J. A. M. Marques, R. F. Marques e M. F. Eusébio, Bodiosa: história, património e tradições

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Jorge Adolfo Meneses Marques Ruben Filipe Marques Maria de Fátima Eusébio

bodiosa história, património e tradições

2013


Nota de abertura

Conhecer melhor a Terra e as Gentes de Bodiosa, eis o propósito deste livro. Acreditamos que a publicação que agora se dá à estampa despertará em cada bodiosense a vontade de reavivar memórias, preservar os vestígios do passado com vista a preparar um futuro mais sustentável para todos. O trabalho que agora se apresenta a todos não é um estudo exaustivo, nunca o pretendeu ser. Aborda e retrata muitos aspetos da freguesia, por vezes contextualizando-os no território envolvente. Sendo uma abordagem sobre as suas gentes e o seu dia-a-dia, nunca poderia ser um trabalho acabado e por esse motivo encerra em si mesmo um desafio a todos aqueles que no futuro pretendam debruçar-se sobre outros temas e outros patrimónios da nossa freguesia. Estamos certos que este livro despertará o interesse de quem é natural da freguesia ou de quem a escolheu para viver e/ou trabalhar. Com esta publicação, poderemos ficar a conhecer melhor Bodiosa, sentindo-a cada vez mais como nossa terra. Foi uma aposta na cultura que fizemos com este projecto, porque entendemos que é uma aposta no futuro das nossas populações por via da valorização do nosso passado. Este é um livro de todos e para todos. Pretende-se que o seu conteúdo seja acessível a toda a população e que todos os bodiosenses se sintam nele homenageados. A todos os que contribuíram para tornar este projeto uma realidade, o nosso bem-haja. António José Santos Alves Lage Oliveira Presidente da Junta de Freguesia de Bodiosa


bodiosa história, património e tradições Nota Prévia 9 O povoamento mais antigo: Neolítico 13 A Idade dos Metais 21 Romanização 29 Da Idade Média ao século XVIII 35 Do Liberalismo ao século XX 67

Jorge Adolfo M. Marques

Bodiosa. História, património e tradições. AUTORES Jorge Adolfo Marques Ruben Filipe Marques Maria de Fátima Eusébio EDIÇÃO Junta de Freguesia de Bodiosa 2013

Paróquia de S. Miguel de Bodiosa 95 Origens e evolução da Paróquia 99 Arquitetura Religiosa 111 Igreja Paroquial 117 Igrejas Anexas 125 Cruzeiros 155 Alminhas 161 Festas Religiosas 173 Lendas e tradições 179

Ruben Filipe Marques

CRÉDITOS FOTOGRÁFICOS João Manuel Martins, Jorge Adolfo Marques, Miguel Figueira, Raquel Coimbra, Ruben Filipe Marques e Rui Macário PRODUÇÃO GRÁFICA TRAPÉZIOdeIDEIAS

O património integrado e móvel 191 A arte da talha 193 Imaginária 209 Pintura 221 Alfaias e têxteis 225

Maria de Fátima Eusébio

DEPÓSITO LEGAL 364756/13

Bibliografia 235


Nota Prévia

No contexto em que a circulação da informação assume dinâmicas excepcionais e onde as solicitações que chegam diariamente a cada um de nós são inúmeras e muito diversas, pode configurar-se como um preciosismo a realização de um estudo circunscrito a uma freguesia. Podemo-nos mesmo interrogar se os conteúdos são suficientemente relevantes para corporizar uma monografia. São precisamente estas questões que reforçam a relevância deste tipo de publicações: a globalização e o mundo da comunicação em que vivemos motivam uma maior perda de conhecimento sobre as realidades mais circunscritas, ainda que mais próximas do quotidiano das populações. As memórias do passado vão-se diluindo ou mesmo perdendo, impossibilitando o conhecimento das dinâmicas evolutivas das comunidades, pelo que a realização deste estudo, ainda que não incorpore todo o manancial de informação que se poderia reunir, constitui uma estratégia de, sob a forma representativa, dar luz a acontecimentos, a pessoas, a obras, a tradições, etc., que enformaram ao longo dos séculos o devir desta freguesia. O estudo que apresentamos, ainda que centrado na localidade de Bodiosa, colocando em relevo as suas especificidades e particularismos, não deixa de relacionar os vários aspectos abordados com as realidades congéneres da região e de âmbito nacional. Trata-se de uma abordagem integrada, que cumpre o objectivo de reavivar as memórias do passado da localidade, reforçando a identidade e o sentido de pertença das populações. A representação do passado confere sentido ao presente e favorece as dinâmicas de estruturação das vivências presentes e futuras. Neste contexto, assumem total actualidade as palavras de Oliveira Martins (1845-1894) registadas no prefácio de uma monografia local (Oliveira do Hospital. Traços histórico-críticos) há mais de um século: “Considerei sempre que um dos subsídios principais para a história geral do país consiste nas monografias locais, onde se estuda a arqueologia e a história, as biografias e as tradições, com os documentos à vista e à mão os arquivos municipais e particulares. Um corpo de monografias destas, relativas aos principais concelhos do reino, formaria um tesouro de inestimável valor para o estudioso; ao mesmo tempo


Os autores

A24 N1

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Bodiosa

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Viseu

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que serviria para arraigar nas localidades esse amor da terra, base natural e necessária do sentimento mais abstracto a que se chama patriotismo”. A obra que apresentamos constitui um estudo transdisciplinar, para além de contemplar aspectos como o património, as tradições, a religiosidade, etc., inclui também informações relativas aos costumes, ao quotidiano, ao trabalho, ao ensino, à tecnologia, etc. Não constitui um estudo exaustivo, antes enquadra os subsídios essenciais para a compreensão do passado da freguesia de Bodiosa, das existências que convivem em proximidade com os bodiosenses. Metodologicamente, para além das pesquisas bibliográficas e em arquivos, foram enquadradas as informações orais facultadas por vários habitantes que connosco partilharam as suas memórias e as presenças materiais, das quais foram realizados levantamentos muito significativos. Acreditamos que este estudo contempla aspectos com os quais as populações das várias povoações da freguesia de Bodiosa, ainda que de forma diferenciada, se vão identificar. Esta memória abrirá caminho a (re)descobertas de nomes, espaços, acontecimentos, costumes, vivências, etc., que o passar do tempo tinha dissipado e promoverá os afectos das populações em relação à sua terra. *** A realização deste trabalho contou com o empenho, a disponibilidade e colaboração de várias pessoas, a quem queremos registar o nosso penhorado agradecimento. Ao Presidente da Junta de Freguesia António José Oliveira a nossa especial gratidão pela iniciativa, pelo convite que nos dirigiu para executarmos o trabalho e pelo incansável acompanhamento que sempre nos disponibilizou. O nosso reconhecimento a todos os que nos facultaram informações e documentação, nomeadamente os membros da Junta de Freguesia, Maria Teresa dos Santos Nascimento (secretária) e Raul António dos Santos (tesoureiro), e os senhores António José Correia Alexandrino, António Manuel Santos (ARDCOB), Carlos de Almeida Rodrigues, Carlos Rodrigues (ARDCOB), Diamantino Cardoso, Elísio Dias, Fernanda Almeida, Fernando Esmeraldo de Castro, Iolanda Alexandrino Simões de Barros, João Manuel Martins, José Almeida, José Pinheiro Mendes, Lucília de Almeida Alexandrino, Saul Serafim R. G. Pereira, Serafim Gonçalves Pereira e Sílvio Martins. Agradecemos também à Anabela Costa e ao Pe. António Carlos da Silva.

Concelho de Viseu

Freguesia do concelho de Viseu Área: 25.6 km2 População (censo 2011): 3047 Densidade populacional: 119 km2 Orago: S. Miguel Arcanjo Brasão: escudo de verde, mão alada de prata empunhando espada de lâmina flamejante de ouro, guarnecida de negro; em chefe, espiga de milho de ouro, folhada de prata, à dextra e ramo de oliveira de ouro, frutado de prata, à sinistra; campanha ondada de prata e azul de três tiras. Coroa mural de prata de três torres. Listel branco, com a legenda a negro: «Bodiosa».


O povoamento mais antigo: Neolítico

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e encontravam-se cobertos com enormes mamoas que os faziam destacar muito bem na paisagem circundante, como sucedia com os dólmenes da Lapa do Repilau e do Fojo. A escolha preferencial pela construção destes monumentos em zonas planálticas ou em plataformas sub-planálticas bem distintas na paisagem, realça o seu papel como marco territorial para aqueles que os construíram. O dólmen é um todo que obedece a um plano previamente pensado. A câmara, o corredor, mais ou menos extenso, o corredor intratumular, o átrio, a estrutura de condenação ou encerramento do túmulo, a mamoa, são a estrutura arquitetónica. Nesse todo que é o dólmen há ainda os objetos que acompanhavam os defuntos, uns que têm uma identificação imediata, ligados às atividades quotidianas, como as cerâmicas, as pontas de seta, foices, punhais, alabardas, facas em sílex ou quartzo, os machados polidos e outros objetos que têm um significado apenas ritual ou religioso, como os seixos de rio colocados nos átrios que nos transportam para o domínio do sagrado. Ali realizavam-se parte dos rituais, comprovados por exemplo em Antelas, onde se encontraram vestígios de fogueiras. Ainda neste domínio do mágico-religioso, merecem particular destaque as pinturas e gravuras que muitos monumentos ostentam nos seus esteios da câmara e/ou corredor. Estas sublinham o caráter sagrado

ntre finais do Vº milénio e inícios do IVº milénio a.C. as populações neolíticas que habitavam a região de Viseu começaram a construir estruturas de cariz funerário e religioso: os dólmenes, também denominados de antas ou orcas. Estes monumentos megalíticos irão ser construídos e/ou reutilizados parcialmente até ao IIº milénio a.C. Foi um longo período em que a arquitetura megalítica, os rituais e a sociedade em geral, passaram por vários processos de evolução e de reorganização mais ou menos complexos. Desta forma, não podemos falar de uma cultura megalítica enquanto fenómeno homogéneo, fechado, mas sim de um conjunto de práticas de índole sócio-cultural, com aspetos e características que se revelam heterogéneos ao longo do tempo. Os primeiros túmulos megalíticos, ainda mal conhecidos na região de Viseu, teriam uma câmara simples, fechada e coberta com mamoa. Progressivamente devem ter coexistido com estes primeiros monumentos outros que já possuiriam uma câmara aberta, com espaço tumular interior demarcado do exterior. Os dólmenes mais complexos e de maiores dimensões foram construídos no Neolítico Final, entre finais do IVº milénio a.C. e inícios do IIIº milénio a.C. Todos eles apresentam uma câmara poligonal, com um corredor geralmente longo

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Dólmen de Vale da Cabra.

Dólmen de Vale da Cabra, Pereiras tativa, cobrem a superfície dos oito esteios da câmara do dólmen de Antelas, aquele que preserva maior área pintada de todos os dólmenes conhecidos na região de Viseu. A conjugação entre representações antropomórficas e zoomórficas pode ser observada em monumentos como a Arquinha da Moira (Tondela) ou a Orca dos Juncais (Vila Nova de Paiva). Neste último, encontra-se já muito degradado o célebre painel que retrata uma cena venatória com cervídeos, caçadores empunhando arco com flechas e cães. Na Anta do Fojo (Viseu) subsiste, igualmente muito deteriorada, uma representação antropomórfica, também com arco e flecha, certamente com um sentido ritual/religioso algo idêntico ao da Orca dos Juncais. As gravuras, também muito comuns e por vezes associadas no mesmo monumento a pinturas, apresentam sobretudo motivos geométricos ou de cariz idoliforme.

do monumento que não é apenas um túmulo, é também um templo de comunhão entre o grupo que desenvolve os rituais, os seus ancestrais ali sepultados e o território onde se encontra. Os motivos pintados ou gravados no interior dos dólmenes podem ser agrupados em quatro tipos: antropomorfos, zoomorfos, geométricos e representações solares. As cores utilizadas nas pinturas são exclusivamente o preto e o vermelho, com várias tonalidades. Observações mais cuidadas e utilizando novas técnicas hoje disponíveis na Arqueologia têm permitido identificar em muitos dólmenes, ténues vestígios de pinturas que, a somar aos que ainda preservam painéis ou fragmentos de painéis, leva-nos a supor que a grande maioria deverá ter tido pinturas ou gravuras nos seus esteios. Motivos geométricos, sempre de maior dificuldade interpre-

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É um dólmen de corredor com câmara poligonal com onze esteios. Na câmara foram identificados vestígios de pinturas a vermelho no esteio de cabeceira e no esteio nº6. Este monumento foi escavado em 1966 por Vera Leisner e Leonel Ribeiro. Daqui são provenientes dois recipientes cerâmicos que se encontram no Museu Nacional de Arqueologia. (CARVALHO e GOMES, 1995: 223-227) (a partir de CARVALHO e GOMES, 1995: 223-227)

ocupação reduzida, sem qualquer preocupação defensiva, onde habitavam grupos constituídos por indivíduos com laços familiares (MOITA, 1966: 207-215; TWOHIG, 1981; JORGE, 1999; CRUZ, 2001; CARDOSO, 2002: 185-243; CARDOSO, 2013: 45-46 e 210-214).

A grande visibilidade dos monumentos megalíticos, resultante do investimento na sua monumentalização, opõe-se de forma quase radical ao pouco conhecimento que temos sobre os locais de habitat das comunidades que os construíram. Conhecem-se apenas seis habitats, todos no interflúvio Dão-Mondego, tratando-se em todos os casos de áreas de

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Dólmen da Grutinha.

Antropomorfos em esteio do dólmen do Fojo 1.

Mamoa (?) junto ao campo de futebol de Pereiras

Dólmen da Grutinha, Póvoa de Bodiosa

Necrópole da Lubagueira (Couto de Cima)

Dólmenes do Fojo 1, 2 e 3

Provavelmente destruído com a terraplanagem do terreno para plantação de um pinhal.

Muito semelhante ao monumento de Vale da Cabra.

Em torno da aldeia da Lubagueira conhecem-se mais de uma dezena de monumentos megalíticos, concentrados em três locais, separados entre si por escassas centenas de metros: Fojo, Repilau e Queimadas.

O dólmen do Fojo 1 tem corredor longo, com oito esteios de cada lado. Na câmara permanecem apenas três esteios dos nove que teve. O tumulus tem três metros de altura. Em 1966 o monumento foi escavado pela arqueóloga alemã Vera Leisner e por Leonel Ribeiro, tendo sido recolhido cinco pontas de seta, dois trapézios, lâminas, seis vasos e fragmentos cerâmicos. Nessa ocasião também foram identificadas pinturas nos esteios 7, 11 e 12 da câmara, e uma gravura no esteio 6 do corredor. Os dólmenes 2 e 3 do Fojo são túmulos megalíticos de grandes dimensões situados quer a noroeste (2), quer a sudeste (3) de Fojo 1. (GOMES e CARVALHO, 1995: 213-221)

Mamoas da Grutinha, Póvoa de Bodiosa Mamoas a sul de Pereiras (Fontão) Trata-se de duas pequenas mamoas muito semelhantes às de Casinha Derribada pelo que supomos tratar-se de dois túmulos estruturados em cista, atribuíveis ao Bronze Final.

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Lapa do Repilau e Antela do Repilau A Lapa do Repilau possui câmara poligonal com oito esteios e corredor longo com seis esteios de cada lado. O esteio de cabeceira tem uma gravura. As escavações arqueológicas realizadas em 1988 por Domingos Cruz permitiram a recolha de quarenta pontas de seta, lâminas e um fragmento de faca em sílex, uma placa decorada, um pingente triangular, machados de pedra polida e contas de colar em xisto e fragmentos cerâmicos. A poucas centenas de metros a nordeste da Lapa do Repilau encontra-se um monumento mais pequeno, denominado Antela do Repilau. Trata-se de um túmulo muito baixo, com câmara central tipo cista. Nas escavações que aqui foram realizadas foi recolhida uma ponta de seta em grés. (MOITA, 1966: 211; CRUZ et alii, 1989: 387-400; ROTEIRO: 1990)

Planta da Antela do Ripalau (desenhos a partir de CRUZ et alii, 1989: 387-400)

Queimadas Os quatro monumentos megalíticos situam-se a noroeste de Fojo 1. São dólmenes de pequena dimensão, tipo antela. (MOITA, 1966: 211-212)

Lapa do Repilau (página anterior).

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A Idade dos Metais

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urante o IIIº milénio a.C., período designado de Calcolítico, ocorreram importantes transformações em vários domínios da sociedade que se manifestaram não só na arquitetura funerária, com a construção de novos sepulcros e com a reutilização de outros já existentes, mas, sobretudo, com uma nova estruturação do povoamento que não só alterou a relação dos vários grupos populacionais entre si como também com a paisagem envolvente e com os seus recursos. Abandonou-se a construção de túmulos de grandes dimensões, como se fez no Neolítico Final. Os novos monumentos funerários, agora muito mais discretos na paisagem, apresentam estruturas cistoídes sob mamoa. Nos casos de reutilizações de dólmenes de grandes dimensões, os rituais praticados também já nada tinham que ver com os do Neolítico descritos anteriormente. Esta escolha provavelmente ocorreu porque se tratava de lugares cuja memória coletiva lhes conferia ainda um caráter sagrado. Neste período há novos espaços sagrados. Tal como sucedeu com os grandes dólmenes, eram lugares destacados na paisagem, como sejam grandes aglomerados de penedos ou sítios tipo santuário como a Pedra dos Pratos (Castro Daire), a Pedra Escrita de Serrazes e o Castro da Cárcoda (S. Pedro do Sul), a Pedra de Souto de Lafões (Oliveira de Frades), ou, numa zona ainda mais próxima de Bodiosa, a Pedra da

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Lufinha e Stª Bárbara (Ribafeita). Em todos estes locais, foram gravadas sobre o afloramento rochoso espirais, círculos concêntricos e reticulados, cujo significado mágico-religioso é-nos difícil de descortinar hoje. O povoamento durante o IIIº milénio apresenta uma maior diversidade do que anteriormente. A implantação dos povoados em altura e o investimento na construção de estruturas de defesa, traduzem uma crescente preocupação com o habitat, que cada vez mais tem um cariz sedentário e já não sazonal como os habitats neolíticas com as suas frágeis cabanas. Essa escolha topográfica revela também uma procura de afirmação de domínio sobre o território circundante, provavelmente exercendo o mesmo papel que anteriormente fora desempenhado por dólmenes e menires. Seguramente que a importância do território para o pastoreio e produção agrícola levou à necessidade de um maior controlo e vigilância. No domínio da tecnologia a grande inovação deste período consistiu na introdução do peso do tear na tecelagem. As cerâmicas encontradas em muitos dos povoados e monumentos funerários deste período apresentam decoração com bandas verticais, em espinha, incisas, impressas e penteados. O material lítico manteve-se quase inalterável, com pontas de seta, raspadores, lamelas, foices sobre lâminas e lascas retocadas sobretudo em sílex. (JORGE,

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Carrinho votivo em bronze do castro da Srª da Guia (Baiões, S. Pedro do Sul). Página anterior: gravuras rupestres de Lufinha (Ribafeita, Viseu).

