reticências... um conto de João Wesley
Fotos de capa Madalena Veloso e Herr Stahlhoefer Manipulação e edição João Wesley Capa João Wesley Diagramação João Wesley Revisão João Wesley Encontre o autor nas redes sociais Instagram: @joaowads Twitter: @joaojoaojoaow Medium: @joaowads Florianópolis, agosto de 2019
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reticências... Inspirada na letra da música Good Guy, de Frank Ocean
Talvez eu ganhe um Pulitzer por estas reportagens. Penso isso sorrindo assim que envio o que deve ser a última versão do meu texto para a editora chefe. É uma série de reportagens com pequenos perfis de usuários do transporte público de Florianópolis. Fiquei um mês pegando em média 8 ônibus por dia. Acredite quando eu digo que as pessoas criaram uma rotina dentro dos coletivos. Um dos entrevistados contou que começou a namorar dentro do Tapera/TITRI, desde conhecer a namorada até o primeiro encontro e a primeira briga. Passei por lugares da cidade que nunca imaginei que pudessem existir. Dei o meu melhor, mas me sinto cansado. O barulho de sapatos saltos altos no andar de cima me desperta. Fecho a tampa do notebook e respiro fundo enquanto relaxo na cadeira. Tiro meu celular do bolso, e pela centésima vez nas últimas semanas, abro a última mensagem que Raí me mandou e eu nunca respondi: “eu te amei em segredo”. O barulho dos sapatos no andar de cima me desperta mais uma vez e me faz levantar da cadeira para ir embora. Antes decido passar na sala reticências...
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da chefe. — Acabei de te enviar a reportagem. Você viu? — digo após abrir a porta. Meu corpo fica do lado de fora da sala, mas a cabeça na parte de dentro, entre a soleira e a porta. Planejo ficar apenas uns segundos. — Sim. — Ela diz levantando-se da cadeira. — Entre, por favor. — É a primeira vez que Michela é educada comigo desde que entrei na redação da revista. — Mas ainda está sem título. Fico em frente à sua mesa, com meus braços colados ao corpo, os dedos entrelaçados e a postura impecável. Sou invejado pelos meus colegas de trabalho que dizem que jornalista não tem postura impecável. Observo o móvel: conto 7 canetas, vejo uma edição da revista Realidade, o computador aberto no nosso site e um porta retrato mostrando uma foto de Michela e sua esposa. — Você não gosta dos títulos que eu escolho. Sempre muda-os. — Respondo, na defensiva. Ela dá um sorriso cínico, talvez querendo dizer que está certa ao fazer as mudanças. — Você realmente fez um ótimo trabalho. Pode tirar uma semana de folga. Meu sorriso sai amarelo pois não quero que ela saiba o quanto eu estou feliz. Agradeço e saio da sala. Neste momento, tenho um bom pressentimento. — Engraçado… Michela concordou em usar as fotos que eu queria. — eu encontro Hebert no lado de fora parado no bebedouro. Uma tiara doma seus cachos rebeldes e os ombros largos e braços fortes quase estourando sua usual camiseta preta básica. O suor escorre pela sua têmpora mesmo estando numa sala climatizada. Talvez ele tenha acabado de voltar da rua. Hebert foi o fotógrafo que cobriu as reportagens comigo. — Ela disse que fiz um ótimo trabalho. Me deu uma semana de folga. Desde que eu entrei aqui nunca tive semana de folga, sabe? — continuo a dizer. — Pra mim também e por isso acho que a gente devia ir no bar. — Qual bar? — tento forçar uma animação. Mas tudo o que eu quero é uma massagem na minha panturrilha e dormir até recuperar o sono mal dormido de um mês. — Não sei… Algum do Centro. 4
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— Pensei em ir em casa antes. Tomar um banho e trocar de roupa. — Ai, perda de tempo. E você demora muito para ficar pronto! Não sei dizer não. 6 minutos depois e eu estou dentro do carro de Hebert. São 20h43m e o céu de Florianópolis dá um espetáculo. A Ilha da Magia me encanta. Já é maio e estamos no outono, mas o termostato quebrado da cidade nos dá 26 graus. Não há ar-condicionado no carro de Hebert. Ele põe a culpa no fato de ser jornalista. Eu entendo ele. Demora 19 minutos para sairmos da redação e Hebert parar em frente ao Blues Velvet Bar. Tempo suficiente para não me fazer mudar de ideia e voltar pra casa. Depois da Praia da Armação, Blues é meu lugar favorito em Florianópolis. No tempo que ficou fechado eu me tornei a pessoa mais triste da Ilha. Foi reinaugurado recentemente, mas ainda não tinha voltado lá. Hebert sabe que eu amo esse lugar. Ele desliga o carro e olha pra mim enquanto tira a chave da ignição, dizendo que vai pagar um drink para mim. Não gosto quando decidem pagar por mim mesmo eu tendo dinheiro, mas desta vez eu não reclamo. Agradeço com um sorriso enquanto dobro a manga da minha camiseta. Saímos do carro e antes de entrar no bar, Hebert me diz: — O zíper da sua calça está aberto. Devo