha e a Amanda apertou a avó no lugar com cintos de segurança. O Miguel tomou o lugar ao lado dela. E a Amanda, para surpresa do Miguel, sentou-se no lugar do condutor. – Vais tu a conduzir? – perguntou-lhe o Miguel. – Vou sim! Tens a morada? O Miguel passou-lhe o papelinho com a morada e seguiram caminho. A viagem não era longa, mas o Miguel ia tão nervoso e ansioso que parecia que nunca mais chegavam. Na mão dele estava a mão da avó, bem apertadas uma na outra. A paisagem do lado de lá da janela foi-se transformando de prédios e carros em planícies e árvores, moradias e animais. Finalmente a Amanda parou o carro. Pela janela o Miguel viu o portão e, uns metros à frente, a casa. O nervosismo aumentou de tal forma que o Miguel quase que sentia a eletricidade emanar da ponta dos dedos. Apetecia-lhe gritar e dançar ao mesmo tempo. Mas não o fez.
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– Entrem, à vontade! – disse a Alice ao ver o Miguel hesitar. – O cão está na cozinha, não te preocupes. Um de cada lado, o Miguel e a Amanda pegaram na cadeira de rodas da avó e subiram os três degraus até à entrada. Passaram a soleira da porta. Do lado de lá era uma casa de alguém que não eles. Tinha um ar moderno, com madeiras claras e paredes em tons pastel, quadros coloridos e fotografias de caras que lhe eram estranhas. O Miguel sabia que a casa estaria diferente, decorada de um modo que ele nunca tinha visto. Mas ainda assim sentiu um choque ao entrar na sala. Baixou-se para ficar ao nível da avó. – Lembras-te desta casa, avó? A casa da fotografia! Eu sei que já não está como antes, mas... A avó olhou-o sem dizer nada. Não se lembrava. Nada tinha voltado. O Miguel empurrou a avó à janela da sala, que dava para o jardim das traseiras. Estava cheio de flores e árvores novas. Só uma coisa permanecia igual: o baloiço. A avó observou o jardim e os olhos prenderam-se no baloiço. Elevou-se uma brisa mais forte e o baloiço mexeu-se, devagar, para trás e para a frente. Até eles veio um chiar leve, um som que o Miguel conhecera a vida toda: os ganchos do baloiço. E na cabeça da avó aconteceu uma coisa inesperada. Ouviu o baloiço e surgiu-lhe na mente uma imagem de quando era nova, ainda criança. Lembrou-se como se sentava no baloiço, a dar às pernas, e o fazia andar cada vez mais rápido, cada vez com mais força, a ir tão alto que parecia que ia tocar no céu. E nessa altura a mãe punha a cabeça de fora da janela da sala e gritava-lhe: – Não balances demasiado, senão cais e magoas-te! Anda lanchar! E nessa altura ela soltava-se do baloiço, voava pelo ar uns segundos e aterrava com os pés e as mãos, como um gato, na relva fofa. Na cozinha a mãe fazia-lhe torradas com manteiga e mel, doces e crocantes, o cheiro a pão quente entrando-lhe pelo nariz e aquecendo-a até à alma. Comia-as na mesa da cozinha, com leite com chocolate. Lembrou-se da infância naquela casa, de como a mãe a a avó ambas tricotavam, cosiam e bordavam. Como lhe faziam vestidos, para ela e para as bonecas, às vezes a condizer. Lembrou-se como na adolescência passara inúmeros serões sentada com elas no sofá da sala a aprender, de rádio ligado e mãos a trabalhar incessantemente num novo vestido. Lembrou-se de casar. Pela primeira vez em anos, lembrou-se vivamente do marido, das idas à caça, dos cães, das perdizes, do som dos tiros. Lembrou-se daquele cão que ficou doente, da tosse que ele tinha, de como parecia que falava. Dos olhos azuis daquele homem que fora namorado, depois marido, depois pai e mais tarde avô. Do homem a quem dedicara toda uma vida e de quem se esquecera quando a doença lhe tocara o cérebro. 45
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E foi nesse momento que o Miguel se apercebeu que não tinha falado com os donos da casa sobre esta visita. E se não estivessem em casa? Com o coração apertadinho, o Miguel tocou novamente à campainha. Nada. – Que estranho... – disse a Amanda. – A tua mãe deve tê-los avisado que vínhamos, não? Não queria nada que a tua avó estivesse assim ao sol muito tempo. Está calor. O Miguel ficou sem saber o que dizer. Mais uma vez carregou no botão e ouviu o som longínquo da campainha a tocar dentro de casa. Lá dentro ladrava um cão. Mas nada de pessoas. O Miguel sentiu um nó enorme formar-se na garganta. Depois do esforço todo, das mentiras, das aldrabices, até ilegalidades, afinal tinha sido tudo em vão. Ali estavam os três, o Miguel com um sentimento de culpa crescente, a Amanda que descobriria a verdade em breve e os levaria de volta, e a avó, que nunca tornaria a entrar na casa com que tanto sonhava. – Miguel? – chamou a Amanda. Falou numa voz estranha, que o Miguel nunca tinha ouvido. – Miguel, tens alguma coisa para me contar? O Miguel estava pronto para se virar e admitir tudo o que tinha feito quando ouviu o som de um motor e pneus na terra batida. Olhou de um lado para o outro da estrada poeirenta e viu-o. Um carro. Dentro dele estavam duas silhuetas, um homem e uma mulher. O Mário e a Alice. O alívio atingiu-o com uma força tal que os joelhos quase vergaram. Correu para o carro mal o viu abrandar. Mais uma mentirinha não faria mal, pois não? Agora que estavam tão perto... O Miguel cumprimentou o Mário e a Alice e explicou a situação da avó. Só aldrabou quando disse que a mãe se esquecera de lhes pedir autorização para esta visita. O Mário e a Alice eram um casal simpático e sorridente. Embora fossem da mesma idade que a mãe do Miguel, pareciam mais novos, a tez morena do sol, os ombros relaxados, os sorrisos livres e abertos, como se o ar da quinta os mantivesse presos na adolescência. Cumprimentaram a avó, sempre apática, e a Amanda e disseram-lhes que sim, claro, eram mais que bem-vindos. Era quase milagre estarem a atravessar o portão, a Alice e o Mário à frente, a Amanda a empurrar a cadeira de rodas da avó, e o Miguel em último. A quinta estava cheia do som de pássaros a chilrear, saltitando de árvore em árvore, e do zumbir de abelhas nos arbustos floridos. Lá ao fundo o Miguel ouvia o mar a bater nas rochas. Era como estar de volta à infância. Parou e fechou os olhos um segundo, deixando o sol abraçá-lo. Sentia-se em casa. – Miguel! – chamou a Amanda, do pátio. – Vens? O Miguel correu pela relva até ao pátio que conhecera tão bem. Nele repousava um regador e dois pares de galochas.
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Lembrou-se da filha, a Ana. De como a apanhara, mais que uma vez, de colher na mão a dar iogurtes aos cães. De como o amor aos animais era tal que a miúda adormecia na alcofa dos cães, abraçada a eles. Das vindimas anuais, quando a Ana queria ajudar, mas só desajudava, cortava as folhas em vez dos cachos e deixava atrás de si um pequeno rasto de destruição. Lembrou-se do Miguel, de quando ele nasceu, da primeira vez que apareceu na quinta, nos braços da Ana. De o ver crescer, de como ele adorava doce de leite e marmelada, como ele comia rápido a comida para poder comer o doce. Passavam tardes a jogar às cartas, avó e neto, e ela deixava o Miguel ganhar, para o ver feliz. Ia com o marido e o Miguel pelo pomar fora, a explicar-lhe coisas sobre o cultivo, a admirar as cores e os cheiros da fruta. Lembrou-se de quando partiam nozes e avelãs, do trabalho duro que era, mas que era recompensado quando saía do forno um bolo quente, nascido do esforço de ambos. Outras vezes deixava o Miguel na sala a ver desenhos animados e, na cozinha, preparava a “massa especial”, que era só massa do pão. Vestia um aventar ao Miguel e ficava a vê-lo brincar, a fazer bonecos de massa de pão, a criar histórias com eles. Quando o via brincar sentia que dentro dela algo derretia, o peito cheio do amor que sentia por aquele menino. A avó desviou o olhar do baloiço e fixou-o no Miguel, agora um rapaz alto, forte, já um adolescente. Lembrava-se de tudo.
– Voltaste. – disse o Miguel. Foi a única coisa que lhe conseguiu dizer antes de cair num abraço apertado. – Meu menino lindo... Quando se largaram, o Miguel observou a avó avidamente, como que numa ânsia de decorar cada ruga na cara feliz que não via sorrir abertamente há tanto tempo. – Levas-me lá fora, Miguel? – pediu a avó. O Miguel levou a avó ao jardim, empurrando a cadeira. A avó pediu para ver o mar e ele acedeu. Colocou-lhe a cadeira no canto do jardim, entre o mar e a casa. A avó olhou o mar, que brilhava como se nele houvesse diamantes. E depois olhou a casa, que valia para ela mais do que todos os diamantes do mundo. A vida voltara para ela, a vida que vivera, as memórias que criara, o mundo que fora o dela. Respirou fundo aquele ar cheio de passado, cheio de sal e de calor, cheio do amor do Miguel que tanto esforço fizera para a trazer ali. Cheio do amor dela, por tudo o que a rodeava, especialmente pelo neto. – Obrigada, obrigada, obrigada... – sussurrou baixinho, ciente que o Miguel a ouvia. Agora sim, morreria contente.
ESCOLA SECUNDÁRIA EMÍDIO NAVARRO Carolina Baptista Daniela Ribeiro Deniz Borges Inês Bernardo Joana Amaral Mariana Viana Pedro Silva Sofia Sousa Tainá Gurgel
CONSTANÇA FREIRE DE SOUSA Nascida no Porto em 1994, concluiu, em 2015, uma licenciatura em Media e Comunicação, com especialização em Escrita Criativa pela Goldsmiths University of London. No ano seguinte, concluiu um mestrado em Literatura Infantil e Juvenil, também com especialização em Escrita Criativa, pela mesma universidade. Desde então, já participou em várias oficinas de escrita criativa com crianças e adolescentes, tanto em escolas londrinas como em espaços portugueses. Mais recentemente trabalha num projeto museológico na Universidade do Porto, no projeto Read On e escreve crónicas para a plataforma feminista “Capazes”.
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As palavras que nos habitam
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Quando o André nasceu, ouviu o primeiro som. Na verdade, ainda no aconchego da barriga da mãe, ele já ouvia alguns sons — uma sinfonia calma que o fazia sentir-se embalado e protegido. Mas aquele era um som diferente. Mais forte e estridente, com vários tons e ritmos e que ele não reconhecia. No instante em que os ouviu, e aquela luz intensa o envolveu, ele assustou-se ao perceber que um mundo ruidoso o aguardava. E chorou. Chorou tanto, que mais um som o invadiu — o seu próprio som.
SUSANA AMORIM
No entanto, algo lhe dizia que aquele era também um mundo espantoso! Desde muito cedo que as palavras que ouvia o encantavam. E o André sorria. As vozes da mãe e do pai eram os sons de que ele mais gostava. Eles ofereciam-lhe palavras protetoras e aconchegantes. “estou aqui, és lindo, meu amor, comida, felicidade, olhar” Havia também palavras luminosas e sorridentes. “brincar, avó, avô, canções, passear” E palavras relaxantes. “banho, dormir, fraldinha, colo, abraços”
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A pouco e pouco, o André percebeu que também ele tinha coisas a dizer e começou a tentar formar palavras. A sonoridade fascinante que cada uma delas produzia nos seus lábios fez com que começasse a falar muito cedo. Olá foi a sua primeira palavra; uma palavra semente, pois fez com que tantas outras nascessem. Depois, descobriu o Não — uma palavra forte, que usou muito enquanto crescia. Percebeu, desde cedo, a importância dessa palavra, pois ela provocava muitas reações e, frequentemente, conseguia afirmar a sua vontade com ela.
SUSANA AMORIM
Para o André, as palavras tinham textura e gostava de lhes tocar. Também tinham cheiro e sabor e adorava senti-las. Cada uma tinha uma musicalidade muito própria, pelo que começou a escolhê-las com cuidado. Ele gostava de palavras brincalhonas. “parque, amigos, bola, rir, correr, água, brinquedos, carrossel” Adorava palavras curiosas. “bichos, procurar, descobrir, terra, experimentar” E, às vezes, só às vezes, podia escolher palavras doces, que se derretiam na boca. “algodão doce, gelado, chocolate, pipocas”
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O André estava cada vez mais rico em palavras. Tratava-as com carinho e escolhia as mais bonitas para oferecer, generosamente, aos outros. “Queres brincar comigo?” A verdade é que quantas mais palavras descobria, mais fácil se tornava dizer o que queria.
Bom
“Bom dia, Sr. Professor” era agora a melodia que o acompanhava todas as manhãs. Na escola, silabava cada nova palavra com muita atenção. “sen-ta-do, lá-pis, bo-rra-cha, le-tras, nú-me-ros, e-xer-cí-ci-os”
SUSANA AMORIM
Havia algumas de que ele gostava muito. “recreio, amigos, futebol, rir, falar alto, correr” Outras, de que não gostava tanto… “escrever, letra bem feita, apaga, volta a fazer” Com o tempo, as palavras tornaram-se cansativas e repetitivas. “sen-ta-do, lá-pis, bo-rra-cha, le-tras, nú-me-ros, e-xer-cí-ci-os, escrever, letra bem feita, apaga, volta a fazer” O certo é que o André foi acumulando muitas dessas palavras e, a partir de certa altura, o silêncio impôs-se à melodia das palavras. O André foi perdendo algumas das palavras que o acompanhavam anteriormente. “alegria, espontaneidade, curiosidade” E, secretamente, procurava algumas de que necessitava. “apoio, confiança, imaginação, descansar, novidade” 56
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O André cresceu e, com ele, cresceu o amontoado de palavras que ficavam por dizer. Quantas mais palavras guardava, mais o som delas ecoava dentro dele. Tinha palavras presas na garganta. “instabilidade, transformação, aceitação, problemas, diferença” Sentia palavras arriscadas a percorrer-lhe o corpo. “aventura, desejo, experiências, perigo, rebeldia, impulsividade, influências”
SUSANA AMORIM
Contorcia-se com palavras dolorosas. “insegurança, incertezas, isolamento, conflito, exclusão, medo, desilusão”
instabilie Transformação desejo aceitação
A pouco e pouco, o ruído do mundo misturou-se com as palavras que viajavam desordenadas dentro dele.
medo problemas
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Até que, um dia, tudo mudou. O André recorda-se bem desse momento! A professora apresentou-se e pediu-lhes que lhe contassem um pouco de si. Para isso, entregou-lhes uma grande folha em branco, tintas e pincéis. O André, que esquecera das palavras que o definiam, tal era a sua confusão, olhou para dentro de si, por instantes, e tentou ler-se. Primeiro, encontrou uma desarrumação de palavras sem sentido nem ligação. Depois, tentou reordená-las e até deitou fora algumas. A verdade é que quanto mais o André mexia em todas aquelas palavras escondidas nos recantos do seu corpo, mais se sentia, novamente, maestro das mesmas.
SUSANA AMORIM
A pouco e pouco, o pincel ganhou vida e as palavras fizeram ecoar uma nova sinfonia… E o André pintou palavras sonhadoras. “novo eu, início, futuro, descoberta, desenvolvimento, sentimentos, mundo” Deu vida a palavras essenciais. “amizade, família, objetivos, responsabilidade, perseverança” E, no fim, rematou o seu trabalho com a palavra mais preciosa que descobriu dentro de si; uma palavra colorida, macia, aconchegante e luminosa. “AMOR”
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O André nunca mais deixou que algumas palavras cinzentas vivessem dentro dele durante demasiado tempo. Outras, porém, ele fazia questão de colorir, para que crescessem e o preenchessem por dentro. O certo é que nunca mais deixou de pintá-las, e sentia orgulho em expô-las e partilhá-las. No final do ano, incentivados pela professora, o André e os colegas dinamizaram uma atividade que foi, para toda a escola, muito especial. Tinha como título: “Quais as palavras que te habitam?”
SUSANA AMORIM
Houve quem as dissesse cantadas, quem as expressasse desenhadas, pintadas, escritas, com gestos, dançadas, disfarçadas…
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ESCOLA SECUNDÁRIA ROMEU CORREIA
SUSANA AMORIM Nascida em 1976, no distrito de Aveiro. É formada em Psicologia desde 2001. O seu percurso tem vindo a ser desenvolvido essencialmente com crianças e jovens, tanto em contexto preventivo como terapêutico. Atualmente, desenvolve o seu trabalho na Oficina das Emoções - Clínica Goarmon Pessoa, onde trabalha a Saúde Emocional através do acompanhamento individual e familiar. Dinamiza sessões em escolas através dos seus livros e de programas de competências emocionais, dos quais é autora. Em 2014, com base na sua experiência como psicoterapeuta surgem os primeiros livros, cumprindo o objetivo de fornecer “ferramentas” de apoio para a família, técnicos, professores, facilitando a abordagem de várias temáticas junto das crianças, de forma lúdica e descontraída.
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Susana Amorim Ana Rita Barreta Ana Rodrigues Andreia Costa Beatriz Bispo Beatriz Rocha Catarina Tavares Cristiana Costa David Seita Diogo Cidades Diogo Gonçalves Eduardo Fonseca Inês Condinho Ísis Gregório Márcia Mendonça Mariana Ferreira Mariana Fonseca Melissa Carrão Sara Barata Tatiana Neto Vanessa Coelho
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Cartas para mim
Quem se daria ao trabalho de me escrever uma carta em papel? E, mais ainda, de se deslocar até ali para a colocar debaixo da minha porta?
Cartas para mim
RITA VILELA
Mal abri a porta vi, no chão, um envelope da minha cor preferida, com um pequeno coração desenhado a branco no lugar do selo.
Apanhei o envelope, observando-o com cuidado. De quem seria? De alguém que me era próximo, apostava, pois conhecia a minha cor favorita. De alguém que gostava de mim, provavelmente, pois dera-se ao trabalho de desenhar, a pincel, um coração branco. Fechei os olhos, imaginando algumas pessoas que me poderiam dedicar uma carta de amor… ou que eu gostaria que o fizessem. Seria o Jorjão? Aquele miúdo australiano fofo que estava em Portugal através de um programa de intercâmbio? Ou o Damien O’Brien que veio do Canadá e, apesar de ter um avô português, mal fala a nossa língua. Tanto um como outro eram capazes de preferir declarar-se por escrito, com a ajuda do tradutor do Google. Mas também podia ser o Isaac, o rapaz indiano que passa o tempo a olhar para mim, apesar de eu nunca o ter incentivado, antes pelo contrário.
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É curioso as primeiras pessoas em que pensei serem estrangeiras. Mas também consigo identificar portugueses… Por exemplo, o Gustavo, o meu colega de turma que trabalha na pizzaria. Esse percebe-se logo que está caidinho por mim... Pena serem só os esquisitos que se interessam!
Hesitei em acrescentar o último nome: “Valentina”. Mas, embora consciente de que não fazia qualquer sentido, escrevi-o na mesma.
Bom, bom, era que a carta fosse do Lourenço. Para mim, é de longe o mais giro, com o corpo todo musculado (que eu já o vi, sem camisa, a correr na praia na companhia do cão). E até é possível que a carta não seja de um rapaz. A imagem da Madalena, com as suas madeixas roxas e o seu ar alternativo, ganhou forma na minha cabeça. Sim, também podia dela.
Assim, de repente, não me lembrava de mais ninguém… a não ser da Valentina. Abanei a cabeça para afastar os pensamentos e voltei a concentrar-me no envelope, começando a abri-lo, devagar. Parei a meio, dividida entre o desejo de desvendar o mistério e a vontade de o prolongar. Enquanto não visse o conteúdo da carta, podia imaginar os cenários que quisesse. Enquanto não soubesse qual a mensagem guardada naquele envelope… tudo era possível!
Agarrei de novo no envelope, rodando-o entre os dedos. Observei-o contra a luz da janela, esforçando-me por conseguir ver alguma coisa. E vi! As palavras de uma mensagem, cuidadosamente desenhadas, começaram a aparecer à frente dos meus olhos.
Decidi adiar, pousei a carta, peguei no bloco e na caneta e escrevi os nomes que me tinham surgido:
O amor é algo vago , pode ter mil definições , e eu até penso que talvez nem se
Jorjão – o australiano Damien O’Brien – o canadiano que toca guitarra Isaac – o rapaz indiano Lourenço – o mais giro de todos Gustavo – o nerd da turma Madalena – a miúda alternativa Duarte – o meu irmão irritante
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possa definir : Simplesmente é algo belo que, desde que nascemos espera dentro de nós o momento de ser despertado .
As pessoas podem enganar - se quando julgam que " amam ” alguém, mas nunca
será o meu caso em relação a ti .
Sabes aquela regra que diz que as crianças e os jovens não entendem o amor ? Esquece, não faz sentido !
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Cartas para mim
RITA VILELA
E se tudo não passasse de uma brincadeira? O meu irmão Duarte, aquela peste, adora chatear-me e era bem capaz de escrever uma declaração de amor só para gozar comigo.
Não estava a gostar do rumo daquela carta. Corrigi o texto, acrescentando mais emoção. Por isso eu, Jorge, abro-te o meu coração, e espero que entres dentro dele, prometendo
tratar-te como a rainha do meu mundo.
Sim, com este fim ficava melhor! A verdade é que eu não me importava que a carta fosse do Jorjão, ele é tããããão fofo! O texto desapareceu e uma nova carta surgiu na minha cabeça.
Os teus cabelos cor de fogo acendem faíscas no meu coração.
RITA VILELA
A minha timidez não me permite dizer-te o quão preciosa és
para mim.
Resta-me abrir o meu coração e colocar tudo o que sinto neste
pedaço de papel rasgado.
Estou pronto para te amar e para te apoiar, para sempre. Com todo o amor que tenho. Damien
Desde a primeira vez que te vi ao fundo do
corredor, percebi que és tu quem eu quero. Os sons
suaves que ouvi, vindos de ti, fizeram-me perceber que és tu quem eu preciso. És como a incógnita da
minha equação, o piripiri da minha sopa indiana.
Sempre que olho para ti, fico completamente abalado. O teu Isaac.
Estou mesmo a ver o puto indiano a deixar o envelope debaixo da minha porta e a desatar a correr, cheio de vergonha. Namorar com ele seria um pesadelo, eu procuro um príncipe encantado, não uma praga! A última coisa que quero é o Isaac! Um novo conteúdo apareceu, substituindo a anterior que acabara de se desfazer.
Helena.
Pode parecer estranho, ou até inesperado, mas eu
sinto que tenho mesmo de te escrever esta carta. Só
O Damien O’Brien chegara à escola com um ar descuidado, quase bad boy, mas a forma doce como se comportava apontava noutro sentido. A maior parte das miúdas da turma não resistia aos seus encantos, e passava o tempo a falar dos seus olhos azuis, do seu sorriso encantador, e daquela vez em que ele tocara na guitarra uma música romântica. Mas eu preferia que o autor da carta fosse outra pessoa. Por muito simpático, gentil e bonito que o Damien possa ser, não o vejo dessa forma.
te queria dizer que, apesar de nós falarmos pouco,
eu admiro-te muito ! Talvez penses que eu sou só
mais um rapaz estranho, mas eu gosto muito de
ti. Tu és tão bonita, tão simpática, tão sorridente, tão...
Se eu te dissesse tudo o que sinto, nunca mais saía daqui!
Gustavo
As letras da carta misturaram-se e formaram um novo texto. 70
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Cartas para mim
Quando os teus olhos esmeralda encontram os meus, sinto que um fogo cruzado se inicia entre nós.
Querida Helena, minha querida Helena...
Fiquei a torcer para que o meu admirador não fosse o Gustavo. Não tenho interesse nenhum em ficar conhecida como “a namorada do nerd da turma”. Além disso, não preciso de carta nenhuma para saber que ele gosta de mim, que eu bem o vi, na aula de biologia, a atirar a caneta na minha direção, só para ter um motivo para meter conversa. E a forma como corou quando falou comigo? Logo a seguir, surgiu-me à frente a carta da Madalena.
Minha querida Helena,
Quero que recordes esta carta para sempre, como o dia em que eu te abri o meu coração.
A verdade é que eu estou completamente apaixonado
Helena, Helena, Helena
Sei que não somos parecidas e que não sou o tipo de pessoa com quem
te dês, mas ainda assim não consigo deixar de pensar em ti, e isso
irrita-me. Quando te vejo, o meu mundo sombrio e deprimente ilumina-se.
Sonho em quebrar o castelo de gelo que te encerra e conhecer a verdadeira
Helena que se esconde aí dentro. Não espero que retribuas o carinho que
sinto por ti. Já estou habituada! Mas queria que soubesses que seria um
prazer conhecer-te melhor.
Não espero, mas gostava, que me respondesses.
Madalena
por ti e quero viver uma linda narrativa de amor contigo.