Fonte da Malga (Côta) e de Paranho (Tondela). Os monumentos de Fontão e da Grutinha muito semelhantes na aparência com os das necrópoles referidas, devem-se inserir neste tipo de ritual funerário (CRUZ et alii, 1998: 5-76). As populações do Bronze Final habitavam em povoados elevados, geralmente cabeços ou esporões, situados sobre pequenas linhas de água, ribeiros ou rios, como por exemplo na Srª da Guia (S. Pedro do Sul), no Cabeço do Couço (Vouzela), no Outeiro do Castro (Vouzela), no Alto do Crasto (Vouzela), no Monte de Stª Luzia (Viseu), na Srª do Crasto (Viseu), no Castelo dos Mouros (Viseu), no Aral (Viseu), na Cruz (Viseu), na Castaínça (Viseu), no Cabeço do Cucão (Viseu), entre muitos outros identificados no território envolvente de Bodiosa. Preocupações essencialmente de caráter defensivo levaram estas populações a escolher locais naturalmente defensáveis, acrescentando-lhe muralhas em pontos mais vulneráveis como os que davam acesso ao seu interior. Aí, as casas tinham uma planta circular ou ovalada, utilizando madeiras e outros materiais perecíveis na sua construção; o piso era em terra batida, como se comprovou em alguns povoados como Stª Luzia (Viseu), Outeiro dos Castelos de Beijós (Carregal do Sal) e Cabeço do Couço (Vouzela). A sua economia

1999; CARDOSO, 2002: 247-324; CARDOSO, 2013: 46-48 e 73-75) Durante o IIº milénio a.C. vários monumentos megalíticos do Neolítico Final continuaram a servir de local de enterramento das populações da Idade do Bronze. Estas intromissões ou violações, verificaram-se em vários dólmenes, nomeadamente na Lapa do Repilau (Couto de Cima) e no Mamaltar de Vale da Fachas (Rio de Loba). Nestes monumentos foram recolhidas taças de carena e vasos troncocónicos, cuja cronologia aponta para o Bronze Pleno (c. 1500-1200 a.C.). Por outro lado, como já se vinha verificando ao longo do IIIº milénio a.C., as necrópoles são constituídas cada vez mais por túmulos, quase invisíveis na paisagem, sob mamoas de pequena dimensão e altura. No interior desses montículos, encontram-se cistas de planta quadrangular, retangular e poligonal, para inumações individuais. Nos finais da Idade do Bronze, entre sensivelmente 1250 a.C. e 700 a.C., este tipo de monumento funerário apresenta dimensões ainda menores, com cistas associadas a rituais de incineração, com a deposição de cinzas em potes, por vezes acompanhados de outros artefactos com um valor ritual/religioso como se constatou nas necrópoles da Srª da Ouvida (Castro Daire), de Casinha Derribada (Mundão), de 22

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todos os casos apenas parcialmente. Na grande maioria deles só se conhecem materiais recolhidos à superfície e as muralhas que os delimitam, não se conhecendo nem o momento da sua fundação nem a evolução dessa ocupação até ao seu abandono definitivo. Se é seguro que houve povoados que foram abandonados no Bronze Final, houve outros que continuaram a ser habitados por muito mais tempo. Houve ainda castros que apenas começaram a ser habitados na Idade do Ferro e muitos deles acabaram mais tarde por ser romanizados.

era fundamentalmente agropastoril; para além da criação de gado intensificou-se o cultivo de cereais, alguns deles recolhidos em contexto arqueológico como sucedeu na Srª da Guia (S. Pedro do Sul), com grãos de trigo, de cevada e ainda favas e ervilhas. A apanha, torrefação e moagem de bolota continuou a ser praticada bem como a recoleção de frutos silvestres, a caça e a pesca. A produção de olaria diversificou-se relativamente aos períodos anteriores, podendo dividir-se em dois grandes grupos: um de cerâmicas mais cuidadas, geralmente com superfícies brunidas e outro grupo de cerâmicas mais rústicas, com muitos desengordurantes, que serviam, consoante as dimensões, para armazenagem ou para cozinhar. As peças brunidas apresentam geralmente uma decoração incisa pré ou pós cozedura, ornatos brunidos e pontilhados. Contudo, houve um aspeto fundamental que marcou a transição do IIº para o Iº milénio a.C.: a produção em maior escala de objetos em bronze. A produção e a circulação de objetos em bronze, acarretou um maior controlo das vias de circulação e das jazidas de estanho. Estes aspetos levaram à hierarquização dos povoados e ao aparecimento de lugares centrais, dominados por elites principescas. A produção de armas, de objetos de adorno e de objetos nomeadamente rituais, revela-nos essa nova realidade sócio-política e cultural. (SILVA, et alii, 1984:73-109; PEDRO, 1995; JORGE, 1999; CARDOSO, 2002: 325-400; VILAÇA, 2013: 178-180)

De todos os povoados conhecidos na região de Viseu, dois deles merecem um destaque particular: o da Srª da Guia (S. Pedro do Sul) e o de Stª Luzia (Viseu). No povoado da Srª da Guia, para além dos inúmeros materiais cerâmicos e líticos recolhidos durante as escavações ali realizadas, foi encontrado um provável depósito de fundição com vários machados de talão, de um e dois anéis, foicinhas de alvado, três carrinhos votivos, uma fúrcula, um espeto, objetos de adorno como fíbulas e braceletes (incluindo em ouro), um molde bivalve com um machado no seu interior, taças hemisféricas, uma delas com decoração semelhante à das cerâmicas. Recolheram-se ainda fragmentos de moldes em cerâmica, escórias de fundição e restos de materiais em bronze (sucata). Tal panóplia de materiais, uns de influência atlântica, como os machados e as foicinhas, outros de influência centro-europeia, como os carrinhos votivos e ainda outros de influência mediterrânica oriental, como o espeto, revela-nos a riqueza de contactos entre regiões tão distantes já no final da

A transição do final da Idade do Bronze para a 1ª Idade do Ferro, período que se pode balizar entre o século VIII e o século V a.C., revela-se mais difícil de caracterizar na região de Viseu do que o período anterior. É uma época de movimentação de povos no interior da Península Ibérica e de continuação de influências quer atlânticas, quer mediterrânicas, nas culturas materiais. Relativamente ao território viseense, o conhecimento sobre esses três a quatro séculos é tarefa ainda mais difícil, na medida em que das dezenas de povoados fortificados em altura conhecidos, apenas um número muito reduzido deles foi escavado e em

Idade do Bronze. As cerâmicas recolhidas em Stª Luzia, em contexto de escavações arqueológicas ali realizadas na década de 80 do século XX, são idênticas às recolhidas na Srª da Guia, nomeadamente no que diz respeito à decoração das cerâmicas brunidas com incisões pós-cozedura, tipificando este género como Baiões/Stª Luzia. Também aqui foram recolhidos objetos em bronze como uma foicinha de alvado, dois escopros, fíbulas, um alfinete, uma conta de colar e argolas. (PEDRO, 1995: 19-20, 25-26, 47-48, 61-66; PEDRO, 2000(1): 132-135) Página seguinte: castro da Srª do Crasto (Campo, Viseu). 24

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regional de lugares centrais, que exerciam o seu domínio sobre outros povoados menos importantes que se encontravam no seu território. A importação de objetos de luxo, em metal ou cerâmica, é um forte indício da existência de elites nesses locais centrais e, ao mesmo tempo, da existência de contactos comerciais longínquos, como se pode inferir do fragmento de um lekythos recolhido recentemente em escavações arqueológicas realizadas em Viseu. Durante a 1ª Idade do Ferro a produção de objetos em bronze não cessou, mas passou a concentrar-se quase exclusivamente nos que serviam para adorno pessoal como foi o caso das fíbulas. Na olaria ocorrem também importantes inovações, em primeiro com a introdução da roda de oleiro, mas também com o enriquecimento a nível das formas e motivos decorativos, visto que aparecem os estampilhados com motivos como círculos concêntricos e SSS que se podem observar também na rica ourivesaria produzida neste período. A cerâmica produzida continua a poder dividir-se em dois grandes grupos: um de cerâmicas mais cuidadas, com bons acabamentos, geralmente brunidas e outro grupo de cerâmicas mais grosseiras, com pouca ou nenhuma decoração. A existência de grande número de mós de rebolo ou circulares em todos os povoados deste período revela bem o peso cada vez maior dos cereais na alimentação de uma população também mais numerosa do que anteriormente (SILVA, 1986; SILVA, 1990: 259-341; PEDRO, 1995; PEDRO 2000(2): 166-168; ALARCÃO, 1996: 5-35; ALMEIDA, 2005; ALMEIDA et alii, 2007: 53-59; VILAÇA, 2013: 180182).

No castro de Stª Luzia (Viseu), as escavações arqueológicas ali realizadas comprovaram a sua fundação no Bronze Final, não só pelos materiais cerâmicos e em bronze ali encontrados, mas também por vestígios de cabanas desse período. Porém, também foi identificado uma casa de planta circular, estruturada em pedra, que terá sido construída na transição para a Idade do Ferro. A utilização em larga escala de pedra na construção de casas e muralhas é um dos elementos mais significativos, do ponto de vista arquitetónico, deste período. As frágeis cabanas do Bronze Final são substituídas por casas em pedra de planta circular e telhado de colmo, apresentando na fase de maior desenvolvimento da cultura castreja um átrio ou vestíbulo exterior. Com o sistema defensivo também ocorreram mudanças importantes relativamente ao período anterior. De muralhas pouco robustas, passaram a construir-se sistemas defensivos com uma ou várias linhas de muralhas, com ou sem fosso, cuja solidez e complexidade são reveladoras de um progresso na técnica de construção, por um lado e, por outro, sublinham o cuidado tido com a defesa dos povoados. Vejam-se, a título de exemplo, as muralhas do Castelo dos Mouros (Viseu), do Cabeço do Couço (Vouzela) ou ainda as da Cárcoda (S. Pedro do Sul), para se compreender o investimento realizado pelas populações castrejas na defesa do seu habitat. Este investimento na arquitetura e, um pouco mais tarde, no próprio urbanismo, revela-nos uma maior complexidade da sociedade da Idade do Ferro. A exploração de minérios e o controlo das vias de comércio, constituiu um poderoso motivo para a procura de afirmação

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A chegada dos romanos à Península Ibérica em 218 a.C., no âmbito da IIª Guerra Púnica, marcou o início da sua conquista e domínio por Roma. O impacto deste acontecimento histórico no povoamento castrejo foi muito importante, sobretudo após a campanha militar de Decimus Iunius Brutus realizada no Noroeste peninsular entre 138 a.C. e 136 a. C. Esta, marcará o princípio do apogeu da “Cultura Castreja”, com o aparecimento de castros que foram verdadeiros povoados proto-urbanos como o de Briteiros (Guimarães), Sanfins (Paços de Ferreira), Terroso (Póvoa do Varzim) ou Sta. Luzia (Viana do Castelo). Muitos castros na região de Viseu apresentam fortes vestígios arqueológicos de romanização, como por exemplo os de Srª do Bom Sucesso (Mangualde), Corôa (Oliveira de Frades), Castelo dos Mouros (Viseu), Cabeço do Couço e Paços de Vilharigues (Vouzela), Três Rios, Nandufe, Nossa Srª do Crasto e Guardão (Tondela), Pinho, Banho, Ucha e Cárcoda (S. Pedro do Sul). Neste último foram identificadas características proto-urbanas, em tudo semelhantes aos povoados do noroeste anteriormente referidos. A geografia humana estava à beira de mudar profundamente (SILVA, 1986; PEDRO, 1995; ALARCÃO, 1996: 5-35). Estátua de Viriato em Viseu.

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Romanização

N

As novas civitates encontram-se enumeradas na célebre inscrição romana da Ponte de Alcântara (Espanha), sobre o rio Tejo. Os povos aí referidos são: Igaeditani, Lancienses Oppidani, Tapori, Interannienses, Coilarni, Lancienses Transcudani, Aravi, Meidubrigenses, Arabrigenses, Banienses e Paesures. Estes, tinham contribuído não só para a construção daquela ponte como, provavelmente, da própria estrada que ligava Emerita Augusta a Bracara Augusta, passando por Vissaium (Viseu). Esta, fundada por Augusto no âmbito da reforma por ele empreendida, era um centro irradiador de vias romanas. À medida que o domínio romano ganhava raízes, fazendo-se sentir cada vez mais pela força da sua civilização do que pela força das armas, os povos indígenas que habitavam os castros foram adotando objetos, a religião, práticas quotidianas e a própria língua das gentes do Lácio. Nos primeiros séculos da nossa Era, alguns desses castros permaneciam habitados, como já vimos, a par das cidades fundadas, dos vicus (aldeias), das villae (quintas) e dos casais que foram surgindo à medida que o povoamento se intensificava e diversificava, alterando profunda e decisivamente a paisagem humana do território viseense. No lugar de Sêrno ou Pedreiras, na povoação de Silgueiros, foram descobertos fragmentos de dolium, de pasta beije, que testemunham a presença romana naquele sítio. Não sabemos

o Iº milénio a.C. vários povos e grupos étnicos menores encontravam-se distribuídos pela Península. Interessa-nos, em particular, o território compreendido entre os rios Tejo e Douro, na medida em que desde finais da Idade do Bronze este espaço era habitado por um conjunto de povos de origem indo-europeia pré-céltica que no seu conjunto eram designados de Lusitanos. Entre 147 a.C. e 139 a. C. estes povos foram chefiados por Viriato, o herói que acabaria por ser morto à traição. Em 25 a. C., com Augusto, os últimos redutos de resistência à ocupação romana no Norte da Península Ibérica foram dominados. A partir de então foi encetada uma profunda reforma político-administrativa que incluiu a criação da província da Lusitânia, a fundação da sua cidade capital, Emerita Augusta (Mérida-Espanha), a urbanização de antigos castros, a fundação de cidades e a delimitação dos territórios das civitates dos vários povos que constituíam os Lusitanos. Augusto promoveu também a construção de uma rede viária a ligar todas as cidades e outros lugares habitados da nova província. Esta reforma foi decisiva para a aculturação dos indígenas, tendo como ponto de partida um programa de reordenamento territorial que não deixou de ter em consideração a realidade étnica pré-romana na delimitação das novas circunscrições criadas no Entre-Tejo-e-Douro.

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Inscrição romana: Às deusas e deuses vissaieigenses. Albino, filho de Quéreas, cumpriu o voto de bom grado e merecidamente. Página anterior: estrada romana em Bodiosa-a-Velha.

Cláudio (41-54) marcando a milha V. Uma segunda estrada romana, também proveniente de Viseu, atravessava o território bodiosense em Pereiras. Esta via passava na base da Senhora do Crasto, onde se preserva um extraordinário troço calcetado, seguindo depois por Lubagueira, Pereiras e Caria. Aqui, infletia para ocidente, atravessando uma rica região estanhífera, onde já havia exploração mineira. A estrada prosseguia por Ponte Pedrinha, Fataúnços e Vouzela, atravessando a região de Lafões para ocidente. Desta via conhecem-se também vários marcos miliários. (ALARCÃO, 1988(1): 102-105; ALARCÃO, 1988(2): 58-59; ALARCÃO, 1990: 383-441; MANTAS, 2004: 438-469; LOPES, 2008: 75-132)

exatamente a que tipo de habitat correspondia, nem a sua cronologia. A construção da rede viária permitiu que todos os lugares habitados estivessem ligados entre si por estradas principais ou secundárias, que tinham como ponto de partida e, como tal, de contagem das milhas, as cidades capitais de civitas. Em Bodiosa-a-Velha preserva-se um belo troço da estrada que saía de Viseu, passava onde hoje é Pascoal, Mozelos, Bodiosa-a-Velha, aqui num percurso sensivelmente paralelo ao rio Trouço, Gumiei, Lufinha, Ponte Nova até chegar ao rio Vouga. Desta via conhecem-se dois marcos miliários encontrados em Mozelos, um do Imperador Adriano (117-138) marcando a milha IV e o outro do Imperador 30

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Miliário de Mozelos (ano 120-121): milha IV Assembleia Distrital de Viseu

Miliário de Mozelos (ano 54): milha V Assembleia Distrital de Viseu

Inscrição:

Inscrição:

IMP CAES DIVI

TI CLAVDIVS

TRAI PARTHICI F DIVI NERVAE NEPOS

CAESAR AVG

TROIANVS HADRIANVS

G[…]VS

AVG PONT

P M TR[…] P

MAX TRIB

XIIII IMP

POT V COS III

XXVII P P

RIIFIICIT

MV

M IIII Interpretação: Interpretação:

TI(berius) CLAVDIVS /

IMP(erator) CAES(ar) DIVI /

CAESAR AVG(ustus) /

TRAI(ani) PARTHICI F(ilius)

G[ERMANIC]VS /

DIVI NERVAE NEPOS /

P(ontifex) M(aximus)

TROIANVS HADRIANVS /

TR[IB](unitia) P(otestate) /

AVG(ustus) PONT(ifex) /

XIIII(decima quarta) IMP(erator) /

MAX(imus) TRIB(unitia) /

XXVII(vigesimum septimum)

POT(estate) V(quinta)

P(ater) P(atriae) /

CO(n)S(ul) III(tertium) /

M(ilia) V(quinta)

REFECIT / M(ilia) IIII(quatuor)

Leitura: Tibério Cláudio César

Leitura:

Augusto, Germânico,

O Imperador César, Trajano

Pontífice Máximo,

Adriano Augusto, filho do

detentor do Poder Tribunício

divino Trajano Pártico, neto

pela 14ª vez,

do divino Nerva, Pontífice

Imperador pela 27ª vez,

Máximo, detentor do poder

Pai da Pátria. Milha 5.