ter saído do banheiro às pressas. Mas a frase do zíper é a que Hebert mais fala para mim. Parece que nós abrimos o bar. Há apenas três pessoas além de nós. Elas estão no meio da pista, dançando alguma música que não conheço. O DJ parece desanimado e as paredes renovadas dão um contraste com a fachada do bar que dá impressão que seja um boteco. O cheiro de chop me irrita um pouco. — Esse lugar… — Hebert diz se encostando em uma parede. — alternativo demais para mim. Underground. Boêmio. — Você poderia simplesmente ter dito que não queria vir. — Mas eu gosto das pessoas que frequentam aqui. — Ele se explica enquanto digita no celular. — Convidei a Lorena. Ela já tá quase chegando. — antes de respondê-lo, ele continua: — Você devia convidar alguém também. — E guarda o celular no bolso. — Eu não tenho ninguém para convidar. E quem é Lorena? — Uma linda mulher. Estou saindo com ela há um mês. reticências...
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— Como você está saindo com ela há um mês se ficamos juntos a maior parte do tempo? Por que você não me falou nada sobre ela? E o que aconteceu com o Anderson? — Ah… são muitas perguntas de uma só vez. Você é um péssimo jornalista. — Você tamb… — Não estou exatamente saindo com ela. — Ele me interrompe. — Conheci-a há um mês, numa festa. Trocamos telefone, mas ainda não conseguimos nos ver de novo. Não te falei nada pois poderia ser algo que significasse tudo ou significasse nada. Ele fica em silêncio por uns segundos. Ainda espero a resposta sobre o Anderson. — Hum… — respondo, lhe dando uma cara de insatisfação. — Eu e Anderson terminamos por incompatibilidades astrológicas. Ele decidiu que sagitarianos não eram para ele. A única reação que tenho é dá uma gargalhada justamente quando Heroes, de David Bowie, acaba e o bar fica num silêncio mórbido. Hebert usa essa mesma desculpa para justificar muitos dos seus erros e fim de relacionamentos. Incompatibilidades astrológicas. — Dessa vez eu não estou brincando. — Hebert continua. — Estávamos falando sobre ciúmes. Ele é virginiano. Acho que isso significa que não poderíamos dá certo. — Mas vocês deram certo nos meses que ficaram juntos, não é? — pergunto. — Teoricamente, sim — falou sem muita convicção. — Fui triste por uma semana. Ainda sou triste, mas não demonstro. Estou tapando buracos conhecendo outras pessoas. Prefiro não responder nada. Hebert vai se ofender se eu disser que não vai adiantar muito o esforço para superar o que ele viveu com o Anderson. É estúpido da parte dele fazer isso. E é mais estúpido eu falar isso para ele. Eles ficaram juntos por 8 meses. Terminaram e voltaram tantas vezes que o drama do término e dias depois a alegria da reconciliação me irritava. Às vezes ele me culpava por seguir os conselhos que eu dava. No final, eles vão acabar voltando um para o outro. — Sinta sua dor de forma consciente, ok? Cuidado com seus espi6
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rais... e volte para a terapia. — Respondo. — Lorena acabou de chegar. — ele diz após uns segundos de silêncio. Eu lanço meus olhos para a porta de entrada. Vejo uma mulher sorrindo e acenando em nossa direção. Deve ser ela. O cabelo afro puff duplo com pequenas mechas brancas se diferencia na luz néon. Sorrindo, ela vem até nós usando um brinco de cruz combinado a um batom preto. Veste uma camiseta branca básica, que está por dentro de uma calça jeans de lavagem clara. Ela é linda. — Lorena acha que é engraçada. Então, por favor, pode fingir que sim? — Hebert avisa no meu ouvido antes dela chegar. Depois de um beijo no rosto de Hebert, ela diz: — Não tá tocando blues nesse bar. Então eu me forço a rir. — Oi, este é o William. Gosto de chamá-lo de Pacheco. E esta é Lorena— Hebert nos apresenta. — O famoso William Pacheco da reportagem sobre o trânsito em Floripa. Eu amei! — Lorena responde entusiasmada. Sua voz é doce e sai entoada no sotaque manezinho. — Me senti tão representada pois o Consórcio Fênix falha comigo. — Você já mostrou a ela? — pergunto a Hebert, um pouco abismado. — Só as fotos e alguns trechos do texto. — Você escreve muito bem. Espero que ganhe um Pulitzer. Me pergunto se essa não é algumas das piadas de Lorena que Hebert mandou eu fingir que são engraçadas. Talvez ele tenha contado nossa piada interna sobre ganharmos um Pulitzer juntos toda vez que terminamos uma reportagem. Dou um sorriso amarelo e respondo: — Agora não vai ter pra ninguém... Finalmente seremos respeitados lá fora. — Até lá, só vou te respeitar quando tiver uma bebida em sua mão. — Hebert me ameaça. Meu celular começa a vibrar no bolso. Ignoro. — Talvez eu possa... ir buscar uma bebida. — respondo. Hebert e Lorena reagem com o rosto animado. — Precisam de algo? — Preciso que vá buscar uma bebida para você. — Hebert responde reticências...