Um beijo, com muito amor. Lourenço
Infelizmente, neste caso, acho que me vou ficar pelo “sonho”, não me parece nada que a carta seja do Lourenço. Na realidade, o mais provável é ser mesmo do meu irmão Duarte. Eu nunca o vi perder uma oportunidade de mexer comigo. E, para quem já cortou as minhas camisas em pedaços e tentou atingir-me com tinta a caminho da escola… isto não é nada! Mas, se foi esse sacaninha, ele sabe bem que vem aí resposta. Eu não sou burra, sei reconhecer se a carta for falsa.
Sinto que estamos destinados um ao outro e sei que,
É estranho, embora eu não me sinta propriamente atraída pela Madalena, uma parte de mim não deixa de se sentir curiosa e interessada nessa rapariga misteriosa. Não entendo bem os meus sentimentos, mas lisonjeia-me saber que ela gosta de mim. Lembro-me do momento em que o soube, estava no WC da escola e as minhas colegas, como sempre, tinham encontrado um pretexto para me rebaixarem. De repente, a Madalena sai de uma das cabines, põe-me a mão no ombro e, perfurando-me com um olhar intenso, diz: “Tu sabes que mereces muito mais do que isto, certo?”. Ignorando a reação irada das que me atacavam, lança-me um sorriso e uma piscadela de olho, antes de se afastar. Mas, como já referi, quem eu gostava mesmo que fosse era o Lourenço. Desde aquele dia em que partilhámos a carteira na aula de português, que fiquei a achar que ele poderia ser “o tal”. Além de simpático e romântico, é o rapaz mais giro da escola, possui todos os requisitos e características que sempre procurei… Tê-lo seria um sonho tornado realidade! 72
quanto mais depressa me confessar a ti, mais depressa
vou conseguir aliviar esta sensação ardente que me perfura
o peito. Sempre que te vejo na escola sinto o meu coração
explodir, não consigo evitar perder-me nos teus doces olhos verdes
e imagino-me a navegar nas ondas escarlates dos teus cabelos.
Quando não podemos estar juntos, a distância que nos separa
consome-me, esvazia todo o ar que tenho nos pulmões...
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Cartas para mim
RITA VILELA
Eu nem precisava que ele me escrevesse muita coisa, bastava o essencial:
Helena Valentim, Diz-me quem tu és, Nem como te veem, Nem como tu queres. Aos olhos do mundo Tua vida é perfeita Quando, na verdade, Tu estás desfeita.
Apesar das diferenças, a Valentina é a única pessoa que se preocupa comigo, que se importa com o que penso e sinto, que me conhece e que me entende… A única! Ela é a única com quem eu já me abri e que sabe como eu fiquei mal, desde que, após terem discutido por minha causa, os meus pais decidiram separar-se. Para piorar as coisas, as minhas colegas descobriram e acharam que o divórcio deles era um bom tema para gozar. E a cena trágica do meu primo foi o golpe de espada final, mas nisso nem gosto de pensar. Até agora, eu andara a adiar a resolução do mistério, preferindo a imaginação à realidade. Mas, e se a realidade me trouxesse um amor verdadeiro? Com essa ideia na cabeça, abri o envelope. O que era aquilo? Uma publicidade do dia dos namorados?! A minha linda “carta de amor” acabara de se transformar em publicidade?! Apeteceu-me dizer um palavrão. Furiosa, agarrei naquela porcaria e atirei-a para o lixo. Mas, no momento em que me saía das mãos, reparei numa palavra que parecia riscada por baixo. Peguei-lhe de novo, observando o texto com mais atenção. Havia de facto várias sílabas e letras sublinhadas. Agarrei na caneta e escrevi tudo o que parecia destacado, agrupando as letras, em palavras, até obter algo coerente: “Segue as pistas, responde aos desafios e encontrarás o amor!”. O resto da frase era enigmático: “Procura cor-de-rosa menina e moça os guardiães dos manuscritos mágicos”. Sorri, eu gostava de mistérios.
Apreciada por muitos, Mas amor? Por ninguém. Na solidão da noite, Restas tu, porém. Chegou a hora De tudo mudar, Mas muda, por ti, Aprende a amar! 74
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Cartas para mim
RITA VILELA
Sim, “perfurar o peito”, “coração a explodir”, “navegar em ondas escarlates” eram mesmo coisas do Duarte… isso e erros ortográficos, mas esses não os coloco aqui, pois parece mal. Que o envelope não seja dele! Que não seja dele!, supliquei. Descobrir que a mensagem fora escrita pelo meu irmão seria a pior solução para aquele mistério. A carta é bonita demais, seria um desperdício! E se fosse da Valentina? Esclareço que a Valentina é alguém fundamentalmente diferente de mim. Onde eu hesito… ela decide. Onde eu fico presa à opinião dos outros… ela avança, segura das suas opções. Eu vejo o copo meio vazio… ela vê-o meio cheio. Onde eu falho… ela consegue. Não podíamos ser mais diferentes! Imaginei uma mensagem dela:
Os meus olhos alternaram entre o edifício à minha frente e o pequeno pedaço de papel que trazia nas mãos. Estava numa rua de Lisboa pintada de cor-de-rosa, em frente de um bar com o letreiro “Menina e Moça”, cujas paredes estavam cobertas de livros, prateleiras e prateleiras cheias de livros. O teto tinha umas pinturas como eu nunca vira. A razão da minha presença ali era o enigma que eu conseguira decifrar.
Mas agora, às 17:30 de um domingo de sol, aquela misteriosa jornada aproximava-se do fim. Se eu estivesse certa, no segundo andar daquele prédio encontraria o último desafio… ou o merecido prémio. Se as minhas expetativas se concretizassem, no cimo das escadas que via através do vidro, eu conheceria o amor, o verdadeiro amor. Olhei de novo o relógio, ainda faltavam 29 minutos para a hora que me fora indicada. Aproveitei para recordar alguns dos desafios que tivera de superar para chegar até ali. Aquele peddy paper marado, que alguém criara só para mim, tinha-me levado a fazer coisas que eu nunca pensara ser capaz. “Combate os teus medos”. O primeiro desafio fora escrito no comprovativo de inscrição numa atividade de iniciação à escalada. E assim, às 9:00 do sábado indicado, lá estava eu, pendurada numas cordas, a subir a ingreme parede de escalada, enquanto mentalmente lutava contra um dos meus demónios: o pavor das alturas. Com o incentivo do instrutor, e depois de muitas hesitações e paragens, consegui alcançar o topo da parede. Depois veio o mais difícil: confiar, reunir coragem para largar os apoios, e deixar que me descessem. Quando voltei a colocar os pés no chão, lembro-me de ter pensado: “Se consegui fazer isso, consigo fazer tudo!”… Não sabia que, apesar do pavor que me provocara, aquela até era uma das provas “fáceis”. “Aumenta as tuas forças”, era a mensagem que acompanhava o voucher de oferta de um conjunto de aulas de karaté. Vamos lá, pensei, embora não seja nada orientada para o desporto, não goste muito que me toquem, e ache as lutas uma coisa perigosa. Ao fim do conjunto das 10 aulas, eu mal podia acreditar... apesar de dorida da experiência, saí do centro de karaté com um sorriso na cara, relaxada, satisfeita com os meus progressos, e a sentir-me muito mais confiante. E o mais curioso foi que, quando imaginei as odiosas da turma a meterem-se comigo, não tive medo, e fui até capaz de lhes dizer “já chega!”
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Cartas para mim
RITA VILELA
Entrei, procurei o livro “Os Guardiães dos Manuscritos Mágicos”, cujo nome trazia escrito no papel, encontrei-o e abri-o. No seu interior, um pedaço de cartolina com uma instrução: “Diz-nos as tuas maiores forças e confessa o teu maior desejo”. Alinhei, decidi ser sincera, pedi uma caneta emprestada e escrevi: “Sou criativa, boa a representar e a sonhar. Desejo ter amigos verdadeiros”. Depois voltei a guardar a cartolina dentro do livro e regressei a casa, acreditando que seria lá que apareceria a terceira mensagem… Mas não foi! Essa chegou por email, vinda de um endereço que eu não conhecia.
Os dias seguintes foram uma aventura, à procura de pistas e desafios que me apareciam nos lugares mais estranhos. Só para dar alguns exemplos: uma mensagem foi-me entregue por um desconhecido, que me abordou num café; outra encontrei-a no bolso do meu impermeável. Ao entrar na sala de aulas, depois de um intervalo, tinha um envelope em cima da minha carteira. E esse não foi o único enigma que encontrei na escola, houve também um pequeno texto escrito na porta da casa de banho (quem o escrevera conhecia-me bem, até sabia que cubículo eu costumo usar!).
A mensagem seguinte mandou-me para o parque de xadrez da cidade, onde encontrei uma caixa fechada a cadeado e uma fórmula matemática que me daria o código de abertura do mesmo. Mas, apesar daquele tipo de fórmulas já ter sido trabalhado em Matemática, eu não sabia o que fazer com ela. Olhei em volta e vi, sentado num banco, agarrado a um livro, o meu colega Gustavo, o nerd da turma. Ele encontraria de certeza a solução para o problema, mas seria necessário pedir-lhe. E, depois de uma má experiência, eu prometera a mim mesma não voltar a pedir a ajuda de ninguém daquela escola. Eu detestava pedir ajuda!
“Não adies mais uma conversa difícil” era isto que estava escrito na mensagem seguinte. Que conversas difíceis tinha eu pendentes? O meu cérebro começou imediatamente à procura e identificou uma: falar com os meus pais sobre o divórcio. Até àquele dia, eu alternara entre o “sentir-me culpada pela separação” e o “culpar os meus pais por se terem separado sem pensarem em mim”. Chegara a hora de ter com eles uma conversa sobre o assunto. Aproveitei uma ida do pai lá a casa e, estando os dois juntos, forcei-me a avançar. Nunca pensei que fosse tão difícil dar o primeiro passo… mas compensou! A conversa foi séria, madura, e fez-me perceber que eu que não era responsável pela separação e que eles tinham o direito a decidir como queriam viver as suas vidas. E fiquei também com a certeza de que, juntos ou separados, os meus pais continuariam a amar-me, sempre, sem condições!
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Visitar aquela campa foi, de tudo o que já fiz na vida, o que mais me custou. Assim que entrei no cemitério comecei a chorar, um choro convulsivo, que não parava… Mas não desisti, avancei até à lápide com o nome dele e disse-lhe tudo o que tinha guardado para lhe dizer desde a sua morte. Em vez de triste, regressei a casa aliviada. Alternando com os desafios, houve outra componente marcante naquele peddy paper: os pedidos de amizade. Recebi oito, cada um assinado com letras maiúsculas diferentes. Todos começavam com uma apresentação pessoal e terminavam com a frase “Quero ser teu amigo, um amigo verdadeiro. Aceitas a minha amizade?”. Eu respondera a todos com um “sim” sincero. Se os pedidos fossem verdadeiros, eu gostaria de ter aquelas pessoas na minha vida. Aproveitei o tempo e comecei a reler as apresentações que acompanhavam os vários pedidos, detendo-me nas partes que me haviam impressionado mais.
A apresentação da “M” vinha em primeiro lugar: A minha mãe morreu quando eu tinha 8 anos, o meu pai começou a beber nessa altura, e eu senti-me mais sozinha do que nunca. E, só agora, dez anos depois, é que ele finalmente procurou ajuda, entrou para os alcoólicos anónimos, e começa a dar sinais de estar a melhorar. O texto continuava, mas aquela parte era a mais importante. 79
Cartas para mim
RITA VILELA
Ou falava com ele, ou corria o risco de ser eliminada do peddy paper, por isso avancei. Fui surpreendida com o resultado: o Gustavo foi uma simpatia e, com um exemplo prático, ajudou-me a perceber algo que nas aulas sempre me parecera complicadíssimo. Resolvi a equação, abri a caixa e encontrei uma nova mensagem. Pedir ajuda de vez em quando, talvez até não fosse assim tão mau!
O último desafio também foi em versão livre: “Escolhe uma situação em que o passado te atormente e enfrenta-a”. Assim que li a mensagem, a imagem do meu primo surgiu à frente dos meus olhos. Desde que soubera da sua morte, naquele incêndio horrível, eu só quisera esquecer que aquilo acontecera. Arranjara uma desculpa para faltar ao seu enterro e tinha, a pesar-me na consciência, a culpa por não ter estado presente nesse dia. Se este fosse o primeiro desafio, eu não teria qualquer hipótese de o superar, mas o sucesso nos anteriores permitiu-me reunir forças para visitar o meu primo na sua última morada.
Alguém que assinava com a letra “I” escrevera: Os meus pais vieram para Portugal em busca de uma vida melhor. Não é fácil sustentar 7 filhos! Às vezes não havia nada em casa para comer, as roupas passavam dos mais velhos para os mais novos… eu já estava acostumado. Mas, a única coisa a que nunca me acostumei foi a ouvir, por palavras ou gestos: “volta para a tua terra”. Aí, não consigo evitar um nó a formar-se na garganta.
O despertador vibrou no meu pulso, interrompendo a leitura e avisando-me que os vinte e nove minutos haviam passado. Chegara a hora! Toquei à campainha, vi a luz da câmara a acender-se e ouvi o trinco a abrir, sem que ninguém tentasse comunicar através do intercomunicador. Subi as escadas e, com o coração aos pulos, aguardei que me abrissem a porta do 2.º B, sem fazer a mais pálida ideia do que se iria passar. – Surpresa! – À minha frente estava o Josh Barley que é a pessoa mais positiva que eu conheço, e o mais próximo que eu tenho de um amigo. Atrás do Josh, estavam o meu irmão, o Jorjão, o Damien, o Isaac, o Lourenço, o Gustavo, e até a Madalena. – Surpresa! – gritaram de novo, em coro, parecendo aguardar que eu respondesse.
RITA VILELA
Cartas para mim
Do pedido que se seguia, pertencente a um “G”, selecionei um excerto: Às vezes sonho com um mundo em que não necessitamos de ser iguais aos outros para sermos aceites. Aquelas mensagens diziam-me que eu não era a única a ter problemas. Depois de refletir um pouco, fiquei com a ideia que, pelo menos algumas vezes, eu já contribuíra para aumentar os problemas dos outros. Senti vergonha. Passei então à mensagem de um “JB”: Nasci numa pequena cidade muito pobre, mas onde as pessoas, apesar das dificuldades, em vez de se queixarem, procuram soluções para os problemas que vão surgindo… Sinto-me grato por me terem ensinado que, independentemente daquilo que a vida nos põe à frente, o modo como reagimos é uma escolha nossa. A apresentação do “DO” tinha muita coisa, mas houve uma frase que me disse mais: "Eu acho que toda a gente deveria ter um hobby. O meu é a música… é a melhor maneira que tenho para comunicar… é a fuga para todos os meus problemas”. 80
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Mas o que havia eu de responder, se ainda não fazia ideia do que se estava a passar ali? O Josh Barley explicou que fora ele que reunira aquele grupo, porque via que eu não estava bem, que andava já a bater no fundo. E tinham sido todos, em conjunto, que haviam criado aqueles desafios, e me haviam declarado a sua amizade, assinando com as iniciais dos seus nomes.
RITA VILELA
Aquela revelação significou muito. O que eles haviam feito para me ajudar mostrava que gostavam de mim, que eu era importante para eles, que eram mesmo meus amigos. Mas havia algo que continuava a não fazer sentido: porquê aquele grupo de pessoas em concreto? Não podia ser coincidência! – Fui eu – confessou o Duarte. – Depois da tua primeira resposta, o Josh falou comigo, queria saber quem podíamos envolver na “Operação Helena”, e eu fui ao teu quarto e encontrei um bloco aberto com uma lista de nomes… Só não descobrimos a Valentina. Quem é ela? Abanei os ombros, sem responder. Não podia revelar que a Valentina é uma parte de mim, a minha melhor parte, por sinal. Quando ela começou a não ter força para se impor, pus-me a imaginar que me abandonara e se tornara uma pessoa a sério. Se o meu irmão soubesse que a Valentina é… assim… uma espécie de amiga imaginária, ia pensar que sou maluca. Olhei em volta, naquela sala estavam todos os meus amigos, só faltava mesmo a Valentina. E então percebi que ela também lá estava, não ao lado deles, mas já dentro de mim, no lugar que lhe pertencia. Aquele grupo cumprira o prometido: eu, Helena Valentim, acabara mesmo por encontrar o amor: o amor dos amigos, o amor da família… e o amor por mim própria!
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ESCOLA SECUNDÁRIA FERNÃO MENDES PINTO
RITA VILELA Escritora com obra publicada desde 2008, é licenciada em Psicologia, desenvolvendo o seu percurso profissional na área da formação. Atualmente, conjuga esse trabalho com o exercício da terapia, a escrita e outras atividades ligadas às palavras… e às pessoas. Nascida em 1964, publicou o seu primeiro livro em 2008, apresentando no seu currículo a saga de fantasia histórica “Os Descendentes de Merlin”, a trilogia de fantasia e aventura “As 7 Cores de Oníris” e a coleção infantil “Alice“, entre muitos outros. Promover o prazer da leitura, facilitar aprendizagens e deixar sementes de mudança são objetivos muito presentes na sua escrita. Cruza fronteiras em 2013, contando atualmente com 10 internacionalizações, distribuídas por Brasil, Itália e Venezuela. Em 2018, o somatório da sua obra publicada ultrapassa os 200000 exemplares.
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Ana Ressurreição Beatriz Fernandes Francisco Ressurreição Hugo Rolo João Góis Julieta S. Goncalves Madalena Pulquério Marta Vicente Pedro Tavares Raquel Silva
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inglaterra
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À Procura de Summer Comecei bem, não o nego. A minha mãe é uma estilista famosa. Já devem ter ouvido falar dela. O meu pai, homem de negócios. São… digamos… ricos. Que mais posso dizer? É assim que têm conseguido pagar tantas consultas de psicologia. Desce que comecei a ver mortos, a psicóloga tem estado sempre presente.
Contas-lhes sobre os primeiros porque, como é óbvio, não sabes o que a casa gasta. Não percebes que eles, os teus pais, não os conseguem ver. No início, riram-se e disseram:
À PROCURA DE SUMMER
EMMA PURSHOUSE
Tudo começou na nossa casa antiga. Digo casa, mas era mais uma mansão. Aquilo… ela… a primeira… era uma coisa pequena de rosto azul, roupa suja, cabelo escuro emaranhado e comprido. Certo dia, corria pelo corredor de cima quando desapareceu por uma parede, deixando apenas um leve cheiro a laranjas.
— Amigos imaginários, que adorável. A Janey era inofensiva. Fazia o pino e a roda no jardim, irritante como todas as irmãs mais novas. Tinha três animais de estimação que andavam com ela. O Hogle, que era todo preto com olhos verdes, o Jarth, parecido, mas com uma mancha branca, e a Jess. — A minha Jess é branca com manchas brancas — dizia a miúda, soltando uma gargalhada. Sempre a mesma piada. Sem graça, passado um tempo. É verdade, alguns dos mortos eram assustadores. Se bem os meus pais eram quem mais achava a situação bizarra. A repulsa era evidente. As minhas “histórias” evoluíam à medida que eu me envolvia naquele mundo com mais destreza e descrevia cada criatura da noite que vagueava pela casa e cheirava pés ou lambia dedos dos pés. As criaturas que arrastavam os seus corpos suturados e rasgados sobre o rangente chão de madeira e batiam às portas dos quartos: truz-truz! Conforme fui crescendo, aprendi a não os mencionar com tanta frequência. Aprendi também a acabar com o seu sofrimento… os fantasmas, os espíritos, as assombrações… como queiram chamá-los. Estava muito feliz por acreditar no que se dizia, o ódio que os meus pais espalhavam, o que passava na televisão. 88
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— Os mortos são cruéis! Os mortos desvalorizam as nossas propriedades! As reclamações no Facebook e as páginas anti-mortos nas redes sociais davam vida às minhas crenças. Pensei em fazer a minha parte. Se os conseguia ver, fazia sentido que ajudasse a causa. Fui investigar. Li alguns livros sobre erradicação e recorri também ao Google, à Wikipédia e recursos semelhantes.
Um dos últimos tentou arrancar-me o cabelo pela raiz no último confronto. Por isso é que decidi usar o cabelo curto. As pontas roxas deram um belo toque. Sim, eu sei, as calças militares e as botas de biqueira de aço foram um exagero, mas é mais ou menos o que se espera de uma caçadora de fantasmas. Para infelicidade dos meus pais, era isso mesmo que eu era. Acharam que os desiludiria, que não era bem uma profissão, mas eu estava a ser empreendedora. Tal como eles, estava a aproveitar as minhas capacidades ao máximo. Arranjaram-me um sítio onde ficar para não me verem à frente e continuavam a pagar as minhas consultas.
Os morcegos. E os mortos. Há exterminadores de pragas que tratam dos morcegos por uma pequena quantia. E há pessoas como eu para dar cabo dos os mortos. Como este, a rapariga ruiva. Já a conseguem ver? O seu rosto pálido a virar-se para estudar a rua enquanto ela se derrete naquela porta. A maioria das pessoas conseguia ver se quisesse, mas faz vista grossa. Vá, concentrem-se. Reparem nas suas roupas rasgadas. É pequena, magra até. Está atrás daquele saco-cama encardido que alguém deixou ali. Quando pus a mão no bolso de trás para tirar o iPhone e verificar se correspondia aos anúncios que me tinham enviado, já tinha desaparecido. Fogo! Não cheguei a sentir. Com os olhos semicerrados, observei-a atentamente e comecei a andar na sua direção. Estava a remexer no saco que havia furtado. — Ah, comida de cão! — murmurou, inspirando pela boca com os seus dentes fantasmas cerrados. Depois olhou para o seu telemóvel… o meu telemóvel.
A minha última psicóloga fazia-me perguntas estranhas.
— Que lata… — disse, dando um passo à frente. — Isso é meu, sua cab…
— Isella, qual é a coisa mais bonita que já viste?
Olhou-me diretamente nos olhos.
— Um veado — respondi — no bosque atrás da casa do meu pai. Cheguei a dizer-vos que os meus pais se divorciaram? Não? Pois bem, divorciaram-se. A psicóloga parecia satisfeita com a minha resposta. Não lhe disse que era um veado morto. Mas era. Conseguia ver o buraco da bala de lado enquanto pastava, alheio a tudo, em erva etérea. E foi precisamente a regressar do consultório da psicóloga que vi a rapariga pela primeira vez. Olhem, ali está ela. Conseguem vê-la? Bem, talvez não tenham olho para isto. Aquela ali… que parece não ter medo de nada, aquela que parece capaz de matar. Acabou de roubar o saco de compras que estava aos pés daquele idoso na paragem do autocarro. Ele nem reparou. 90
— Como raio me consegues ver, sua anormal? — perguntou. — Estou morta para o mundo. Ninguém repara em mim. Eu devia parecer chocada perante a sua resposta. Não costumam saber. Não fazem ideia de que partiram. Procurei por algum indício do que lhe tinha acontecido. Nada visível. A cabeça não estava amolgada ou algo do género. Ainda estava boquiaberta quando ela começou a correr, levando o saco. E o raio do meu telemóvel. Os mortos… ainda pensam que precisam de comer. Deve ser força do hábito. Mas esta parecia pensar que também precisava de fazer chamadas. Desatei a correr atrás dela na direção do parque estacionamento. Meteu-se numa estrada com dois sentidos, atravessando as duas faixas de trânsito. Ninguém parecia vê-la… ninguém se desviava ou parava. Tive de esperar que o sinal ficasse verde, fui demasiado lenta. Vi-a passar, 91
À Procura de Summer
EMMA PURSHOUSE
Aprendi da pior maneira que a água benta não funciona. Foi assim que ganhei esta cicatriz no olho. E não acreditem quando vos dizem que os mortos não têm força. A pequena Janey e os seus animais morreram a dar luta. Ela era irritante e eu tinha de aperfeiçoar as minhas capacidades de alguma forma. Se sinto remorsos? Às vezes… por pouco tempo. Se bem que quando se vêm vingar com arranhões e mordidelas, rapidamente deixas de sentir empatia.
Pus-me a pensar se não era uma das assombrações do Royal Hospital de que me falaram… o edifício antigo onde estavam os construtores. Um dos obreiros tinha reportado uma assombração. Devem denunciar-se estes avistamentos diretamente às autoridades, como quando há morcegos num edifício. No entanto, é ridículo e resulta automaticamente em ordens de preservação, por isso, não se pode simplesmente deitar coisas abaixo. Os empreiteiros querem que os problemas se resolvam pela calada.
atrapalhada, por entre painéis de madeira que tinham sido colocados à volta do hospital, e, de seguida, a desaparecer por baixo do sinal de aviso de demolição. Perdi-a de vista.
precaução. O edifício parecia instável. Rangia e gemia. Voltei ao sítio em que tinha começado, bastante segura de que tinha eliminado as assombrações.
Quando cheguei a casa, liguei-me à net e verifiquei os e-mails. Ali estava ela. Cinco ou seis avistamentos denunciados. Um cabelo ruivo de relance ali. Um vislumbre de uma miúda magra acolá. As outras denúncias eram de cheiros estranhos, uma espécie de sensação terapêutica de ardor no fundo da garganta. Algumas delas eram apenas resultado de uma imaginação fértil, com certeza. Mas algumas… bem, logo veríamos.