Fragmentos cerâmicos de Sêrno ou Pedreiras, Silgueiros (Bodiosa) Fragmento de dolium de pasta beije, com bastante desengordurante em grãos e partículas miúdas, recolhido pelo Dr. José Coelho em 1932 (COELHO, 1941: 431-432). Classificado como Baixo Império. (JC-79-207)

Tribunício pela quinta vez, Cônsul pela terceira, refez. Milha 4.

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Da Idade Média ao século XVIII

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N

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1. Dólmen de Vale da Cabra | 2. Mamoa do campo de futebol de Pereiras | 3. Mamoa de Fontão | 4. Mamoa de Fontão | 5. Dólmen da Grutinha | 6. Mamoa da Grutinha | 7. Mamoa da Grutinha | 8. Dólmen do Fojo | 9. Dólmen do Fojo | 10. Dólmen do Fojo | 11. Lapa do Repilau | 12. Antela do Repilau | 13. Mamoa de Queimadas | 14. Mamoa de Queimadas | 15. Mamoa de Queimadas | 16. Mamoa de Queimadas | 17. Castro da Senhora do Crasto | 18. Moselos, estrada e miliários romanos | 19. Bodiosa-a-Nova, estrada romana | 20. Serra do Crasto, estrada romana | 21. Silgueiros, povoamento romano | 22. Sepulturas rupestres e habitat de Falgarosa | 23. Lagareta de Fontão | 24. Lagareta do pinhal do Rijo | 25. Lagareta de Bodiosa-a-Velha | 26. Lagareta de Santa Maria

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em profunda crise devido a várias guerras internas. A capital deixou de ser Toledo e passou a ser Córdova. Viseu permaneceu cidade diocesana mas também passou a ser capital de uma circunscrição administrativa árabe: a Kura (MARQUES, 1993: 187). Entre inícios do século VIII e os meados do século XI, a história da cidade de Viseu e da sua região confunde-se com a história das vicissitudes do avanço e recuo da fronteira entre cristãos e muçulmanos no entre Douro e Mondego. Com a fragmentação do Califado Omíada do al-Andalus a situação ainda se tornou mais complexa porque os novos reinos de Taifas digladiaram-se também entre si, facto que foi aproveitado pelos reinos cristãos do Norte e, em particular, pelo rei Fernando Magno de Leão e Castela. As sepulturas escavadas na rocha, também designadas de rupestres, constituem um dos mais significativos vestígios arqueológicos deste período por todo o Norte e Centro de Portugal. São a prova inequívoca da existência de um povoamento altomedieval num território que viveu ao longo de quase quatro séculos, entre 711 e 1065, as vicissitudes de lutas entre cristãos e muçulmanos. As sepulturas rupestres mais antigas remontarão aos séculos VI-VII e as mais recentes aos séculos XII-XIII. Inicialmente tinham configurações retangular, oval e trapezoidal. A partir do século X, sensivelmente, passam a ter o seu interior

os inícios do século V (409), alguns povos provenientes da Europa Central e da região do Cáucaso atingiram a Península Ibérica, como foi o caso dos Vândalos, dos Alanos e dos Suevos. Alguns anos mais tarde, também os Visigodos entraram na Península. A chegada de todos estes povos à parte ocidental do Império Romano, a par das crises política, económica e militar vividas, conduziu nos finais do século V à desagregação da parte ocidental do Império e à constituição de vários reinos bárbaros. Na Península Ibérica formaram-se os reinos Suevo, no Noroeste peninsular, e o Visigodo, no restante território. Porém, em 585 o reino suevo acabou por ser dominado pelo visigodo, que estabeleceu capital em Toledo. Quer durante o primeiro reino, quer durante o segundo, Viseu era uma das cidades episcopais, com um vasto território diocesano que em muito ultrapassava o da antiga unidade administrativa romana da civitas. A região de Bodiosa, a pouca distância de Veseo, como aparece nas moedas cunhadas na cidade durante o reinado de Sisebuto (612-621) e de Suintila (621-631), integrava essa nova e duradoura circunscrição religiosa e administrativa (MARQUES e EUSÉBIO, 2007: 82-85). Em 711, novos povos aportaram à Península Ibérica, uma vez mais procedendo do Mediterrâneo: os árabes. Em poucos anos conquistaram o reino visigótico que se encontrava

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das com pequenas pedras, também designadas de polilíticas. O trabalho de escavação da sepultura demorava aproximadamente três dias, o que corresponderia ao período de velório do defunto. Após a morte o corpo era lavado numa espécie de banho ritual que poderia ocorrer em sua casa ou no cemitério antes de se enterrar o corpo, como sugerem alguns pios rupestres existentes em necrópoles como acontece em Água Afonso (Torredeita). Estes pios rupestres apresentam dimensões bastante reduzidas, o que não permitia a introdução completa do corpo no seu interior. Assim pensamos que o banho seria meramente simbólico. Em seguida, o corpo era envolto num sudário e sem qualquer objeto a acompanhá-lo era deitado de costas e a campa tapada com uma laje ou com várias lajes mais pequenas. Fechada a sepultura, esta podia ser coberta com terra ou deixada visível. O facto de haver muitas campas que se encontram em penedos de pequenas dimensões, mais parecendo sarcófagos, indica claramente que não ficavam soterradas. Os bordos que muitas sepulturas ostentam também podem ser outro argumento para a sua posição aparente, na medida em que estes serviam para impedir que a água das chuvas escorresse para o seu interior e ao mesmo tempo serviam de delimitação clara do túmulo. O aspeto final destas sepulturas era marcado pelo anonimato total na medida em que não se conhece nenhuma em que tenha aparecido qualquer inscrição a identificar a pessoa que foi ali enterrada. Tal como se verificou em sepulturas de outras tipologias, como as estruturadas com pequenas pedras ou os sarcófagos, também pensamos que ocorressem reutilizações das sepulturas rupestres para novos enterramentos, eventualmente de familiares (BARROCA, 1987; MARQUES, 2000).

com contornos antropomórficos para a cabeça e ombros, sendo mais raro para as restantes partes do corpo. O contorno da cabeça apresenta várias formas desde retangular, quadrada, com arco de volta perfeita, arco peraltado e arco ultrapassado. A grande maioria dos túmulos rupestres encontram-se em locais destacados na paisagem, junto a caminhos, muitas vezes na periferia de aldeias e de outros locais habitados. Constituem uma percentagem muito inferior aquelas sepulturas que se encontram nos adros de igrejas, capelas ou outros locais de culto antigo. Tal facto não deixa de ser significativo na medida em que coloca este modelo de enterramento num período em que a institucionalização do cemitério paroquial ou ainda não acontecera ou começava a dar os primeiros passos. No total, conhecem-se no concelho de Viseu quatro dezenas de locais com sepulturas escavadas na rocha, um deles o de Falgarosa, perfazendo mais de oito dezenas de túmulos entre não-antropomórficos e antropomórficos. A maioria encontra-se ou isolada ou constituindo pequenas necrópoles, com duas a quatro sepulturas, formando uma espécie de cemitério familiar. Estes, encontram-se sempre associados a vestígios arqueológicos de habitats, como sucede também em Falgarosa. Que motivos terão levado o homem medieval a fazer-se sepultar neste tipo de túmulo, quando as tradições anteriores eram bem mais simples? Não sabemos quais foram essas razões, mas dado o elevado número existente e a sua utilização durante vários séculos, é um facto que se tornaram bastante comuns, diríamos, populares. Isto não invalidou que as sepulturas rupestres coexistissem com outros tipos de campas, nomeadamente as estrutura-

Sepultura rupestre de Falgarosa.

Sepulturas rupestres da Falgarosa, Oliveira de Cima

Excerto de livro de Aquilino Ribeiro:

Duas sepulturas rupestres de indivíduos adultos, uma delas de planta antropomórfica com cabeceira em arco ultrapassado. A segunda sepultura é trapezoidal e encontra-se parcialmente truncada. Nos terrenos envolventes ao local onde se encontram as campas há muita pedra miúda, tégulas e imbrices e foi encontrada uma soleira de porta. O aparecimento destes materiais indicia que existiu um habitat neste sítio.

S. Banaboião, Anacoreta e Mártir Conforme a derradeira vontade de Beltrasanas, tinham-lhe aberto a cova a pico, em plena rocha viva, naquela face do penedo que olhava a Oriente, donde nasce todas as manhãs a luz astral e veio uma vez, para redenção do mundo, a luz perpétua. Não obstante o obséquio das aldeias serranas que, piedosamente, forneceram pedreiros com ferramenta, o granito era tão duro que consumiram no trabalho quatro longos dias. (…) Mas Beltrasanas ficaria num sarcófago ao estilo dos primeiros tempos do cristianismo, obra de três côvados de comprido, com recrava à proporção da cabeça, incisura para os ombros, largo em cima, estreito em baixo, e um orifício ao fundo para descarregar os humores da decomposição.”

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Livro de Horas de D. Manuel (c. 1538). Julho: na cena central como na lateral, gado vacum e cavalar, respetivamente na primeira e na segunda, calcam o cereal na designada debulha a sangue.

tarde em vários documentos de compra/vende e doação de bens. Vejamos o que referem esses textos medievais. Em junho de 1140, Elvira Aires entrega em penhor a D. Gonçalo, prior de Stª Maria de Viseu, metade de um casal em Silgueiros, pelo prazo de um ano, por sete morabitinos que ele lhe tinha dado (DSV: nº83). Passados quase dois anos, em fevereiro de 1142, Nuno Guterres e Paio Guterres doam uma herdade em Travanca ao Mosteiro de Stª Cruz de Coimbra (LS: nº105). Também Fernando Gondesendes e a mulher vendem aquele mosteiro conimbricense, em janeiro de 1146, uma herdade em Silgueiros (LS: nº218). Ainda nesse ano, Stª Cruz vai adquirir várias herdades na região bodiosense, ou por compra ou por doação: em abril, Pedro Corrieques doa-lhe uma herdade que tinha em Travanca (LS: nº104), Soeiro Pais e a mulher vendem uma herdade que tinham em Travanca e em Queirela (LS: nº214), Paio Guterres doa-lhe uma herdade em Travanca (LS: nº108). Estas aquisições crúzias, bem como os respetivos foros régios, serão lembrados em 1258 pelos jurados de Bodiosa que responderam às inquirições de Afonso III (Inq: 886-888)

Após a vitoriosa “Campanha das Beiras” empreendida pelo rei Fernando Magno de Leão e Castela, entre 1035 e 1064, todo o território compreendido entre o rio Douro e o rio Mondego ficou definitivamente integrado nos reinos cristãos. Simultaneamente, o monarca leonês procedeu à reorganização desse vasto território em novas unidades político-militares designadas de Terras, muito mais pequenas em área do que as anteriores civitates criadas no reinado de Afonso III (866911). A cidade de Viseu, que fora sede de uma dessas extensas circunscrições afonsinas, passou a ser a capital da Terra de Viseu, cujo território do seu lado noroeste se estendia pela região bodiosense até à zona de Ribafeita. Aqui, o território viseense confrontava com o de Lafões, como se pode constatar a partir da inquirição mandada realizar em 1127 por Dª Teresa e pelo conde Fernão Peres de Trava (DR, I: nº74). Nesse importante documento, sobretudo para o conhecimento do povoamento do território de Viseu nos tempos da fundação da nacionalidade, são inumeradas 52 villae, termo que aqui significa aldeia, onde existiam 158 casais que pagavam foros à condessa. Ora, uma dessas villae citadas era Caireela (Queirela), aldeia onde se localizava o casal de Rodrigo Andrias. Trata-se, portanto, da mais antiga referência documental conhecida a uma povoação da atual freguesia de Bodiosa. Este facto não exclui a hipótese muito provável de já existirem outras aldeias e/ou outros casais próximos, como aqueles que aparecem referidos anos mais

“Travanca é herdade da igreja de Viseu e de Santa Cruz” e dela “dão ao Rei voz e calúnia e os homens de Santa Cruz de Travanca dão em coleta régia e vão em hoste e anúduva” e que

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Agosto: camponeses juntam o cereal e limpam-no ao vento e na peneira.

uma herdade em Travanca a Eugénia Mendes, por um lenço (DSV: nº131). As aquisições de Soeiro Tedones terão terminado em 1164 (DSV: nº132) com a compra de cinco partes de uma herdade em Travanca a Fernando Pais e sua mulher Gontinha Mendes e, também, suas irmãs e cunhados (Maria pais casada com Paio Aires, outra Maria Pais, Ausenda Pais casada com Gonçalo Mendes e Mónia Pais). Comprou também as arras que o pai de Fernando Pais dera à sua mãe, por um morabitino. Em abril de 1176, D. Godinho, bispo de Viseu, o prior e os cónegos da Sé convencionam com Pedro Dias e com sua mulher Susana Mendes dar-lhes o casal das Quintãs, em Travanca, ficando eles a pagar ao bispo e ao cabido, tanto deste casal como do casal de Outeiro (que era de Pedro Dias e mulher), a renda da sexta parte de todos os frutos e um foro (DSV: nº153). Será ainda uma herdade em Travanca que D. Afonso Henriques doará em testamento a D. João Peres, bispo de Viseu, em julho de 1183 (DSV: nº159). Até esta data e considerando a documentação existente, podemos afirmar que a paisagem humana que a futura freguesia irá ter começava a definir-se. As inquirições realizadas em 1258 (Inq: 886-888), durante o reinado de Afonso III, dão-nos a primeira imagem global do povoamento do território bodiosense, que já constituía a paróquia de S. Miguel. Com exceção de Bodiosa-a-Nova, todos os núcleos populacionais que ainda hoje constituem a freguesia já eram citados.

“Queirela é herdade de Santa Cruz, entrega ao Rei três calúnias pelo uso da herdade de Santa Cruz e dão ao Rei na coleta”. A 22 maio de 1151, Mónio Mendes e a mulher fizeram testamento a Stª Cruz de Coimbra de prédios que possuíam em Vila Nova (Moçâmedes), ¼ de Vilar, dois casais em Souto de Lafões e o que tinham em Vilharigues. Para além deste importante património localizado na vizinha região de Lafões, doam também à Sé de Viseu dois casais que tinham em Bodiosa (LS: nº50). Em 1154 D. Afonso Henriques doa os casais de Echea, de Godesteo, de Sendino, de Alvito e de Taoi, em Travanca, ao presbítero Soeiro Tedones, com isenção de direitos reais, por este ter ajudado Rodrigo Exemeniz quando se encontrava doente (DR, I: nº249). Não sabemos se Soeiro Tedones já anteriormente aqui tinha outros bens. Provavelmente não. Depois desta doação afonsina, o presbítero viria a comprar várias herdades em Travanca e Queirela. Em fevereiro de 1160 comprou a Ausenda Mendes e seu marido Pedro Mouro, uma herdade em Travanca, por um lenço (DSV: nº124) e a Paio Mendes e sua mulher Elvira Pais uma herdade também em Travanca e outra em Queirela, igualmente por um lenço (DSV: nº125). No ano seguinte comprou nas mesmas localidades uma herdade por oito morabitinos a Pedro Goesteiz e sua mulher Aimia Feiz e a Boa Goesteiz e seu marido Gonçalo Ermiges (DSV: nº127). Em 1162 comprou mais

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De parrochia Sancti Michaelis de Bodiosa - Fernandus Martini juratus et interrogatus de patronatu ecclesie Sancti Michaelis de Bodiosa dixit, quod ecclesie de Bodiosa est hedificata inter villam de Bodiosa et Ulvariam, que sunt forarie Regis de jugata, in ipso loco termino, in quo ecclesia sedit, nullus habet hereditatem nisi Rex, sed tamen parrochiani preserverunt semper eidem ecclesie. Pelagius Lageosa dixit similiter. Idem Fernandus Martini juratus dixit, quod in Ulvaria de Fine habet Dominus Rex duas focarias forarias de jugata, et est tota Regis, et de istis focariis est una depopulata et descendit in regalengum. Interrogatus, quod forum faciunt Regi de istis focariis, dixit, quod debent dare de jugata de pane de qualibet focaria x quartarios et sexteiro, et de ista jugata debent esse de tritico v taligas et alius de milio et centeno, et debent dare sextam de vino et de lino, et de eiradiga de vino j puzal et de lino unum monolium, et unum caponem et unum franganum et x ova, et taligam de centeno de fogaza, et corazil, et dant in collecta Regis, et dant pro pausa et pro vita riquihominis xvij solidos et medium et maiordomo ij solidos et medium, et vadunt in hostem et anuduvam. Martinus Gunsalvi de Ulvaria dixit similiter. Menendus Johannis de Ulvaria dixit similiter. Vincencius Johannis dixit similiter. Martinus Roderici dixit similiter. Idem Fernandus Martini juratus dixit, quod Ulvaria de Medio est due focarie Regis de jugata, et faciunt de illis talem forum, qualem faciunt de istis predictis focariis de Ulvaria de Fine. Martinus Gunsalvi de Ulvaria, dixit similiter. Menendus Johannis de Ulvaria dixit similiter. Vincencius Johannis dixit similiter. Martinus Roderici dixit similiter. Idem Fernandus Martini juratus dixit, quod Ulvaria de Fundo est due focaria Regis de jugata, et faciunt de illis talem forum, qualem faciunt de istis predictis focariis de Ulvaria de Fine et de Medio, excepto quod non dant iste due focarie pro eiradiga de vino nisi unum punzal et de lino j manolium. Martinus Gunsalvi de Ulvaria dixit similiter. Menendus Johannis dixit similiter. Vincensius Johannis dixit similiter. Martinus Roderici dixit similiter.

