Personificação de Barbus

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PERSONIFICAÇÃO DE BARBUS . Floriano Martinhs - João Pinheiro .



Floriano Martins texto e fotografias

João Pinheiro ilustrações e montagem


1.

S

empre que ela me toca é como se refletisse somente a si mesma. Uma luz faminta devorando as estações, as posições do corpo, as árvores ignotas que conservo na memória. Busco as pontes levadiças de sua obscuridade perdida. Ela tem sido o meu cúmulo do mistério. Eu me curvo para adentrar sua mandala, um livro posto na cabeceira do sol e outro acariciando o abismo com suas páginas passageiras dos ventos noturnos. Não me esqueço de amar o vulto que cai, o rio que bebe a própria cauda, a flor vagando pelos resquícios da casa. Sempre que ela me toca eu reflito acerca do passado que ainda me resta.



2.

À

noite ela se converte em uma crença, história de fantasmas, lenda. Repete amuletos e olhos solitários. Repete o milagre da clarividência. Repete a trama picaresca com que me cavalga pela casa toda. Tinge o espaço que habitamos com seu jogo como se fosse um céu ainda em casulo. As cores aguardando serem transcritas para a linguagem de gozo das visões. Meu corpo reconhecendo seu parentesco com a devoção. Ante a escada que separa dois quartos acena com a euforia de quem se reconhece em outro. — Aqui, onde estamos, venha nos ver. A pequena voz masca a erva de sua avidez.



3.

Q

uem pensaria em contar os degraus ao descer uma escada? Sequer reconhecemos sua ambígua direção. Do outro lado eu a vejo lavando o chão com as escamas cintilantes, uma vez mais refletindo a si mesma. Porém agora me vejo como parte de seu enigma, resumo do universo em caracteres que sobem e descem por meu corpo. Descubro-me o zodíaco de suas inquietudes, livro vital, e me deixo tragar por seu olhar. A paisagem é uma arbitrariedade do desejo. Vejo aquilo que me escolhe e me transformo em semelhanças aflitivas. A luz não mais acaricia o abismo e sim as hóstias da loucura, os círculos amontoados de tua hipnose.



4.

O

s ângulos da paisagem são quebrados em silêncio. Quanto maior a necessidade de interpretá-los, mais eles se partem. São acessórios de sua ideia dominante do mundo. A quem interessa esconder os diagramas da ilusão? Eu quero escolher os meus lugares. Eu quero dar conta da forma que imagino ser minha. Eu gosto de me sentir devotada a mim mesma. Ao sair do casulo o céu perdeu-se de si, e levou consigo a cor que poderia ser a chave de nosso desaparecimento, de meu refúgio, de tua ambiguidade. Os símbolos se contorcem quando cruzam o deserto.



5.

E

u me retraio. Há muito não me sinto distanciado dessas paredes. Cuidei de evitar sua destruição: pajear a visita dos ventos, entregarme às minúcias da luz, amar-me em sigilo, sendo todos em mim. Jamais sonhei com outros mundos ou fiz parte da destruição universal. E agora essa garganta quer despedaçar meu silêncio. Como alguém pode se sentir penetrado por um desfiladeiro? Eu me retraio. Eu não quero combater. Nada em mim aceita se tornar herói.



6.

A

casa agora se multiplica em formas imaginativas da devoração. Os olhos se convertem em bocas. Há bocas por toda parte. Olho meu corpo, até onde posso vê-lo, como há recolhido todas as duplicações, como se contivesse um espelho em si. Vago travestido pela casa, sem que me reconheça mais na totalidade de meu ser. Talvez tenha sido replicado pela luz, convertido em um modo apropriado ao leque da analogia. Vim aqui para livrar-me de meus disfarces e o mundo me quer de volta. Não há como escapar de si mesmo?



7.

O

lhem bem ao fundo a espiral que deixo para trás. Reuni os artifícios que me invadiram o ninho e com eles esboço uma espiga. Este sou eu agora, sem que me preocupe quanto tempo dure. Somei os atributos de aspectos que sempre me soaram alheios ao espírito. Não sei o que vou enfrentar, nem tenho êxtase ou angústia diante do que deve haver fora daqui. Uma persuasão do acaso? Maldição do estrangeiro? Uma oportunidade de vida? Desço a escada. Masco o anseio indisfarçável de meu olhar. Toco meu estômago como quem tateia o percurso do abismo em si mesmo. Sinto-me ao ponto de ser todos.



. Floriano Martinhs - Jo達o Pinheiro . 2013/2014


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