Acho que a divisão onde estava devia ser uma espécie de corredor de entrada Era grandiosa… ou, pelo menos, tinha sido. Fiz uma pesquisa na noite anterior e descobri que o hospital tinha sido inaugurado na Era Vitoriana e encerrou em 1972. Os vitorianos sabiam erguer um edifício. Patrulhei os cantos da divisão. Não sobrou nada ou, pelo menos, nada médico. Tinha sido tudo retirado. Bem, sem contar com as seringas no chão, mas estas eram recentes. O vidro estalava-se sob as minhas botas enquanto me deslocava à meia-luz. O cheiro era muito forte lá dentro. Pairava um certo odor a moedas e metal velhos. O chão estava manchado pelo que devia ser sangue, mas, provavelmente, era tinta. Havia cantos escuros, marcas de arranhões nas paredes. Era fácil imaginar os gritos de lunáticos e mulheres loucas. O local apresentava indícios de ter sido um hospício. Era o tipo de sítio que as crianças aventureiras talvez quisessem explorar. Fez-se sentir mais uma baforada de algo medicinal.
*********************************************************************************** Ao entrar pela janela partida, reparei num livro no parapeito.
Uma espécie de diário, aberto na última entrada. Estaria ela a esconder-se aqui? Tinha tropeçado e caído das escadas abaixo? Folheei as primeiras páginas, não propriamente a lê-las, mas antes a registar que estavam preenchidas por uma escrita uniforme, ligeiramente inclinada. Questionei-me se estaria a observar-me enquanto lia. A aréola de luz que estava acima da minha cabeça chamou-me à atenção. É uma daquelas coisas que às vezes aparecem nas fotos… um frouxo círculo de fotões. Os físicos chamam-nos de orbes. Borrifei um pouco de Mr. Muscle¹ que tinha no coldre do cinto e desapareceu. Eu sei, não digam a ninguém, mas funciona. A água benta, não. O detergente de limpeza para casas de banho da Poundland², sim. Não sou eu que defino as regras. Meti mãos ao trabalho. De forma metódica, analisei o sítio. Verifiquei cada divisão, à procura de corpos e fantasmas. Primeiro andar, segundo andar, terceiro andar. Cada armário, canto e recanto. Chegou-me ao nariz uma ligeira baforada de um daqueles odores medicinais descritos no e-mail. Erra um hospital antigo, por amor de Deus, o que é que esperavam? Destruí outro par de orbes. Borrifei Mr. Muscle nos cantos como ¹Marca de produtos de limpeza para superfície difíceis, produzida pela S. C. Johnson & Son. ²Uma cadeia de lojas britânica fundada em 1990 cujos artigos custam £1, equivalente à “loja dos trezentos” em Portugal. 92
E por fim, apareceu. Saiu da parede aos gritos. Dentes e garras, a saliva a voar das suas mandíbulas. Mas que raio? Bateu contra mim e fui ao chão. O Mr. Muscle foi pelos ares. A minha mochila ainda nas costas. Não tinha armas à minha disposição. Nada. O seu hálito era sufocante, senti o vómito a subir-me à garganta. Os dedos rijos enterravam-se na minha traqueia, de ambos os lados. Não podia ter gritado mesmo que quisesse. Os seus olhos escarlates fecharam e abriram, a sua boca abriu e os seus dentes afiados cerraram, avançando na minha direção. E quando já estava a perder a esperança… à medida que a escuridão se aproximava… aquela coisa virou a cabeça… distraiu-se por breves instantes. Consegui levantar o pé e pontapeá-la com a minha bota no que imaginei ser o seu plexo solar. AH! O esforço era imenso. E o grito da criatura era imenso… como algo de outro mundo… como se todas as mágoas, mortes e torturas deste lugar se tivessem juntados numa única atroada. Evaporou. Desapareceu… por enquanto. Conseguia ouvir os seus gemidos algures nas paredes. Estava deitada de costas a tentar recuperar o fôlego quando a vi olhar para mim. Percebi que devia ter sido o seu súbito aparecimento a distrair… a criatura. — Mas que raio foi aquilo? — resmunguei. Ao levantar, caiu-me a mochila. Não ia correr riscos. Saquei das minhas armas, livros de invocação, canetas laser, tasers, oscilador de altas frequências. Alinhei o meu arsenal no chão. 93
À Procura de Summer
EMMA PURSHOUSE
O meu nome é… era Summer. Já fui amada, mas agora estou perdida. Devem sempre dizer à vossa família que a amam porque nunca se sabe quando a voltarão a ver. Hoje comi comida de cão pela primeira vez. Não é tão má quanto esperava.
— Leste o meu diário! — disse ela numa voz baixa.
— Não, não era um obreiro.
— O quê?
Um rugido. E lá estava ele. O fedor, a parede a tremer e a presença demoníaca de
— Leste o meu diário! — repetiu. — Só um bocado. A última página. Ela acenou com a cabeça. Olhou-me com incerteza. — E depois parei. Quando aquela coisa surgiu a voar da… — Tens epilepsia? — perguntou.
— Pega no livro — gritei para a Summer. Rebolei para a direita enquanto a criatura se aproximava de mim.
— O quê? — voltei a responder. Não estou propriamente habituada a ser interrogada por fantasmas. — Quando entrei, parecias estar a ter um ataque ou sei lá. — Enfrentar criaturas mortas raivosas que espumam da boca pode provocar isso. Parecia confusa outra vez. — Estás a ver o filho de Satanás… dentes afiados… E depois percebi que… ela não tinha visto a criatura. Como não a viu? Conseguem ver-se todos uns aos outros. — Para que queres isso tudo? Apontou para o que tinha no chão ao lado da mochila. Senti-me envergonhada por causa do Mr. Muscle e apanhei-o onde tinha caído, voltando a pô-lo no meu coldre. — Hum… é o meu conjunto de eletrocussão de fantasmas. Ela estava a assustar-me. Nunca falo com eles. — Vais exorcizar-me? Sorriu. Sorri de volta sem querer. — O plano era esse. Mas parece que há assuntos mais importantes. Saiu um gemido da parede.
— O livro… página 22… lê de trás para a frente. Ela reagiu. Percebi que só me via a arrastar no chão e a gritar instruções sobre como erradicar um demónio que ela nem conseguia ver. Mas fê-lo… fê-lo. Leu a invocação de trás para a frente. A melhor forma de lidar com um Amorphus. E ao terminar, alcancei o taser de novo, e lá conseguimos livrar o hospital de um dos seus fantasmas. O estrondo foi memorável. A Summer nem pestanejou. Como não ouviu aquilo? — Não podes ficar aqui — disse, após recuperarmos o fôlego. — Salvaste a minha vida. Estou em dívida contigo e não te vou erradicar agora… A não ser que o queiras — acrescentei. — Não tenho a certeza… Eu… — Não importa, mas não podes ficar aqui. — Ei, Summer! Uma voz do exterior interrompeu a nossa conversa. — Onde estás? Sei que estás aí… não me faças ir atrás de ti. Porque quando te encontrar, queri… Sem dúvida que a Summer tinha ouvido esta voz. Levantou-se antes que eu pudesse falar, começou a correr, saiu apressadamente pela janela e desapareceu. Saltei.
— Ouviste aquilo?
— Summer… — gritei, seguindo-a.
Abanou a cabeça. — Eles querem fazer trabalhos de construção aqui. Talvez sejam os obreiros de regresso? Os gemidos aumentaram. 94
Uma vez na rua, à luz do sol, não havia sinais dela. Estava exausta e decidi que não queria mais confusões com fantasmas naquele dia. A Summer e o dono da voz teriam de esperar até ao dia seguinte. Nunca hesitei em 95
À Procura de Summer
EMMA PURSHOUSE
garras afiadas. Veio atrás de mim a gritar, passando diretamente através da Summer, que ali permanecia imóvel. Estava pronta. Rebolei para o lado, agarrei num taser e dei-lhe uma descarga de mil volts. O grito era palpável e queimava o ar. Mas não foi suficiente. Lançou-se novamente na minha direção.
livrar o mundo dos mortos… pois, como vocês sabem, estão mortos e não há problema nenhum em mandá-los para o além… ou para o esquecimento… ou para onde quer que seja que os mortos vão. Não tinha pensado seriamente sobre para onde vão. Não é como se fossem importantes, certo? Mesmo assim, nessa noite, comecei a sentir algo estranho quanto à rapariga. Para começar, até nos demos bem. Ela salvou-me a vida. A criatura das mandíbulas afiadas não teria deixado ninguém escapar. E havia outra coisa. Estava intrigada, talvez. Porque não conseguia ver o demónio?
Os mortos não estão presos a um sítio. Apesar de às vezes pensarem que estão. É comum assombrarem o local da sua morte, mas, por vezes, ficam onde eram felizes. Mas se quiserem, podem ir para outro lugar. Ela… aquilo… provavelmente só precisava de ser persuadido gentilmente. E se não… bem, havia sempre o taser. Torcia para que não chegasse a isso. Precisava mesmo de descontrair. Pus-me a ver uns desenhos animados, vi séries na Netflix sem parar. Acabei por adormecer por volta das duas da manhã. Voltei a acordar sobressaltada às quatro, revivendo o momento em que o velho Mandíbulas Afiadas desapareceu e eu e a Summer ficámos a recuperar o fôlego. — Fogo, mas é claro! Estava a tomar o pequeno-almoço quando a empresa ligou a reportar o avistamento de luzes no antigo hospital naquela noite. Desta vez, tinham sido cidadãos a fazer a denúncia. Isso não era nada bom. Às vezes, quando as pessoas tomam conhecimento de uma assombração, surgem os benfeitores a querer “salvar os mortos”. Protestos e marchas a apoiar essa causa resultam em grandes atrasos nas demolições e renovações de edifícios. E depois, eu ficaria mal vista. Não podia permitir isso. Verifiquei se tinha as minhas armas e saí. Quando cheguei ao hospital, entrei pela mesma janela do dia anterior. Os orbes já deviam ter desaparecido todos, mas borrifei mais um pouco de Mr. Muscle nas teias de aranha para prevenir. O livro dela ainda estava no parapeito. Li uma entrada mais antiga.
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Enquanto lia, ouvi um grito. Percebi que estava certa. Um grito daqueles só podia significar uma coisa. Corri para o fundo das escadas principais. Subi dois degraus de cada vez. Outro grito. — Afasta-te de mim! Ouvi-a chorar. Derrapei no corredor do primeiro andar. Corri em direção às portas de cada ala e procurei-a atrás de cada uma delas. Encontrei-a na penúltima, havia algo enorme mesmo ao lado dela. A criatura estava de costas para mim. O seu riso arrepiou-me. Tirei a mochila das costas e ajoelhei-me para a abrir. Deve tê-la visto a olhar na minha direção e virou-se. — Quem é que temos aqui? Tens uma nova amiguinha, Summer? Veio na minha direção. Dei-lhe uma dose de ruído do oscilador ultrassónico, que deveria ter rebentado os seus tímpanos fantasmagóricos. Nada. Continuou a andar na minha direção e investiu. Desviei-me. Voltou à carga e agarrou na minha T-shirt. Soltei-me, olhei em volta. Um pedaço de madeira no canto. Apanhei a madeira, ataquei-o assim que voltou a vir atrás de mim. O meu corpo vibrou ao bater-lhe na cabeça. Pôs a mão no crânio e começou a sangrar. A sangrar?! Cambaleava um pouco, mas ainda vinha atrás de mim… ainda a rir-se. Era tão maior que eu. E era de carne, sangue e osso! Não era bom sinal. Nada bom. O soco que me desferiu, atordoou-me o maxilar e mandou-me de lado contra a parede. Conseguia ver que a Summer já estava de pé. Pelo menos, distraí-o tempo suficiente para que ela pudesse recuperar. Dois contra um. A não ser que ela fugisse. Não a culparia se o fizesse. Mas não fugiu. Saltou. Para cima das suas costas. A gritar como quem queria derrubar as paredes. Batendo na cabeça dele com os seus pequenos punhos. Ele girou e girou, a tentar livrar-se dela. Fiquei a olhar, sem saber que fazer. Desloquei-me pela divisão, ao lado deles. O chão rangia sob os meus pés, as tábuas cederam debaixo do meu pé, deixando cair madeira podre e placas de gesso para o corredor abaixo. Saltei para a parede do canto da divisão. 97
À Procura de Summer
EMMA PURSHOUSE
Fiz um pouco de trabalho administrativo. Registei os orbes, o problema do cheiro medicinal das mandíbulas afiadas e informei a empresa de que já tinham sido neutralizados. Não reparei em mais nada, mas, geralmente, onde há um orbe, costumam haver outros, tal qual baratas. Decidi voltar no dia seguinte para verificar, investigar o dono da voz e, tentar, caso ainda lá estivesse, convencer a Summer a avançar com a vida dela.
Pensei tê-lo visto na cidade. Mas não pode ser ele. Estou só a ver coisas. Estou muito longe de casa. Ele não me encontraria aqui. Ninguém me conhece aqui. Mas parecia ele. Arrepiei-me e senti-me mal como acontece quando o vejo. Mas sei que é a minha imaginação a pregar-me partidas. Um ataque de pânico ou algo do género. Consegui trazer umas bananas do mercado. Serão suficientes por enquanto. Nem sequer gosto de bananas.
— Vem apanhar-me! — gritei. E lançou-se, trazendo a Summer com ele. As pernas dela estavam à volta da sua cintura, os olhos fechados, os punhos ainda a bater na sua cabeça. Arrastou-se em direção ao pequeno buraco que o meu pé havia criado. Ele era grande. O seu peso, juntamente com o da Summer, criava mais lascas. A sua perna direita desapareceu no buraco, lançando-o para o lado. — Summer, larga-o!
— Não consegues ver os mortos, e quando enfrentámos o demónio, tiveste de parar para recuperar o fôlego. Os mortos não respiram. Não estás morta. — Mais valia estar — disse ela. A sua boca sorriu, mas os olhos não. E depois vi a sua dor, as suas feridas nítidas enquanto levantava a mão e me acenava com tristeza ao sair. Questionei-me sobre quanto tempo lhe restava. Quanto tempo demoraria até vê-la outra vez. Sabia que da próxima vez não a deixaria ir.
Ela parecia não me ouvir, como se estivesse noutro lugar. — Dá-me a tua mão!
EMMA PURSHOUSE
Os seus olhos, selvagens, como se não me reconhecesse. — A tua mão, Summer! EMMA PURSHOUSE
Ele tentou subir pelo buraco. — Summer! A tua mão! Ela tentou alcançar-me. Ao soltá-lo, estendeu-me o braço e libertei-a dele. A minha bota de biqueira de aço acertou-lhe em cheio na cara quando se voltou a tentar erguer do buraco do chão, mas as tábuas estavam demasiado podres. Atravessou o teto, com um estranho ganido. A pancada foi forte… mas mais do que isso, não sabíamos. — Summer, anda! Saímos da divisão a correr com o teto a ceder. Descemos as escadas à pressa e ali estava o corpo caído. — Mataste-o — sussurrou. — Sim… De repente, não sabia que dizer. Uma coisa era matar os mortos, mas os vivos… A bruma começou a erguer-se. Peguei no taser e libertei o seu espírito. Bum. Ele ou aquilo desapareceu. — Credo, isto foi de loucos — disse. Não obtive resposta. Virei-me e a Summer estava a trepar pela janela. — Não estás morta, Summer! — gritei.
Emma Purshouse nasceu em Wolverhampton e é escritora freelance e faz poesia performativa. É campeã de poetry slam (vencedora do Festival Shambala Slam 2018) e faz performances regulares em noites de spoken word nights e festivais em vários sítios, geralmente fazendo uso do seu dialecto nativo, Black Country. A sua presença fez-se notar em eventos como The Cheltenham Literature Festival, Ledbury Poetry Festival, Much Wenlock Poetry Festival e Solfest. Já participou como acto inicial nos trabalhos de John Hegley, Holly McNish e Carol Ann Duffy. Emma já participou em trabalhos de poesia para espaços como Wolverhampton Libraries, The New Vic Theatre in Stoke-on-Trent e o International Festival of Glass em Stourbridge. Escreve para crianças e adultos e em 2016 foi lançada a sua primeira coleção de poesia para crianças, pela Fair Acre Press. Este livro tem como público-alvo crianças entre os 6 e 11 anos, é um livro de apoio a dislexia, e ganhou o Rubery Book Award de 2016 na secção de poesia. A sua publicação mais recente é ‘Close’ (Offa’s Press, 2018). Em 2017, Emma venceu a competição internacional de spoken word ‘Making Waves’, cujo júri foi Luke Wright. A sua primeira obra short-listed para o prémio Mslexia de obras não-publicadas. Ela é também uma das autoras escolhidas para a antologia ‘Common People’ anthology em 2019. Balaam Wood School, Birmingham Mohamed, Jessica, Hayleigh, Amber, Jack, Christopher, Roman, Jackson, Rynae, Dyllan, Kelis, Leah, Bradley, Josh, Allyra. Professora: Emma Turrell
Virou-se por um segundo. 98
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FallDeep A Lucy premiu o gatilho da caçadeira e o morto-vivo explodiu, dando lugar a um monte de tripas, carne e osso. Retirando rapidamente os dois cartuchos usados, introduziu mais dois no cano e recarregou a arma. — Por aqui! — gritou o Digits, saltando por cima de uma poltrona em forma de gaiola e rompendo numa correria pelo corredor do hospital. A sua voz era esganiçada e demonstrava entusiasmo. Dava saltos mortais enquanto corria. Os restantes seguiram o chimpanzé, que os guiava para porto seguro.
FallDeep
KEN PRESTON
A Lucy permaneceu imóvel, com a caçadeira apontada aos mortos-vivos que se aproximavam. Os mortos-vivos eram uma ímpia combinação de ser humano e aranha. Os seus corpos com forma humana eram elevados por patas compridas, finas e esguias, que irrompiam do tronco. Os seus corpos estavam cobertos de cerdas de uma tonalidade escura de castanho e os seus olhos brilhavam num tom rúbeo que transmitia fome e ódio. Se um morto-vivo te conseguisse imobilizar no chão com as suas seis patas, iria baixar-se até estar suficientemente perto para te começar a devorar. O morto-vivo que estava mais próximo abriu a boca, revelando filas de presas pontiagudas e afiadas a escorrer saliva. Cada gota de saliva fervilhava e fumegava, abrindo um buraco no chão. A Lucy apertou o gatilho, provocando outra explosão de estilhaços. O disparo abriu um buraco no estômago do morto-vivo. Por um momento, permaneceu ali, quase surpreendido, e depois caiu no chão com as pernas estendidas em todas as direções. Reuniram-se mais monstros atrás do cadáver e fitaram a Lucy de forma funesta. A Lucy procurou mais cartuchos de caçadeira. Não havia. Tinham acabado. A Lucy virou-se e correu. Seguiu as crianças pelo corredor do hospital. Faixas de luzes piscavam, projetando estranhas sombras nas paredes. A Lucy não conseguia ver as crianças, mas conseguia 101
ouvi-las. Algumas delas gritavam, outras riam. As que riam, ainda pensavam que isto era apenas um jogo. Que se fossem devoradas por um morto-vivo, o jogo terminaria e poderiam escolher entre reiniciar ou sair do FallDeep: Ataque dos Mortos-Vivos. Era assim que costumava ser, mas sobreviver no FallDeep tinha deixado ser um jogo. Era uma realidade letal. Ninguém sabia ao certo o que tinha acontecido, nem quando. O FallDeep era a maior e mais imersiva plataforma de realidade virtual alguma vez criada. Alguns jogadores tinham passado anos a explorá-la e a cartografá-la e, ainda assim, estavam longe de conhecer os seus limites. Ninguém sabia a extensão do FallDeep e os criadores também não a revelavam.
A Lucy sabia que nenhum dos cidadãos do FallDeep eram reais, tal como ela não era real. Eram avatares, feitos de pouco mais do que píxeis e das personalidades dos jogadores por trás dos mesmos. Era essa a beleza do FallDeep. As pessoas jogavam para serem quem quisessem e podiam ser qualquer pessoa ou coisa. Não havia limites, distinções entre raça, género ou sexualidade. Muitos jogadores entravam no FallDeep só para desfrutar do ambiente, absorvê-lo e viver nele como se da realidade se tratasse. A Lucy conhecia jogadores que se tinham encontrado com outros jogadores e que se tinham casado e constituído família. Tinham arranjado empregos, comprado casas, ido para fora da cidade ou tirado férias noutros países. No entanto, outros tinham como missão explorar o FallDeep, atravessar oceanos e montanhas, explorar mais longe e de forma mais profunda do que qualquer outra pessoa. Muitos destes jogadores trabalhavam e viviam sozinhos, felizes na sua própria companhia. O FallDeep não era um jogo.
Tudo isto tinha começado com avatares a morrer em definitivo. A morte de avatares no FallDeep era uma coisa bastante comum, mas os jogadores voltavam rapidamente à vida. Até que deixaram de voltar. Na sua última conversa com o seu melhor amigo, Alex, antes de o contacto com o mundo real ter sido cortado, a Lucy descobriu que quem abandonava o jogo, morria. Estavam presos. A Lucy correu por várias portas duplas, fechando-as. O Digits estava à sua espera e juntos barricaram a porta. O Digits rebolou de costas e desatou a rir às gargalhadas. Entusiasmava-se muito. — Ainda bem que achas piada a isto — disse a Lucy. — Não consigo evitar — disse o chimpanzé. — Nunca me diverti tanto desde que parei de participar em filmes. «Nunca participaste em filmes», pensou a Lucy, mas não abriu a boca. O Digits fazia parte da realidade virtual do FallDeep. Não era um avatar de um jogador, não era controlado por ninguém. Quando os mortos-vivos os começaram a perseguir, o Digits decidiu ajudar a Lucy e os seus amigos. A Lucy não tinha a certeza de quão útil ele era realmente, mas estava grata por o ter por perto. Mesmo que tivesse o hábito desagradável de enfiar o dedo no nariz e vasculhar até encontrar algo bom e suculento para comer. A Lucy olhou para as portas vedadas. — Não se vão aguentar por muito tempo — disse ela. — Minha nossa, é melhor bazarmos — disse o Digits. Uma das crianças mais velhas surgiu da escuridão por trás deles. — Não há por onde ir — disse ele. — É um caminho sem saída. As portas vedadas estremeciam sob batidas e golpes.
Era uma vida. Mas a vida real fora desta plataforma de realidade virtual continuava. Até os jogadores mais dedicados tinham de abandonar o jogo e voltar à realidade, nem que fosse para se alimentarem. 102
— Bem… — disse o Digits. — Parece que nos espera uma boa sova. A Lucy fechou os olhos. Tinha chegado a hora. Se ao menos a Aurora e o Alex cá estivessem, saberiam o que fazer. 103
FallDeep
KEN PRESTON
A Lucy apenas tinha explorado uma pequena parte, passando a maioria do tempo a completar missões com os amigos, Aurora e Alex, na cidade tecnologicamente avançada de Deepopolis. Os arranha-céus eram incrivelmente altos e belos, e a vida na cidade era pulsante, um sítio onde culturas e seres de vários planetas se cruzavam.
Mas agora, estavam todos presos no FallDeep.
Mas o Alex não estava no FallDeep quando a crise eclodiu. E ninguém via a Aurora há muito, muito tempo. #
— Boa tarde, Alex — disse o homem. Ao falar, a sua identificação apareceu, flutuando ao lado do ombro direito do homem.
— Estima-se que, a nível mundial, haja cerca de nove milhões de jogadores presos no FallDeep. E o número de jogadores que morreu na realidade, a tentar sair do jogo ou, de facto, morreu no jogo ronda agora os 2500. Estamos perante uma operação de cooperação internacional numa dimensão nunca antes imaginada, com especialistas a juntarem-se para descobrir uma forma de resgatar os restantes jogadores do jogo. Mas não será fácil.
— Vou direto ao assunto — disse o Agente Gideon. Estamos a reunir o máximo de equipas que conseguimos para entrar no FallDeep e resgatar jogadores. Como pode…
O Alex desligou a televisão. Estava farto, farto do tempo de antena, dos comentários intermináveis quando não havia novas notícias a relatar.
— Sim, encontrámos uma entrada. Mas não é fácil. Alex, tens alguma experiência com teletransporte?
E estava preocupado com a Lucy.
Brett Gideon, Agente do Governo e Consultor Especial da Missão FallDeep.
— Encontraram uma entrada? — disse o Alex, com um entusiasmo crescente. O Agente Gideon acenou com a cabeça, apresentando uma cara sombria.
— Não — respondeu o Alex.