Sobre a paróquia de São Miguel de Bodiosa – Fernando Martinho, jurado e interrogado, sobre o patronato da igreja de São Miguel de Bodiosa disse que a igreja de Bodiosa está edificada entre a vila de Bodiosa e Oliveira, que são foreiras de jugada do Rei, dentro do seu termo no qual a igreja está ninguém tem herdade a não ser o Rei, todavia os paroquianos preservaram sempre a sua igreja. Pelágio Lageosa disse o mesmo. Idem Fernando Martinho, jurado, disse que em Oliveira de Fim o Senhor Rei tem duas fogueiras foreiras de jugada, e é toda régia, e destas fogueiras uma está despovoada e afastada no reguengo. Interrogado sobre que foros pagam ao Rei destas fogueiras, disse que devem dar de jugada de pão, por qualquer das fogueiras, X quarteiros e sesteiro e desta jugada devem dar de trigo V taligas e outros de milho e centeio, e devem dar a sexta de vinho e de linho, e de eiradega de vinho um puçal, e de linho um manúlio e um capão e um frangão e X ovos e uma taliga de centeio de fogaça, e corazil, e dão na coleta régia, e dão pela pausa e pela vida dos ricos-homens XVII soldos e meio, e ao mordomo II soldos e meio, e vão em hoste e anúduva. Martinho Gonçalo de Oliveira disse o mesmo. Mendo João de Oliveira disse o mesmo. Vicente João disse o mesmo. Martinho Rodrigues disse o mesmo. Idem Fernando Martinho, jurado, disse que Oliveira do Meio tem duas fogueiras régias de jugada e pagam delas o mesmo foro que pagam as fogueiras de Oliveira de Fim. Martinho Gonçalves de Oliveira disse o mesmo. Mendo João de Oliveira disse o mesmo. Vivente João disse o mesmo. Martinho Rodrigues disse o mesmo. Idem Fernando Martinho, jurado, disse que Oliveira do Fundo tem duas fogueiras régias de jugada e pagam delas o mesmo foro que pagam das fogueiras de Oliveira de Fim e do Meio, exceto os que não dão estas duas fogueiras pela eiradega de vinho, nem um puçal, e de linho um manúlio. Martinho Gonçalves de Oliveira disse o mesmo. Mendo João disse o mesmo. Vicente João disse o mesmo. Martinho Rodrigues disse o mesmo.

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Pelagius Lageosa juratus et interrogates dixit, quod homines Episcopi de Travanca filiaverunt unas bonas hereditates de focaria de Ulvaria depopulata, que descendit in regalengum; et modo ipsi habent et possident ipsas hereditates et nullum forum faciunt Regi. Interrogatus de loco, in quo jacent ipse hereditates, dixit, quod in Rivo Trozi et in ripario de Moazelos et in Mazanaria. Stephanus Pelagii de Ulvaria juratus et interrogatus dixit, quod ecclesia de Bodiosa habet de testamento unam hereditatem forariam Regis de Ulvaria, et vocatur Terrenos de Vinea, et modo ecclesia habet eam. De tempore non recordatur. Martinus Roderici dixit similiter. Martinus Gunsalvi de Ulvaria dixit similiter. Egas Petri dixit similiter. Martinus Roderici juratus dixit, quod Gunsalvus Pelagii Romao testavit ecclesie de Bodiosa unam vineam forariam Regis de sexta de focaria de Bodiosa in Bodiosa de Sauto; et modo ecclesia habet ipsam vineam et nullum forum facit Regi. Interrogatus de tempore dixit, quod ex tempore Domini Regis Sancii fratris istius Regis. Martinus Gunsalvi de Ulvaria juratus dixit, quod ista vinea est foraria Regis et habet eam ecclesia. Egas Petri de Ulvaria dixit sicut Martinus Roderici. D. Diaz dixit similiter. Johannes Diaz dixit similiter. Martinus caballarius de Queyreela dixit similiter. Martinus Gunsalvi de Ulvaria juratus dixit, quod Martinus Johannis canonicus de Viseo et prelatus ecclesie Sancti Michaelis de Bodiosa filiavit unum montem de focariis Regis de Ulvaria, et fecit et facit in eo devesam, et modo ecclesia de Bodiosa habet et utitur ipsam devesam, et modo Regis homines non sunt ausi talliare de unum lignum nec mactare in ea unum conilium. Stephanus Pelagii dixit similiter. Martinus Roderici dixit similiter. Dominicus Gunsalvi de Valle juratus et interrogatus dixit, quod Gunsalvus Romao testavit ecclesie de Bodiosa unam hereditatem forariam Regis de jugata de focaria de Bodiosa in Pereyras. Interrogatus de tempore dixit, quod tempore istius Regis. Petrus Pelagii de Valle dixit similiter. Egas Petri de Ulvaria juratus et interrogatus dixit quod Petrus Petri Crespo morabatur in Bodiosa in hereditate Regis, et habebat in Riparia

Pelágio Lageosa, jurado e interrogado, disse que os homens do Bispo, de Travanca, filharam umas boas herdades da fogueira despovoada de Oliveira, que está afastada no reguengo; e desta forma eles têm e possuem essas herdades e não pagam nenhum foro régio. Interrogado sobre o lugar no qual estão essas herdades, disse que no Rio Trouço e no ribeiro de Mozelos e em Macieira. Esteves Pelágio de Oliveira, jurado e interrogado, disse que a igreja de Bodiosa tem por testamento uma herdade foreira régia de Oliveira e chama-se Terrenos de Vinha e deste forma a igreja tem-na. Não se recorda desde quando. Martinho Rodrigues disse o mesmo. Martinho Gonçalves de Oliveira disse o mesmo. Egas Pedro disse o mesmo. Martinho Rodrigues, jurado, disse que Gonçalves Pelágio Romão fez em testamento à igreja de Bodiosa uma vinha foreira régia de sexta, da fogueira de Bodiosa de Souto e desta maneira a igreja tem esta vinha e não paga nenhum foro régio. Interrogado sobre quando isto aconteceu disse que no tempo do Senhor Rei Sancho, irmão deste Rei. Martinho Gonçalves de Oliveira, jurado, disse que esta vinha é foreira régia e quem a tem é a igreja. Egas Pedro de Oliveira disse tal como Martinho Rodrigo. D. Dias disse o mesmo. João Dias disse o mesmo. Martinho, cavaleiro, de Queirela disse o mesmo. Martinho Gonçalves de Oliveira, jurado, disse que Martinho João, canónico de Viseu e prelado da igreja de S. Miguel de Bodiosa, filhou um monte das fogueiras régias de Oliveira e fez e faz nela devesa e deste modo a igreja de Bodiosa tem esta devesa, e por isso os homens do Rei não ousam colher lenha, nem caçar nela um coelho. Estevão Pelágio disse o mesmo. Martinho Rodrigues disse o mesmo. Domingos Gonçalves do Vale, jurado e interrogado, disse que Gonçalves Romão doou em testamento à igreja de Bodiosa uma herdade foreira régia de jugada da fogueira de Bodiosa em Pereiras. Interrogado sobre há quanto tempo foi, disse que foi no tempo deste Rei. Pedro Pelágio do Vale disse o mesmo. Egas Pedro de Oliveira, jurado e interrogado, disse que Pedro Pedros Crespo quando morava em Bodiosa na herdade do Rei e tinha

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in Rivo Trozi unam hereditatem, de qua dabat octavam de pane Domino Regi, et habebat in ipso loco unum mollinum in ipsa hereditate Regis, et hereditas vocatur de Salvatore Rubeo; et modo Petrus de Valle miles tenens ipsam hereditatem et ipsum mollinum dedit totum uni soprino suo nomine Johanni Martini; et modo Johannes Martini habet ipsam hereditatem et ipsum mollinum, et nullum forum facit Regi. Petrilinus de Gomeey juratus dixit, quod ista hereditas et iste mollinus fuit de Petro Crespo de Bodiosa, et hereditas est foraria Regis, et mollinus sedet in hereditate Regis. Martinus Fagundo de Villa Gaga dixit, quod vidit monachum demandare istum mollinum et istam hereditatem, et Petrus Gunsalvi de Valle percussit ipsum monachum, ideo quod demandabat ipsum mollinum et ipsam hereditatem. […] De Bodiosa Veteri – Dominicus Michaelis de Bodiosa Veteri juratus et interrogatus dixit, quod Bodiosa Vetera est de militibus de avolenga. Interrogatus de foris Regis de Bodiosa dixit, quod pectant Regi vocem et calumpniam tantum. Martinus Diaz dixit similiter. Suierius Gunsalvi judex de Viseo dixit similiter. De Bodiosa de Sauto – Dominicus Diaz juratus et interrogatus dixit, quod in Bodiosa de Sauto habet Dominus Rex duas focarias de jugata, et habet ibi aliam hereditatem, de qua dant ei octavam partem de pane et de vino et de lino, et unum conilium, et duos alqueires de centeno de fogaza. Interrogatus de foris de istis facariis forariis de jugata dixit, quod dant Regi de jugata de istis focariis iiij modios iij quartarios de milio et centeno, et sextam de vino et de lino, et alios foros totos sicut est de usu et de consuetudine. Menendus Johannis dixit similiter. Johannes Diaz dixit similiter. Johannes Gunsalvi dixit similiter. De Queyreela – Martinus caballarius juratus et interrogatus dixit, quod de Queyreela, que est hereditas Sancte Crucis, pectant Regi tres columpnias per usum de hereditate Sancte Crucis, et dant Regi in col-

no Ribeiro no Rio Trouço uma herdade da qual dava a oitava de pão ao Senhor Rei e havia nesse mesmo lugar um moinho, nessa herdade régia, e a herdade chamava-se de Salvador Ruivo; e desta maneira Pedro do Vale, cavaleiro, tendo essa mesma herdade e esse mesmo moinho deu-o todo a um seu sobrinho de nome João Martinho; e desta forma João Martinho tem essa herdade e esse moinho e não paga nenhum foro Régio. Petrilinus de Gomiei, jurado, disse que esta herdade e este moinho foi de Pedro Crespo de Bodiosa e a herdade é foreira régia e o moinho está na herdade régia. Martinho Fagundo de Vila Gaga disse que viu o monge pedir este moinho e esta herdade e Pedro Gonçalves do Vale agrediu esse mesmo monge por isso, quando demandava esse moinho e essa herdade. […] Sobre Bodiosa-a-Velha - Domingos Dias, jurado e interrogado, disse que em Bodiosa de Souto o senhor Rei tem duas fogueiras de jugada e tem aí outra herdade da qual lhe dão a oitava parte do pão e do vinho e de linho e um coelho e dois alqueires de centeio de fogaça. Interrogado acerca dos foros das fogueiras de jugada disse que dão ao Rei de jugada destas fogueiras IIII moios quarteiros de milho e centeio e a sexta de vinho e de linho e todos os outros foros segundo é de uso e costume. Mendo João disse o mesmo. João Dias disse o mesmo. João Gonçalves disse o mesmo. Sobre Queirela - Martinho, cavaleiro, jurado e interrogado, disse que Queirela é herdade de Santa Cruz, entrega ao Rei três calúnias pelo uso da herdade de Santa Cruz e dão ao Rei na coleta; e disse que viu homens de Queirela irem em anúduva a Pinhel, e assim vão em hoste e anúduva. João Bom disse que dão ao Rei em coleta e vão em anúduva régia. Dom Miguel disse o mesmo.

Sobre Silgueiros – Lourenço Moniz, jurado e interrogado, disse que Silgueiros é dos cavaleiros por avoenga e entregam dela ao Rei apenas a voz e calúnia. João Pedro disse o mesmo. Soeiro Gonçalves, juiz de Viseu, disse o mesmo e acrescentou que é quintã honrada. Sobre Travanca – Pedro Mendes, jurado e interrogado, disse que Travanca é herdade da igreja de Viseu e de Santa Cruz, dão ao Rei voz e calúnia e os homens de Santa Cruz de Travanca dão em coleta régia e vão em hoste e anúduva. Estevão Martinho disse o mesmo. D. Pelágio disse o mesmo. Mendo Martinho disse o mesmo. Soeiro Gonçalves, juiz de Viseu, disse o mesmo. Sobre o Vale – Martinho Pedro do Vale, jurado e interrogado, disse que o Vale é herdade dos cavaleiros por avoenga e dão ao Rei apenas voz e calúnia. Pedro Soares disse o mesmo. Soeiro Gonçalves, juiz de Viseu, e muitos outros disseram o mesmo.

De Sirgueyros – Laurencios Moniz juratus et interrogates dixit, quod Sirgueyros est de militibus per avolengam et pectant de ea Regi vocem et calumpniam tantum. Johannes Petri dixit similiter. Suierius Gunsalvi judex de Viseo dixit similiter; et addit, quod est quintana honorata. De Travanca – Petrus Menendi juratus et interrogatus dixit, quod de Travanca, que est hereditas ecclesie de Viseo et de Sancta Cruce, pectant Regi vocem et calumpniam, et homines Sancte Crucis de Travanca dant in collecta Regis et vadunt in hostem et anuduvam. Stephanus Martini dixit similiter. D. Pelagii dixit similiter. Menendus Martini dixit similiter. Suierius Gunsalvi judex de Viseo dixit similiter. De Valle – Martinus Petri de Valle juratus et interrogatus dixit, quod de Valle, que est hereditas militum de avolenga, pectant Regi vocem et calumpniam tantum. Petrus Suariz dixit similiter. Suierius Gunsalvi judex de Viseo et multi alii dixerunt similiter.

lecta; et dixit, quod vidit homines de Queyreela ire ad anuduvam ad Pinellum, et modo vadund in hostem et anudam. Johannes Bonus dixit, quod dant Regi in collecta et vadunt in anuduvam Regis. Donnus Michael dixit similiter.

Oliveira de Cima.

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Silgueiros, quintã honrada dos cavaleiros por avoenga, pagava: - voz e calúnia. Vale, herdade dos cavaleiros por avoenga, pagava: - voz e calúnia Os jurados também informaram os inquiridores de algumas usurpações de direitos régios tais como: que Gonçalo Pelágio Romão fez testamento à igreja de Bodiosa de uma vinha foreira régia da fogueira de Bodiosa de Souto e de uma outra herdade em Pereiras, também da fogueira de Bodiosa; que o prelado da igreja de Bodiosa, Martinho João, tinha filhado um monte da fogueira régia de Oliveira e fazia devesa nela; que João Martinho tinha uma herdade régia em Bodiosa chamada Salvador Ruivo, junto ao rio Trouço, por herança do seu tio Pedro Vale da qual não pagava o foro devido. A agricultura constituía a principal atividade da população durante a Idade Média. Em Bodiosa, como por todo o Reino, os trabalhos campestres sucediam-se ciclicamente como as estações do ano, num quadro de vivências de longa duração, aparentemente imutáveis desde os inícios dos tempos. Numa época em que o pão era a base da alimentação das populações, os cereais como o trigo, o milho, o centeio e a cevada ocupavam a primazia na produção agrícola. A aveia destinava-se essencialmente ao alimento de gado. Os cereais, cultivados exclusivamente em regime de sequeiro, exigiam terras enxutas, onde se semeava alternadamente espécies de inverno, como o trigo, o centeio, a cevada e a aveia, e espécies de verão, como o milho alvo, o milho miúdo e o milho painço. O trigo, semeado entre outubro e setembro, era de três qualidades: galego, tremês e mourisco. A moagem de cereais podia ser realizada em casa, utilizando mós de rebolo e mós circulares de tradição romana ou, numa escala maior, num moinho de rodízio. Embora o número de referências documentais a estes engenhos seja ínfima, estamos convictos que o seu número efetivo, durante os tempos medievais, seria significativamente maior.

As inquirições afonsinas confirmaram que o rei tinha duas fogueiras foreiras de jugada em Oliveira do Fim, duas em Oliveira do Meio e duas em Oliveira do Fundo. Pelas duas fogueiras de cada uma das localidades recebia o seguinte foro: - de pão 10 quarteiros e sexteiro - de trigo 5 teigas - de milho e centeio 5 teigas - de vinho a sexta ; de eiradega de vinho 1 puçal - de linho a sexta; de eiradega de linho 1 manúlio - 1 capão - 1 frangão - 10 ovos - 1 teiga de centeio de fogaça - corazil - dão coleta régia - dão 18 soldos e meio pela pausa e pela vida dos ricos-homens - dão 2 soldos e meio ao mordomo - vão em hoste e anúduva Oliveira de Fundo não pagavam a eiradega de vinho, nem de linho. Em Bodiosa de Souto o rei tinha duas fogueiras foreiras de jugada que pagavam: - 4 moios quarteiros de milho e centeio - a sexta de vinho - a sexta de linho O rei também aqui tinha uma herdade de que recebia de foro: - a oitava parte de pão, de vinho e de linho - 1 coelho - 2 alqueires de fogaça A herdade de Santa Cruz de Coimbra em Queirela pagava: - 3 calúnias - a coleta - os seus homens vão a Pinhel em anúduva Travanca, sendo da igreja de Santa Maria de Viseu e de Santa Cruz de Coimbra, pagava: - a coleta - iam em hoste e anúduva

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Missal do Mosteiro de Lorvão (séc. XV). Junho: dois camponeses ceifando; num deles vê-se a foice. Julho: debulha de centeio ou milho com mangual. Os malhadores, de frente um para o outro, pegam nos cabos dos respetivos manguais com as duas mãos e batem com o pírtigo nos cereais espalhados na eira.

medidas de capacidade

Anúduva: obrigação de trabalhar na construção ou reparação de castelos, cercas, fossos, torres.

moio

360 l

Avoenga: direito de suceder nos bens que foram dos seus avós.

puçal

90 l

Calúnia: pena pecuniária a pagar de acordo com o foral da localidade.

quarta

90 l

sexteiro

60 l

Corazil: pedaço de carne de animal doméstico, geralmente porco.

almude

14-18 l

Devesa: mato ou monte que as populações podiam usar pagando

alqueire

14-18 l

Cavalaria: herdade, quinta, casal ou casas que tinham de fornecer cavalos ou mantimentos para a hoste régia.

um tributo. Eiradega: renda que incidia sobre o cereal, vinho, castanhas e linho.

medidas de peso

Pagava-se na eira, no lagar e no tendal. Pagava-se no S. João ou S.

quarteiro

Miguel. A eiradega de castanhas era pelo S. Miguel ou S. Martinho. Filhar: tomar, conquistar. Gorazil: pagamento em carne de porco. Uma porção do porco. Hoste: serviço militar sempre que necessário. Jugada: pagamento de direito real que varia de terra para terra e em função dos produtos como por exemplo jugada de pão, vinho ou linho. Manúlio de linho: equivale a meio feixe ou molho de linho Pausa: residência onde permanecia o cobrador dos foros reais e recebia os mantimentos para o seu sustento. Soldo: aqui tem significa de “moedas”, à época dinheiro/bolhão (liga de prata e cobre) Vida: sustento, comida e refeição devidos. Voz: multas pagas ao rei.