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maliciosamente. — Você é um otário. — Dou as costas e vou até o bar. O barman é muito bonito. Um homem com seus 30 anos, pele beijada pelo sol e a cabeça raspada, mas preenchida com alguns fios milimétricos. Usa um avental preto e uma camiseta branca e sorri ao me vê indo em sua direção. — Oi…! — digo, retribuindo o sorriso. — Tô te olhando desde quando tu chegou. Eu não esperava por essa resposta, mas decido entrar no jogo dele. — Pra quem eu denuncio funcionários que flertam com os clientes? — digo fingindo estar irritado. — Não temos diretrizes assim aqui na casa — ele se defende. — Então eu vou ficar bem orgulhoso de ter adicionado uma regra num estabelecimento comercial. É proibido flertar com clientes bonitos. — Eu respondo com a cabeça erguida. Minhas mãos performam aspas no ar enquanto digo a última frase, fazendo ele dar uma risada contida. — Eu quero o drink que você mais gosta de fazer — peço. — Então tu vais conhecer o Sex on The Beach. Tem suco de laranja. — Deu um sorriso e virou as costas. Não dá tempo de respondê-lo que uma vez bebi esse drink e não gostei. Meu celular volta a vibrar. Tiro-o do bolso. A tela se ilumina sozinha, avisando que recebi mais uma mensagem. Tenho 18 conversas pendentes, ignoro todas e abro a mais recente, com 12 mensagens de Elias. ELA ACORDOU HOJE DE MANHÃ A MEMÓRIA INTACTA ela quer te ver estamos em horário de visita ME ATENDE! WILLIAN!!!!!!!!!!!!!!!!1
Há uma foto também: minha melhor amiga deitada num leito de hospital. E dois áudios. Dou play e coloco o celular no ouvido. No primeiro Isis diz “Parece que eu estou viva”, e no segundo “Você vem me 8
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ver ainda hoje? Elias me contou sobre um tal boy do Rio de Janeiro”. Quando abro o Uber e coloco o endereço do Hospital Celso Ramos, o barman reaparece. — Está aqui, por conta da casa. — junto com o copo há um pedaço de papel com seu nome e número de telefone. — Não precisava disso… mas eu com certeza vou te ligar… — me corrijo: — te mandar uma mensagem… talvez duas… Preciso ir agora, Higor. Vou embora antes que ele continue a conversa. Não é que eu não tenha gostado de flertar com o barman, ele realmente é muito bonito e com certeza mandarei mensagem. Mas quando recebo a notícia que minha melhor amiga acordou do coma, tudo no mundo passa a girar ao redor disso. — Flertei com o cara dos drinks. Ele me deu esse Sex on The Beach, mas eu odeio — volto para Hebert e Lorena. — Hebert, eu preciso ir embora. Isis acordou. — O rosto de Hebert se acende. — Quê? Agora? — Elias me mandou umas mensagens faz uns minutos. Foto e áudios dela. Eu já chamei um Uber. — Vá logo! — ele diz tirando o copo da minha mão. — Espero que a gente se encontre mais vezes — digo colocando a mão no ombro de Lorena. — A gente se vê. Passo pelas pessoas pedindo licença. Curiosamente, o motorista já está lá fora me esperando. Talvez esse seja o carro mais rápido que apareceu pra mim. — Boa noite! Sou o William… — me apresento com o corpo inclinado para que meu rosto apareça na janela. — Pode entrar! — O motorista convida. — Abro a porta e me sento desajeitadamente. — Vais pro hospital da UFSC, então? — Não, não… é no Celso Ramos. Eu coloquei errado? — Parece que sim. Mas eu posso te levar no Celso Ramos por 10 reais. Tu é minha última corrida do dia e o hospital é em direção a minha casa. Podes cancelar a corrida. — Muito obrigado. — Não me sinto totalmente seguro em fazer asreticências...