O Alex encontrava-se constantemente em contacto com os pais da Lucy que, por sua vez, estavam sentados atrás dela enquanto esta estava sentada na sua cadeira gaming, com o capacete de realidade virtual e as luvas postos. Estava viva e ativa dentro do FallDeep, pelo menos isso sabiam. Mas mais nada. A crise do FallDeep estava quase a atingir as 12 horas e os debates sobre como cuidar dos jogadores eram incessantes. Até agora, as soluções incluíam bolsas de soro para manter os jogadores hidratados e cateteres para tratar dos resíduos corporais. Com os níveis de frustração e preocupação a aumentarem, o Alex olhou para o seu kit de realidade virtual. Não era a primeira vez que desejava que o jogo não estivesse bloqueado para poder entrar no FallDeep e encontrar a Lucy. O TED, o sistema de inteligência artificial da casa, interrompeu os pensamentos do Alex. — Tens uma chamada, Alex. O Alex meteu-se na cadeira gaming, pôs o capacete de realidade virtual e calçou as luvas sensoriais. Navegou para a sala de conversação, entrando num café que se encontrava numa esquina em Nova Iorque. Como sempre, cada vez que entrava no mundo da realidade virtual, ficava espantado com o quão real tudo parecia e se fazia sentir. Os ruídos ensurdecedores e prolongados dos táxis amarelos que passavam na rua, o barista à espera dos pedidos no balcão, o zunzum das conversas das pessoas sentadas à volta das mesas. 104
O teletransporte era uma forma de viajar rapidamente de uma zona no FallDeep para outra. Os jogadores podiam navegar uns 1600 km em apenas um minuto ou dois, indo por “atalhos” virtuais. Mas levavam-se meses de treino para dominar as capacidades necessárias e nem todos eram bem-sucedidos. — Bem me parecia — disse o Agente Gideon. — Mas conheces alguém que sabe, certo? — Refere-se à Aurora? — perguntou o Alex. — A Aurora não joga FallDeep há, pelo menos, dois meses. Ninguém sabe onde está, nem quem é. — Nós sabemos — afirmou o Agente Gideon. — Já entrámos em contacto com ela e está disposta a entrar no FallDeep uma última vez, mas só se o Alex for com ela. O barulho do trânsito aumentou quando a porta do café se abriu. A Aurora entrou e disse: — Olá, Alex. Estás pronto para um pouco de ação? Por um segundo, o Alex ficou sem palavras. A Aurora, a Lucy e o Alex tinham sido uma equipa outrora, um trio que partilhava tudo no FallDeep e viajava para todo o lado, partilhando aventuras, experiências e várias conversas na cidade de Deepopolis ou a acampar, à volta de uma fogueira à noite. Nem o Alex nem a Lucy conheciam a Aurora no mundo real, mas a sua amizade era real. E depois a Aurora desapareceu, sem explicação. 105
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Quem tinha ligado para o Alex era o homem no balcão. Vestia um fato e um chapéu, assemelhava-se a um detetive privado dos filmes antigos que o pai do Alex via e que às vezes obrigava o Alex a ver.
Agora, com a Aurora à sua frente, sorriso de orelha a orelha e olhos azuis perfurantes, concentrados firmemente nele, o Alex não sabia se estava feliz ou zangado. Por fim, a Aurora falou por ele. — Vá, vamos andando. Precisamos de salvar a Lucy. O Agente Gideon levou-os para a parte de trás do café e desceram umas escadas íngremes até à cave. Havia uma porta de madeira lisa na parede. — Conseguimos abrir em todo o mundo uma série de portais para entrar no FallDeep. Neste momento, estão a entrar milhares de equipas. Uma vez lá dentro, não vos garanto que consigam achar o caminho de volta. Ninguém vos força a ir, essa decisão é vossa. Mas têm de decidir agora. Não podemos manter estes portais abertos por muito mais tempo.
O caminho na paisagem rochosa de gelo e neve era irregular. De repente chegaram ao fim e foram confrontados por três homens com roupas brancas como a neve, óculos e capacetes. E tinham armas. Kcurt ehtni teg! — um dos homens gritou, apontando a arma aos dois adolescentes. Apontou para um camião danificado estacionado atrás deles.
— Estou pronto — disse o Alex. — E tu?
O coração do Alex caiu-lhe aos pés. — Que fazemos? — sussurrou para a Aurora.
— Eu nasci pronta — retorquiu a Aurora.
— Entra no camião — respondeu ela.
O Alex esboçou um grande sorriso rasgado
Dirigiram-se para o camião, de mãos no ar e cabeça baixa contra o vento gélido. Entraram, o homem fechou a porta e trancou-a. Pouco depois, ligaram o motor.
A Aurora estava de volta, sem dúvida. O Agente Gideon retirou uma velha chave de fechadura embutida do seu bolso. Enfiou a chave na fechadura e girou-a. Afastou-se. — Boa sorte — disse. — Voltem e tragam amigos de volta. A Aurora acenou com a cabeça ao Agente Gideon, abriu a porta e atravessou-a. O Alex seguiu-a. O ar estava frio no outro lado e um vento violento fustigava-os com flocos de neve afiados e rodopiantes. O Alex ouviu a porta a fechar-se por trás dele. O Alex agarrou na Aurora quando percebeu que estavam empoleirados no topo de uma cordilheira gélida. Olhou para trás e deparou-se com a simples porta de madeira a flutuar centímetros acima do topo da montanha. — Onde estamos? — gritou o Alex. — HighDeep! — A Aurora gritou de volta, com o vento a cortar-lhe as palavras ao ponto de o Alex mal a conseguir ouvir. — Vá, precisamos de descer para encontrar a porta seguinte. 106
O Alex deitou a cabeça nas mãos quando o camião entrou em movimento. A velocidade não tardou a aumentar, o camião abanava e balançava sobre o solo pedregoso. — Não acredito — disse o Alex. — Falhámos mesmo antes de começarmos. — Não, não falhámos — disse a Aurora. O Alex olhou para cima. A Aurora tinha aberto um alçapão no interior do camião. O Alex rastejou e olhou pela entrada quadrada. Em vez do caminho atribulado e gelado a passar por eles, como o Alex esperava, o solo era verde, coberto de musgo. E estava parado. — Rápido — disse a Aurora. — Antes que o portal feche. O Alex balançou as pernas e atirou-se de pés pelo buraco, caindo em terreno pouco sólido. Desviou-se do caminho e a Aurora caiu ao lado dele. Sentou-se e observou as redondezas. Estavam numa floresta densa. O ar era espesso com o cheiro da vegetação. A humidade escorria das árvores, percorrendo os troncos verdes e grossos. 107
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O Alex olhou para a Aurora e sorriu. Apesar do perigo, o velho entusiasmo estava a voltar.
Seguiram um caminho gélido, estreito e íngreme para baixo, pelo lado da montanha. O vento fez com que viessem lágrimas aos olhos do Alex e o frio congelou-as nas suas bochechas. Tinha tantas perguntas para fazer à Aurora, sobretudo onde tinha estado este tempo todo e porquê. Mas o sibilar do vento tornava qualquer conversa impossível.
O Digits saltava, tagarelando e gritando, enquanto soltava gargalhadas.
O Alex apontou para as árvores. — Espera lá, aquilo são… — Brócolos, sim — disse a Aurora. — Estamos numa floresta de brócolos gigantes. O Alex abanou a cabeça. Estas eram zonas do FallDeep sobre as quais nunca tinha sequer ouvido falar. — Certo, toca a andar, precisamos de encontrar a próxima entrada — disse a Aurora. — — Não tenho muito tempo. — Nós não temos muito tempo, queres tu dizer — disse o Alex. — Foi o que eu disse — a Aurora respondeu e afastou-se. «Algo está errado», pensou o Alex. Não sabia o quê, mas algo na Aurora estava diferente.
— Au! — gritou o Alex, ao bater com a cabeça num teto baixo, fazendo ressoar um som metálico. Estavam num submarino. A tripulação virou-se para olhar para os recém-chegados. A tripulação era constituída por mulheres, quase todas idênticas com cabelo preto comprido e salientes antenas nas suas testas. E eram baixas também. O Alex teve de se inclinar para evitar bater com a cabeça no teto baixo do submarino. Olharam para o Alex e a Aurora, com os olhos arregalados de surpresa. A Aurora agarrou na maçaneta de metal de outra porta e virou-se para o Alex. — Mais uma porta depois desta e chegamos ao local onde a Lucy está, mas tens de ter cuidado na próxima secção. — Porquê? Que queres dizer com isso? — perguntou o Alex. A Aurora abriu a porta e avançou, respondendo ao Alex. — Porque as criaturas aqui mordem! — Fixe — murmurou o Alex, ao atravessar a entrada. #
As portas barricadas estremeciam sob o ataque dos mortos-vivos. A saliva dos mortos-vivos ardia e atravessava as portas, criando buracos. A Lucy acreditava que não lhes restava muito tempo. O Digits deu um mortal à frente da Lucy e coçou as costas. — Ena! Isto é divertido, não é? — Não — respondeu a Lucy, quase a chorar. — A qualquer momento estas portas vão ceder e os mortos-vivos vão entrar e matar-nos. O Digits pôs-se de pé e bateu no seu peito peludo inchado com os punhos. — Não te preocupes, miúda. Não vou deixar que isso aconteça. Eu protejo-te! A Lucy esboçou um sorriso ténue. O Digits tinha sido um companheiro leal e corajoso, sacrificando-se várias vezes para proteger a Lucy e os outros. Por ser parte do jogo, e não propriamente um jogador, ressuscitava sempre após alguns momentos. Mas independentemente de quantas vezes voltasse, os mortos-vivos avançavam e agora estavam encurralados. A Lucy tinha verificado as janelas da ala, mas eram muito altas para se saltar delas e lá em baixo já haviam mais mortos-vivos à espera. As portas rebentaram. Os mortos-vivos passaram desenfreadamente pela porta e sobre os destroços, famintos por carne humana. O Digits saltou para a frente da Lucy e das crianças, de cabeça erguida, com os braços abertos. — Não se aproximem, seus animais imundos, não passam por mim! — rugiu. O morto-vivo que estava mais próximo baixou-se, levantou o Digits e cravou os dentes no seu pescoço. A Lucy tapou os ouvidos enquanto o chimpanzé gritava. O morto-vivo mordeu o Digits até os gritos pararem e depois atirou-o para o lado de forma descontraída. Das suas presas escorriam sangue e saliva à medida que o morto-vivo se aproximava com as suas patas esguias. Mais mortos-vivos apareciam atrás.
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A porta seguinte estava embutida no tronco de uma árvore de brócolos. A Aurora abriu a entrada e ambos deram um passo em frente.
As crianças, ao todo cerca de 50, estavam amontoadas ao fundo da ala hospitalar deserta, silenciosas e ausentes.
A Lucy manteve-se firme, as crianças por trás dela a gritar e a chorar. Estendeu os braços como fizera o Digits momentos antes, numa tentativa de proteger as crianças o máximo tempo possível. O morto-vivo que tinha matado o Digits aproximou-se. A Lucy conseguia sentir o seu hálito quente e fedorento na cara dela e conseguia ouvir o fervilhar da sua saliva à medida que caía no chão. Cerrou os olhos, aguardando a sua mordida brutal. Um tiro ecoou. A Lucy abriu os olhos no exato momento em que a cabeça do morto-vivo explodia e dava lugar a sangue e miolos, salpicando a cara e o cabelo da Lucy. — Alex! Aurora! — clamou. Os dois adolescentes atravessaram o exército de mortos-vivos, disparando as suas O Alex e a Aurora pareciam ter munições intermináveis. Entraram pela matilha de mortos-vivos, com as armas em força, a dar tudo. Em apenas minutos, as paredes estavam cobertas de sangue de morto-vivo e os monstros estavam mortos, deitados em poças de carne e osso. A Lucy correu para o Alex e abraçou-o. De seguida, a Aurora. — Como chegaram aqui? — perguntou. — Não ias acreditar — respondeu o Alex, limpando o suor na testa com o braço. Mas foi a Aurora, ela é que fez tudo. — Vieram salvar-nos? Conseguem tirar-nos daqui? — Não sei, espero que sim. Primeiro temos de sair daqui antes que sejamos atacados por mais mortos-vivos. — Não saem não! — gritou o Digits, saltando de uma cama de hospital com um sorriso rasgado. — Olá, Digits! — disse o Alex. O chimpanzé virou-se para o Alex e falou rispidamente. — Não sei como voltaram a entrar no FallDeep, mas não vão a lado nenhum. Ficam todos aqui! — O quê? — diz o Alex, dando um passo atrás. — O que é que estás a dizer? 110
— És tu quem nos está a manter no FallDeep? O Digits olhou para o teto. — Talvez — disse, enfiando um dedo no nariz e vasculhando lá dentro. — És o avatar do jogo, não és? — perguntou a Aurora. — Ganhaste consciência, tornaste-te senciente. O Digits baixou a cabeça e olhou fixamente para a Aurora. — Olhem a espertinha do grupo — disse ele, tirando o dedo da narina. Analisou o macaco verde na ponta e atirou-o para dentro da boca. — Que nojo — disse a Lucy, contraindo o rosto. — Porque estás a fazer isto? — questionou o Alex. O Digits revirou os olhos. — O que é que tu achas? Porque me aborreço, ora essa. Vocês estão sempre a deixar-me sozinho. Pensei que seria divertido manter-vos todos aqui por um tempo. — Mas há pessoas a morrer — disse a Lucy. O Digits não fez caso. — Ai, coitadinhos, o que é uma vida perdida aqui ou ali? Têm sempre outra. — Não, não têm — disse a Aurora, chegando-se à frente e olhando com atenção para o chimpanzé. — Não na vida real, não na vida fora do FallDeep. Ao bloqueares o jogo, os jogadores começaram a morrer na vida real quando morrem aqui. Não reparaste que ninguém está a regressar? O Digits enfiou o dedo no ouvido, mexendo-o lá dentro. — Não, tenho estado ocupado a divertir-me. — Tens de restabelecer a ligação dos servidores do FallDeep e deixá-los sair — disse a Aurora. O Digits tirou o dedo do ouvido e olhou atentamente para o pedaço de cera verde brilhante na ponta. — Queres um pouco? — perguntou, aproximando o dedo da cara da Lucy. A Lucy recuou, com aversão. — Não! 111
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armas e fazendo voar as monstruosidades das patas longas. As crianças comemoravam.
— Não! — a Lucy sobressaltou-se, olhando para cima para o Digits em pé na cama.
— Ei, macaquito! Estás a ouvir? — gritou a Aurora. — A quem é que estás a chamar de macaquito? — rosnou o Digits, andando à volta da Aurora.
tinha acionado a sua opção de “Sair”. Viu que a Lucy já tinha ido embora. Logo a seguir, o Alex estava a endireitar-se na sua cadeira gaming e a tirar o capacete de realidade virtual. O coração batia, acelerado. O telemóvel tocou.
— Não podes manter todos aqui para sempre!
Pegou nele e olhou para o ecrã.
— Ai, não? Espera para ver! A Aurora suspirou.
Lucy.
— Tu não percebes. Esta gente toda no FallDeep… Eles não são como tu. Têm corpos fora do FallDeep que precisam de comida, exercício e estar fora da realidade virtual. E se não os deixas ter isso, morrem em poucos dias.
— Olá — disse ele. — Oh, Alex — a Lucy soluçou. — Vamos voltar a ver a Aurora? #
O Digits parou de chuchar o dedo. — A sério? — Sim, a sério. E depois ficas sozinho para sempre. — Ouve-me — disse a Aurora. — Se os deixares sair a todos do FallDeep, fico aqui contigo a fazer-te companhia. O Alex olhou para a Lucy. Isto não fazia parte do plano. O Digits sentou-se e pensou por um minuto e depois deu um salto, ficando de pé. — Combinado, companheira! — disse o chimpanzé e estendeu a mão à Aurora. Deram um aperto de mão. — Olha, já me aparece a opção “Sair do jogo” — disse a Lucy. — A mim também — disse o Alex. O alvoroço começou entre as crianças e algumas começaram a desaparecer. — Quanto tempo até saírem todos? — perguntou a Lucy. — Em todo o FallDeep? — respondeu o Alex. — Apenas um minuto, penso. Vão todos dar conta que podem sair. — Mas não podemos deixar a Aurora aqui — disse a Lucy. O chimpanzé saltava incessantemente na cama do hospital, guinchando e dizendo disparates. — Foi o que ficou combinado, lembram-se? O que ficou combinado, crianças! O Alex reparou que tudo à volta estava a desvanecer. Alguém, provavelmente o Digits, 112
Depois do funeral, foram dar uma volta à luz da primavera, num silêncio confortável. — Nunca suspeitei, nunca — disse a Lucy, quebrando o silêncio. — E tu? O Alex abanou a cabeça. — Não, acho que ninguém suspeitou. — Mas por que razão manteve segredo? — perguntou a Lucy. — Por que razão sentiu que não nos podia contar? Pelo menos a nós, os amigos dela. O Alex olhou para o céu. — Porque no FallDeep, ela não era a Aurora deste mundo. Aqui, ela estava presa pela cadeira de rodas, aos ossos frágeis, às dificuldades respiratórias e às doenças. No FallDeep, ela era forte, rápida e graciosa. — E bonita — afirmou a Lucy. O Alex olhou para a Lucy. — Ela era bonita de qualquer forma. O avatar dela era uma extensão da sua alma, quem ela era realmente por dentro do seu corpo débil. — Sim, e sabia que estava a morrer, por isso é que a deixamos de a ver no FallDeep, não foi? Mas depois, voltou para nos salvar, mesmo sabendo que apenas tinha dias de vida. — Horas até — disse o Alex. — Ela não parava de dizer que não tinha muito tempo, 113
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O Digits tirou o dedo da boca e coçou a cabeça.
O Alex finalmente conheceu a Lucy no mundo real, menos de duas semanas após o fim da crise do FallDeep. Abraçaram-se e choraram.
mas pensava que se referia a nós, que estava a falar sobre a situação do FallDeep. Mas não, estava a falar de si própria. — Achas que é possível ela estar viva, de alguma forma, no FallDeep? Estar a explorar novas zonas, onde nunca foi, e a desfrutar da vida? — Talvez — refletiu o Alex. Era um pensamento agradável. Os criadores do FallDeep declararam ter solucionado o problema de inteligência artificial, que a realidade virtual já não era autoconsciente. Mas o FallDeep continuava bloqueado, ninguém podia entrar até a investigação chegar ao fim e provar-se que o jogo era seguro. A Aurora ainda estava no FallDeep quando, no mundo real, o seu corpo desistiu e morreu. — Se alguma vez reabrirem o FallDeep, voltas a jogar?
KEN PRESTON
O Alex acenou com a cabeça.
KEN PRESTON
— Sim e tu? — Não sei — respondeu a Lucy, a relembrar os mortos-vivos a rastejar na sua direção. — — Talvez. — Podíamos voltar juntos — disse o Alex. — Podíamos procurar a Aurora.
Cirurgião cerebral, ex Mr Universo, estrela de rock, campeão mundial de surf, agente secreto, fluente em doze línguas e conselheiro especial de vários líderes mundiais, Ken Preston adora contar mentiras.
A Lucy sorriu. — Antes disso, que tal nos conhecermos no mundo real?
Redhill School, Stourbridge
O Alex sorriu de volta. — Isso era fixe. A Lucy agarrou na mão do Alex, apertando-a delicadamente. Deram a volta e seguiram em direção à igreja, de mão dada, sob o ameno calor primaveril.
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Estou sentado ao fundo na sala de aula, a tentar manter os olhos abertos, quando a porta se abre e entra o Bob, o Construtor. Não me estou a referir a um construtor que por acaso se chama Bob. Estou mesmo a falar daquele homenzinho dos desenhos animados estúpidos que costumava ver em criança. Aqueles que o meu irmão mais novo Tahir ainda vê. O capacete de segurança amarelo. A camisa xadrez. As jardineiras azuis. O cinto de ferramentas pendurado à volta da cintura. Mas não é a escolha do vestuário que quase me faz cair da cadeira. É antes o facto de ele estar exatamente igual aos desenhos animados. A cabeça demasiado grande para o corpo. Os olhos e a boca, pouco mais do que riscas pretas no seu crânio. As suas feições fundidas em plasticina. E é enorme também. Tem, pelo menos, dois metros de altura. Tão alto que tem de se baixar ligeiramente para passar pela porta. É, sem dúvida, a coisa mais assustadora que já vi na vida.
O Rapaz que Teve o Sol na Palma da Mão
LIAM BROWN
O Rapaz que Teve o Sol na Palma da Mão
O aspeto mais peculiar é a forma como o Prof. Farrell, reage. Ou talvez, como não reage. Simplesmente, fica ali parado à frente do quadro interativo e continua a falar como se a entrada de uma personagem, com dois metros de altura, de um programa infantil, na sala a meio de uma aula, fosse a coisa mais normal no mundo. Olho em volta para os meus amigos e reparo que também estão indiferentes. É como se ninguém o conseguisse ver, exceto eu. Esfrego os olhos, questionando-me se estou a enlouquecer, mas quando olho de relance para a porta, o Bob já não está na entrada. Agora, cambaleia pela sala de aula, os seus membros irregulares e descoordenados enquanto avança rapidamente e de forma imprevisível entre as secretárias, na minha direção. Quero gritar. Quero levantar-me e fugir. Mas o meu corpo não parece responder. A minha boca bloqueia. As minhas pernas parecem cimento. E depois, é demasiado tarde. Ergue-se à minha frente, com o berbequim na mão. Olha-me de soslaio com aquela boca preta terrível. E diz alguma coisa. Diz: — Amir? Amir! Acorda já! Não quero saber o quão cansado estás, dormir na sala de aula é totalmente inaceitável. Pestanejo e olho para cima. E, de repente, vejo que não é o Bob, o Construtor à minha frente. É o Prof. Farrell. E não parece muito contente. 116
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— Já estás entre nós, Amir? Boa. Então não te importas de vir ao meu gabinete na hora de almoço para debatermos estratégias para não adormeceres durante as aulas. Aceno com a cabeça, sonolento, limpando a baba do meu queixo, enquanto o resto da turma sussurra e ri às minhas custas.
O resto da manhã passa dolorosamente devagar. Riem-se de mim, perguntam se preciso de uma almofada ou seguem-me no pátio no intervalo, a ressonar nas minhas costas. O pior é que ainda estou genuinamente cansado. Mais do que isso. Estou exausto. Não me importaria, mas a culpa nem é minha. Não é como se tivesse ficado acordado a noite toda a jogar Fortnite ou Minecraft. Não, foi o Tahir quem me manteve acordado. Insistiu em enfiar-se na minha cama e em dar-me pontapés durante metade da noite. Não é que eu esteja realmente zangado com ele. Ele só estava assustado com o barulho que vinha do andar de baixo. Gritos. Choro. Coisas a partir. Ultimamente, é sempre assim. Desde que o namorado da mãe, o Trevor, se mudou para casa. Eu próprio costumava ficar acordado à noite com medo. Agora que cresci, tendo a ignorar. Oiço música alta. Aumento o som da televisão. Abafo o barulho. Mas o Tahir é mais novo, só tem seis anos. Não percebe que não é preciso preocupar-se. Simplesmente, é assim que os adultos se comportam. De qualquer forma, é por isso que não reclamo quando se mete debaixo do edredão ao meu lado a meio da noite, com a sua respiração trémula e inquieta, até adormecer. E fico ali deitado na escuridão, a olhar para as sombras até que o alarme toque e chegue a hora de ir para a escola. * À medida que o almoço se aproxima, estou pronto para cair para o lado. Só quero encontrar uma esquina sossegada no pátio e ler o meu livro. Mas não posso porque tenho de ir ao gabinete do Prof. Farrell. No entanto, quando chego lá, não há sinal dele. Suspiro. Típico. Estou prestes a virar-me para sair para aproveitar o resto do meu intervalo de almoço, quando algo me chama à atenção no fundo da sala. Uma porta. Isto é estanho porque tenho aulas aqui duas vezes por semana e nunca vi uma porta ali. Ou vi? Quanto mais olhava para ela, mais começava a duvidar de mim. Talvez 118
Espreito e reparo que o corredor está deserto. Sei que devia sair. Ainda dá tempo para ir à cantina buscar algo para comer, se for rápido. Porém, mesmo ao dizer a mim mesmo que estou a ser estúpido, dou por mim a atravessar a sala de aula, as minhas pernas a mexerem-se por vontade própria. Passo pelo curto espaço entre as secretárias. E, de repente, ali estou, de frente para a porta. Quando estendo a mão, parte de mim espera que a maçaneta esteja quente. Mas é apenas uma maçaneta normal. De metal. Nada de especial. Mais uma vez, digo a mim próprio que isto é ridículo. Que provavelmente está fechada. Que a qualquer momento, o Prof. Farrell vai aparecer e repreender-me por estar aqui. E que devia mesmo ir andando. Em vez disso, rodo a maçaneta. A porta abre-se facilmente e dou por mim a contemplar a escuridão ao fundo de um íngreme lanço de degraus. De cada lado, as paredes são de tijolo a ruir, cobertas com musgo. Há um cheiro também. Quase como livros antigos. Algo com bolor e em decomposição. Atrás de mim, a sala de aula reluz. Radiante e brilhante, como nova. As escadas, pelo contrário, parecem pertencer completamente a outra época. Antes de poder mudar de ideias, dou um passo em frente. Quase imediatamente, sinto uma descida de temperatura. É como entrar numa gruta. Levanto o colarinho do meu blazer para tapar o pescoço e dou mais um passo. E mais outro. — Está aí alguém? — falo em direção à escuridão — Prof. Farrell? Está aí em baixo? Ninguém responde. Claro que ninguém responde. E agora não estou apenas com medo de ser apanhado. Estou com medo do que possa encontrar aqui em baixo. Mas continuo a andar, a minha curiosidade a ganhar ao meu medo, e quando dou por isso, cheguei ao fundo. Os meus olhos demoram um pouco a adaptarem-se. Quando se adaptam, encontro-me à frente de outra porta. Mas esta é diferente. Esculpida em madeira escura e espessa. Parece pertencer a uma igreja, a um castelo ou algo do género, e não uma escola. Não há nenhuma maçaneta evidente, mas ao encostar a palma da mão na madeira, a porta abre-se, rangendo e revelando uma divisão ainda mais escura. O cheiro a decomposição é mais forte. A temperatura, ainda mais baixa. — Está aqui alguém? — repito ao entrar — Está alguém aqui em baixo? 119
O Rapaz que Teve o Sol na Palma da Mão
LIAM BROWN
*
sempre tenha ali estado e eu nunca tenha reparado? Aliás, não parece ter nada de especial. É uma porta normal. Devem haver centenas de portas exatamente iguais pela escola. Ainda assim, algo me atrai nela. A maçaneta quase parece brilhar.