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200 kg

sexteiro

140 kg

teiga

20-60kg

fogaça

30 kg

alqueire

14-18 kg

almude

14-18 kg


Missal do Mosteiro de Lorvão. Agosto: preparam-se os pipos; setembro: vindima; outubro: mosto transportado para pipo.

videira cresce encostada a uma parede e os seus braços formam uma parreira apoiada sobre um tronco. As castas mais citadas na documentação medieval portuguesa são a castelã, a galega, a mourisca, a arista, a azal, a alvar, a labrusca e a Soeiro Mendes (COELHO, 1983: 164-165). As videiras eram objeto de vários trabalhos ao longo do ano, tais como: a escava, a cava, a sacha, a poda e a empa, com vista a proporcionar uma boa colheita no mês de setembro. A cobrança dos foros como a eiradega de vinho referida nos reguengos de Bodiosa era geralmente efetuada no lagar, após a pisa da uva. Como a produção era elevada, mas o vinho rapidamente se deteriorava devido às técnicas ainda pouco desenvolvidas de conservação, foi estipulado o relego, medida de tipo protecionista com penas pesadas para quem o infringisse, que dava prioridade à venda dos vinhos reais e senhoriais. Depois dos cereais, da vinha, das árvores de fruto e de leguminosas cultivadas em torno das casas, o linho aparece em lugar de grande destaque na produção agrícola medieval como matéria-prima utilizada na confeção de todo o tipo de panos e vestuário. O linho deveria ser colhido antes de estar completamente amadurecido. Uma colheita prematura ou, por outro lado, tardia, refletia-se na qualidade da fibra. A colheita, designada de arriga, era feita desenterrando a planta. Seguidamente o linho era ripado, para separar as cápsulas das plantas e

As árvores de fruto dominantes eram a macieira, a pereira, a nogueira e a figueira. Estas, ora isoladas, ora em pomar, constituíam uma fonte de alimento muito importante para o homem medieval. O castanheiro, também árvore de fruto, tinha um estatuto especial, dado que a sua importância advém não só da castanha, que era amplamente utilizada na alimentação, fresca ou pilada, mas também devido à grande qualidade da sua madeira, só comparável ao carvalho. A bolota era utilizada na alimentação do gado suíno, mas também foi consumida pelo homem em épocas de crise cerealífera, misturada no trigo ou no milho. Também a uva foi uma das frutas amplamente consumida, logo após a colheita ou como uva-passa, ao longo do ano. Contudo, o seu principal destino era a vinificação. O vinho era produzido a partir de “videiras” e ou a partir de “uveiras”, distinção que se fez tendo em consideração o suporte utilizado para as cepas. As primeiras cresciam rente ao solo, enquanto as segundas cresciam suspensas, em fiadas, atadas a estacas de madeira ou a peirões de pedra. As “uveiras” podiam também ser de enforcado, referidas nas inquirições afonsinas de 1258 como “vides trepadeiras”, utilizando castanheiros, salgueiros ou árvores de fruto, situadas nas bordaduras dos campos de cultivo, como suporte à videira que se ia a ela enrolando. Para além destes suportes às cepas – sobre caixilho de madeira rente ao solo, peirões e enforcado – encontram-se iluminuras medievais em que a

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Bodiosa Francisco de Mesquita Lemos, nas Memórias Paroquiais de 1758 (OLIVEIRA, 2005: 59), a propósito do peixe existente no rio Trouço e dos privilégios concedidos por D. Afonso Henriques: “As pescarias q nelle se fazem sam livres, exceto o que contem o lemite e distancia do passal desta igreja, por correr este ryo pello meyo delle o qual está priviligiado para os abbades da mesma igreja por El Rey o snr Dom Affonço Henriques, q fes merce aos mesmos abbades, coutar lho para sempre para que nenhuma pessoa de qualquer qualidade podesse pescar nelle, e na distancia q toma o mesmo passal, com a pena de que quem fosse achado na dita coutada pagaria cem rs para os encoutos, e seis mil soldos, e as redes e armadilhas para o abbade; cujo previlegio se acha na Torre do Tombo, e nos livros della, e no que tem por titullo, livro segundo da comarqua da Beyra, que esta na caza da coroa a folhas duzentas e quatro: E a noticia de que estes mesmo previlegio se reformara por Sua Magestade Fidilissima o senhor Joan Quinto que Santa Gloria haja, mas nam aparece por estar m.to tempo vaga esta igreja e de lhe perderem todos os papeis e titollos” Também a floresta era uma importante fonte de recursos para as populações. Aí se caçava, se recolhiam frutos silvestres, tubérculos, mel, mato para a cama dos animais e para estrume dos campos de cultivo (MARQUES, 1987: 7-22; GONÇALVES, 1988: 201-217; MARREIROS, 1995: 400-475; GONÇALVES, 2010: 226-259).

colocado de molho, em curtimenta, para que se desse naturalmente a separação dos elementos fibrosos dos lenhosos por meio da fermentação. Depois de 6 a 8 dias em água, o linho era colocado a secar durante 15 dias. Quando seco, o linho era batido com um maço de madeira, em forma cilíndrica, sobre um maçadoiro e depois trilhado, processo designado de gramagem. Para se libertar as fibras têxteis de palhas e da parte lenhosa, fazia-se a espadelada. No sedeiro separavam-se as fibras longas do linho das mais curtas da estopa. Finalmente, a fiação era realizada exclusivamente por mulheres, em casa, quando andavam a apascentar gado e nas feiras, ou então em pequenos grupos que se juntavam para fiar (OLIVEIRA et alii, 1983). A criação de animais de capoeira e de gado estava intimamente associado à produção agrícola: era fonte de alimento, matéria-prima e tração nos trabalhos do campo e nas viagens. Para o homem medieval havia ainda duas outras fontes de alimento importantes: o rio e o bosque. Com tantos ribeiros e rios, a pesca terá tido um papel importante no provimento de peixe fresco às populações. A pesca por entroviscada, referido muitas vezes nos foros reais, podia ser o processo primitivo de pesca fluvial, utilizando o trovisco, um arbusto com propriedades tóxicas, ou apenas o fornecimento dessa planta para a pescaria Real. A importância da pesca no rio revela-se de forma eloquente na resposta dada alguns séculos mais tarde pelo abade de

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Lagareta de Bodiosa-a-Velha.

Lagareta de Santa Maria.

Lagareta de Fontão.

Lagareta do Pinhal do Rijo.

Os lagares escavados na rocha, também designados de lagaretas ou lagariças, são entre nós um dos vestígios arqueológicos mais numerosos da tecnologia medieval. O povo chama-lhes em muitos lugares “pias dos mouros” ou “lagares dos mouros” o que na tradição popular remete para tempos muito antigos, tal como sucede com as sepulturas rupestres. Na região de Viseu, conhecem-se mais de uma centena de lagaretas. Apesar do seu número ser elevado, nunca foram objeto de um estudo sistemático e global; tal facto talvez tenha sido responsável pelas atribuições cronológicas tão díspares que vão de pré-históricas a medievais, tendo sido maioritariamente consideradas como romanas. Sucedeu o mesmo tipo de polémica com as sepulturas escavadas na rocha porque tal como se ve-

rificava com esses túmulos, as lagaretas encontram-se fora de contexto estratigráfico. Por outro lado, as poucas referências a lagares na documentação escrita, contrasta com as abundantes referências a vinhas ou a vinho. Quando ocorrem referências a lagares, estas nunca são acompanhadas por descrições dos mesmos o que impede a comparação com os exemplares rupestres conhecidos. A iconografia é mais rica porque uma imagem que permite estabelecer uma comparação. Embora não descartemos a possibilidade de algumas das lagaretas serem romanas, pensamos que a grande maioria terá sido feita na Idade Média, numa época em que o tipo de povoamento já estava estruturado de forma muito semelhante ao que temos hoje, como já referimos anteriormente. Levantamos esta hipótese tendo em conta, exclusivamente, a

análise espacial dos monumentos face ao povoamento dessa época e não a partir de qualquer registo estratigráfico ou análise tecnológica. Quer se trate de um lagar isolado ou de um núcleo com vários, a sua localização é sempre muito próxima de povoações. Muitos dos lagares encontram-se no meio ou na periferia de campos de cultivo, como acontecia na época em que foram feitos. A sua propriedade e utilização poderia ser individual ou comunitário, como acontecia com outras estruturas rurais como por exemplo fornos de cozer o pão, tulhas, espigueiros, eiras, etc.. As lagaretas escavadas na rocha encontram-se em grande número em zonas com boas aptidões vitivinícolas e que num passado mais recente vieram a constituir as regiões demarcadas do Douro e do Dão. Em terras altas, frias e onde o

Lagaretas Tendo sido a agricultura a base da economia durante a Idade Média, seria de esperar que tivessem chegado aos nossos dias muitos vestígios arqueológicos relacionados com as diversas atividades realizadas pelos camponeses. Porém, tal não sucedeu, dado que a grande maioria dos objetos utilizados na agricultura, bem como muitas das estruturas construídas, por vezes com caráter temporário, degradaram-se completamente pelo facto de serem em madeira ou noutros materiais perecíveis. Muitas alfaias agrícolas tradicionais utilizadas ainda nos nossos dias podem ser vistas em museus da civilização romana e medieval de toda a Europa, permitindo concluir que as alterações ou inovações neste período de 2000 anos ocorreram mais na forma de produzir do que na tecnologia utilizada (OLIVEIRA et alii, 1983).

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Moinhos da Fradega (Rio Trouço).

Lagareta de Fontão, Pereiras Pio 1: comprimento 390 cm; largura 40 cm; profundidade 25 cm Pio 2: diâmetro 127 cm; profundidade ? Prensas: diâmetro 73/89 cm

povoamento desde sempre foi menor, este tipo de lagares são muito raros. Estruturalmente as lagaretas podem ser divididas em dois grupos: um em que possui um piso retangular sobre o comprido, um pio geralmente de planta quadrangular em cota mais baixa, no extremo do pio e ao lado deste, um ou dois pratos para prensagem; o segundo grupo tem um piso retangular ou quadrangular e a cota inferior um pio com planta semelhante ou redondo. Quer no primeiro, exclusivo em Bodiosa, quer no segundo modelo, é costume existirem pequenas cavidades laterais que serviriam para o encaixe de traves ou de varas para a prensagem (ALARCÃO, 2004: 2939; ALMEIDA, 2006: 348-404; MARQUES, 2003: 143-153; MARQUES, 2005: 29 e 64-65; MARQUES, 2009: 32-37).

Lagareta do pinhal do Rijo, Pereiras Pio 1: comprimento 460 cm; largura 59 cm; profundidade ? Pio 2: diâmetro 105 cm; profundidade ? Prensa: diâmetro 100 cm Lagareta de Bodiosa-a-Velha Pio 1: comprimento 296 cm; largura 43 cm; profundidade 40 cm Pio 2: comprimento 70 cm; profundidade ? Lagareta de Santa Maria, Oliveira de Cima Dimensões incertas

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Moinhos Ainda no domínio da tecnologia utilizada na Idade Média, gostaríamos de destacar uma estrutura que é referida dezenas e dezenas de vezes na documentação escrita: os moinhos. Os moinhos medievais documentados na região de Viseu eram exclusivamente de rodízio. Estes e os lagares estavam ligados a dois produtos que constituíam a base da alimentação medieval: o pão e o vinho. Se a tecnologia utilizada na produção vitivinícola medieval nada tem a ver com a dos nossos dias, a moagem tradicional, que ainda há poucas dezenas de anos se fazia nas aldeias, era efetuada em moinhos que em nada se distinguiam dos medievais. Certamente que as largas centenas de moinhos que ainda se vêm, na maior parte dos casos arruinados, nos nossos ribeiros e rios, não foram construídos na Idade Média; alguns ostentam a data

de construção gravada no lintel da porta, confirmando a sua construção pós-medieval. Podemos considerá-los como monumentos da nossa Arqueologia Industrial, como os classificou assim pela primeira vez, em 1896, Sousa Viterbo, num artigo em que já lamentava nessa altura o seu desaparecimento devido ao progresso (VITERBO, 1896: 193-204). A construção de um moinho de rodízio implicava um investimento avultado, ao contrário de outros sistemas de moagem caseiros como as mós manuais de rebolo, com origem pré-histórica, ou as rotativas, que tinham sido divulgadas pelos romanos e que se utilizaram em algumas zonas de Portugal até ao século XX. O moinho não é só o pequeno edifício onde estavam as mós e o rodízio, é toda a estrutura que faz funcionar essas mós, desde o açude a montante, à levada onde a água corria en-

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a - moega b - quelha c - chamadouro d - mó e - agulha ou aliviadouro f - pelão ou relão g - vubo h - seteira i - rodízio de penas j - agulhão ou espigão l - urreiro

Esquema do moinho de rodízio. (a partir de OLIVEIRA e GALHANO e PEREIRA, 1983: 105)

canada, até ao cubo que projetava a água no rodízio (ALARCÃO, 2004: 29-39; MARQUES, 2005: 72-77; OLIVEIRA et alii, 1983). As inquirições afonsinas de 1258 (Inq: 886-888) dão-nos notícia da existência de um moinho no rio Trouço, numa herdade régia chamada Salvador Ruivo que estava na posse de Pedro Gonçalves do Vale. Seguramente que este moinho não era o único no rio pois a existência de várias aldeias e casais no território bodiosense, com uma população que tinha no pão a sua base alimentar, implicava a existência de muitos mais engenhos que fizessem a respetiva moagem dos cereais.

“Egas Pedro de Oliveira, jurado e interrogado, disse que Pedro Pedros Crespo quando morava em Bodiosa na herdade do Rei e tinha no Ribeiro no Rio Trouço uma herdade da qual dava a oitava de pão

Lagar de varas da Fradega (Rio Trouço).

ao Senhor Rei e havia nesse mesmo lugar um moinho, nessa herdade régia, e a herdade chamava-se de Salvador Ruivo; e desta maneira Pedro do Vale, cavaleiro, tendo essa mesma herdade e esse mesmo moinho deu-o todo a um seu sobrinho de nome João Martinho; e desta forma João Martinho tem essa herdade e esse moinho e não paga nenhum foro Régio. Petrilinus de Gomiei, jurado, disse que esta herdade e este moinho foi de Pedro Crespo de Bodiosa e a herdade é foreira régia e o moinho está na herdade régia. Martinho Fagundo de Vila Gaga disse que viu o monge pedir este moinho e esta herdade e Pedro Gonçalves do Vale agrediu esse mesmo monge por isso, quando demandava esse moinho e essa herdade.”

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O lagar de azeite da Fradega tinha duas varas e é o único conhecido na freguesia de Bodiosa. O interior encontra-se totalmente esventrado, restando apenas as paredes. Infelizmente não subsiste qualquer documentação referente à sua laboração. No lintel da porta de entrada encontra-se gravada a data de 18[3]1, dentro de uma cartela, que podemos considerar a data da sua construção.

No rio Trouço, no lugar de Fradega, encontram-se mais de uma dezena de moinhos de rodízio já em ruínas e um lagar de azeite de varas nas mesmas condições. Não serão, certamente, contemporâneos do de Salvador Ruivo mas estamos certos que a sua arquitetura, é muito idêntica, senão mesmo igual. A concentração de tantos engenhos neste ponto do rio Trouço deve-se ao acentuado desnível de cotas neste ponto do rio o que permitia conduzir a água de forma eficaz aos rodízios que acionavam as mós.

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Esquema de lagar de vares (a partir de GALHANO, 1985: 200-205 e PEREIRA, 1997: 49)

Como se fazia azeite? Foi no Mediterrâneo oriental que se produziu pela primeira vez

A roda de água podia ser horizontal ou vertical. No segundo caso

azeite. Talvez tenham sido os antigos egípcios os seus primeiros

a propulsão podia ser inferior ou superior.

produtores. Utilizavam-no não só na alimentação mas também na

A moagem era feita pelas galgas no pio, ou vasa, durante aproxi-

medicina, nos perfumes e em rituais funerários. Terão sido os Fe-

madamente três horas até as azeitonas – polpa e caroço – ficarem

nícios ou os Cartagineses a introduzir essa árvore no solo penin-

transformadas numa massa. Então, a massa era retirada com pás

sular. Os Romanos, primeiro, e os Árabes depois, desenvolveram o

de madeira para gamelas e depois colocada nas seiras. Sobre estas,

seu cultivo e a produção de azeite sobretudo no Sul da Península.

depois de cheias e sobrepostas, era colocado o adufe e, sobre este,

Só na Idade Média a árvore mediterrânica conquistou as terras do

os malhais. A prensagem era feita aterrachando o fuso – ou sarilho

Norte, em altitudes até aos 700m.

– que se encontrava fixo ao peso do lagar, à vara. A enorme pressão

Nos meses de novembro e dezembro colhe-se a azeitona à mão ou

exercida sobre as seiras – entre 2 a 10 kg por cm – fazia escorrer

varejando as oliveiras com um pau comprido. Depois de apanhada

o azeite das seiras para canais que conduziam o líquido para a(s)

de panos estendidos no chão e de limpa de folhas e ramitos, era

tarefa(s). Passado algum tempo desapertava-se o fuso para caldear

transportada para o lagar onde podia ficar em tulhas durante al-

a massa. Este processo consistia no seguinte: retiravam-se as seiras

guns dias antes de ser moída.

para revolver a massa à mão e deitar-lhe água a ferver, seguindo-

O lagar é composto por moinho, para esmagar a azeitona, uma ou

-se nova prensagem. Finalmente todo o azeite produzido, misturado

várias prensas, uma caldeira e fornalha para aquecer água, câma-

com a água da vegetação e do caldeamento, encontra-se na tarefa.

ras de decantação, seiras, vários recipientes e utensílios diversos.

A água como tem maior densidade fica na parte inferior da tarefa.

Geralmente o lagar ficava localizado na margem de um ribeiro ou

O mestre do lagar deixa então sair a água-ruça pela sangradeira,

rio, dada a necessidade de utilização de água na tração das gal-

situada na parte inferior da tarefa, ficando apenas o azeite. Este era

gas, no caso de serem acionadas hidraulicamente e não a sangue.

depois retirado para recipientes (PEREIRA, 1979).