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sim, mas eu não vou esperar mais uns minutos por outro carro. Mando minha localização em tempo real para Hebert e explico o que aconteceu. — Podes colocar o cinto, por favor? — O motorista pede quando dá partida no carro. — Ah… esqueci. Eu estou nervoso porque me vem a lembrança de quando soube que Isis havia capotado o carro numa rodovia em direção à Praia da Daniela. Elias, namorado de Isis, apareceu na redação bem na hora do meu almoço. Me levou num restaurante e me contou tudo. Ela dirigia sozinha e o motorista do outro veículo também. Ele vinha acima da velocidade permitida, e então, numa curva, perdeu o controle e mandou o carro de Isis para fora da pista. O motorista, sem cinto de segurança, foi arremessado para fora do carro e morreu na hora. Minha amiga sofreu algumas fraturas nos braços e pernas, mas o estrago maior foi acima dos ombros. Mesmo usando cinto de segurança, ela bateu a cabeça na lataria do carro e perdeu um pequeno pedaço da orelha. Um traumatismo craniano grave deixou Isis em coma por 47 dias. O meu maior medo era que ela acordasse sem nem lembrar seu nome. Porém ouvi-la dizer “o boy do Rio de Janeiro” aliviou minha alma exorbitantemente. A Avenida Beira Mar Norte está bem vazia para uma noite de sexta-feira, com exceção dos ônibus que passam pelo carro a cada um minuto. Após a reportagem que eu e Hebert fizemos nos coletivos, prometemos que de vez em quando deveríamos pegar um ônibus aleatório e ir para um lugar aleatório, só para ouvir as pessoas conversando. Observar as luzes da Beira Mar ajuda a diminuir a ansiedade que eu estou sentindo para reencontrar Isis. Rio mentalmente ao lembrar de um colega de redação. Toda vez que ele fala sobre a avenida Beira Mar, se refere-a como Avenida Jornalista Rubens de Arruda Ramos. — Eu sou jornalista, igual o Rubinho. Nós somos. Deve ser triste batizarem uma avenida com seu nome e aí as pessoas te chamarem por outro só porque ela fica em frente do mar. Nem dá pra tomar banho lá! Ele é chato, mas às vezes engraçado. Curiosamente foi da minha turma quando estávamos na graduação. Dos nossos colegas, quase nin10
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guém acreditava que algum dia ele se formaria e seguiria na profissão, mas hoje ele é um dos cinegrafistas e editores de vídeo do site da nossa revista. Mando mensagem para Elias dizendo que estou quase chegando. Quando ergo a cabeça, o carro vai entrando na rua do hospital. O motorista reduz a velocidade e põe o carro na primeira marcha. — Muito obrigado… — Tiro o cinto de segurança, puxo 10 reais do bolso e pago o motorista. — Tenha uma boa noite e um ótimo final de semana. Saio do carro um pouco desorientado. Na minha cabeça o motorista me perguntou alguma coisa, mas o fluxo mental me distraiu. Paro por uns segundos e observo a fachada do Hospital Governador Celso Ramos. Confiro meu celular. Nas novas mensagens de Elias, ele pede para esperá-lo na recepção. Enquanto subo as escadas, lembro que hospitais sempre foram um lugar aterrorizante para mim. As paredes, em sua maioria brancas e vazias, são geladas e os corredores silenciosos demais. Certa vez tive que fazer uma reportagem em hospitais da Grande Florianópolis. A pauta foi horrível e infelizmente tive que escrever como é a rotina de um acompanhante de pacientes que estão internado há muito tempo. Ouvi as histórias de mulheres que largaram seus empregos para cuidar dos filhos, muitas mães solteiras e de baixa renda, a ponto de pedirem ajuda financeira para comprar salgados fritos ruins nas lanchonetes das redondezas dos hospitais. Foi a pior reportagem que fiz, em termos de solidariedade. Passo pela porta e esbarro numa mulher que está saindo. — Perdão... — peço. Seus olhos tão fundos lembram os da minha mãe. — Não foi nada. — Ela responde sorrindo, já do lado de fora. Uns metros à frente, um homem todo vestido de moletom, touca e óculos escuros e sinto que ele está com o olhar fixo em mim. Parece perdido ou tramando algo. Cruzo por ele e olho para trás uns passos depois. O homem também olha para trás. — Ei! — é a voz de Elias. — Não pode falar alto em hospitais — respondo após virar a cabeça reticências...