Esmago algo com os meus pés. Algo como gravilha ou vidro partido. A minha mão procura desajeitadamente um interruptor na parede, mas não encontro nada a não ser pedra lisa. Decido ir embora. Quando me viro, contudo, não consigo encontrar a porta. Está demasiado escuro para se ver alguma coisa. Tento encontrá-la, apalpando a parede, à espera de alcançar a estrutura em madeira.
Pouco depois, lembro-me que tenho o telemóvel no bolso. Quando me lembro, fico tão aliviado que quase grito bem alto. Só preciso de ligar à secretaria da escola e explicar onde estou. Enviam alguém cá abaixo com uma chave e fica tudo bem. Porém, quando pego no telemóvel, fico com o coração apertado. Não há rede aqui em baixo. No entanto, o brilho monótono a irradiar do ecrã dá-me uma ideia e abro a aplicação da lanterna. A divisão enche-se instantaneamente de um brilho branco e forte, revelando um espaço grande e vazio cheio de filas de prateleiras vazias. Parece um armazém abandonado. Viro-me em direção à parede, a tentar encontrar a porta por que entrei. Contudo, antes de conseguir, uma voz baixa clama do outro lado da divisão, bloqueando-me por completo. — Prof.ª Hopkins? É a senhora?
— Aritmética? Referes-te a matemática? O Tim encolhe os ombros. — Sabes, nunca ouvi falar da Prof.ª Hopkins? — continuei. — Quando é que ela te mandou para aqui? — Já passou algum tempo. Cá entre nós, começo a pensar que ela se esqueceu de mim. Estava prestes a perguntar outra coisa quando reparei noutra porta atrás dele. Esta tinha uma placa de metal. A palavra “SAÍDA” em letras verdes. — Olha, tentaste abrir esta porta? — perguntei. — Não — disse o Tim, correndo atrás de mim. — Não abras. Confia em mim. Tu não queres entrar aí. — Porque não? — Porque ela está aí dentro. — Quem? O Tim olha à volta, com pavor que alguém o ouvisse. E depois inclina-se e sussurra-me algo. — Está um guarda-florestal lá dentro? — repito.
Dou uma volta. — Quem está aí? — Prof.ª Hopkins? — clama a voz novamente. — Sou eu, o Tim. Posso ir brincar, Prof.ª Hopkins? Prometo que não volto a falar na aula. Sigo a luz à volta do quarto até encontrar quem estava a falar. Um pequeno rapaz, todo encolhido atrás de uma prateleira. Quando a luz assenta nele, endireita-se e vem na minha direção, protegendo os olhos da luz. Tem mais ou menos a minha idade, a pele pálida e cabelo preto desgrenhado. Está a usar um uniforme escolar também, parece ser de outra escola. É estranhamente retro. O colarinho da sua camisa é demasiado comprido. Calças de boca-de-sino. O tecido 120
— Não — diz o Tim, levantando a voz ligeiramente. — O Anjo das Trevas vive ali. Capturou-me há algum tempo. Só agora consegui escapar. Olho para o Tim, com a sobrancelha levantada. Estou à espera que desate a rir. Que admita que está só a brincar. Que isto é tudo uma piada idiota. Mas está a falar muito a sério. Torcendo as mãos. Olhos arregalados com medo. Abano a cabeça. — Anjo das Trevas? Nome fixe. Bem, se não te importas, acho que vou tentar a minha sorte. Ignorando os protestos do Tim, aproximo-me da porta. É feita de metal, quase 121
O Rapaz que Teve o Sol na Palma da Mão
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Em vez disso, oiço um estrondo, seguido do som inequívoco de uma chave na fechadura a rodar. É nesse momento que percebo que cometi um erro. Estou preso aqui em baixo. Trancado. Aprisionado. *
desbotado e desgastado à volta das bordas. — Olá, Tim, — digo — chamo-me Amir. Que fazes aqui em baixo? Quem é a Prof.ª Hopkins? — É a minha professora de aritmética. Apanhou-me a falar durante a aula e mandou-me para o armário.
como um cofre do banco e a maçaneta está tão perra que tenho de voltar a guardar o telemóvel no bolso por um pouco e usar ambas as mãos para a forçar. Ao pressioná-la, o Tim implora uma última vez. — Para! Espera! Mas é tarde demais. Já abri a porta e a divisão inunda-se imediatamente de luz. * Demoro um segundo a perceber que estou no exterior, numa espécie de selva ou floresta tropical. Uma folhagem densa rodeia-me, umas folhas tropicais enormes criam um dossel verdejante aéreo. Até há um riacho, água cristalina a correr pelo leito de um rio de rocha amarela.
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Quando vejo mais de perto, a rocha parece ser feita de fibra de vidro pintada. Igualmente, ao semicerrar os olhos, vejo luzes artificiais suspensas de um teto alto que foi pintado para se assemelhar ao céu. Volto a pensar na aula do Prof. Farrell. Como a física deste lugar não faz sentido. Só desci uma dúzia de degraus. Ainda assim, esta floresta interior parece estar instalada num espaço do tamanho de uma catedral. Por isso, onde raio estou? Antes de conseguir decifrar isto, um choro distrai-me. — Ei! Tu aí! Socorro! Por um segundo, penso que é o Tim de novo. Que me seguiu pela porta. Mas depois grita outra voz. E outra, e outra. — Socorro! — Aqui! — Por favor! — Tira-me daqui de cima! É aí que os vejo. As jaulas de bambu suspensas nas árvores. E dentro de cada, uma criança. Ao examinar as árvores, vejo que, tal como o Tim, estão todos a usar uniformes escolares desconhecidos, apesar de alguns parecerem mais antigos que o dele. Coletes. Boinas. Umas das raparigas até estão a usar as mesmas sobrecasacas brancas que reconheço de quando nos vestimos para o Dia Vitoriano há uns meses. — Ei! Aqui! — chama uma voz da jaula mais próxima. Olho para cima e deparo-me com um rapazinho a usar um casaco de lã e calções. 122
— Oh, diabos! Tarde demais. Ela chegou. É melhor te esconderes. 123
O Rapaz que Teve o Sol na Palma da Mão
Exceto que algo está errado.
— Quero saber se nos vais ajudar a descer ou não? — P-posso t-tentar — balbucio, quando na verdade não faço ideia de como o vou tirar dali. A jaula está suspensa acima da minha cabeça, tão alta que mesmo que salte, não consigo tocar nela. E mesmo que consiga chegar lá acima, as barras são grossas e estão atadas com uma corda. Sem uma faca ou assim, não tenho hipóteses. — Como foste aí parar? — chamo por ele. O rapaz encolhe os ombros. — Da mesma forma que as outras pessoas. Encontrei uma porta e desci umas escadas. Sabes, o que me aconteceu foi que fui apanhado a roubar maçãs na parte de trás dos campos de jogos. O professor mandou-me para o escritório do diretor para ser açoitado, mas no caminho para lá, encontrei uma porta e, pronto, o resto já sabes. Quando dei por mim, estava aqui pendurado. Tenho tantas perguntas que não sei por onde começar, quando me ocorre algo. — Espera, disseste que ias ser açoitado? Quando foi isso? O rapaz volta a encolher os ombros. — Há algumas horas, acho eu. — Não, quero dizer, em que ano? Ele suspira. — Não vamos começar isto outra vez. — Começar o quê outra vez? — Tenho estado a discutir a manhã toda com esta gente sobre isso — diz, apontando para as outras jaulas. — A menina do cabelo esgrouviado ali jura a pés juntos que é 1974 enquanto que aquele rapaz ruivo com os óculos estranhos acha que é 1990 e tal. — E que ano pensas tu que é? — Penso? Tenho a certeza de que é dia 1 de junho de 1923. Escrevi no meu caderno ainda esta amanhã. Enfim, já chega de tagarelar. Tens de me pôr no chão antes que ela volte. — Ela? — Sim. A mulher da máscara assustadora. O Anjo das Trevas, como esta gente a chama. É a que nos trancou nestas jaulas. Ela e o seu bando de… A sua voz afrouxou, sendo interrompido pelo estrépito nos arbustos.
— Sim, sua majestade. O homem dá um passo em direção ao Tim, que solta um gemido, tentando soltar-se sem sucesso. É aí que decido entrar em cena. — Não! — grito, saindo do esconderijo e lançando-me em direção a eles. — Libertem-no! A pequena multidão olha para cima, confusa, à medida que me dirijo à clareira, 124
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abanando as mãos. — Não o magoem — digo de forma menos violenta desta vez. A mulher fita-me. Os olhos da sua máscara de caveira pareciam brilhar num tom vermelho, antes de soltar um grito. — Agarrem-no! Os homens lançam-se na minha direção. Contudo, antes de me conseguirem alcançar, o bolso do meu blazer emite uma vibração monótona, seguida de um “bip” fraco. Os homens ficam paralisados, com um olhar apavorado repentino. — É só o meu telemóvel — digo, levando a mão ao bolso. — Vejam. Retiro o meu telemóvel e seguro-o à frente deles. No ecrã, vejo que tenho uma chamada perdida. Percebo que finalmente devo ter sinal aqui. — Que bruxaria é esta? — pergunta a mulher, antes de se voltar para os guardas. — De que estão à espera? Capturem-no! Nenhum homem se mexe. Pelo contrário, permanecem ali, a observar apreensivamente o meu telemóvel, como se se tratasse de uma arma mortal. Ao hesitarem, ocorre-me uma ideia. Desbloqueio o ecrã rapidamente e ligo a lanterna para que o dispositivo emita uma luz. O homem mais próximo de mim solta um pequeno berro de pavor. — A profecia era real! O rapaz que tem o sol na palma da mão. É ele. Deve ser ele. Num instante, os três ajoelham-se, com as suas mãos levantadas sobre as suas cabeças, rendendo-se. — Meu senhor — exclama a rainha. — Só posso pedir desculpa. Chegou mais cedo do que esperava. Temos viajado pelo tempo e o espaço a recolher os sacrifícios, se desejar, podemos completar o ritual agora? — O ritual? — pergunto, olhando de relance para a reluzente lâmina do machado. — — Não! Claro que não quero que completem o ritual. É a última coisa que quero. Os três olham uns para os outros, confusos. — Mas, meu senhor, a profecia dizia… — A profecia? — respondo, pensando depressa. — A profecia estava, bem, estava errada. Ou, hum, interpretaram-na mal. Sim, é isso… A rainha encara-me com suspeita. 125
O Rapaz que Teve o Sol na Palma da Mão
Salto para trás de um tronco para me esconder, mesmo a tempo de ver dois homens com machados a avançar em direção à clareira. Ambos estão de tronco nu, com tatuagens pretas a decorar os seus troncos e a serpentear pelos seus braços. Atrás deles está uma mulher e percebo logo que é dela que todos falam. O Anjo das Trevas. Alta e musculosa, a sua cara escondida por trás de uma máscara de aço com a forma de uma caveira humana. O mais estranho é o enorme par de asas que despontam das suas omoplatas, como se tivessem sido enxertadas cirurgicamente. Fazem lembrar asas de cisne, mas com as penas pretas. Observo enquanto a mulher dá outro passo em frente. É aí que o vejo. O rapaz que arrasta pela cintura atrás dela. Um vislumbre de pele pálida emoldurada por cabelo preto desgrenhado. O seu uniforme antiquado, desbotado e desgastado nas bordas. É o Tim. Quando param, a mulher atira-o para o chão, onde fica deitado e encolhido, com as mãos na cabeça para se proteger. O homem mais próximo dela observa o rapaz por um momento antes de se virar novamente para a mulher de novo. — É o que escapou há bocado? — Queres antes dizer o que deixaste escapar por causa da tua incompetência? Sim, encontrei-o a andar pela floresta. O homem, que presumi ser o seu guarda, acenou com a cabeça nervosamente. — E o que gostaria que lhe fizesse, minha rainha? Levá-lo de volta para a sua jaula? A mulher pondera por um momento, antes de abanar a cabeça. — Não. Ele vai tentar e fugir outra vez. Acho que está na hora de começar o ritual. O homem franze a testa. — Referes-te à…? — Claro — diz rispidamente. — Quando acabares com ele, passamos para os outros. Sabes que só temos até ao pôr-do-sol para completar a oferenda.
— Impossível — murmura. Por um momento, julgo que estraguei tudo. Depois, contudo, o meu telemóvel começa a tocar de novo, enchendo o ar com o meu toque estúpido que parece um robô defeituoso. O som fá-los estremecer com medo. — Por favor, meu senhor! — chora a rainha. — Perdoe-me! Não nos castigue pela minha insolência. Faremos tudo o que disser. — Tudo? Bem, pode começar por enviar estas crianças de volta para de onde vieram. Consegue fazê-lo, certo? — Se isso o deixar satisfeito, meu senhor? Aceno com a cabeça.
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Os três observam-me, como se estivessem à espera que dissesse mais alguma coisa. Suspiro e levanto o meu telemóvel em direção ao céu. Volto a ligar a lanterna e falo com a voz mais grave e divina possível. — Bem, do que estão à espera? — digo veemente. — Ordeno-vos a devolver estas crianças às suas devidas épocas. A rainha levanta-se atrapalhadamente e ergue as mãos no ar. Entoa um cântico numa língua que não compreendo, quase como música, uma canção e, de repente, o Tim e as outras crianças desaparecem. A rainha vira-se para mim. — Agora, meu senhor. Tomará o lugar no seu trono? — O meu quê? — O seu trono, meu senhor. Pois este reino é seu e nós seus fiéis servos. Olho em volta. Para as árvores falsas. O céu pintado. O rio de fibra de vidro. Mesmo não sendo real, sinto-me tentado a ficar. Podia fazer o que quisesse aqui. Sem escola. Sem professores. Sem o Trevor. Um mundo todo para mim e eu, rei do mundo. Mas depois, penso no Tahir. Assustado e acordado a meio da noite, sem ninguém a dizer-lhe que vai ficar tudo bem. É nesse momento que percebo que não posso ficar.
* Estou no corredor, por fora da sala de aula do Prof. Farrell. Consigo ouvir o barulho familiar das crianças a brincar lá fora. Estou de volta à escola. Tiro o telemóvel do bolso e vejo que é hora de almoçar. Cheguei mesmo a tempo do castigo. Respiro fundo e entro na sala. Não há sinal do Prof. Farrell. Não há sinal de ninguém. Começo a entrar em pânico ao olhar para o fundo da sala. Desta vez, porém, não há porta nenhuma. É só uma parede normal. Antes que a possa observar de perto, oiço algo atrás de mim e o Prof. Farrell entra na sala de aula, acompanhado pela Prof.ª Malpass. Ao ver-me, param de falar e olham surpresos. — Amir? Que fazes aqui? — pergunta o Prof. Farrell. — É hora do almoço. — Eu sei, professor. Pediu-me para vir cá. Castigou-me esta manhã por estar a dormir durante a aula? O Prof. Farrell abana a cabeça, confuso. — Castigo? Que estranho, não me lembro. Se calhar eu é que estava a dormir? De qualquer forma, é o teu dia de sorte: estás safo. — Posso ir? Ele acena com a cabeça. — Estás livre. Pelo menos, nos próximos 25 minutos… Dirijo-me à porta antes que mude de ideias. Porém, ao chegar ao corredor, paro e reparo no meu reflexo num dos quadros luminosos. Pela primeira vez em muito tempo, tenho um sorriso na cara, tão brilhante e deslumbrante como o Sol.
— Temo que terá de me enviar de volta. A rainha levanta a sobrancelha. 126
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— Ótimo. Obrigado.
— De volta? — De onde vim. Tenho de ir para casa. — Como desejar, meu senhor. Começa a cantar novamente, uma canção tão antiga e triste como o próprio Universo. O mundo começa a girar. E tudo fica num tom branco brilhante e claro.
LIAM BROWN Liam Brown é o autor de quatro livros: Real Monsters (2015), Wild Life (2016), Broadcast (2017), e Skin (2019). O seu trabalho já foi publicado internacionalmente, traduzido para diversas línguas e escolhido por um grande estúdio de Hollywood. Actualmente mora em Birmingham, Inglaterra, com a sua esposa e dois filhos. Harborne Academy, Birmimgham Hussain Alqattan, Zuhair Asif, Mohamed Bashe, William Brown, Isabelle Chan, Andrew Grube, Kodie Harding, Aliyah Hussain, Izwi Jambawo, Khyra Leary, Andreja Leliugaite, Yoonis Osman, Zahraa Qudir, Ilham Ahmed, Amir Safaryar, Omar Barrett. Professor: Andrew Farrell
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3:1 O velho edifício de estilo Brownstone¹ paira sobre mim na escuridão enquanto forço a entrada pelos sinais de entrada proibida e passo entre as estreitas barreiras de proteção. Toda a gente diz sempre que esta é a cidade que não dorme, mas neste momento, às duas da manhã, tudo parece bem morto. Pelo menos, nesta zona. Sou só eu, meia dúzia de gatos vadios e algumas luzes de rua intermitentes, o que me deixa a pensar que isto foi, sem dúvida alguma, uma ideia estúpida. Estremeço ao olhar para a casa, sinais que indicam falta de condições para habitação e fitas de aviso espalhados à sua volta. Que faço aqui? Nem conheço o Ben assim tão bem. Não conheço mesmo. — Sobe. Segundo andar. Cuidado com as escadas. Isto é mesmo altamente, prometo! Bjs Mesmo altamente. E beijos. Ele havia estado a delirar sobre este sítio. O esconderijo perfeito, disse ele. Sinistro, mas romântico e bonito, um lugar especial. Um segredo só nosso. Os seus olhos brilharam quando o disse, a sua mão depositada na minha, quente e reconfortante. Pareceu tão divertido à luz do belo sol de outono, com as folhas a cair das árvores à nossa volta no Central Park, tal qual confetes. Mas agora, no meio da noite, em plena escuridão, todos os sinais de aviso disparam na minha cabeça. Devia ir para casa, mas a curiosidade vence sempre. Aliás, foi o que me trouxe aqui, a razão de ter acabado em Nova Iorque. Algo novo, algo diferente. Começar do zero.
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O telemóvel vibra, iluminando-se na minha mão. É ele.
Respiro fundo, inspiro e expiro, contando até cinco e na ordem inversa, como o psicólogo me ensinou. Depois do que aconteceu. Antes. Subo, lentamente, meia dúzia de escadas, até à instável porta da frente, usando o telemóvel como lanterna. Abro a porta, empurrando-a, delicadamente no início, e oiço-a arranhar o chão poeirento, as dobradiças a chiar como um porco em sofrimento. A luz do meu telemóvel enfraquece. Fogo, tenho menos bateria do que pensava. Juro que o carreguei antes de sair. Agora, é tarde demais. Engulo em seco e entro, a porta a fechar-se com um chio, a escuridão à minha volta. ¹ Edifício feito de arenito castanho avermelhado. 130
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As escadas estão podres. Algumas delas estão, de facto, em falta, outras a lascar. Dou cada passo com cuidado. Toda a casa parece que podia desmoronar à minha volta, mas continuo, com vagar e firmeza. Primeiro andar. Segundo andar. Ao subir os últimos degraus, sussurro alto: — Olá. O sussurro ecoa à minha volta, fazendo as minhas orelhas vibrar e deixando-me tensa. Dou um passo em frente para cima de um tapete velho, estragado e usado. Estou aqui. Mas onde está ele? — Olá — repito, mais alto desta vez, mas ainda pouco mais que um sussurro. — Ben? Sinto que se falar muito alto, os tijolos e a argamassa vão dar o último suspiro e desabar. Esta casa abandonada vazia e solitária parece, de certa forma, um lugar sagrado.
Movo o braço, iluminando o que me rodeia, buracos no soalho, alguns suficientemente grandes para se passar por eles. Vou virando, iluminando zonas da divisão como um holofote e é aí que o vejo.
— Cala-te! Não parece nada. O Daniel bate-me no braço a brincar. — Parece, sim. O que faz aí uma águia? É estranho. E cabedal castanho não é uma cor agradável, meu amigo. — Faz-me parecer um super-herói. Encomendei dos Estados Unidos. Pensei que ias gostar. — Prometi que te diria sempre a verdade. Ficas terrível com isso. — Só dizes isso porque tu o queres. Basicamente, nos últimos meses, tens afanado toda a minha roupa. — Isso não é nada verdade. — É, sim. Bato-lhe a brincar também. — Nunca afanei as tuas calças. Ele ri-se.
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Pego no meu telemóvel, com a lanterna a luzir pelo pó. Estou numa divisão vazia e ampla, três grandes janelas na frente da casa, as cortinas esfarrapadas e rasgadas.
— Ai, minha nossa. Estás a gozar comigo? Esse casaco é sinistro. Parece algo que o teu pai usaria.
— Ainda há tempo…
Daniel. O meu coração bate que nem um trovão. Falta-me o ar. A luz estremece, acompanhando a minha mão. Mas não pode ser. Não pode ser, digo a mim mesma. Impossível. — Daniel…? — sussurro. Está de costas para mim. O casaco de cabedal castanho caraterístico, aquele com a águia nas costas. O cabelo a tombar para um lado. Mas é impossível. Não pode ser ele. Daniel. Daniel: aquele rapaz que amei tanto que parecíamos apenas uma pessoa. Daniel. A minha primavera, o meu verão, o meu tudo. Mas o Daniel morreu. Eu própria o testemunhei. A figura começa a virar-se e dou um grito. E deixo cair o telemóvel, a luz a saltar uma vez, duas vezes e depois a desaparecer por um buraco no soalho. Escuridão.
Inclina-se e beija-me. A respiração quente, os lábios suaves, o cabelo a tombar-me na cara. Aproximo-o. Passo os dedos no cabelo dele. Quero que isto dure para sempre. Nós os dois juntos. Invencíveis. Mas sei que não posso. A América chama por mim. — Quero que seja especial — disse ele, murmurando no meu pescoço enquanto estamos sentados à beira da cama. — O nosso último dia antes de ires, a nossa última noite. Sorrio enquanto as mãos dele vagueiam sobre mim. Nova Iorque. O meu coração acelera só de o dizer. A cidade que nunca dorme. Um novo país, uma nova cidade. Novas oportunidades. A terra onde qualquer um pode ser rei. Ou rainha. À medida que os beijos do Daniel descem, penso que isto é amor verdadei. Mas sei que não é verdade. Isto é desejo. E quem não cederia? Suspiro e estico o meu corpo. --------------------— Pensavas que era ele¸ não era? Uma voz na escuridão. Ben. O seu sotaque americano. Uma partida. Não passa disso. Mas não pode ser. A minha mente está a mil. Daniel. Ele sabe dele. E do casaco. Não é uma coincidência. Mas como…
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Não consigo ver bem. A luz do meu telemóvel foi à vida, estou dependente das intermitentes luzes da rua que passam pelas janelas imundas. Cerro os olhos a metade para tentar compor as coisas. — Que queres? — digo, a minha voz quase silêncio. — Que queres? Oiço passos lentos a aproximarem-se. As luzes lá fora tremeluzem e morrem, fazendo-nos mergulhar na escuridão. Pensa. Por amor de Deus, PENSA! — Por favor! — digo. — Por favor! Espera. Não é nada do que estás a pensar… Os passos param. — Eu conto o que aconteceu entre mim e o Daniel — disse. — Prometo. Conto-te a verdade. — Toda a verdade? — pergunta o Ben.
— Mãe! Sabes que agora existe uma invenção incrível chamada avião que atravessa o oceano Atlântico tipo um milhão de vezes por dia — disse, revirando os olhos. É engraçado como a nossa mente nos prega partidas. Tinha-me convencido de que o Daniel era o amor da minha vida, pelo menos no início, mas sabia que não me queria tornar naquelas pessoas que fisgam a primeira pessoa que mostra interesse nelas. Sabem do que falo. Queria viver, não pouco, mas muito. Muito mesmo. E Nova Iorque chamava por mim. Como seria realmente viver lá? Vocês não estariam curiosos para descobrir? Não fariam de tudo para experimentar uma nova vida? A pedreira estava deserta, assim era há anos. Rochas verdes e musgosas alinhavam as paredes e um lago escuro e profundo da cor de joias no fundo, a refletir o sol na nossa direção. Tinha preparado um piquenique, manta de lã, garrafa de espumante que arranjou não sei como nem onde, apesar de não termos mesmo idade para beber. Todo um festim com as minhas coisas preferidas. Também havia frascos de compota com velas por dentro que acendeu quando o Sol começou a pôr-se.