2

54

as informações requeridas seriam os quatro juízes, os jurados e os quadrilheiros da freguesia: Manuel João do lugar de Silgueiros, João Francisco de Bodiosa-a-Velha e Vale, Domingos Rodrigues de Oliveira de Cima, Oliveira de Baixo, Pereiras, Bodiosa-a-Nova e o jurado Manuel Gonçalves de Queirela. Todos afirmaram que não havia baldios, nem maninhos nas suas localidades, mas que na aldeia de Vale havia umas casas que pagavam foros à câmara de Viseu e que na de Queirela tudo eram fazendas ou Prazos da Mesa da Universidade de Coimbra. Ora, entendendo o Juiz de Fora que os juízes tinham dado poucas informações sobre a freguesia, convocou-os novamente, bem como ao quadrilheiro de Travanca, António Gonçalves, e ordenou-lhes que pedissem a dois homens idosos de cada uma das localidades “por serem homens bons, intelligentes” os ajudassem a “declararem todas as terras maninhas e do Concelho, e tomadias, e tudo o mais pertencente ao Senado da Camera desta Cidade de Vizeu”. Os escolhidos foram: “Joam Rodrigues do Lugar de Bodioza a velha, Manoel Francisco dahi, e Domingos Rodrigues e Manoel Rodrigues do Valle, e Manoel Rodrigues e Francisco Lopez moradores em o Lugar de Silgueiros da mesma freguezia, Domingos Francisco e Manoe Manoel Gonçalves do Lugar de Quintella, Domingos Rodrigues, e Domingos Joam de Oliveira de baixo da Lapa, Jose Lopez, e Manoel Francisco Cosme de Oliveira de sima, e Antonio Joam das Cazas de Freiras Jose Francisco morador em mesmo Lugar, Pedro Rodrigues e Manoel Rodrigues moradores em Lugar de Travanca.” Presentes perante o Juiz de Fora, prestaram “juramento dos Santos Evangelhos em que cada hum delles pôs sua mam direita sob cargo do qual lhe mandou e encarregou que bem e verdadeira”. O novo registo sobre Bodiosa contraria as informações anteriores, que negavam a existência de baldios na freguesia, ao referir a existência de quatro baldios na povoação de Vale (Fraga, Troviscosa, cahidouro do Povo e Santa Margarida) e um baldio em Oliveira de Cima (Serra do Val do Santo). Acrescenta ainda que havia dois montados, um em Oliveira de Baixo (Pedra dos Olhos) e outro em Travanca (Gandra),

Em 1527 pertenciam à paróquia de S. Miguel Arcanjo de Bodiosa as povoações de travamca, com 17 fogos, oliueyra de fumdo, com 11 fogos, oliueyra de cima, com 5 fogos, quymtela (será Queirela), com 6 fogos, pereyros, com 9 fogos, vale, com 7 fogos e sergeyros, com 10 fogos. Os dados do “Numeramento do Reino” permitem-nos concluir que viveriam cerca de 260 pessoas nestes 65 fogos, se considerarmos 4 habitantes por fogo (COLLAÇO, 1931: 135). Século e meio depois, em 1675, a “Relação da Catedral da cidade de Viseu e mais igrejas do bispado” dá-nos conta que na freguesia viviam “pessoas mayores seiscentas e setenta e nove, menores cento e catorze”, o que perfaz um total de 793 habitantes (EUSÉBIO, 2005: 940). O número de habitantes da freguesia não parava de aumentar. Nas “Memórias Paroquiais” de 1758, o já citado padre Francisco de Mesquita Lemos, declarou que na sua paróquia havia: “duzentos e secenta e sincoo vezinhos”, neste caso significando fogos, onde viviam ”outocentas e sincoenta e seis pessoas de Sacramento, e outenta e huma q o nam sam, que tudo vem a fazer a soma de novecentas e trinta e sete pessoas.” (OLIVEIRA, 2005: 57-60). Apesar dos números até agora apresentados não resultarem de um registo populacional rigoroso, pode-se concluir, mesmo com margens de erro significativas, que a população da paróquia mais do que triplicou nos 231 anos que decorreram entre 1527 e 1758, o que não deixa de ser notável. Em 1724 o Juiz de Fora da cidade de Viseu, Dr. Brás do Valle, ordenou a realização de um levantamento, ou tombo, das propriedades e foros existentes nas freguesias do concelho de Viseu, nomeadamente Bodiosa (TMB, nº259). O escrivão Caetano Moreira Cardozo ficou encarregue de registar “que terras, Baldios, e Maninhos do Concelho há em cada huma das Vintenas, Rocios e fontes, e tudo mais pertencente ao Concelho; e que foros de pâm, dinheiro, ou Carnes se pagam à Camera desta Cidade e as pessoas que os pagam e de que propriedades, e os sítios em que estam, e os Montados que houver com quem demarcam”. Para efetuar este tombo, o Juiz determinou que quem daria

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Transcrição do Tombo Municipal de Baldios: Para a Freguezia de Bodioza O Doutor Brás do Valle Juiz de Fora com Alçada por Sua Magestade que Deus goarde goarde em esta Cidade de Vizeu e seu Termo. Mando a todos quatro Juizes das Vintenas da Freguezia de Bodioza Jurados Quadrilheiros da dita freguezia, que logo sem dillaçam alguma fonte que este lhe for apresentada, e informem, e façam toda a boa delligencia por averiguar cada hum na sua Vintena que terras, Baldios, e Maninhos do Concelho há em cada huma das Vintenas, Rocios e fontes, e tudo mais pertencente

reais, 40 reais) e Bodiosa-a-Nova (76 reais, 76 reais). Pereiras apenas pagava o “Cavalo de Maio” (60 reais). Para além destes baldios e foros, o Tombo também refere que todas as fazendas de Queirela eram um Prazo do visconde de Ponte de Lima (membro do Conselho de Estado, o principal órgão de governo) e os caseiros pagavam foro à Universidade de Coimbra.

onde o gado ia pastar. Neste de Travanca o povo também lá apanhava lenha e roçava estrume. Acrescenta ainda que no Vale havia várias casas que pagavam foro à câmara de Viseu, bem como um lagar em Travanca. A câmara deveria receber também os foros de tradição medieval designados de “Cavalo de Maio” e “S. Miguel de Setembro” das povoações de Oliveira de Cima (26 reais, 36 reais), Oliveira de Baixo (140

ao Concelho; e que foros de pâm, dinheiro, ou Carnes se pagam à Camera desta Cidade e as pessoas que os pagam e de que propriedades, e os sítios em que estam, e os Montados que houver com quem demarcam, e de tudo faram lembranças claras, e assignaram nellas, e mas viram entregar ao Escrivam que esta escrever por tudo ser preciso e necessário para a façam do Tombo que Sua Magestade que Deus goarde manda fazer dos bens e rendas tocantes tocantes ao Concelho desta Cidade, que tudo cumpriram inteiramente penna de pagarem cada hum cincoenta Cruzados, e além de Degredo que tem serem presos e mandar fazer esta Dilligencia à sua custa. Dada em Viseu sob meu signal somente aos tres de Setembro de mil sete centos e vinte e quatro annos e Eu Caetano Moreira Cardozo Escrivam do tombo escrivi «Valle» Em dezoito de Setembro de mil setecentos e vinte e quatro annos mandou o Senhor Doutor Juiz de Fora que os Juizes da Freguezia de Bodioza noteficarem cada hum em cada Povo dois homens dos mais antigos para virem à sua prezença quarta feira quatro de Outubro. Certifico eu Manoel Joam Juiz do Lugar de Silgueiros de Bodioza em como no meu Povo nam há maninhos, nem baldio baldio,

referências documentais mais antigas Localidades

1127

Queirela

*

Silgueiros Travanca Bodiosa

1140

1142

1146

1147

unicamente sam Cazais foreiros, por verdade dou minha fé hoje dos de Setembro de mil sete Centos e vinte e quatro. De Manoel 1151

1154

* *

1160

1161

*

*

1162

1164

1176

1183

12231258 48

*

* *

**

*

*

*

*

Joam Juiz huma Cruz. 1527

*

*

*

*

*

1724

1758

Certefico eu Joam Francisco de Bodioza a Velha, Juiz que vivo este prezente anno em esta Vintena de Bodioza a Velha, e Valle,

*

*

que fazendo Adjunto me informei com todo o Povo, e nam tive noticia que houvessem Baldios nenhuns, nem maninhos alguns,

*

*

*

*

*

*

*

maninhos, nem baldios, porque tudo sam Cazais de Senhorios, e por verdade passei esta que ass que assigno hoje quinze do

*

*

mes de Setembro de mil sete Centos e vinte e quatro annos Joam Francisco Juiz.

*

Oliveira (Cima)

*

*

*

*

Oliveira de Fim (Baixo)

*

*

*

*

Oliveira do Meio

*

Bodiosa de Souto

*

senam humas cazas que estam no Lugar do Valle no sittio do Outeiro, os quais foros costumam de mandar cobrar os Senhores

*

da Camera e passar quitaçam aos Cazeiros e no Lugar de Bodioza a Velha da mesma Vintena nam tive noticia que houvessem

Certifico eu Domingos Rodrigues Juiz que vivo neste Lugar de Oliveira de Sima, Oliveira de baixo, Pereiras, Bodioza a nova que hé verdade que eu fiz Adjunto de toda a minha Vintena, e me informei de tudo referido no Mandado junto, nam tive noticia que houvesse nem maninhos, nem baldios nesta minha Vintena porque tudo sam Cazais, e terras demarcadas, assim dou minha Fé hoje dezaseis de Setembro de mil sete centos e vinte e quatro annos De Domingos Rodrigues Juiz Huma Cruz. Certefico eu Manoel Gonçalves Jurado que vivo neste Lugar de Queirella freguezia de Bodioza, que eu a instancia deste Mandado

*

notifiquei o meu Povo e tomei informaçam de que de que neste meu Povo nam há maninhos, nem baldios, nem fazendas foreiras

Vale

*

*

*

*

à Camera, tudo sam fazendas demarcadas, Prazos da Meza da Universidade de Coimbra, e partem com fazendas da Rainha

Pereiras

*

*

*

*

de que dou minha Fé hoje dois de Outubro de mil sete Centos e vinte e quatro annos De Manoel Gonçalves Jurado huma Cruz.

Bodiosa-a-Velha

*

*

*

*

*

Aos quatro dias do mês de Outubro de mil sete centos e vinte e quatro annos em esta Cidade de Vizeu e Cazas das pouzadas do

*

Doutor Bras do Valle Juiz de Fora com Alçada por Sua Magestade que Deus goarde em esta Cidade de Vizeu e seu Termo Juiz

Bodiosa-a-Nova Póvoa de Bodiosa

*

Quintela (Queirã)

56

*

Freguezia de Bodioza Termo de Declaraçam que fizeram as pessoas abaixo declaradas da freguezia de Bodioza.

dos Orfãos de qua de quatro Concelhos della anexos pelo mesmo senhor; estando elle ahí prezente, parante elle apareceram

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prezentes Joam Francisco Juiz da Vara do Lugar de Bodioza a Velha da freguezia de Bodioza, e os mais Juizes Manoel Joam Juiz da Vintena de Silgueiros desta freguezia, Domingos Rodrigues Juiz da Vintena de Oliveira de sima, e António Gonçalves Quadrilheiro que serve em o Lugar e Vintena de Travanca todos termo desta mesma Cidade, todos da dita freguezia do termo desta Cidade de Vizeu que de prezente servem de Juizes nos ditos Lugares, e por elles foi dito a elle Doutor Juiz de Fora que por Ordem sua como Juiz de Tombo mandara-se informarem de todas as terras de maninhos e tomadias que se tivesem feito, como também de todos os foros, pen foros, penções que se deviam, e devesem pagar ao Senado da Camera desta Cidade; e porque elles ditos Juizes além de terem poucas noticias para a dita delligencia levam ainda moços, e nam tinham a informaçam que se requeria por cuja cauza elle Doutor Juiz de Fora Me mandava segunda Ordem, para que os ditos Juizes mandasem vir à sua presença dois homens os mais velhos de cada hum dos Lugares da dita freguezia; em cumprimento da qual aprezentaram parante elle Doutor Juiz de Fora as pessoas seguintes Joam Rodrigues do Lugar de Bodioza a velha, Manoel Francisco dahi, e Domingos Rodrigues e Manoel Rodrigues do Valle, e Manoel Rodrigues e Francisco Lopez moradores em o Lugar de Silgueiros da mesma freguezia, Domingos Francisco e Manoel Manoel Gonçalves do Lugar de Quintella, Domingos Rodrigues, e Domingos Joam de Oliveira de baixo da Lapa, Jose Lopez, e Manoel Francisco Cosme de Oliveira de sima, e Antonio Joam das Cazas de Freiras Jose Francisco morador em mesmo Lugar, Pedro Rodrigues e Manoel Rodrigues moradores em Lugar de Travanca, por serem homens bons, intelligentes, antigos para declararem todas as terras maninhas e do Concelho, e tomadias, e tudo o mais pertencente ao Senado da Camera desta Cidade de Vizeu, os quais sendo prezentes logo elle doutor Juiz de Fora e do Tombo lhe deu juramento dos Santos Evangelhos em que cada hum delles pôs sua mam direita sob cargo do qual lhe mandou e encarregou que bem e verdadeira verdadeiramente declarasem todas as terras maninhas, e baldios que havia nos ditos Povos, e com quem partiam e demarcavam, como também declararem todas as pessoas que tinham tomado terras sem serem aforadas, como também os foros que cada hum pagava e devia pagar ao Senado e tudo declararem bem e fielmente sem ódio nem afeiçam alguma, tudo como homens de boas e sans Consciencias, porquanto elle dito Juiz do Tombo o desemcarregara a sua consciência na delles, e com pena de prejuro, nas mais contheudas na Lei daquelles que subnegam Bens a Fazenda Real, elles recebendo edito juramento assim prometeram fazer, cuja Declaraçam fizeram pela maneira seguinte. Bodiosa a Velha Primeiramente declararam declararão elle Juiz Joam Francisco; e Joam Rodrigues, e Manoel Francisco muradores em o dito Lugar de Bodioza a Velha nam havia Rossio algum de que houvessem de dar conta em o dito Lugar de Bodioza a Velha. Fontes E que no dito Lugar havia huma fonte que está onde chamão a Preira que está cuberta com huma Lasqua, que tem de fora huma possa de Agua donde bebem os gados, e por onde se rega. E que havia outra fonte no meio do Lugar cuberta com huma Lasqua com seu Chafariz para beberem os gados. E que nam havia mais cousa alguma de que dar conta neste Povo do contheudo em o Dicto. Demarcaçam E que principiava a Demarcaçam deste Lugar começa ao Sabugueiro cola hi vai aos Cabeços, dahi à Lameira Longa Longa, e a demondinhos, e dahi aos antigos, e dahi a Cobrada, e ahi acaba o Limite, e Demarcaçam deste Lugar, e que dentro delle nam havia baldios maninhos, nem couza que pertencese à Fazenda Real, e Camera desta Cidade. E por esta maneira houveram por feita sua Declaraçam, que elle Doutor Juiz de Fora mandou escrever, que assignou com o mesmo Juiz, e homens depois deste lhe ser lido e declarado por mim Escrivam Caetano Moreira Cardozo que escrevi. Valle. Joam Francisco De Joam Rodrigues, huma cruz De Manoel Francisco huma Cruz.

58

59


Valle

E por esta maneira houveram por feita na Declaraçam que elle Doutor Juiz de Fora mandou escrever, que assignou com os

Primeiramente declararam elle Juiz Joam Francisco, Manoel Rodrigues, e Domingos Rodrigues muradores em o lugar da Valle

mesmos homens, depois deste lhe ser Lido e declarado por mim Escrivam Caetano Moreira Cardozo que escrevi. “Valle” Joam

desta freguezia, nam havia Rossio algum de que de que houvessem dado conta.

Francisco. De Domingos Rodrigues huma cruz. De Manoel Rodrigues huma Cruz.

Fontes

Silgueiros

E que havia huma fonte que esta onde chamam o Outeiro, que esta cuberta com huma pedra com suas poças de fora, onde

Primeiramente declararam eles Juiz Manoel Joam, e Manoel Rodrigues e Francisco Lo e Francisco Lopes do dito Lugar de Sil-

bebem os Bois, e mais gados.

gueiros freguesia de Bodioza, que no dito Lugar nam havia Rocio algum que fosse do Povo, porquanto as fazendas que haviam

E outra que está onde chamão a tremoa, que está cuberta com huma Lasca dentro do Lugar onde se serve o povo todo.

no dito Lugar heram Cazais.

E outra fonte que se acha sequa que está onde chamam a Seara no mesmo Lugar, que está cuberta com huma Lasqua. Baldios

Fontes E que havia huma fonte em o dito Lugar de Silgueiros, a qual estava cuberta com huma Lasca, e tem huma poça com seu Cha-

Declararam que havia hum Baldio que está onde chamão a Fraga, que hé pasto de bois e todo o mais gado do Lugar que parte

fariz para os gados beberem, Bois e Bestas.

com os Cazais de Joam de Almeida de Mello e Vaz Concellos de Santo Estevam, e com terras dos passais do Reverendo Abbade

Demarcaçam

de Sam Miguel de Mattos Manuel da Costa, e com terras do Lugar do Lugar, e muradores de Muçamedes.

E que principiava a Demarcaçao deste Lugar aonde chamam o Val do Cabeço, e dahi vai o Caleiro das Maias que parte com

Mais outro Baldio que está onde chamam a troviscoza, que hé donde os gados do Lugar da Valle vam pastar, e se rossa Lenha que

Valles e dahi vai ao picoto que parte com Caria Concelho de Alafois, e dahi vai à pedra forcada que parte com quintella e portella,

parte com passais do Reverendo Manoel da Costa Abbade de Sam Miguel do Matto, e com terras de Manoel Francisco da Villar

e dahi vai ao Val da Treixa que parte com com Sam Cosmade Concelho de Barreiro, e dahi vai a Outeiro de Alfaiates que parte

Concelho de Lafões, e com terras de António de Loureiro do Amaral de Neronha desta Cidade, e com fazendas dos moradores

com pereiras, e dahi a Outeiro do Sobreiro que parte com o Lugar da Valle, a onde findou a Demarcaçam deste Lugar, e no qual

do mesmo Lugar da Valle.