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para a frente. — Não chegue perto daquele cara. Só hoje ele foi expulso do hospital três vezes procurando analgésicos. — Não o julgo… todos nós precisamos de alguns. — Você é muito emocionado. Vamos, ela tá te esperando. Não é os 26 graus de Florianópolis às 22h07m que fazem minhas mãos estarem quentes, é a apreensão. Passamos por um corredor que parece não ter fim, pois o quarto de Isis fica bem no final dele. Ao chegar, paro na porta e vejo ela olhando para mim, sorrindo. — Olha só… tens um quarto só para ti. — Eu digo sorrindo de volta e me aproximando da maca. O cabelo de Isis está voltando a crescer. As enfermeiras tiveram que raspá-lo para facilitar a primeira das cinco cirurgias que minha amiga foi submetida. — Parece que sim. Elias disse que tinha um outro cara aí até ontem. — Eu vou procurar algo para comer, tá? — Elias anuncia dando um cheiro no rosto de Isis. — Ainda bem que não sou adepta de muitos contatos físicos. Estou toda dolorida ainda — ela faz uma cara feia enquanto muda de posição. — Senta aí. Isis abre um espaço entre os lençóis e eu sento com calma. — Estou feliz por você. — É só o que consigo dizer. — É, eu também. Isso aqui vai funcionar como um retiro espiritual. A médica disse que devo ficar mais uma semana internada. E fisioterapia depois. — Há uma melancolia agridoce na sua voz, lamentando ter que fazer um retiro. — Talvez seja bom para mim. — Pilates deve te ajudar — minto para ela. Não me ajudou em nada. — Talvez funcione comigo. Um silêncio paira sobre nós. Para mim, um silêncio ansioso. Para ela, talvez, um silêncio confortável. — Eu não tenho muita coisa para contar, — ela quebra o silêncio — até porque deve ter acontecido nada comigo depois do acidente. Só estou angustiada com meu cabelo. Demorou tanto para ele ficar daquele tamanho. Meu querido 4B. — Ela murmura passando a mão pela cabeça raspada. — Mas eu sei que você tem algumas coisas para me contar. — O Rio de Janeiro continua lindo… — digo, com um sorriso triste. 12
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— E você continua triste. O que aconteceu com o tal boy do Rio de Janeiro? — Lembra que eu tinha ido no Rio em outubro passado? Aquele congresso que eu dei uma palestra… — começo. Respiro fundo, arrumo a postura e continuo: — Baixei o Tinder e conheci um cara lá… Raí, o nome dele. Saímos já no primeiro dia que eu cheguei lá. E nas outras três noites que eu fiquei na cidade. Conheci o Arpoador com ele. Raí é gentil, educado, engraçado e cheiroso... professor de Educação Física do ensino médio. Um cara legal… “Transamos a maior parte do tempo que ficamos juntos, mas não foi só isso. No início eu lhe avisei que estaria temporariamente na cidade. Mas nem eu imaginava… acho que me apaixonei por ele lá mesmo. Raí me contou que ia passar as férias em Florianópolis, em março. As passagens já estavam compradas… pedi para ele me procurar quando estivesse por aqui. “Ele concordou. Ficamos conversando todos esses meses, quase que diariamente. Conversas, na maioria das vezes, regadas a safadeza. Mas em mim havia paixão… ainda mais quando ele prometeu trazer biscoitos Globo para mim. Nele eu não sei. “Quando ele chegou em Floripa, disse que estava muito cansado, mas gostaria de apenas dormir comigo. Fui até o hotel que ele ficou, no Ingleses… e dormimos. Só isso. De um jeito bem fofo. No dia seguinte, ficamos a manhã na praia... Transamos a tarde inteira… e a noite o levei ao bar gay friendly Madalena. “Isso tudo foi uma semana depois de você ter sido internada. Eu estava bem preocupado contigo, por isso falei bem pouco durante o caminho até o Centro. Teve uma hora que ele anunciou: “Você fala muito pausadamente… como se usasse reticências. E fala como se tivesse escrevendo literatura. Acho isso bonito”. Eu respondi que só penso muito antes de falar. “Foi aí que percebi que ele fala muito mais do que eu. Eu falo bem pouco, né? Ele é muito falante, caricato, riso solto. Um cabelo undercut e um óculos redondo”. Isis me interrompe. — Feio, tu não tem capacidade cognitiva para perceber que fica com reticências...