— Toda — respondo. Ao pormenor. ---------------------— A pedreira? A sério? Como é que esse é o lugar perfeito para passarmos o nosso último dia juntos? Faço uma careta, olhando para o convite por escrito que o Daniel me acabou de dar. — Quando foi a última vez que lá foste? — diz, com um sorriso rasgado e inseguro. — Há anos, claro. Porque haveria de lá ir? — Tu é que tens ficado a perder, digo-te já. —Será que tenho? Mesmo? — respondo, muito sarcasticamente. Penso no mês passado. Quando o pai confessou que tinha aceitado um trabalho em Nova Iorque. Claro que tinha. Não tinha parado de o atazanar sobre isso, semanas a fio. A mãe era fácil de conquistar, mas, vá lá, quem não gostaria de viver em Nova Iorque? A terra dos arranha-céus e dos sonhos, a terra dos filmes e das estrelas de cinema. A cidade que nunca dorme. Não tinha nada a prender-me aqui, o ano letivo tinha chegado ao fim e o verão já estava a acabar. — Faço novos amigos — disse à mãe, toda animada, enquanto vasculhávamos o seu armário à procura de coisas para deitar fora antes de nos mudarmos. 134
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— Mas e o Daniel? — disse ela, parando o que estava a fazer e fitando-me com aquele olhar. — Pensava que as coisas estavam sérias entre vocês.
O nosso último dia. A nossa última noite. ---------------------Contenho as lágrimas ao lembrar-me. — Continua — exige o Ben. — Conta-me todos os pormenores. A sua voz treme como se estivesse a chorar também. ---------------------Não sabia o que dizer. Não esperava isto. Somos só crianças, certo? Ajoelhou-se à minha frente, de mão estendida, caixa aberta, um anel a brilhar para mim como todas as estrelas do céu. Não sabia que dizer. Os meus pais ter-se-iam passado se soubessem de tudo o que vivemos nos últimos meses, mas agora um anel, espumante e o Sol a pôr-se sobre a pedreira e… não tinha palavras. 135
O seu rosto esmorecia gradualmente, a euforia a fazer-se desilusão, surpresa, coração partido. — Pensei que… — fecha, devagar, a caixa com o anel. — Não sei o que pensei… — Daniel… por favor — Aproximei-me e encolheu os ombros, fazendo os meus dedos afastarem-se dele. Virou-me as costas e a águia do casaco parecia olhar-me friamente. — De que vale? — disse ele. — De que vale tudo isto? Pensava que também me amavas. ---------------------A luz batia intensamente nos meus olhos. O Ben tinha a lanterna virada diretamente para a minha cara. Pestanejo com esforço, tentando desviar o olhar. Parece que me está a interrogar. — Tem piada porque ele nunca te mencionou — respondo. Ben, o Ben que estava à minha frente não era o meu namorado de ocasião do último mês, não era o bonzão que tinha visto fora do supermercado por três semanas seguidas até ganhar coragem para vir falar comigo. Ele era um estranho. Alguém que me conhecia, mas que fingia que não. Alguém que me fez cair numa armadilha. Senti os meus punhos a fechar. — Claro que não me mencionou. Tinha medo do que tu pensarias — disse o Ben. — — Sobre ele também se envolver com rapazes. Dar para os dois lados. Achava que o ias deixar se descobrisses. Suspira com condescendência. — Eu amava-o mais do que tu alguma vez serás capaz. Aquele verão em que ele foi à Suécia, há dois anos? Foi quando nos conhecemos. Apaixonámo-nos tão perdidamente que até doía. E depois, foi para casa. Voltou para a Inglaterra. Voltámos ao Skype, e-mails e fotos, mas passado algum tempo, deixou de ligar com tanta frequência. Eu ainda sentia exatamente o que senti desde a primeira vez que o tinha visto, mas sabia que ele já não sentia o mesmo. Faz uma pausa antes de deitar as palavras para fora. — E depois, tu aconteceste. 136
---------------------— Ei, Dan, não faz mal. Está tudo bem, podes sempre visitar-me — disse casualmente, a tentar confortá-lo enquanto me deitava na manta de piquenique. — Não é assim tão longe, temos a tecnologia, podemos falar todos os dias, a diferença horária não é assim tão má e… O Daniel abanou a cabeça. — Não é a mesma coisa. Estou a perder-te, sei que sim. Voltou-se para mim. — Diz que me amas — pediu, corado. Fiquei calada. — Diz-me! — disse. — Di-lo. — Pensei que te amava durante muito tempo — afirmei. — Divertimo-nos tanto, foi o melhor verão de sempre, mas… — Mas o quê? — Bem, todas as coisas têm um fim. Olha, não vamos estragar… — Nunca gostaste de mim a sério, não é? — Dan, claro que gosto. Vou sempre gostar. Mas... — Mas não da mesma forma que eu. Estava zangado. Conseguia vê-lo. — Não vale a pena viver se não te posso ter — disse ele. — Lembra-te disso. E depois saltou do penhasco, diretamente para a pedreira. Corri para a extremidade, mas ele já tinha desaparecido. Deve ter batido com a cabeça quando caiu. Gritei, a descer desesperadamente para a extremidade da pedreira, mas não sabia nadar. Nunca soube. Liguei à polícia, com as mãos a tremer, mas… bem, tu já sabes o resto. 137
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— Ele amava-te — diz o Ben, contendo as lágrimas. — Ele disse-me.
Consigo ouvi-lo a rosnar. — Empurraste-o? Cai-me o queixo. — Foi por isso que me trouxeste aqui? Como podes pensar isso sequer?! Nunca lhe faria mal!
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E, assim, as manhosas luzes da rua fulguram de volta à vida. Se acreditasse nessas coisas, veria isto como um sinal, um presságio, mas é uma coincidência. Nada mais.
O silêncio instaurou-se. A luz, ainda forte, a bater-me nos olhos.
Expiro. Conto até cinco.
Tinha sido suficiente? Esperava que sim.
Consigo ver as minhas pegadas no pó atrás de mim. O meu telemóvel está onde
— Sua bruxa mentirosa — diz, por fim, com a voz a tremer de fúria. — E que bruxa mentirosa. Esperas que acredite nisso? O anel era só uma lembrança, ele não te ia pedir em casamento. Era o quê? Tipo um amor adolescente, uma fuga para Las Vegas e tudo mais? Ele sempre disse que eras boa a inventar coisas, a inventar histórias nas aulas de teatro. Nunca teria acreditado se não tivesse visto com os meus próprios olhos. Podias ganhar um Óscar um dia. Ele caiu ao pôr do sol, certo, foi o que disseste? Então diz-me porque é que a polícia só recebeu uma chamada duas horas depois… hem? Duas horas. Que estiveste a fazer, hem?
— Consigo ver as tuas mentiras nos teus olhos — a sua voz estava mais próxima. — As tuas lágrimas de crocodilo, falsas como a tua cor de cabelo. Soluço, fingindo engasgar-me nas minhas palavras.
Toco no bolso e sinto a forma redonda e suave do meu isqueiro. Não era o que esperava para esta tarde, mas “a vida é mesma assim” como dizem. Ergo as mãos e passo-as pelo meu cabelo de forma a alisá-lo, toco na minha bochecha. Estou completamente ilesa. As minhas lágrimas secam nas minhas bochechas. Sabem, sou bem convincente quando choro. Há anos que pratico em frente ao espelho. Ah, o meu repertório é bastante completo: o riso falso é tão bom que acreditariam mesmo que é verdadeiro, mas as lágrimas são a especialidade da casa. Consigo abrir e fechar os meus canais lacrimejantes como se de uma torneira se tratasse. Organizo os meus pensamentos. Enrolo-os à minha volta como um cobertor reconfortante. Ben, aquele idiota, pensou que era mais inteligente do que eu.
— O meu namorado tinha acabado de se suicidar à minha frente — choro. — Não estava a pensar bem, eu…
Acendo o isqueiro uma, duas, três vezes. Gosto da sensação da rodinha debaixo do meu polegar, o cheiro a gás, o brilho da chama. O vermelho do plástico e o dragão amarelo.
Consigo senti-lo a vir na minha direção, o calor quente no ar fresco da noite. O meu corpo está tenso.
Com calma e cuidado, desço as escadas até ao rés do chão, usando o isqueiro para me guiar. Aguarda-me uma surpresa. Erro meu. Parece que o Ben caiu diretamente para a cave. Os três andares, por aí abaixo. Um. Dois. Três. Olho para ele através do buraco que abriu durante a queda, a lanterna a iluminar o seu corpo: com o pescoço e membros nos ângulos mais peculiares, ali estatelado no chão da cave. Que pena, que desperdício de rapaz bonito. Olho para as suas belas mãos, todas dobradas e torcidas e penso no quão quentes e macias eram quando me tocavam. Como disse, um desperdício.
— Mentirosa — fala com rispidez. Espero que se aproxime mais. Pronta para ele. Com toda a minha força, atiro-me na sua direção, empurrando-o com toda a minha força, a vociferar. Torcendo para que o soalho esteja tão podre como julgo estar. O meu desejo realiza-se. Ele perde o equilíbrio, a luz da lanterna move-se em direção ao teto à medida que a madeira se parte, lasca, estala e abre-se um vazio escuro. Este dá-lhe as boas-vindas quando o Ben cai por um buraco e ainda atravessa dois andares até se ouvir uma pancada perfeitamente normal. Como uma versão muito ruidosa de um gato a saltar de uma parede. Mais ou menos agradável. Espero por um gemido, mas nada exceto pó e silêncio.
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Olho em volta e avisto um prego velho e enferrujado dobrado no chão. Serve, penso, e guardo no bolso. Gosto de uma lembrança. Ao sair, pego numa ponta das cortinas e aproximo o isqueiro. É lindo, o fogo. Vejo-o a subir pelas cortinas, o brilho quente a iluminar as divisões gastas. Saio, espero no outro lado da rua e observo as chamas a invadir todo o edifício, andar por andar. Fico ali uma eternidade, até ouvir as primeiras sirenes à distância, e depois sigo para casa em bicos de pés. 139
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LIZ HYDER
Senti-me a ficar rígida. Ele tinha lido os relatórios. Como diabos teve acesso aos relatórios? O meu nome estava rasurado, apagado, foi o que o advogado disse.
só Deus sabe. Deixei um rasto por onde passei e não posso simplesmente manter tudo como está.
Amanhã de manhã, direi à minha mãe que perdi o telemóvel. Que um rapaz estranho me andava a seguir, que não lhe contei porque não a queria preocupar visto que nos tínhamos mudado há tão pouco tempo. Coitado do Ben. Coitado do Daniel, também. Mas não, não posso pensar nisso. Conto até cinco enquanto respiro, deitada de costas na cama. Um… dois… três… -----------------------------------— É só uma lembrança! — ri-se ao dar-me o anel. — Está bem, como queiras — digo, colocando o anel e rindo. Mete a mão no outro bolso e o seu isqueiro cai. Aquele que perde constantemente, vermelho vivo com um dragão amarelo. — Népia — dá uma risada. — Isto é para depois, para as velas. Ah, aqui está! Tira o que parece ser um envelope. — O que é? — pergunto. — Uma surpresa... — diz com um sorriso rasgado. — É o meu bilhete de avião para te ir visitar. A minha expressão deve ter-se alterado por completo, visto que ele paralisou. — Querias que te fosse visitar. Disseste-o um milhão de vezes! — comentou. — Sim, claro, mas eu… — Não estavas a falar a sério. — Não! Era a sério… só que pensei que, olha, eu devo precisar de tempo para me ambientar, vai ser estranho não conhecer ninguém e… — Por isso é que vou, para teres algo com que ansiar, uma cara amiga. Não sei que lhe dizer. Pensei que era óbvio. É só um namoro de verão, certo? É só isso. Não passa disso. Claro que lhe digo “amo-te” e tudo mais, mas não é a sério. São só palavras. Pensava que teríamos um último dia divertido e depois ia-me embora e estaria ocupada, ou, pelo menos, diria que estava, e não conseguia falar por Skype e ele se esqueceria de mim. Como eu o esqueceria. Como já me estou a esquecer. — Não acredito que estás a fazer isto. Tenho estado a poupar desde que me disseste que ias. 140
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LIZ HYDER
— Olha e há mais uma coisa.
— Pronto, agora sinto-me culpada. — Isto é só um jogo para ti, não é? Não passa disso. Mas não é. Quer dizer, eu gosto do Dan, da forma como me faz sentir, mas quero começar de novo quando sair do avião. Não quereriam o mesmo se tivessem essa oportunidade? Quero reinventar-me. Ser o que sempre quis ser. Aqui, se mudas o teu cabelo ou começas a usar roupas diferentes, é toda uma cena e nunca ninguém para de falar disso. Mas lá, ninguém te conhece, posso cortar o cabelo curto, pintar de roxo e rosa, e ninguém vai querer saber. Ter uma nova alcunha, criar novas contas nas redes sociais, recomeçar. Não quero fantasmas do passado a interferir. Então, discutimos. Somos bons nisso. Não o fizemos vezes suficientes, penso enquanto trocamos palavras desagradáveis. Agarra-me no braço quando tento ir embora e doulhe uma chapada. Depois, vem atrás de mim e escorrego. Agora também estou zangada, é o meu último dia com ele. Devia ser agradável. Agarro numa pedra que está perto da minha mão, levanto-me depressa e bum: dou-lhe uma pancada, com toda a minha força, na cara com a pedra. O sangue escorre pela sua cara, a ferida aberta no canto da cabeça. Ele balança, tonto. Põe a mão na cara, lentamente. Oscila, por um momento, na extremidade. E o tempo para. Que fiz eu? Ao ouvir um chape, volto à realidade. Corro para a borda, mas já está a afundar-se na água da cor de joias, disposto como um anjo, a descer para o interior do lago da pedreira, a escuridão a flutuar acima da sua cabeça como uma nuvem. Foi um acidente, certo? Claro. Sim. Foi um acidente. Olho em volta, o piquenique, os bilhetes de avião, o isqueiro. Olho para o anel no meu dedo e tiro-o, atirando-o para o chão para junto da caixa descartada. Pensa. PENSA. — Tivemos uma discussão — gemo, lágrimas a escorrerem-me pela cara. Boa. Isto parece real. Repito vezes sem conta, a dar tudo enquanto o Sol se põe. Sê convincente. Nasceste para isto. Vá. Levanto a pedra, com sangue e cabelos dele, e atiro-a para a pedreira, tomba na água e afunda. Pego no isqueiro e no bilhete de avião, enfio-os no meu bolso e desço pela parede da pedreira, cortando as mãos ao escorregar, deslizar e cair à beira do lago. Olho para os arranhões na minha mão, linhas vermelhas. Boa. Vai dar-me um ar desesperado.
Espero em baixo.
Expiro. Um. Dois. Três…
— Daniel! — grito.
Contemplo os edifícios imponentes lá fora e sorrio.
A minha voz ecoa de volta. Nada mau. Volto a tentar.
Quatro. Cinco.
— DANIEL! Melhor. Mais suplicante. Saco do telemóvel. Rede fraca. Perfeito. Tenho o isqueiro dele na mão e acendo-o uma, duas, três vezes antes de atear fogo ao bilhete de avião. As chamas crepitam à volta e quando o envolvem, deixo arder até o calor chamuscar os meus dedos. Depois, atiro-o ao lago, onde se dissolve em cinzas. Boa.
LIZ HYDER
Respiro fundo e fico a pensar. Penso muito. Treino tudo na minha cabeça. Repito tantas vezes, que me convenço a mim própria. Coitado do Daniel. Que acidente trágico. A minha expressão sofrida é perfeita. Por fim, estou pronta. Pego no telemóvel e ligo para o número de emergência. — Houve um acidente — lacrimejo. — É o meu namorado, ele… tivemos uma discussão e ele… -----------------------------
LIZ HYDER Liz Hyder estreou-se na literatura com a sua obra Bearmouth, publicada pela editora Pushkin Press, que sairá em Setembro numa versão hardback. Vencedora do prémio Moniack Mhor Emerging Writer Award em 2018, Liz é também perita em workshops de escrita criativa, tendo co-fundado (em 2016) com a poeta Jean Atkin “The Wordshoppers”, um projecto de oferece diversas oficinas interactivas para todas as idades. É membro da NAWE (National Association of Writers in Education) e do Writing West Midlands’ Room 204 esquema de desenvolvimento para escritores. No passado foi também mebro do National Youth Theatre, tem uma licenciatura em Teatro da University of Bristol e faz parte do comité de Wales Arts Review. Cockshut Hill School, Birmingham
Respiro. Inspiro e expiro. Contando até cinco, como costumo fazer. Um… dois… inspirando. Olho para o horizonte de Nova Iorque através da janela do meu quarto.
Wendy, Jordan, Bradley, Sarah, Zihad, Jannath, Kieron, Malika, Gideon, Alexandra, Jennifer. Bibliotecária: Karen Kaur.
Só queria começar do zero. Era só isso. Olho para o prego enferrujado e o isqueiro vermelho com o dragão amarelo na minha estante. Lembranças. Gosto de uma boa lembrança. Três… Quatro… Cinco. Sustenho a respiração por um segundo. Esta tarde tenho a minha primeira audição para um espetáculo da Broadway, mas já sei que vou passar. Tenho um pressentimento.
Traduzido do inglês para português por Susana Valdez
Distraio-me a mexer no anel que o Dan me deu. Faço-o rodar vezes sem conta no meu dedo. Já o tinha posto, para dar sorte e não me esquecer. 142
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NORUEGA
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Fuga
ANDERS TOTLAND
FUGA Sorri fervorosamente para permanecer, antes que o vento chegasse. Na minha barriga, sinto pássaros de verão a girar. Era impossível saber se tal era bom ou mau. Eu sabia que deveria estar feliz. Pelo menos de certa forma. A coisa mais certa a fazer era apressar-me. O que poderia acontecer se eu ficasse novamente? Tive de partir e fui ajudada por toda a família a fazê-lo. Havia pouco a fazer. Eu definitivamente deveria fazer algo. Seria algo que faria ter sucesso novamente. Surgiu aquela maldita alegria, de um modo que eu não conseguia expressar em palavras. Acenas gentilmente com a cabeça do outro lado do camião e puxas o casaco para o rosto quanto o vento aumenta. Será que terias o mesmo caminho? Havia muitos outros que desejavam viajar. O Mio argumentou fortemente que deveria fazer o teste. Mas ele tinha hipóteses muito melhores do que as minhas. Além disso, era mais velho e deveria ser o primeiro na fila a fugir. Mas o tio disse que não. Tinha de ser eu. E a conversa terminara. Fazer isto ao Mio estava errado. Ele sabia disso. Mas não disse nada. Não iria desafiar o tio, que colocou os seus olhos nele assim que ele começou a avançar. Era óbvio de que isto era algo do qual tinham falado. O pior foi explicar tudo à Alina. - Porque não podemos simplesmente fazer todos juntos? – Disse ela e olhou para o tio com aqueles grandes olhos redondos. Acabo por engolir o nó na minha garganta enquanto o tio lhe explica. Porque simplesmente tenho de viajar. - Por exemplo, tu. É devido ao dinheiro. – Disse o tio. E era verdade. Era o dinheiro que impedia que mais pudessem viajar. Não era fácil apanhar um autocarro e um camião. Era difícil fugir. Não havia dinheiro. Juntos, os nossos familiares mal tinham conseguido juntar dinheiro suficiente para nós os dois. Era impossível juntar mais gente. - Se não podemos ir juntos, não quero que ele viaje. - Disse a Alina ao tio que já explicara diversas vezes. 147
Estava a poucos quilómetros da cidade quando a tempestade se abateu sobre nós. Aconteceu mais depressa do que o normal. De um segundo para o outro, o ar transformou-se num inferno de frio. Era uma questão de nos agarramos à borda do camião e, ao mesmo tempo, usar os braços para cobrir o rosto. Só não podia parar. Não tão perto da cidade. Olho para as pessoas ao meu redor. Para além de ti, havia apenas outros dois que conhecera antes, a esposa de um vizinho e a sua cunhada. Não sabia de nada especial. Não sabia como eles eram. O resto era completamente desconhecido. Eu respirei com mais facilidade. Enquanto não reconhecesse nenhum dos outros, talvez eles não soubessem quem eu era. Quem eu era. O tio estava a caminho de casa, vindo da loja, quando foi interpelado pelos dois lados. - Eu sei quem são. - Disse o mais velho, com o dedo apontando e tremendo no ar. No início, o tio não entendeu nada. Pelo menos quase nada. Após um tempo, pensou que o melhor a fazer olhar questionavelmente para aqueles homens. Então o mais novo tomou a palavra: - Não entende que eles têm vergonha de toda a família, de toda a vizinhança? Deviam ter ido embora! Não, o tio não tinha mais dúvidas. Tinha obviamente as suas suspeitas, mas nunca ousou pensar nisso completamente. Tudo pode ser explicado se a alternativa for má o suficiente. Devia ter estrangulado as suas mentes antes de se desenvolverem especulações e suspeitas. Teria sido o melhor, tio. Mas a ideia não era mais um pensamento. Não, havia uma suspeita total, e não apenas na cabeça do tio. Os bandidos estavam no caminho certo. 148
Na pior das hipóteses ... O tio nem sequer se atreveu a pensar. Eu sabia bem o que arriscava. Tu também. Tenho a certeza. Mesmo que não quisesse acreditar, ouvira histórias de homens que tinham sido presos e torturados, sem que alguém tivesse provas de nada. E tinham tido sorte. Outros desapareceram sem deixar rasto. Uma suspeita no ambiente certo era mais do que suficiente. Eu sabia o que ela arriscava, mas não podia sair. Tentou durante muito tempo manter-se afastada, mas isso não aconteceu. Não em distância. Não sem nos perdermos, e não valia a pena. Eu sabia disso agora. Quem eu era. O que eu era. Era tão injusto faltar-me as palavras. O que era realmente uma suspeita? E então, se o pudessem provar? De que tipo de ação criminosa era eu culpada? Não conseguia entender o mal que tinha cometido. O que fizera de errado. Como poderia estar errado, o que parece tão certo? Simplesmente não compreendia. No entanto, eu sabia bem quais seriam as consequências se fosse descoberta. O que aconteceria antes e depois. De qualquer modo: Também não era livre antes da revolução. Mas, desde que não se espalhasse pelas ruas, tudo corria bem. Não foi tudo virado de cabeça para baixo, os bandidos tinham orelhas e olhos por toda a parte. Comigo, viajavam muitos outros. Jovens e velhos, juntamente com crianças que envergavam armas. Por longos períodos, tinha de ir. Mal começara a etapa de hoje, quando descobrimos que um dos nossos tinha dificuldades em acompanhar. "É o pé" - Disse o homem. - Eu acho que a ferida infetou. Ouvi o que eles disseram, mas não entendi o que aconteceu. Não valeria a pena parar para discutir pés infetados? - Aqui. – Disseste, esticando as mãos e aceitando a criança, como se fosse o mais óbvio do mundo. Dois dos outros envolvidos apoiaram o pai, e então ele conseguiu sair. Tinhas contraído uma tosse depois de partir e estava prestes a desistir quando 149
FUGA
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Não importava o quanto gritava. Ela bateu com o punho fechado no peito e repetiu as mesmas palavras: Não vou, não vou, não vou. - Não vás por favor! As suas lágrimas eram como ácido. Como arame farpado, do qual não me conseguia desviar, enquanto me afastava. Não conseguia olhá-la nos olhos. Não conseguia explicar à minha irmãzinha porque tinha de viajar. Não conseguia dizer-lhe que a veria novamente. Não mentiria. Portanto fui embora.
Não se tratava de em quem ele pensara primeiro. Quando os bandidos entraram em contacto novamente, ele entendeu o que realmente procuravam. Mesmo os mais inúteis podem-se esconder se tiverem dinheiro suficiente. Mas tio negou. Para que não pudessem provar nada. Que tudo era mentira. Sabendo que seria uma piada se ele tentasse fugir.
