se tivessem um pouco de sorte JoĂŁo Wesley
se tivessem um p ouco de sorte
A
plataforma da Base Naval de Natal estava cheia de casais apaixonados. A poeira nos sapatos de Regina lhe avisava que já estava na hora de comprar pares novos. Para ela, aquele dia seria horrível. Estaria se despedindo do seu marido, quem sabe, para sempre. Estavam casados há apenas três anos. Jonas passava a maior parte do tempo servindo à Marinha Brasileira, deixando sua esposa à mercê da saudade e à espera de André, o primeiro filho do casal. O uniforme dos marinheiros, apertados e aderentes, quase sumiam diante do forte brilho do Sol que a capital do Rio Grande do Norte dava em trezentos dias do ano. Jonas arriou sua mala no chão e olhou bem nos olhos de sua esposa. — Isso não precisa ser uma coisa triste. — É o fim de tudo isso, Jonas, você sabe mais do que ninguém — ela, com a voz embargada, segurou a mão do marido. Esse era o acordo deles: quando Jonas estivesse prestes a partir, se despediriam como se fosse a última vez que fossem se ver. Uma despedida digna, caso ele não voltasse. Jonas dizia que se de fato Regina fosse o amor de sua vida, ele voltaria. Ele dava um beijo na testa dela e virava-se para o navio, prometendo não olhar para trás. Na rampa de subida do navio, ele prometia a si mesmo que voltaria. E voltou para casa todas as vezes, mesmo após ter sido baleado com três tiros em seu peito. — Agora nós temos André. Eu não quero que você seja um pai ausente. Jonas pensou na resposta por alguns segundos. — Iremos partir em dez minutos — a voz do capitão soou estridente. Jonas então se ajoelhou, pôs a mão na barriga de sua esposa e falou: — André, eu sempre disse a sua mãe que se
ela fosse o amor da minha vida, eu voltaria para casa. Eu nunca duvidei das minhas palavras e do amor que eu sinto por ela. Hoje, graças a você, tenho a certeza. Agora, é minha obrigação voltar para casa. Vou voltar por você. Por nós — ele se levantou, encontrando um sorriso no rosto de sua esposa. — Você tem Kafka, O Gato Preto — Regina riu. Riu por Jonas ser tão bobo a ponto de acreditar que gatos pretos davam sorte para os marinheiros. A explicação era que a cor que é associada com azar e morte na terra tinha efeito oposto para quem está no mar. — Ele nunca miou alto perto das minhas viagens. — Aquele gato é um idiota. A buzina do navio gritou alto, assustando os marinheiros e suas esposas e filhos. Eles sabiam o que aquilo significava. Jonas colou seu corpo ao de Regina e selou seus lábios com um beijo ora emergente, ora saudoso. — Eu sobrevivi há três balas em meu peito. Eu sou quase imortal, mas não pense muito em mim. Jonas desvencilhou-se do abraço, juntou sua mala e se pôs a caminhar para a fila que se fazia na rampa de entrada. Antes de entrar no navio, fez o que nunca havia feito antes: olhou para trás. Regina continuou ali, observando o navio partir, movimentando a água. Se eles tivessem um pouco de sorte, ela estaria ali, lhe esperando assim que ele voltasse.
fim
Foto de capa Jorge Gardner Capa João Wesley Diagramação João Wesley Revisão João Wesley Encontre o autor nas redes sociais Instagram: @joaowads Twitter: @joaojoaojoaow Medium: @joaowads Florianópolis, agosto de 2019