Limite todo nam há baldios nem couza que pertença ao Logradouro do Povo, porque tudo sam Cazais. Foros

E por esta maneira houveram por feita uma Declaraçam que elle Doutor Juiz de Fora mandou escrever, que assignou com os mes-

Declararam que elle Domingos Rodrigues pagava à Camera desta Cidade de foro de humas Cazas que tem em o Lugar da Valle

mos homens depois deste lhe ser Lido e declarado por mim Escrivam Caetano Moreira Cardozo que escrevi. «Valle» De Manoel

de foro em cada hum anno doze reis em dinheiro.

Joam Juiz huma Cruz. De Manoel Rodrigues huma Cruz. De Francisco Lopes huma cruz.

E que Manoel Fernandes murador em o dito Lugar da Valle paga de humas Cazas que tem no mesmo Lugar doze reis e reis e

Queirella

meio.

Primeiramente Declararam Domingos Francisco, e Manoel Gonçalves muradores em o Lugar em o Lugar de Queirella que no dito

Paga Joam Francisco Carpinteiro do Lugar da Valle, paga de huma Caza que tem no dito Lugar, e nam sabe que foro hé.

Lugar nam havia Rocio algum que fosse do Povo por serem todas as fazendas do dito Lugar hum Prazo do Visconde de Ponte de

Manoel Francisco murador em o mesmo Lugar de huma Caza de Currais que nelle tem, e nam sabe quanto.

Lima e serem Cazeiros da Universidade de Coimbra, de que lhes pagam em foros.

Manoel Rodrigues Padeiro de humas Cazas que ahi tem paga foro, e nam sabe quanto.

Fontes

Domingos Joam Almocreve paga foro de humas cazas que ahi tem, e hum Curtelho, e nam sabe quanto.

E que havia huma fonte que está onde chamam a Santa Christina que esta cuberta com huma Lagia com sua poça de fora.

O Reverendo Padre José Rodrigues de Oliveira da Valle paga de humas Cazas que ahi tem, e nam sabe quanto.

Mais outra que esta mais abaixo com sua poça, e chafarz donde bebem os gados.

Manoel Lopes murador em o Lugar de Pouves de humas Cazas que tem em o dito Lugar da Valle paga foro à Camera desta Cidade e nam sabe quanto.

Demarcaçam E que principiava a Demarcaçam deste Lugar aonde chamam as Queimadas, e dahi vai à Serra do Chrasto aonde esta hum pa-

Baldio

dram levantado confrontando com Masgalos e Lobagueira, partindo com terras da Senhora Rainha, e dahi vai às Comiadinhas

Mais hum Baldio que hé cahidouro do Povo, que esta conjunto a elle, e hé logradouro do Povo, que parte com as mesmas Cazas

partindo com o Limite de Ferro de Ferronhe, e dahi à Senhora do Crasto partindo com o Limite de Villa de Souto, e dahi o cume

acima, e com hum Cham de Manoel Francisco.

das gandras partindo com o Limite de Mozellos, e dahi o Outeirinho agudo aonde acaba este Limite; e no qual declararam que

Mais declararam que havia passante de cincoenta anos que havia hum Baldio em o dito Lugar aonde chamam a Santa Margarida,

nam havia Baldio que pertencesse ao Concelho porque tudo heram testadas das Terras Lavradias, que estavam demarcadas, e

o qual por ser baldio conveio o Povo que repartisse entre todos, e com efeito, e partio, e de prezente cada hum dos ditos murado-

carregadas nos Prazos que lhe fazia a Universidade de Coimbra.

res do dito Lugar possue sua Sorte do dito Baldio, aonde rossa Estrume e pastos, de que sam possuidoras as pessoas seguintes,

E por esta maneira houveram por feita uma Declaraçam, e declararam, que no dito seu Limite havia hum pedaço de terra que

e por evitar mais escripta se nam nomearam; porem declararam que todos os muradores tem sua belga no dito baldio.

esta para a banda de Mozellos, que he donde os gados vam pastar, e rossar Estrume que hé baldio do Povo, que parte com os

Demarcaçam

muradores de Mozellos.

E que principiava a Demarcaçam do Lemite deste Lugar aonde chamam Rio Troixe, e da e dahi vai pelos passais do reverendo

E que nam havia mais couza alguma que declararem; E por esta E por esta maneira houveram por feita uma Declaraçam, que

Abbade de Sam Miguel do Matto, e dahi avista do Lugar de Villar atroviscoza, e dahi onde chamam o Sobreiro, e dahi os Valles,

assignaram com elle Doutor Juiz de Fora depois de lhe ser Lido e declarada por mim Escrivam Caetano Moreira Cardozo que

e dahi à Cappella Do Espirito Santo do Lugar de Bodiosa aonde acaba o Limite deste Lugar.

escrevi. «Valle» De Domingos Francisco huma cruz. De Manoel Gonçalves huma Cruz.

E que nam havia mais couza alguma que houvessem de declarar neste Limite. 60

61


Oliveira de baixo

mesmos homens depois deste lhe ser lhe ser Lido e declarado por mim Escrivam Caetano Moreira Cardozo Tabelliam do Publico

Primeiramente declararam eles Juiz Domingos Rodrigues, Domingos Rodrigues Moleiro, e Domingos Joam da Lapa quem dito

Judicial por Sua Magestade que Deus o goarde que escrevi. «Valle» De Domingues Rodrigues Juiz huma cruz. De José Lopez

Lugar de Oliveira de baixo nam havia Rocio algum de que houverem dado conta.

huma cruz. De Manoel Francisco Cosme huma cruz. Bodioza a Nova

Fontes E que havia huma fonte que estava no meio do Lugar com sua Cobertura por sima, e sua poça donde bebem os gados. ---

Primeiramente declarou elle dito Juiz, e Domingos Rodrigues, e Antonio Rodrigues de Nogueira, que no dito Lugar de Bodioza a Nova nam havia Rocio algum.

Foros

Fontes

E que se pagava a Camera desta Cidade de Vizeu hum foro que chamam Cavallo de Maio de Maio e de São Miguel de Setembro e que no mez de Maio se paga Cento e quarenta reis, e no mês de Setembro Cento e quarenta reis, e que antigamente se nam

E que havia huma fonte que estava aonde chamão a masieira que esta cuberta que tem seu Chafariz. Foros

pagava dos dois mezes mais que sessenta reis, o que os Rendeiros da Camera accrescentaram, cujos foro se reparte pelos mu-

E que no dito Lugar se pagava hum foro à Camer desta Cidade, que se chamava Cavallo de Maio e de Sam Miguel de Setembro,

radores do Povo.

e que antigamente se pagava do mês de Maio vinte vinte e seis reis, e do mez de Setembro trinta e seis reis, e que agora os Ren-

Montado E que havia hum Montado alias havia huma Serra de baldio que está onde chamam a pedra dos olhos, que parte com os mura-

deiros arrecadam setenta e seis reis de cada mês, de cujo foro se faz Repartiçam pelos muradores do mesmo Povo.

dores de Cazal de Gumiei, com os muradores de Bodioza a Velha, e com os muradores de Lustoza, e com terras do Reguengo do

E que nam havia montado algum porque pastavam nos passais do Reverendo Abbade. Demarcaçam

Conde de Atouguia em cuja Serra vam pastar os Gados do Lugar. E por esta maneira houveram elles Juiz por feita com seus homens a sua delaraçam que elle Doutor Juiz de Fora mandou escrever

E que a Demarcaçam deste Lugar e seu Limite principiava a Monttado Gonçallo do Valle e dahi vem pelo Rio Troixe asima faz a

escrever, que assignou com eles depois desta lhe ser lida e declarada por mim Escrivam Caetano Moreira Cardozo que escrevi.

ponte du Joam Moure, e dahi as poldras do pellame, e dahi a Outeiro das Lagias de Pereiras, dahi a Outeiro da Casallinha, dahi

«Valle». De Domingos Rodrigues Juiz huma Cruz. De Domingues Rodrigues huma cruz. Domingues Joam.

pelo Carril abaixo partindo com os muradores do Lugar da Valle, e dahi à Cappella do Espirito Santo, e dahi vai à mesma do Gonçallo aonde serrou o mesmo Limite no qual nam há baldios nem Rocios na forma que declarado fica.

Oliveira de sima Primeiramente declararam elles Juiz, e José Lopes, e Manoel Francisco Cosme do Lugar de Oliveira de sima, que em o dito Lugar

E por esta maneira houveram houveram por feita sua declaraçam que elle Doutor Juiz de Fora mandou escrever que assignou com

de Oliveira de sima nam havia Rocio algum de que houvessem dado conta.

os mesmos homens depois deste lhe ser Lido e declarado por mim Escrivam Caetano Moreira Cardozo que escrevi. «Valle» De Domingos Rodrigues juiz huma cruz. De Domingos Rodrigues huma cruz. De Antonio Rodrigues huma cruz.

Fontes

Preiras

E que havia huma fonte que esta onde chamam o Rio que parte com o mesmo Rio, que esta feita de pedra Lavrada, e cuberta com sua poça por baixo, donde os gados vam beber, daqual poça se regam os milhos.

Primeiramente declararam elles Juiz, e Antonio Joam das Cazas, e Joze Francisco muradores em o Lugar de Preiras desta fregue-

Mais outra poça que está em em simo do Lugar alias fonte que está no simo do Lugar, a qual seca no veram que está cuberta

zia nam havia Rocio algum no dito Lugar de que houvessem de dar conta. Fontes

com huma Lagia.

E que no dito Lugar havia huma fonte, que está onde estava o Sam Joam Velho, que está cuberta, que seca pelo veram, pelo

Foros E que no dito Lugar se paga hum foro à Camera desta Cidade que se chama Cavallo de Maio e Setembro, e no mez de Maio se

veram, que he do Povo.

paga vinte e seis reis, e no mez de Setembro trinta e seis reis, o qual foro se reparte pelos muradores do mesmo Lugar.

Mais outra fonte que está onde chamam o fundo da Avelleira, que está cuberta, e limpa com seu Chafariz no dito Lugar. Mais outra que está onde chamam o Pinheiro, que esta limpa e boa.

Montados E que havia hum Baldio que estava à Serra do Val do Santo, onde os gados vam pastar; e rossar Estrume que é a mesma que fica

Mais outra que esta nas Cazas à Preza, que está boa, e limpa, que esta cuberta, que tem huma Lagia em sima. Foros

declarada no Lugar de Oliveira de baixo da qual se servem os dois Lugares por assim estar julgado por Sentença da Rellaçam do Porto, por lha quererem impidir os muradores do Lugar do Cazal do Cazal de Gumiei com quem parte.

E que se pagava á Camera desta Cidade hum foro, que se chama o Cavallo de Maio, e Setembro, e que no mês de Maio se paga

Demarcaçam dos Lugares de Oliveira de baixo, e Oliveira de sima, todo hé hum.

Sessenta reis, e no mês de Setembro mais se nam paga nada neste Lugar, porque paga Bodioza a nova. E que nam havia mais

Primeiramente que principiava a Demarcaçam destes dois Lugares, eram Limites pelo sitio de Val do Corgo e do Santo; e dahi

couza alguma de que houvessem dado conta.

ao Outeiro de Preiro; e dahi o Outeiro dos hervados que parte com Lostoza, e dahi a Outeiro dos Fomadouros que parte com Tra-

Demarcaçam

vanqua, e dahi os pinheiros, e dahi o Val da Cabra que parte com o mesmo Lugar de Travanqua, e dahi aos passais do Reverendo

E que principiava a Demarcaçam deste Lugar, e seu Limite onde chamam o Outeiro das das Lagias, e dahi a Outeiro de fontam,

Abbade aonde findou a Demarcaçam destes dois Lugares nos quais Limites não havia mais Baldios, do que se tinham declarado.

que parte com o Concelho de Barreiro, e dahi o Outeiro da Cabeça gorda, e dahi com os passais do Reverendo Abbade, e ahi

E por esta maneira houveram por feita sua Declaraçam que elle Doutor Juiz de Fora mandou escrever que assignou com os

acaba o mesmo Lemite; E que neste Lemite nam havia terras baldias, nem Montados que fossem Logradouro do Povo. E por esta

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maneira houveram por feita sua declaraçam que assignaram com elle Doutor Juiz de Fora depois deste lhe ser Lido e declarado por mim Escrivam Caetano Moreira Cardozo que escrevi. «Valle» De Francisco Joam das Cazas huma Cruz. De Joze Francisco huma cruz. De Domingos Francisco huma cruz. Travanca Primeiramente declararam eles Antonio Gonçalves Quadrilheiro, Pedro Rodrigues, e Manoel Rodrigues todos muradores muradores em o Lugar de Travanca do termo desta Cidade de Vizeu, que nom havia Rocio algum, de que houveram de dar conta. --Fontes E que havia huma fonte que esta fonte esta no meio do Lugar, que esta cuberta com seu Chafariz donde bebem os gados do Povo. --Mais outra fonte que esta onde chamam a Carreira da fonte, que esta cuberta com huma Lagia de pedra Lavrada. --Mais outra fonte que está ao pé da primeira, que esta cuberta com huma pedra com hum Chafariz ao pé. --Foro Francisco Gonçalves page Terreiro do Lugar de Travanca paga de foro a Camera desta Cidade hum Vintem em cada hum hum anno de hum Lagar que fez na sua terra na serventia da Cappella. Montados Declaraçam que em o Limite do dito Lugar de Travanqua havia hum Montado, baldio que hera donde os gados hiam pastar, e Logradouro do Povo do dito Lugar, de que andavam de posse por huma Sentença da Rellaçam do Porto, donde apanhavam Lenhas e rossavão estrumes, e tudo o mais que he necessário, e o monte dá, que está o dito baldio onde chamão as gandras que parte de huma banda com os muradores e Serra do Lugar de Lordoza, e da outra com os muradores do Lugar de Oliveira de baixo, e Oliveira de sima, com baldio dos muradores do Lugar de Queirella e com os muradores do Lugar da Lugar da Povoa de Queirella, e com os muradores do Lugar de Mozellos, e com os muradores do Lugar de Villa Nova do Campo, e com os muradores de Passo, e com os muradores do Lugar de Galifon. --Demarcaçam Primeiramente principia a demarcaçam deste Lugar em a Cabeça Ladra, e dahi vai o Outeiro da Cabeça de Gonta, e dahi ao Outeiro do Fomadouro, e dahi aos Vinheiros; e dahi vai a comeada athé a Vessada, e dahi ao Outeiro da Maeira; e dahi ao Outeiro dos Valles; e dahi o Outeiro das poças do Traio, e dahi à Lameira redonda, e dahi o Outeiro do Soldado, e dahi o Outeiro do Val do Gaio aonde acaba a Demarcaçam e Lemite deste Lugar, e no qual e no qual nam há mais baldios de que os declarados. --E por esta maneira houveram sua declaraçam por feita, e acabada que elle Doutor Juiz de Fora mandou escrever, que assignou com os mesmos homens e Quadrilheiro depois desta lhes ter Lido e declarado por mim Escrivam Caetano Moreira Cardozo que escrevi. «Valle». De Antonio Gonçalves Quadrilheiro huma cruz. De Pedro Rodrigues huma cruz. De Manoel Rodrigues huma cruz. ---

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Do Liberalismo ao século XX

B

odiosa foi uma das freguesias que integrou o concelho de Viseu depois da reforma político-administrativa de 1836 de Passos Manuel e da publicação do 1º Código Administrativo. O Código Administrativo de Costa Cabral de 1842 retirou as Juntas de Paróquia da organização da administração pública, tendo ficado apenas com a administração dos seus bens, da Fábrica da Igreja e com o desempenho de actos de beneficiência. Tal código vigorou até 1878. O livro de atas da Junta de Paróquia da Freguesia de Bodiosa mais antigo começa em 15 de janeiro de 1863 com a ata de juramento da nova Junta. O presidente a iniciar funções era o padre António de Barros Cardozo e os outros dois membros da Junta eram António Rodrigues Pereira de Bodiosa-a-Nova e João Gomes da Silva de Aval. A freguesia de Bodiosa fazia parte do concelho de Vouzela desde 1855. Decorridos dezasseis anos, em 1871,voltaria a pertencer ao concelho de Viseu, como tinha sido desde a Idade Média. Nesta altura, as grandes preocupações da Junta eram essencialmente com aspetos ligados à igreja e ao culto. Muito raramente são registados nas atas assuntos de outra índole. O estado de degradação em que se encontrava a igreja paroquial era a grande preocupação, tendo ficado registado na ata de 8 de dezembro de 1865 um pedido de dinheiro ao

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Comissário Geral para efetuar obras. Esta missiva também foi assinada pelo abade António Bernardo dos Santos. Em 1867 a Junta de Paróquia manifesta a intenção de construir um cemitério. Para executar a obra orçada em 600 mil reis, recorram ao dinheiro de várias confrarias existentes em Bodiosa, nomeadamente a Confraria do Menino Jesus (15 mil reis), a Confraria de Nossa Senhora (12 mil reis), a Confraria de Santa Eufémia (10 mil reis), a Confraria de Santo António (5 mil reis), a Confraria do Santíssimo (20 mil reis), a Irmandade do Santíssimo (250 mil reis) e a Irmandade do Espírito Santo (300 mil reis). O orçamento foi aprovado pelo Sr. Governador Civil, D. José Manoel de Menezes de Alarcão, a 1 de maio de 1867. A 5 de abril de 1868 a Junta reuniu na Casa da Fábrica, onde era costume, para que tomassem posse os novos responsáveis da freguesia. O padre António Bernardo dos Santos era o novo presidente e o secretário e o tesoureiro eram Manuel Fernandes de Oliveira de Baixo e Miguel Alexandre de Magalhães de Bodiosa-a-Velha. Estes mantiveram-se em funções quando a freguesia foi reintegrada no concelho de Viseu. Por esta altura havia alguns conflitos por causa dos baldios, nomeadamente o facto de haver pessoas que costumavam ir lá cortar mato para fazer estrume sem autorização. Em 16 de novembro de 1873 toma posse como presidente

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Fontes do Largo da Senhora da Graça, Travanca: 1877, 1929 e 1966.

da Junta o padre João Mendes de Oliveira, sendo regedor João Luiz Ribeiro. Este padre ficará como presidente até 1878. Praticamente um ano após tomar posse, mais precisamente em 9 de novembro de 1874, a Junta delibera, por unanimidade, pedir que se cria-se na freguesia uma sala de aulas para meninas. A fundamentação apresentada é, ao mesmo tempo, um retrato da sociedade bodiosense, viseense e portuguesa da época. Vejamos a transcrição da ata:

está, onze kylometros, pois tem a sua sede em Vizeu, de modo que se

“a Junta de parochia na caza da Fabrica da Parochia da Igreja desta

mais insignificante melhoramento, que por isso não tem recebido.