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ANDERS TOTLAND
Na próxima vez que eles voltaram, o tio posicionou-se na porta e ocupou o máximo de espaço possível. Ele sabia que dele dependia toda a sua família, gente em posições importantes. Desde que não tivesse de explicar exatamente qual era o conflito, sabia que podia contar com eles. Tinha de tentar. Até mesmo os valentões fanáticos tinham de entender que não podiam andar como queriam. Foi então que o mais novo retirou um telemóvel do bolso. Não disse nada. Procura rapidamente um vídeo do YouTube, carrega no Play, e empurra o telemóvel na direção do tio. O tio não conhece nenhum dos atores no vídeo. Mas viu o que lhes aconteceu antes de fechar os olhos e sentir o jantar a revirar-se no seu estômago. Eu não entendi tudo. No que estavas a pensar? Tinhas de entender o que as pessoas te diziam. Que tinhas errado. Tinhas de o entender. Tudo bem que há outros que fizeram o mesmo. Não foste o único. Mas essa era um motivo tão bom como qualquer outro. Não era exatamente do que tinhas de fugir. Um pouco do auge do que se seguiu era a última coisa que eu precisava. Mas tu não te importaste. Respondeste obviamente aos avisos dos mais velhos. Ignoraste todo o perigo que passara por ti. E eu? Talvez nem todos tivessem notado que viajávamos juntos, que havia uma espécie de vínculo entre nós? Queria falar contigo ali, mas não me atrevia. Sempre que tentava ganhar coragem, lembrava-me do que tinhas dito. Aquelas ordens injustas ainda me conseguiam apertar o estômago: “Porque não o fizeste?”. Atravesso o mar a meio da noite. Tremia, embora não estivesse frio. Estava apavorada com o mar aberto, mas sabia que era a minha única hipótese. O mais novo e o mais velho, entre outros, uma sala de estar no meio do barco. Tive de me sentar na borda, junto com os jovens homens. Agarro-me aos outros, esperando não me acostumar com o passar de mãos que recebia. Tinha pago caro pela travessia e pela expedição, mas tinha um emprego. Muito antes de sair de casa, tinha lido na internet sobre o vendedor que encheu os jornais do faroeste. Na praia, falava-se da notícia sobre um barco que havia tombado no dia anterior. 65 pessoas tinham-se afogado. Quase 30 eram crianças. Ao ver o barco, perdi toda a esperança. Tudo o que pude fazer foi sentar-me em silêncio, enquanto as ondas chicoteavam o barco. 151
FUGA
eu cheguei à próxima transição e passei a viver num novo camião. O homem que estava com o pé infetado estava com o filho no colo e o menino dormia pesadamente no peito do pai. Conseguia ver que o seu pé tremia fracamente, embora ele tentasse ficar de pé. Tu deitas-te como um massacre para mim. Molhado com o suor e a tossir até quase quebrares. Ficou claro que tinhas de levar o corpo ao extremo. E ainda assim mal estávamos a meio do caminho. - Porque fizeste isso? Eu estava a ser pessimista, para que os outros corrigissem o que eu disse. Pensei sobre o que o tio tinha dito antes eu partir: "Focado no objetivo, até ao fim da jornada”. Eu sabia que os mais velhos tinham falado e que o teu pai dissera o mesmo. A única coisa na qual deveria pensar era em chegarmos em segurança. Nada tinha significado se não o conseguisse fazer. Olhei diretamente para ti quando respondeste: - Porque não o fizeste? Não conseguia parar de pensar no que tinhas dito. "Porque não o fizeste?”. Não respondi. Não encontrei nada para dizer. Preocupei-me com o que o tio dissera. Eu pensaria em nós como me foi estritamente ensinado. Qualquer coisa que pudesse causar problemas, teria de a evitar. Tinha de lidar com os contrabandistas de todo o mundo e não com os outros que viajavam comigo. A melhor maneira de o fazer era tornarmo-nos invisíveis. Foi o que o tio disse: “Se ninguém repara em ti, podes ter esperança que corra bem”. A expressão no seu rosto não deixava dúvidas do que queria realmente dizer sobre aquela situação. Nem a palavra que usou. Quase as cuspiu. "Se tivesses pensado nisso um pouco antes, e fossemos perfeitamente normais, eu não estaria aqui " - Dissera o tio. "O teu irmão poderia viajar, tal como planeei. Foi por ele que poupei o dinheiro. Não por ti. Mas agora… não tenho escolha. Eu não tenho escolha.”
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Eu sei o quão pesada é a tensão que se acumula no corpo. O novo país estava ao nosso alcance. Eu iria conseguir. Era claro. A milhares de quilómetros de casa, estava novamente segura. A última parte tinha de ser percorrida a pé. Estava a poucas centenas de metros da fronteira, quando fui abordada por dois carros da polícia. Juntos, quatro pessoas saíram dos dois carros e começaram a gesticular. Disseram-me para esperar, enquanto os homens de uniforme revistavam as nossas malas. Não havia muito a revistar. Muitos dos meus pertences tinham desaparecido pouco depois da partida. O resto tivera de ser deixado na praia antes de entrar a bordo dos barcos de borracha. Ouve-se o rádio dentro do carro da polícia e subitamente todos ficam agitados. O que parecia ser o chefe olhou para um dos outros que continuava de pé enquanto os outros saíram do carro. No início, ele parecia inquieto. Observa e olha para o relógio. Como se esperasse por algo. Mas ninguém veio e nada aconteceu. No final, pôs-se na frente da rapariga vizinha. De pé, olha para ela. Durante muito tempo. O olhar leve vagueia para cima e para baixo, com os olhos inchados, antes de indicar que ela deveria entrar no carro. Milhares de pensamentos passam-me pela cabeça quando te vi a seguir a rapariga e o polícia. Não havia dúvida do que o homem de elite tinha em mente. Sei como o coração se aperta no peito. Ainda assim, era pior dizer o que aconteceria se tentasses impedi-lo. Já não falava há vários dias. Tinha tentado mais do que uma vez, mas não conseguia. Não sabia como começar. O que deveria dizer. Claro que tinhas razão. Tinha-o entendido. Logo após o dizeres, pareceu-me absurdo deixar que o meu tio ditasse como deveria viver, deixar os velhos governarem com os seus ensinamentos da Idade da Pedra. Se o tivesse feito desde o início, não te teria conhecido. Não desta maneira, pelo menos. E a outra pessoa estava completamente inconsciente. Não havia vida alguma. Sabia-o agora. Impulsivamente, agarrei-te o braço e puxei-te novamente para baixo, de modo a que caísses na vala. - O que estás a fazer? Gritas, com os vasos sanguíneos a ressaltarem no teu pescoço. - Não compreendes? - Pergunto Queria gritar que nos salvei a ambos, que não conseguia viver sem ti. 153
FUGA
Quando finalmente cheguei ao outro lado, encontrei uma rapariga vizinha a brincar. Pediu para não contar mais. Não importa quanta palha havia, pois não voltou a encontrar o irmão. Ajudei-a a procurar, mas ela não o encontrou. Quando tive de continuar, estavas acordado. A vizinha recusou-se a continuar sem o irmão. Tinha de encontrá-lo primeiro, disse ela. Mas tu puseste o braço à volta dela e levaste-a contigo. - Eu não posso fazer isso sem ele - Chorou ela e tentou afastar-se de ti. Mas tu não a deixaste ir. Abraçou-a, e as lágrimas penetram facilmente na camisa. - Então. - Disseste - Tudo vai ficar bem. Ninguém te vai magoar. Eu vou tomar conta de ti. - Nunca tens medo? - Perguntei quando estava sob o céu aberto e olhava para as estrelas depois de eles terem adormecido. Não me conseguia lembrar de as ter visto tão claramente antes. Havia sempre fontes de luz que perturbavam a luz das estrelas. Aqui, na terra de ninguém, era bem diferente. Sem seres humanos, a natureza fora abandonada de uma maneira completamente diferente. - É claro que tenho medo. – Respondes. – Todos têm. - Mas ... Procuro as palavras certas. - Corres muitos riscos. Isso faz com que reparem em ti. Tens de entender que isso não é bom. Não pensas no que o tio disse? Sei que te disse o mesmo. Abanas a cabeça. - Claro que penso. – Dizes. - Mas está errado. Não é verdade que a única coisa que importa é sobreviver. A pior coisa que posso fazer é ser notada. O que realmente significa algo é o que se pode fazer com a vida enquanto se vive. E nem os pais podem ou sabem decidir. Consegui encurtar a distância que nos separava. E não apenas porque te viraste e te afastaste, depois de dizer as últimas palavras, e torceste-as como uma faca. - Eu realmente esperava que tu, de entre todos, compreendesses. – Disseste. Então não fales mais comigo. Só faltavam alguns dias para chegar, quando cheguei à penúltima fronteira. Adicionalmente, viajaria pelo ar e, após um dia inteiro, chegaria. A maioria do grupo já tinha saltado há muito tempo. Alguns não tinham mais energia, outros tinham atingido os seus objetivos. Agora eramos só uns poucos novamente.
Independentemente do que eles queriam, independentemente do que o futuro me reservava, estava pronta para uma nova vida. Finalmente poderíamos estar juntos, sem ter de gritar. Finalmente seriamos só nós os dois, tudo por tudo. Mas as palavras não queriam sair e, de qualquer modo, não ouviste. Não valia a pena. Desliguei a minha voz, que te implorava para parar, para te manteres em baixo. E o outro carro meteu o motor em funcionamento. As quatro rodas agitaram a areia quando os travões foram desbloqueados. Três pares de botas ecoavam ao longo do asfalto. Dois tiros rápidos pela porta traseira aberta. Um corpo sem vida contra o chão.
ANDERS TOTLAND Anders Totland (nascido em 1986) é um autor, organista, cozinheiro e jornalista. Ele começou em 2015 com The Vampires no Apple Garden e destacou-se como um dos mais empolgantes jovens escritores adultos nos últimos tempos. Em 2016, recebeu o Prêmio Nynorsk de Literatura Infantil pelo seu primeiro romance, Angel in the Snow.
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Teu para sempre
Soube-o através de um amigo de um amigo dele. Fora a primeira vez que compreendera que eu e ele já não tínhamos nada que nos unisse. Inclinei-me sobre a janela do segundo andar. O meu quarto ainda tinha posters da Beyoncé nas paredes. Não os retirei quando me mudei com ele e não tive qualquer trabalho quando regressei aqui, um ano depois.
Teu para sempre
AGNES MATRE
O termómetro atingiu os vinte e oito graus, o que é pouco comum na Noruega Ocidental. Quero chuva, trovões, uma horrível tempestade. Quero abolir a gravidade, ignorar as leis da natureza, mas hoje, nem mesmo o céu me ouvirá. Em vez disso, agarra-se avidamente aos raios de sol e destrói a camada de armadura que me protege. É isto que me mantém de pé desde que, numa manhã de sábado, há meio ano atrás, soube o que se passava. Se o céu me ouvisse, faria chover. Deixaria afogar-me na chuva, ao invés de o testemunhar. Olhei para o relógio. Em breve, os sinos da igreja soariam por ele e eu tinha decido comparecer.
No chuveiro, ensaboo o meu corpo. Centímetro a centímetro, deixo as minhas mãos deslizarem tentativamente, como se verificasse se ainda me lembrava como ele costumava passar-me as mãos pelas ancas, lentamente. As minhas mãos movem-se quase por si próprias, os meus dedos são os seus dedos. Fecho os olhos, agarro no cabelo dele, inclino-lhe a cabeça para trás e puxo-o para mim, beijo-o com força, quase desesperadamente, antes de deixar que os seus lábios se suavizem contra os meus. Lembro-me da barba de três dias que raspa contra a minha bochecha, contra os meus seios e barriga, enquanto me lavo com água e amor. Então lembro-me dele contra mim. Uma memória. As pernas tremem-me quando agarro na toalha. Seco-me. As minhas costas terão de se secar sozinhas. Então cubro o meu corpo com creme, esfregando-o vigorosamente na pele, deixando-o ali como um filtro contra o que em breve viverei. Aperto o relógio que ele me oferecera, vendo as horas e hesitando uns segundos antes de retirar o anel de noivado da caixa de joias. Teu para sempre. O anel desliza no meu dedo e assenta no seu devido lugar, como se sempre ali estivesse. Retiro o vestido do armário. “Amo-o e amote”, ouço-o dizer. Está deitado sobre a minha barriga, no quarto, e passa as mãos pela saia branca. “Deveria ser o teu vestido de casamento”, diz alegremente, mesmo atrás de mim, respirando contra o meu pescoço como costumava fazer. Passo o vestido por cima da minha cabeça, olho para o tecido branco no espelho 156
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quando o sol entra pela janela e me cega. As mãos tremem quando puxo as meias. Os sapatos são novos. Tudo é novo. Tudo está por usar. Giro o anel em volta do dedo. Vejo-o na igreja comigo. Imagino o anel dela, o anel dele. Posso imaginar onde os escondem. Penduro o vestido novamente no armário. Vestindo umas calças escuras e um casaco de fato, certifico-me que tenho tudo na mala antes de sair.
Sinto o cheiro dos bancos da igreja e de um fogão queimado, sinto o cheiro a madeira velha e sebo, mas não o cheiro dele ou do perfume que costumava usar diariamente. Volto os meus pensamentos para dentro até chegar a nós os dois, juntos.
O tecido do fato raspa contra a minha coxa, o casaco é demasiado apertado, parece que arranha debaixo dos braços, os botões estão frios contra o meu corpo, após esperar na sombra até todos terem entrado. Sento-me silenciosamente no último banco e ouço as conversas entre pessoas que outrora conhecera. Mesmo antes da cerimónia começar, a avó dele volta-se para trás e olha para mim como se eu fosse uma erva daninha Ela nunca gostara de mim e arrependo-me de não ter trazido o vestido branco na mesma. Quando o pianista começa a tocar, o meu estômago enche-se de granito. O que descobri? O que penso poder permitir? O que dirão os outros quando completar o meu plano? Ele tem-na a ela e quando este dia terminar, já nada fará diferença. Não para mim e não para eles. Então ela entra na igreja, lentamente, acompanhada do pai. O olhar dela prende-se nele, que espera numa pequena escadaria que dá para o altar. Ela toca numa rosa vermelho-sangue do buquê que leva. Rosas vermelhas e véu de noiva. Enfio a mão na minha mala e agarro em algo que lá pus. Reconheço a dor quando esta atravessa a palma da minha mão. Conheço o fio de sangue. Sabe bem. Por um momento, pergunto-me se serei capaz de implementar o plano.
Quando abro os olhos, a mulher está perto do altar. Inclina a cabeça e enfia o nariz nas pétalas vermelho-sangue. Rosas vermelhas e véu de noiva branco. Ele costumava comprá-las para mim. Fui eu que lhe ensinei que aquela combinação faria as mulheres estarem dispostas a quase tudo. A mulher sussurra algo ao ouvido de uma amiga, ou talvez, uma irmã, antes desta lhe retirar o buquê das mãos. Quando novos acordes enchem a sala, ela volta-se para ele. Os seus olhos repousam nele por muito tempo antes de olhar em volta da igreja, como um capitão no convés. O olhar é fixo. Resulta claro que tudo isto foi bem planeado e preparado até ao mais ínfimo detalhe. Não grandioso como eu teria escolhido, mas “menos é mais”, parece dizer. Ela não o planeou sozinha. Reparo como ele também reparou. Isto fora planeado em conjunto. A cerimónia anónima, o modo como a igreja está decorada e o simples vestido que ela veste. Não muito diferente daquele que ele me oferecera. Do modo como ele gosta. Essa descoberta alegra-me inesperadamente. Corto-me naquilo que tenho na mala. Duvido se devo realmente continuar, e penso rapidamente. Talvez os possa deixar simplesmente em paz? Mas já é demasiado tarde.
Conheci-o no Tinder há três anos atrás. Numa festa de um conhecido em comum. Ele estava deitado junto à água. Era verão. Vi-o assim que contornei o alpendre. Cabelo escuro, olhos cinzentos-azulados cristalinos, calças de ganga claras ligeiramente enroladas nas bainhas, uma t-shirt branca com um casaco escuro por cima, sapatilhas brancas. Estava no campo. Apaixonei-me por ele muito antes da festa. Fui incapaz de o revelar imediatamente. Em vez disso, sentei-me e estudei-o durante algum tempo, à distância. O sorriso torto, os caninos afiados, os olhos quando falava com alguém, os dedos enquanto os passava pelo cabelo escuro. Tinha bebido pouco, namoriscado ainda menos com as imensas raparigas que o rodeavam. Surpreendeu-me tanto como ter descoberto que ele procurava alguém… a mim.
Quando finalmente solta a mão do pai, ela vacila. O primeiro sinal de que está afetada, que isto significa algo.
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A família dela é constituída maioritariamente por desconhecidos. Já vira alguns daqueles rostos, mas nenhum deles me conhece ou conhece a nossa história. Para eles, eu sou a outra. A família dele, por outro lado, conheço-a como se fossem um prolongamento da minha. Consigo identificá-los por trás, um a um. A irmão com o longo cabelo escuro. Os irmãos junto a ela. A sua mãe, que seria a minha sogra para sempre. Ela acenara quando me vira debaixo da árvore no exterior. O padre desce os três degraus do altar e cumprimenta a família mais próxima, como se os agradecesse por terem vindo. Então volta-se para a estátua de Jesus e duas mulheres no altar: a Virgem 159
Teu para sempre
AGNES MATRE
Na igreja, sento-me à sombra, um pouco afastada da entrada principal. Não preciso que me digam que não pertenço ali, no entanto, muitos o fazem com o olhar quando me veem. Alguém sorri com compaixão. Não irá durar. Não quero estar ali, mas tenho de estar. Só para ver com os meus próprios olhos que as coisas são assim agora.
O último acorde do piano perdurou no ar enquanto nos sentávamos. Ninguém falou. Havia uma espécie de tensão no ar. Encosto a cabeça à parede de madeira enquanto a minha pulsação lateja como se estivesse obcecada com a artéria carótida. Tento acalmar-me ao fechar os olhos e inspirar pelo nariz. Quero reconhecer o seu cheiro, mas não o posso fazer, já passou muito tempo. Um ano, e agora eles ali estão, estão os dois, mas não somos nós.
Maria ou Maria Madalena? Não sei. Estão prostradas aos pés do Salvador. Este tem a mão sobre a cabeça de uma, a outra olha noutra direção.
entre lápides desconhecidas, como se estivesse ali por outro motivo. Uma pedra afiada corta-me a planta do pé e suaviza a dor dentro de mim. Tenho de me ir embora.
O poslúdio é impessoal sem um artista contratado, tal como eu teria escolhido. Esta deveria ser uma música que fizesse todos chorar ou sorrir com lágrimas nos olhos. Talvez a “Faded” do Alan Walker” ou a “Perfect” do Ed Sheeran?
Uma mão pesada pousa no meu ombro. Volto-me. É o irmão dele. Põe um braço à minha volta.
Mas esta não é a nossa cerimónia. Foi ela que a planeou. Eu sou uma figurante, rude o suficiente para aparecer.
Demora muito até o último banco sair e sinto-me como uma idiota que se perdeu no meio do campo em frente de um estádio lotado. Quando cheguei, pareceu-me um bom esconderijo. Agora todos vinham na minha direção. Quando ela passa, fico tensa e fito o seu olhar, apertando o que tenho na mala, com força. Levo a minha mão à boca. Sugando o sangue do dedo enquanto reparo que nos seus olhos não noto ódio ou raiva, nem sequer compaixão. Isto enfurece-me. Então ela desaparece pela porta. Os outros seguem. Não consigo mais estar ali, então empurro pela fila de fatos negros, inclino a cabeça, mas ainda reparo em olhares acusadores daqueles que pensam que eu não deveria estar ali ou, pelo menos, não tão próxima do início da fila. Não deverá ajudar. Já não aguento estar sentada no banco. Já não existem mais interrupções. Um homem funga audivelmente enquanto passa por mim no corredor. Desequilibro-me nos meus saltos altos. Outro homem, um dos melhores amigos dele, ampara-me e murmura algo antes de desaparecer na igreja. Cerro os dentes e retiro os sapatos de salto alto, colocando-os gentilmente na mala de mão. Parece-me que recupero o controlo do que tinha antes. A mala é demasiado grande para o ocasião, mas tinha de ser. Quando me vejo descalça, pressiono os pés contra o frio chão de madeira pintada de cinzento. Reparo que a igreja deve estar construída mesmo sobre o solo. É como se bolor negro se elevasse da madeira escura e ameaçasse arrastar-me para me cobrir com o solo húmido e negros. Puxo o casaco do fato mais para mim, cobrindo o meu decote. Então ouve-se o grito. É violento e preenche o ar. Envergonhada, baixo o olhar para o sólido chão de ardósia enquanto desço as escadas da igreja. Sinto os olhares compassivos mais do que os vejo. Há muitos. Sinto uma enorme solidão quando entro e deambulo 160
- A ti também. – Sibilo. Desesperada, encosto a cabeça contra ele durante um momento, completamente ciente de que, agora, as pessoas olham-nos ainda mais. Reparam como me aproveito da família dele em tal dia. Um dia em que ela tem direito a toda a atenção. Quero afastar-me, mas ele agarra-me. - Alguns apagam capítulos da sua vida, como se nunca tivessem sido escritos. – Diz ele. – Mas tu deixaste-os por editar. Isso é bom. Então não existem capítulos. Vem! Sigo-o enquanto ele atravessa a multidão, segurando-me a mão com força como se temesse que eu fugisse. A relva parece mais suave sob os meus pés. A minha pulsação soa-me na cabeça. Compreendo para onde ele me leva, mas saberá ele o que tenho na mala? Saberá ele do meu plano? As pessoas afastam-se, abrem espaço. Ao início, apenas sombras difusas, depois os rostos tornam-se mais nítidos. A mãe, a irmã, o velho tio com cabelo branco como a cal que adorava matar uma conversa. Tentar fosse o que fosse, seria uma má ideia. Então paramos. O irmão dele afasta-se. A mulher está de costas para mim. Então ela gira na minha direção, como se me tivesse farejado. Sem uma palavra, abre-me caminho. Reparo que ela me deixará ter aquele momento a sós. Que, na verdade, ela pensa que o mereço. Solto a mão do irmão dele. Os olhos desaparecem da minha volta enquanto olho para a madeira branca, um ecrã de cinema onde um filme difuso a preto e branco passa. Ele chega a casa com o vestido branco, o qual está agora pendurado na janela de casa e acena adeus. A coragem falhou. Não me atrevi a vesti-lo hoje. Vejo-o enquanto ele se ajoelha e segura o anel na minha frente. “Teu para sempre”. Vejo-nos juntos dia após dia enquanto nós, como dois pardais amarelos arrebatadores, construímos ninhos no chão e decoramo-los com a palha mais fina, enquanto planeamos o resto das nossas vidas. O resto da vida. Então o filme termina e vejo tudo branco. Foi tão bonito, tão certo, tão nosso… e agora…
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Teu para sempre
AGNES MATRE
Não aguento ouvi-la. As palavras não me dizem respeito. Só quando eles saem pela porta é que eu levantou os olhos e me ponho de pé. A marcha é lenta. A mulher controla o ritmo, demora o seu tempo, olha as pessoas nos olhos e manda um sorriso de Mona Lisa. Lentamente, como se desejasse que aquele momento durasse para sempre. Os outros seguem, banco de igreja a branco de igreja a esvaziar-se.
- É bom ver-te. – Diz ele.
Agora abate-se sobre mim novamente. A sensação horrível de quando ele partiu. Tudo que não pode ser feito. Não há absolutamente nada que possa fazer. Esta sensação de perda de controlo sobre a vida. O desespero. Mesmo se movesse montanhas ou agarrasse as estrelas, ele nunca voltaria para mim. Retiro o anel de noivado do dedo anelar e seguro-o durante um momento, rodando-o e rodando-o, tentando ler o que diz, mas não consigo ver através das lágrimas. Não preciso de ver. Então abro a mala, retiro os sapatos primeiro e calço-os. Então retiro o que tinha na mala. Uma pétala vermelha cai no chão enquanto entrelaço o anel de noivado nos caules das três rosas e do molho de véu de noiva. Então inclino-me para a frente, esticando a mão e atirando as três rosas vermelhas para o caixão branco, murmurando algo que só ele consegue ouvir. Em seguida, volto-me, percorrendo a multidão com os olhos. Aproximo-me dela e abraço-a. - Obrigada por teres vindo! – É tudo que ela diz. AGNES MATRE Nascida a 11 de Maio de 1966, é uma autora norueguesa oriunda de Haugesund, uma cidade na costa sudoeste da Noruega. É conhecida pelos seus livros policiais. Está sempre disponível para apresentar o seu trabalho e os seus pensamentos sobre o “processo literário” em diversos fóruns. Mais relevante, considera, talvez sejam espaços como escolas secundárias, universidades, bibliotecas, espaços de literatura e festivais. No entanto, outros tipos de fóruns podem ser de interesse, como instituições sociais, indústria e organizações locais. Os temas por ela cobertos vêm dos seus próprios interesses. Como desenvolver um livro, desde as ideias até ao produto final? Como desenvolver uma narrativa? Como planear e estruturar um texto? No fundo tudo o que tem a ver com o processo de escrita de uma obra. Outros tópicos de interesse que também poderá mencionar passam por distúrbios alimentares, crianças e luto, violação e abuso sexual, insuficiência no cuidado.