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o mesmo tipo de cara? É sempre o mesmo cabelo e o óculos redondo. Pele bronzeada também. Tu não contou se Raí é bronzeado, mas ele sendo do Rio de Janeiro nem dá pra duvidar. — Porque você sempre me ataca… gratuitamente? — Lembro do barman de hoje e admito para mim mesmo que ela está certa. — Não foi gratuitamente. Você meio que pediu. Sempre um clone do outro. Ah, para né. — Mas eu não pedi sua opinião. Vou deixar essa passar só porque você voltou hoje. Continuando… No Madalena tinha um DJ fazendo uns remixes de música pop. Não gosto desse tipo de música, mas eu tava curtindo. Raí parecia está se divertindo também. “Dançamos bastante. Raí me olhava e seus olhos brilhavam. Sempre que ele ia pegar bebida e me deixava na pista, me encarava. Uma hora ele se cansou do bar e disse que queria ir pra Beira-mar, pra debaixo da ponte. Pegamos um 99 POP e fomos. “A noite estava perfeita, com o céu bem estrelado. Da janela do carro, Raí observava a cidade, bem encantado. E eu sorria feito um bobo. Quando descemos do carro, ele saiu correndo para o gramado que tem uma visão bem privilegiada da ponte. Raí sorria tanto, tu não faz ideia. “Depois ele pediu pra eu pegar meu fone de ouvido pois ouviríamos a mesma música juntos. Ele no seu celular e eu no meu. Raí escolheu Green Light, da Lorde... música de gente jovem. Mas até que combinava com o momento. Dançamos cada um do nosso jeitinho. Ele parecia fazer uns exercícios, tanto que até disse que exercício aeróbico faz bem pro coração. “Esse momento foi ótimo. Foi aí que me convenci que tudo aquilo era mais que um lance. Ficamos uma hora abraçados sentados na grama, olhando o mar impróprio para o banho e as luzes da Hercílio Luz. Às 2h da manhã, ele disse que precisava ir embora… sozinho. Sorte a minha que não deixei nada com ele. Fui pra casa dormir. Quando acordei, vi que ele tinha deixado uma mensagem às 8h. “Era uma foto da Lagoa. Na legenda ele dizia ter adorado me conhecer, que o tempo que eu passei no Rio e ele ter vindo para cá o fizeram bem feliz. Porém, explicou que ele era bem sensitivo e ritualístico. Contou que quando estávamos dançando na Beira-mar, sentiu que 14
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nossa hora havia chegado e que já havíamos cumprido nossa missão na vida um do outro. “A última frase da mensagem era: eu te amei em segredo. Foi isso”. Fico em silêncio por uns segundos. Meus olhos ardem e anseiam para liberar algumas lágrimas. — O que você respondeu? — Isis quebra o silêncio. — Eu nunca respondi… não consegui contestar a mensagem. Se eu respondesse, seria um sinal que de fato acabou. Pra mim não acabou. — Mas pra ele sim. Tu não pode sustentar isso sozinho, William. Não dá pra contar a história de vocês dois se só você tá vivendo ela. Cuide de você. Vem cá… Isis abriu seus braços e eu me ajeitei cuidadosamente em seu afago. Eu meio que sou a exceção da regra dela não gostar de contato físico. Desde que nos conhecemos, na faculdade, ela me ampara. Eu na primeira fase de Jornalismo, ela com metade da graduação de Psicologia concluída. Eu precisava entrevistar um estudante num evento da universidade. O nervosismo me encheu e ela, de longe, pareceu notar isso. Isis veio até mim e perguntou se eu precisava de ajuda. A partir daí são 10 anos de histórias. — Eu sei qual é meu problema com os caras, mas nunca consigo resolver. — O estágio da contemplação não dura pra sempre, querido. — Eu quero que esse estágio se foda. Fecho meus olhos e pinto um quadro. Uma suave aquarela trabalhada numa paleta de cores focada nos azuis e amarelos profundos. Raí de costas para mim indo embora com toda a Ilha da Magia diante dele. O verão no seu fim premeditado, anunciando com ele o definitivo fim de um acaso feliz. FIM
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