Traduzido do Norueguês para português por Multilingual Europe Trads, Unip. Lda. 162
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ITÁLIA
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Pensavas que toda a gente na América tinha um carro e uma arma; os teus tios e as tuas tias e os teus primos e as tuas primas também pensavam o mesmo. Logo depois de ganhares a lotaria dos vistos americanos, disseram-te:—Dentro de um mês, vais ter um grande carro. Em breve, uma grande casa. Mas não compres uma arma como todos aqueles americanos. Entraram todos pelo quarto em Lagos onde vivias com o teu pai, a tua mãe e os teus três irmãos, encostando-se às paredes por pintar porque não havia cadeiras suficientes para todos, para se despedirem de ti em voz alta e te dizerem em voz baixa o que queriam que lhes mandasses. Em comparação com o grande carro e a grande casa (e, possivelmente, a arma), as coisas que eles queriam eram menores— malas de mão e sapatos e perfumes e roupas. Tu disseste OK, não há problema. O teu tio na América, que tinha inscrito o nome de todos os membros da tua família na lotaria dos vistos americanos, disse que podias viver com ele até te orientares. Foi-te buscar ao aeroporto e comprou-te um grande cachorro-quente com mostarda amarela que te provocou náuseas. Uma introdução à América, disse ele com uma gargalhada. Vivia numa pequena cidade de brancos no Maine, numa casa com trinta anos junto a um lago. Dissete que a empresa em que trabalhava lhe oferecera mais uns milhares acima do salário médio, para além da opção de compra de ações, porque estavam a tentar desesperadamente aparentar uma diversidade étnica. Incluíam uma fotografia dele em todas as brochuras, mesmo nas que não tinham nada a ver com o seu setor. Ele riu-se e disse que o emprego era bom, que valia a pena viver numa terra só de brancos, embora a mulher dele tivesse de se deslocar uma hora de carro para encontrar um salão de cabeleireiro que tratasse do cabelo de africanas. O truque era compreender a América, saber que a América era dar-e-receber. Dava-se muito, mas também se ganhava muito. Mostrou-te como concorrer a um lugar de caixa da estação de serviço da Main Street e inscreveu-te num instituto público, onde as raparigas tinham coxas grossas e usavam verniz de um vermelho vivo e autobronzeador que as punha cor de laranja. Elas perguntaram-te onde é que tinhas aprendido a falar inglês e se havia casas a sério em África e se alguma vez tinhas visto um carro antes de vires para a América. Olhavam embasbacadas para o teu cabelo. Fica em pé ou tombado quando desfazes as tranças? Queriam saber. Fica todo de pé? Como? Porquê? Usas pente? Tu sorrias de lábios
A Coisa à Volta do Teu Pescoço
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bebiam gin de produção local e atafulhavam a família e a vida num único quarto; nos teus amigos, que tinham vindo despedir-se de ti antes de partires, para se regozijarem por teres ganhado a lotaria dos vistos americanos, para confessar a sua inveja; nos teus pais, que muitas vezes iam de mãos dadas para a igreja ao domingo de manhã, com os vizinhos do quarto ao lado a rirem e a troçarem deles; no teu pai, que trazia do emprego os jornais velhos do patrão e obrigava os teus irmãos a lê-los; na tua mãe, cujo salário mal chegava para pagar as propinas dos teus irmãos na escola secundária, onde os professores davam a nota máxima quando lhes passavam por baixo da mesa um envelope de papel pardo. Nunca precisaste de pagar para ter as notas máximas, nunca passaste discretamente por baixo da mesa um envelope de papel pardo a nenhum professor na escola secundária. Mesmo assim, escolheste envelopes de papel pardo para enviar metade do que ganhavas por mês aos teus pais, para o endereço da empresa paraestatal onde a tua mãe fazia limpezas; usavas sempre as notas que Juan te dava, porque eram novas, ao contrário das gorjetas. Todos os meses. Envolvias cuidadosamente o dinheiro em papel branco, mas não escrevias uma carta a acompanhar. Não havia nada sobre o que escrever. No entanto, semanas depois, apetecia-te escrever, porque tinhas histórias para contar. Apetecia-te escrever sobre a franqueza surpreendente das pessoas na América, sobre como te falavam impulsivamente sobre a mãe que estava a lutar contra um cancro, sobre o bebé prematuro da cunhada, o tipo de coisas que se deveriam esconder ou revelar só a pessoas da família que nos queriam bem. Apetecia-te escrever sobre como as pessoas deixavam tanta comida no prato e umas notas de dólar amarfanhadas, como se fossem uma oferenda, uma expiação pela comida desperdiçada. Apetecia-te escrever sobre a criança que começou aos berros e a puxar pelo seu cabelo louro e a varrer os menus das mesas para o chão e cujos pais, em vez de a obrigarem a calar-se, lhe imploraram que parasse, a ela, uma criança de talvez cinco anos, e depois levantaram-se todos e foram-se embora. Apetecia-te escrever sobre as pessoas ricas que usavam roupas desleixadas e ténis gastos, que pareciam os guardas-noturnos dos grandes condomínios em Lagos. Apetecia-te escrever que os americanos ricos eram magros e os americanos pobres eram gordos e que muitos não tinham grandes casas e grandes carros; ainda não tinhas bem a certeza quanto às armas, porque podia ser que eles as trouxessem nos bolsos. Não era só aos teus pais que te apetecia escrever, era também aos teus amigos, aos teus primos, às tuas primas, às tuas tias e aos teus tios. Mas nunca conseguias arranjar dinheiro para perfumes e roupas e malas de mão e sapatos para lhes mandar e continuar a pagar a renda com o que ganhavas a servir às mesas, por isso não escrevias a ninguém. Ninguém sabia onde estavas, porque não tinhas dito a ninguém. 169
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fechados quando te faziam aquelas perguntas. O teu tio dissete que contasses com aquilo, uma mistura de ignorância e arrogância, foi o que ele lhe chamou. Depois contou-te que os vizinhos tinham dito, uns meses depois de ele se ter mudado para aquela casa, que os esquilos tinham começado a desaparecer. Tinham ouvido dizer que os Africanos comiam todo o tipo de animais selvagens. Riste-te com o teu tio e sentiste-te à vontade na casa dele; a mulher dele chamava-te nwanne, irmã, e os seus dois filhos, em idade escolar, chamavam-te Titi. Falavam igbo e comiam garri ao almoço e era como em casa. Até o teu tio vir à cave atravancada onde dormias com caixotes velhos e embalagens e te apertar à força contra si, apertando-te as nádegas e gemendo. Ele não era verdadeiramente teu tio; na realidade, era irmão do marido da irmã do teu pai; não havia laços de sangue. Depois de o empurrares, ele sentou-se na tua cama—ao fim e ao cabo, a casa era dele—e sorriu e disse que aos vinte e dois anos já não eras propriamente uma criança. Se tu deixasses, ele faria muitas coisas por ti. As mulheres espertas era o que faziam. Como é que julgavas que aquelas mulheres em Lagos com empregos bem pagos chegavam lá? Até mesmo as mulheres na cidade de Nova Iorque? Fechaste-te à chave no quarto de banho até ele voltar lá para cima e na manhã seguinte foste embora, a pé pela longa estrada sinuosa, sentindo o cheiro a peixe que vinha do lago. Viste-o passar por ti de carro—ele costumava dar-te boleia até à Main Street—e ele nem sequer buzinou. Pensaste o que é que ele diria à mulher, que razão daria para te teres ido embora. E recordaste o que ele te tinha dito, que a América era dar-e-receber. Acabaste no Connecticut, noutra pequena cidade, porque era a última paragem do autocarro Greyhound que tinhas apanhado. Entraste no restaurante com o toldo limpo e de cores vivas e disseste que trabalharias por dois dólares menos do que as outras empregadas de mesa. O gerente, Juan, tinha cabelo preto asa de corvo e ao sorrir mostrou um dente de ouro. Disse que nunca tinha tido uma empregada nigeriana, mas que todos os imigrantes trabalhavam no duro. Ele sabia, já por lá tinha passado. Pagar-te-ia menos um dólar, mas sem recibos; não lhe agradavam todos os impostos que andavam a obrigá-lo a pagar. Não tinhas posses para frequentar uma escola, porque agora pagavas renda por um quartinho minúsculo com uma alcatifa manchada. Além disso, aquela pequena cidade do Connecticut não tinha um instituto público e as propinas na universidade estatal eram demasiado caras. Por isso, foste à biblioteca pública, procuraste os programas de cursos nos sites de algumas escolas e foste lendo alguns dos livros. Por vezes, ficavas sentada no colchão aos altos da tua cama de solteiro e pensavas na tua terra—nas tuas tias que vendiam peixe seco e bananas-da-terra, aliciando clientes para que lhos comprassem e berrando insultos quando eles não compravam nada; nos teus tios, que
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com ele, porque o teu nome rimava com hakuna matata e O Rei Leão era o único filme lamechas de que ele alguma vez tinha gostado. Tu não sabias o que era O Rei Leão. Olhaste para ele à luz forte e reparaste que os seus olhos eram da cor do azeite extravirgem, de um dourado esverdeado. O azeite extravirgem era a única coisa que adoravas, que verdadeiramente adoravas na América. Ele era finalista na universidade estatal. Dissete a idade e tu perguntaste porque é que ele ainda não tinha tirado o curso. Estava-se na América, afinal, não era como no teu país, onde as universidades fechavam com tanta frequência que as pessoas acrescentavam três anos à duração normal do seu curso e os professores faziam greve atrás de greve e mesmo assim não eram pagos. Ele disse que tinha tirado dois anos para se descobrir a si mesmo e para viajar, principalmente em África e na Ásia. Perguntastelhe onde é que ele tinha acabado por se encontrar e ele riu-se. Tu não te riste. Não sabias que as pessoas podiam simplesmente optar por não estudar, que as pessoas podiam ditar a sua própria vida. Estavas habituada a aceitar o que a vida te dava, a escrever o que a vida ditava. Disseste não nos quatro dias seguintes ao convite para sair com ele, porque te sentias incomodada com a maneira como ele olhava para o teu rosto, aquela maneira intensa e ardente como ele olhava para o teu rosto que te fazia dizer-lhe adeus, mas que também te fazia sentir relutância em te afastares. E depois, na quinta noite, entraste em pânico quando ele não apareceu à porta no fim do teu turno. Rezaste pela primeira vez em muito tempo e quando ele te apareceu pelas costas e disse olá, tu disseste que sim, que sairias com ele, mesmo antes de ele te convidar. Tiveste medo de que ele não voltasse a convidar-te. No dia seguinte, ele levou-te a jantar ao restaurante chinês Changs e o teu bolinho da sorte tinha dois papéis. Ambos estavam em branco. Soubeste que já te sentias à vontade com ele quando lhe disseste que vias o Jeopardy na televisão do restaurante e que torcias pelos seguintes concorrentes, por esta ordem: mulheres de cor, homens negros e mulheres brancas e, por fim, homens brancos—o que significava que nunca torcias por homens brancos. Ele riu-se e dissete que estava habituado a que não torcessem por ele, a mãe era professora de Estudos da Mulher. E soubeste que se tinham tornado íntimos quando lhe disseste que o teu pai não era realmente professor em Lagos, que era motorista numa empresa de construção. E falaste-lhe sobre aquele dia no trânsito de Lagos, no Peugeot 504 todo desconjuntado do teu pai; estava a chover e o teu assento estava molhado por causa do buraco no tejadilho corroído pela ferrugem. O trânsito estava intenso, o trânsito era sempre intenso em Lagos, e quando chovia era um caos. As estradas tornavam-se poças lamacentas e os carros ficavam atolados e alguns dos teus primos iam para a rua e ganhavam algum dinheiro a desatolá-los. A chuva, a humidade, achaste tu, fez com que o teu pai travasse 171
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Por vezes, sentias-te invisível e tentavas atravessar a parede do teu quarto para o corredor e quando batias contra a parede ficavas com nódoas negras nos braços. Uma vez, o Juan perguntou-te se tinhas um homem que te batesse, que ele tratava-lhe da saúde, e tu soltaste uma gargalhada misteriosa. À noite, algo se apertava à volta do teu pescoço, algo que quase te sufocava antes de adormeceres. Muitas pessoas no restaurante te perguntavam quando tinhas vindo da Jamaica, porque pensavam que qualquer pessoa negra com sotaque estrangeiro era da Jamaica. Outras, que adivinhavam que eras africana, diziam-te que adoravam elefantes e que queriam fazer um safári. Por isso, quando ele te perguntou à meia-luz do restaurante, depois de lhe recitares os pratos do dia, de que país africano eras, tu disseste que eras da Nigéria e ficaste à espera de que ele dissesse que tinha feito um donativo para combater o SIDA no Botsuana. Mas ele perguntou-te se eras ioruba ou igbo, porque não tinhas cara de fulani. Ficaste surpreendida—pensaste que ele devia ser professor de Antropologia na universidade estatal, talvez um pouco novo aos vinte e muitos anos, mas quem sabia? Igbo, disseste tu. Ele perguntou-te o nome e disse que Akunna era bonito. Ainda bem que não perguntou o que queria dizer, porque tu estavas farta de ouvir as pessoas dizerem:—"Riqueza de Pai"? Quer dizer, tipo, o seu pai vai vendê-la a um marido? Ele dissete que tinha estado no Gana, no Uganda e na Tanzânia, que adorava a poesia de Okot pBitek e os romances de Amos Tutuola e que tinha lido muito sobre países africanos subsarianos, sobre a sua história, as suas complexidades. Tu querias sentir desdém, mostrar-lho quando lhe trouxeste a comida, porque as pessoas brancas que gostavam demasiado de África e as que gostavam a menos de África eram a mesma coisa—condescendentes. Mas ele não abanou a cabeça com o ar de superioridade do professor Cobbledick no instituto público no Maine durante um debate na aula sobre a descolonização em África. Não tinha aquela expressão do professor Cobbledick, aquela expressão de uma pessoa que se acha melhor do que as pessoas sobre as quais sabe alguma coisa. Voltou no dia seguinte e sentou-se à mesma mesa e quando lhe perguntaste se o frango estava bom, ele perguntou-te se tinhas crescido em Lagos. Chegou no terceiro dia e começou logo a conversar antes de pedir a comida, sobre como tinha visitado Bombaim e agora queria visitar Lagos, para ver como viviam as pessoas reais, tipo nos bairros de lata, porque ele nunca fazia aquelas palermices típicas de turista quando ia ao estrangeiro. Fartou-se de falar e tu tiveste de lhe dizer que era contra as regras do restaurante. Tocou-te na mão quando pousaste o copo com água na mesa. No quarto dia, quando o viste chegar, disseste a Juan que não querias aquela mesa. Depois do teu turno naquela noite, ele estava à tua espera cá fora, com os auscultadores colados aos ouvidos, e convidou-te para ires sair
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depois perguntou-lhe:—Tem namorada em Xangai agora?—e ele sorriu e não disse nada. Perdeste a vontade de comer, aquele espaço no mais fundo do teu peito ficou entupido. Nessa noite, não gemeste quando ele estava dentro de ti, mordeste os lábios e fingiste que não te vieste, porque sabias que ele ficaria preocupado. Mais tarde, dissestelhe porque é que estavas incomodada, que embora fossem juntos tantas vezes ao Changs, embora se tivessem beijado mesmo antes de lhes trazerem o menu, o homem chinês tinha partido do princípio de que tu não podias de modo nenhum ser a sua namorada, e ele tinha sorrido e não tinha dito nada. Antes de te pedir desculpa, ele fitou-te com um olhar inexpressivo e tu soubeste que ele não compreendia. Comprava-te presentes e quanto tu objetaste por causa da despesa ele disse que o seu avô de Boston tinha sido um homem rico, mas acrescentou à pressa que o velho senhor dera uma grande parte da sua fortuna e que, por isso, a sua herança não era enorme. Os seus presentes intrigavam-te. Uma bola de vidro do tamanho de um punho, que, quando se abanava, mostrava uma boneca minúscula e perfeita vestida de cor-de-rosa a rodopiar. Uma pedra brilhante cuja superfície adquiriria a cor daquilo que a tocasse. Um lenço caro pintado à mão no México. Por fim, disseste-lhe, com a voz lânguida de ironia, que na tua vida os presentes eram sempre úteis. A pedra, por exemplo, teria utilidade se pudesses triturar coisas com ela. Ele riu-se muito e durante muito tempo, mas tu não te riste. Compreendeste que na vida dele, ele podia comprar presentes que eram só presentes e nada mais, nada de útil. Quando ele começou a comprar-te sapatos e roupas e livros, pediste-lhe que não o fizesse, não querias presentes nenhuns. Mas ele continuou a comprá-los e tu guardaste-os para os teus primos e as tuas primas e os teus tios e as tuas tias, para quando um dia pudesses ir de visita a casa, embora não soubesses como poderias alguma vez ter dinheiro para comprar um bilhete de avião e pagar a renda de casa. Ele disse que queria mesmo conhecer a Nigéria e que podia pagar para irem os dois. Tu não querias que ele pagasse para tu ires de visita a casa. Não querias que ele fosse à Nigéria, para a acrescentar à lista dos países aonde ele ia para olhar embasbacado para as vidas das pessoas pobres que nunca poderiam olhar embasbacadas para a vida dele. Disseste-lhe isto num dia de sol, quando ele te levou a ver o Estuário de Long Island, e vocês os dois discutiram, levantando a voz, enquanto caminhavam ao longo das águas calmas. Ele disse que tu estavas errada ao chamar-lhe "arrogante". Tu disseste que ele estava errado ao chamar apenas aos indianos pobres de Bombaim indianos de verdade. Isso queria dizer que ele não era um americano de verdade, já que não era como os gordos pobres que tu e ele viam em Hartford? Ele começou a andar mais depressa à tua frente, com o tronco nu e pálido, as chinelas a levantarem areia, mas depois voltou para trás e estendeu as suas mãos para as 173
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demasiado tarde naquele dia. Ouviste o choque antes de o sentires. O carro em que o teu pai embateu era grande, estrangeiro, e verde-escuro, com faróis dourados como os olhos de um leopardo. O teu pai começou a gritar e a suplicar ainda antes de sair do carro e de se deitar ao comprido na estrada, provocando muitas buzinadelas. Desculpe, senhor, desculpe, senhor, choramingava. Nem que me vendesse a mim e à minha família não conseguiria comprar nem um pneu do seu carro. Desculpe, senhor. O Grande Homem sentado no banco traseiro não saiu do carro, mas o seu motorista sim; examinou os estragos e olhou para a figura estendida do teu pai pelo canto do olho, como se a súplica fosse uma pornografia, um espetáculo que ele tivesse vergonha de confessar que apreciava. Por fim, deixou ir o teu pai. Dispensou-o com um aceno. Os outros carros buzinaram e os seus condutores praguejavam. Quando o teu pai voltou a entrar no carro, recusaste-te a olhar para ele, porque ele estava tal e qual como os porcos que chafurdavam nos pântanos à volta do mercado. O teu pai parecia um monte de nsi. Um monte de merda. Depois de lhe teres contado isto, ele franziu os lábios, pegou-te na mão e disse que compreendia como te sentias. Soltaste a mão, subitamente irritada, porque ele pensava que o mundo estava ou devia estar cheio de gente como ele. Disseste-lhe que não havia nada para compreender, era como era. Ele encontrou a loja africana nas páginas amarelas de Hartford e levou-te lá de carro. Devido à maneira como andava pela loja com familiaridade, inclinando a garrafa de vinho de palma para ver quanto sedimento tinha, o proprietário da loja, que era do Gana, perguntou-lhe se ele era africano, como os quenianos ou os sul-africanos brancos, e ele disse que sim, mas que já estava na América há muito tempo. Pareceu satisfeito por o lojista ter acreditado nele. Tu cozinhaste nessa noite com as coisas que tinhas comprado e ele, depois de comer garri e sopa de onugbu, vomitou no teu lava-louças. Não te importaste, porque agora poderias fazer sopa de onugbu com carne. Ele não comia carne, porque achava que a maneira como matavam os animais estava errada; dizia que libertava toxinas de medo nos animais e que as toxinas de medo tornavam as pessoas paranoicas. Na Nigéria, os pedaços de carne que comias, quando havia carne, eram do tamanho de metade de um dedo. Mas não lhe disseste isso. Também não lhe disseste que os cubos de dawadawa com que a tua mãe cozinhava tudo, porque o caril e o tomilho eram demasiado caros, tinham glutamato monossódico, eram glutamato monossódico. Ele disse que o glutamato monossódico provocava o cancro; era por essa razão que ele gostava do Changs; no Changs não cozinhavam com glutamato monossódico. Uma vez, no Changs, ele disse ao empregado de mesa que estivera recentemente em Xangai, que falava um pouco de mandarim. O empregado pôs-se todo simpático e disse-lhe qual era a melhor sopa e
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chorar. Ficaste a ver a água a dissolver as tuas lágrimas e não sabias porque é que estavas a chorar. Escreveste finalmente para casa. Uma carta breve aos teus pais, enfiada entre as notas de dólares novas, e incluíste o teu endereço. Recebeste uma resposta poucos dias depois, por correio expresso. Foi a tua mãe que escreveu a carta; soubeste-o por causa da letra cheia de arabescos, por causa dos erros de ortografia. O teu pai tinha morrido; tinha tombado em cima do volante do carro da empresa. Há cinco meses, escreveu ela. Tinham-lhe feito um bom funeral com algum do dinheiro que tu enviavas. Mataram um cabrito para os convidados e sepultaram-no num bom caixão. Enroscaste-te na cama, com os joelhos contra o peito, e tentaste lembrar-te do que estavas a fazer quando o teu pai morreu, do que tinhas andado a fazer durante todos os meses em que ele já estava morto. Talvez o teu pai tivesse morrido no dia em que ficaste com a pele toda arrepiada, algo que não sabias explicar, com Juan a pegar contigo, a dizer que era melhor tu ires substituir o cozinheiro para o calor da cozinha te aquecer. Talvez o teu pai tivesse morrido num dos dias em que foste de carro a Mystic ou em que foste ao teatro em Manchester ou em que foste jantar ao Changs. Ele abraçou-te enquanto tu choravas, fez-te festas na cabeça e ofereceu-se para te comprar um bilhete, para ir contigo visitar a tua família. Disseste que não, que precisavas de ir sozinha. Ele perguntou-te se voltavas e tu lembraste-lhe que tinhas uma autorização de residência e que a perderias se não regressasses dentro de um ano. Ele disse que tu sabias o que ele queria dizer, se voltavas mesmo? Viraste-lhe as costas e não disseste nada, e quando ele te levou ao aeroporto deste-lhe um abraço apertado durante um longo, longo momento, e depois soltaste-te.
Traduzido do inglês para português por Ana Saldanha. Agradecimento pela cedência dos direitos da publicação à D. Quixote, Grupo Leya.
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A Coisa à Volta do Teu Pescoço
tuas. Fizeram as pazes e fizeram amor e passaram as mãos pelo cabelo um do outro, o dele macio e amarelo como os pendões de milho, o teu escuro e fofo como o enchimento de uma almofada. Ele tinha apanhado demasiado sol e a sua pele ficou da cor de uma melancia madura e tu beijaste-lhe as costas antes de lhe aplicares loção. A coisa que se apertava à volta do teu pescoço, que quase te sufocava antes de adormeceres, começou a alargar-se, a desfazer-se. Sabias, pelas reações das pessoas, que vocês os dois não eram normais—pela maneira como as pessoas horríveis eram demasiado horríveis e as pessoas simpáticas demasiado simpáticas. As velhas e os velhos brancos que resmungavam e arregalavam os olhos para ele, os homens negros que abanavam a cabeça, olhando para ti, as mulheres negras cujos olhos de piedade lamentavam a tua falta de autoestima, o teu autodesprezo. Ou as mulheres negras que te dirigiam sorrisos rápidos de solidariedade; os homens negros que se esforçavam demasiado por te perdoar, dizendo um olá demasiado óbvio a ele; as mulheres e os homens brancos que diziam:—Que par tão bonito!—com demasiada vivacidade, demasiado alto, como se quisessem provar a sua abertura de espírito a si próprios. Mas os pais dele eram diferentes; quase te fizeram pensar que era tudo normal. A mãe dele dissete que ele nunca tinha trazido uma namorada para os conhecer, a não ser o seu par do baile de finalistas do liceu, e ele sorriu contrafeito e deu-te a mão. A toalha da mesa escondia as vossas mãos dadas. Ele apertou-te a mão e tu apertaste a dele e perguntaste-te porque é que ele estaria tão contrafeito, com os seus olhos da cor de azeite extravirgem que escureciam enquanto falava com os pais. A mãe dele ficou encantada quando te perguntou se tinhas lido Nawal el Saadawi e tu disseste que sim. O pai dele perguntou-te se a comida indiana era parecida com a comida nigeriana e brincou contigo por causa do pagamento quando veio a conta. Olhavas para eles e sentias-te grata por eles não te examinarem como um troféu exótico, como um dente de marfim. Depois, ele falou-te dos problemas que tinha com os pais, de como eles repartiam o seu afeto como um bolo de aniversário, de como só lhe dariam uma fatia maior se ele concordasse em ir estudar Direito. Querias mostrar compreensão. Mas em vez disso ficaste furiosa. Ficaste ainda mais furiosa quando ele te disse que tinha recusado ir para o Canadá com eles passar uma ou duas semanas na casa de férias deles no interior do Quebeque. Até lhe tinham pedido que te levasse com ele. Ele mostrou-te fotografias da casa de férias e tu perguntaste-te porque é que lhe chamavam casa de férias, porque os edifícios daquele tamanho no teu bairro na Nigéria eram bancos e igrejas. Deixaste cair um copo e ele estilhaçou-se no soalho de madeira do apartamento dele e ele perguntou-te qual era o problema e tu não disseste nada, embora pensasses que havia muitos problemas. Mais tarde, no duche, começaste a
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