Freguesia de Bodiosa, deliberou unanimemente pedir ao Governo de S.

Pronptifica-se a junta a arrendar caza para a eschola, dando mobília e o

Magestade a creação d’uma Cadeira d’ensino primário do sexo femini-

subsidio de três mil reis anno.”

torna impossível a creanças percorrer tão longo caminho, e muitos serião os inconvenientes a que essas creanças ficariam expostas. Não há em toda a freguesia menos de cem meninas completamente analfabetas, e que, creada a Cadeira, receberião a instrução própria do seu sexo a fim de serem uteis à família e à sociedade. Para os Cofres públicos, as tímidas contribuições municipais e parochiaes, contribui a freguesia com uma avultada quantia sem que até ao presente haja reclamado o

no, apresentando mui respeitosamente, para fundamento do justíssimo

O pedido formulado foi correspondido e as meninas começaram pouco tempo depois a ter aulas em Oliveira de Baixo com uma professora que ainda se mantinha lá em 1884 (Ata de 21 de setembro de 1884).

pedido as considerações seguintes: É esta freguesia uma das mais populosas do concelho de Vizeu, pois conta mais de quinhentos fogos, e pouco mais ou menos três mil habitantes, quasi todos sem recursos para Primeira ata.

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mandarem educar seus filhos. A Cadeira ? ensino dista, a que mais perto

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A ata da Junta de 6 de julho de 1876, em que se apresentou o orçamento para o ano seguinte, não só comportava um subsídio para arrendar a casa do ensino primário masculino (4.500 reis), como também a casa do ensino primário feminino (4.000 reis) e ainda um subsídio para comprar material escolar para alunos pobres (3.000 reis). Em 1878 tomou posse como presidente Miguel Alexandre Magalhães em substituição de José Paes Duarte. O novo presidente ficou no cargo até 1885. Nesses anos permaneceu como grande preocupação o estado de degradação da igreja paroquial. O presidente propôs que fosse construída uma nova igreja no sítio das Regadinhas, ao fundo da propriedade do Dr. António Francisco Santos Amaral. A meio do ano de 1886, tomou posse um novo presidente: António Rodrigues Alexandre Magalhães. No final desse mesmo ano nova tomada de posse: Manuel Rodrigues do Cabo Almeida. Não ocupou o lugar durante muito tempo porque logo no início de 87, a 9 de janeiro, tomou posse um novo presidente: João Luiz Ribeiro. Em fevereiro, consideram “da maior e inadiável urgência a construção da casa de aulas para ambos os sexos”, dado que as despesas tidas com o arrendamento de casas particulares para servirem de escola era muito elevado. Como a Junta não tinha dinheiro para efetuar a obra, decidiram vender quase três dezenas de terrenos baldios. Também a questão da construção da nova igreja paroquial continuava a arrastar-se. Para resolver definitivamente este assunto, em novembro de 1888 o sr. Custódio Rodrigues Pereira ofereceu um terreno na Quinta do Cruzeiro para se erguer o novo templo. Ainda iriam passar alguns anos para que tal se concretiza-se. Em janeiro de 1890 tomou posse o padre José Gonçalves Barreiros. Poucos meses depois a Junta recebeu a planta da nova igreja, parecendo que as obras estariam para começar, o que não sucedeu porque a ata de julho de 1892 refere que as obras ainda não tinham começado. Logo no início do ano seguinte, toma posse, novamente como presidente, António Rodrigues Alexandre Magalhães. A última ata do primeiro volume desse livro termina com a de 26 de abril de 1893.

Orçamento de 1895.

O Comércio de Viseu de 22 de maio de 1895.

O segundo Livro de Atas da Junta de Paróquia da Freguesia de Bodiosa (1893-1922) desapareceu “misteriosamente” antes da tomada de posse da nova Junta a 21 de janeiro de 1923.

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de 5 de outubro de 1910, a Primeira Grande Guerra (19141918) ou a construção da linha de caminho-de-ferro do Vale do Vouga. Seria interessante ver nas atas das reuniões que impacto estes acontecimentos tiveram na freguesia. Recorrendo a jornais locais da época e aos orçamentos anuais da Junta, entregues obrigatoriamente no Governo Civil de Viseu, sabemos que era presidida no final do século XIX pelo padre Bento Rodrigues Martelo.

Por esta ocasião ficou lavrado um protesto por não terem estado presentes os membros da Junta cessante e por não eles não terem apresentado os livros de contas e de atas que estavam em sua posse. Até à presente data, os livros nunca apareceram. O desaparecimento do segundo Livro de Atas corresponde a um hiato de informação de trinta anos. Foram três décadas muito ricas em acontecimentos históricos como a Revolução

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Edital de 1908.

Fatura de 1908.

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Ordem de Pagamento de 1909.

Alvarรก de 1910.

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Manuel Alexandre de Pinho.

Iniciado o novo século, os orçamentos da Junta entregues no Governo Civil de Viseu foram assinados pelo padre João Correia de Almeida até 1910, depreendendo-se que se manteve como presidente até à revolução republicana. Implantada a República, a Junta foi presidida inicialmente por Manuel Alexandre de Pinho. Não sabemos por quanto tempo, nem quem lhe sucedeu durante essa década. Antes de 1923 quem dirigia os destinos de Bodiosa era Custódio Marques de Costeira. Pouco tempo decorrido sobre o início do novo regime, a freguesia lançou-se na ampliação do seu cemitério e no melhoramento do abastecimento de água com a inauguração de mais uma fonte em Oliveira de Baixo. Mandado de Pagamento de 1911.

Memória descritiva de 1911.

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Orçamento para construção do cemitério 1911.

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República (1910-1926) Foram tempos de muita instabilidade política, social e económica, com as organizações político-partidárias, sindicais e os militares permanentemente envolvidos ativamente no curso dos acontecimentos, como foi a tentativa de golpe militar pró-monárquico, ocorrida na madrugada de 21 para 22 de Outubro de 1913. Essa tentativa de revolução Realista foi encabeçada pelo capitão João d’Azevedo Coutinho, ex-oficial da Armada, e, como noticiava o jornal O Comercio de Viseu, “tendo ramificações em varios pontos do paiz, sendo os dirigentes já conhecidos do governo, que está de posse de todos os fios da meada”. Este jornal local, Monárquico, informa a 26 de Outubro de 1913, que os revoltosos contavam em Viseu “com o levantamento de cavalaria 7 de Nelas, que se dirigiria a esta cidade, trazendo consigo os amotinados das povoações do percurso, e que chegados aqui teriam a adesão do regimento de artilharia 7. Então os dois corpos, com os elementos civis revoltados, de Viseu e de fora, fariam um ataque a infantaria 14, conseguindo, segundo eles, a sua rendição com toda a facilidade, proclamando-se então a monarquia, havendo já sido escolhidas as autoridades que assumiriam desde logo os seus cargos.” Na sequência do falhanço da intentona foi presa muita gente, de que se destacam os párocos de muitas freguesias, acusados de instigarem a população à participação nos acontecimentos. Assim, no dia 22, “começaram as autoridades a efectuar prisões, para o que saíram para as povoações amotinadas automóveis com forças militares, policiais e republicanos, todos armados, que regressavam de momento despejando gente nas prisões do governo civil. Entre eles contavam-se muitos sacerdotes, como os párocos de Orgens, Vila Chã de Sá, Fail, Lourosa, Côta, Abravezes, etc. -Tambem foram ontem detidos os srs. dr. Luiz Ferreira de Figueiredo e filho, dr. Luiz Frutuoso de Mélo, Florido Marques, João Antonio Cavaleiro, guarda Candido, nº46 da policia civica, etc, dizendo-se que se preparam outras prisões. O sr. dr. Luiz Ferreira deu entrada na cadeia após os interrogatorios. Entre outros sacerdotes entrou preso o padre Adelino, de S. Cipriano”. 76

Ilustração Catholica, 1914 Página anterior: fonte republicana de 1911 em Oliveira de Baixo.

João Francisco da Silva, Urbano Lopes, Serafim Lourenço, Joaquim Antonio Ferreira e Braz Ribeiro de Figueiredo, estes de Cepões. Os detidos foram escoltados por uma força do Regimento de Infantaria 14. A 11 de Fevereiro foram feitas novas detenções, dessa vez só em Vila Chã de Sá, como noticia O Comercio de Viseu: “Uma força d’infantaria 14, sob o comando do sr. tenente Castelo Branco e 2º sargento Marques, custodiou ontem para a cadeia desta cidade os seguintes presos, todos de Vila Chã de Sá, acusados de terem tomado parte no movimento politico de 22 d’outubro: Bernardo Lopes Ribeiro, Manoel Lopes de Campos Pinho, Antonio Domingos Figueiredo, Joaquim Campos Figueiredo, Antonio Lopes Correia da Cruz, Manoel Pereira dos Santos, Antonio Pereira Marques, Jose Pereira da Costa, Agostinho de Figueiredo Loureiro, João d’Oliveira, Antonio Marques Lopes, Francisco Figueiredo, Agostinho Pereira da Silva e Manoel Pereira Marques.” No dia 23 de Fevereiro de 1914 foram libertados todos os presos políticos que ainda se encontravam detidos sob suspeita de envolvimento no golpe Monárquico de 21 de Outubro, em virtude de uma amnistia geral promulgada pelo Governo (MARQUES, 2009: 128-133).

Para além dos citados anteriormente pelo jornal viseense, muitos outros foram presos, entre os quais o pároco de Bodiosa João Correia de Almeida que fora o último presidente da Junta antes da implantação da República. Até ao final do ano de 1913, os acusados viseenses foram presos e soltos pelo menos três vezes, o que constituiu motivo de debate acalorado no Senado nos finais de Dezembro, com o Ministro da Guerra, Pereira Bastos, a ser questionado pelo dr. Ricardo Pais Gomes (Partido Evolucionista) sobre essa questão. Ainda nos finais do mês de Dezembro, a mesma questão foi colocada no Parlamento, pelo dr. Júlio Patrocínio (Partido Evolucionista) ao Ministro da Guerra, na presença do presidente do Ministério, dr. Afonso Costa. Decorrido mais de um mês sobre os debates parlamentares, mais precisamente no dia 2 de Fevereiro de 1914, os seguintes detidos foram enviados para Braga, “afim de ficarem á disposição do Tribunal Marcial”: padre Luiz Ferreira da Ponte, João Ferreira da Ponte e Antonio Rodrigues Barbosa, guarda rios, todos de Fail; Padre Francisco Paes Pereira, Antonio Paes Pereira, Justino Lopes Pinheiro e Manuel Fernandes Novo, de Vila Chã de Sá; padre José d’Oliveira, de S. João de Lourosa; e José Pereira da Rocha, João da Costa Freira, 77


O Intransigente de 11 de agosto de 1915

Grande Guerra (1914-1918) -191428/junho: assassinato do Arquiduque Francisco Fernando (e mulher) em Sarajevo 18/julho: a Áustria declara guerra à Sérvia 1-5/agosto: declarações de guerra da Alemanha, Rússia, França, Inglaterra 18/agosto: o governo português decretou a mobilização de dois destacamentos mistos para as colónias de Angola (zona Sul) e Moçambique (zona Norte), entre os quais se contam o 3º Batalhão do Regimento de Infantaria

-1917-

14 (embarque: 10-12/setembro/1914) e a 5ª Bateria do Regimento de

2/Fevereiro-20/novembro: Corpo Expedicionário Português (CEP) chega a

Artilharia 7 (embarque a 11/novembro/1914)

França (Brest)

25/agosto: ataque alemão ao posto fronteiriço de Maziúa (Norte de Mo-

10/julho: o CEP integrou um setor sob comando do XI Corpo do Exército

çambique)

Britânico na Flandres francesa, entre Armentiéres e Béthune (em frente de

31/outubro: ataque alemão ao posto português de Cuangar (Sul de Ango-

Lille)

la)

26-27/julho: primeiro ataque da infantaria portuguesa a posições alemãs

18/dezembro: combate entre portugueses e alemães em Naulila (Angola)

(Regimento de Infantaria 24)

-1916-

14/agosto: infantaria alemã ataca o CEP em Fauquissart

9/março: a Alemanha declara guerra a Portugal

-1918-

10/abril: tropas portuguesas em Moçambique tomam Quiomba

9/abril: batalha de La Lys (um Batalhão de Infantaria 14 pertencia à 3ª

26-27/maio: tropas portuguesas em Moçambique tentam tomar Rovuma

Brigada de Infantaria)

9/13/27junho: tropas alemãs tomam Macaloja, Namoca e Negomano

11/novembro: assinatura do Armistício

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Capitão Manuel Alexandrino de Figueiredo e a sua segunda mulher,

Medalha de Campanhas do Exército Português (Angola).

Cândida de Almeida Nunes de Figueiredo.

Medalha de Comportamento Exemplar.

xandrino de Figueiredo (1887-1975), natural de Pereiras, (embarque: 10-12/setembro/1914) e a 5ª Bateria do Regimento de Artilharia 7 (embarque a 11/novembro/1914). Não conhecemos pormenores da participação deste jovem oficial bodiosense nas campanhas da Grande Guerra em Angola. Sobreviveu à experiência e depois de cumprido o dever foi condecorado com a Medalha Militar de Comportamento Exemplar. Também Manuel Gonçalves Alexandre (1895-1975), natural de Travanca, participou nesta guerra como soldado na Frente Ocidental em 1917-18. Também ele regressou da frente, trabalhando depois como carpinteiro.

Nesse mesmo ano de 1914 começou a Grande Guerra. Neste conflito morreram dezenas de milhões de seres humanos de todos os continentes e a destruição material, sobretudo na Europa, nunca alcançara tamanha dimensão. Portugal participou neste conflito em três campos de batalha: Norte de Moçambique e Sul de Angola a partir de 1914 e Frente Ocidental (Flandres) a partir de 1917. A 18 de agosto de 1914 o governo português decretou a mobilização de dois destacamentos mistos para as colónias de Angola (zona Sul) e Moçambique (zona Norte), entre os quais se contava o 3º Batalhão do Regimento de Infantaria 14, do qual fazia parte o capitão Manuel Ale-

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1914 e A Voz da Oficina. O tom era crítico pois, como referem estes periódicos locais, não foram convidados para a inauguração da linha. A Voz da Oficina, num tom sarcástico, compara o material circulante disponibilizado para a linha, com a velha Arca de Noé, talvez pela sua antiguidade e falta de qualidade. Nos meses seguintes, as críticas eram generalizadas não só ao material circulante mas também à qualidade do serviço, nomeadamente ao incumprimento dos horários dos comboios, ao preço dos bilhetes e ao próprio trajeto da linha.

Em dezembro de 1907 começou a ser construído o caminho-de-ferro Espinho – Viseu. O projecto era do engº. Xavier Cordeiro e a empreitada do construtor francês Mercier, com os engenheiros Audigier e Chatains. No ano seguinte, a 11 de outubro de 1908, foi inaugurado o troço Espinho – Oliveira de Azeméis. Entre 1908 e 1911 começou a exploração até Sernada e entre esta localidade e a vila de Vouzela começou em 1913. O último troço, entre Vouzela e Viseu, foi inaugurado a 5 de fevereiro de 1914, como noticiam os jornais O Comércio de Viseu de 8 de fevereiro de

Caminho de ferro do Vale do Vouga.

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No triénio de 1923-1926 o presidente da Junta de Freguesia de Bodiosa foi, como já referimos anteriormente, Manuel Marques da Silva. A sua atuação centrou-se na resposta às preocupações mais prementes das populações como as questões do abastecimento de água, dos baldios e o estado dos caminhos da freguesia. Em 1924 colocaram à venda alguns baldios para angariar dinheiro para a construção de uma escola primária no lugar de Santa Marinha, entre Silgueiros e Aval. Ao longo do ano foram vendidos vários desses baldios . Nesse mesmo ano, a Junta manifestou grande preocupação com um surto de febre tifóide não só na freguesia como em Ribafeita, pelo que solicitaram que fosse restabelecido o antigo posto médico de Bodiosa para dar resposta a este grave problema. O Golpe Militar de 28 de maio de 1926, liderado pelo Marechal Gomes da Costa, acabou com a 1ª República. Começava a Ditadura Militar que depois de 1933 se denominaria de Estado Novo, já dirigido pelo Professor António de Oliveira Salazar. A 6 de junho de 1926 tomou posse como novo presidente de Junta António Gonçalves Lage. O regedor da freguesia era nessa altura Serafim Rodrigues Mariano. António Lage manteve-se durante dois triénios. Em 1932 tomou posse como presidente da então designada Comissão Administrativa da Junta de Freguesia de Bodiosa, José Maria de Almeida Martins, sendo composta ainda pelos seguintes membros: António Gonçalves Ramalhoso e António Marques Dionísio. O regedor era Leonídio Loureiro. Mudaram-se os tempos políticos mas as vontades, ou preocupações, permaneceram as mesmas. Lendo-se o artigo

Estação de Bodiosa

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vender obrigatoriamente o minério à concessionária, facto que nem sempre acontecia. Havia quem vendesse clandestinamente a compradores vindos de fora porque assim ganhavam mais do aquilo que a concessionária pagava. Era um risco para compradores e vendedores mas que muitas vezes compensava. A Mina do Cume, localizada a sul de Silgueiros, sendo a maior de todas as minas existentes na freguesia de Bodiosa, pertencia ao couto mineiro da Bejanca que estava concessionado aos alemães. Quer no Cume, quer no Cabrão, ainda subsistem importantes vestígios arqueológicos das estruturas de superfície daquelas minas. Na Mina Americana, situada em Aval, os poços tinham cerca de 8 metros de profundidade e o acesso era feito por meio de uma escada de madeira. Nas galerias havia carris de madeira onde circulavam vagonas com rodas de ferro compradas na empresa Bodiosa Industrial Limitada. No exterior da mina encontravam-se várias estruturas mineiras de superfície: a lavaria e a separadora do minério, uma máquina a vapor que dava energia a todo o funcionamento da exploração mineira, um paiol com o dinamite utilizado na abertura dos filões e barracões onde se realizavam experiências com as recolhas feitas. A Junta arrecadava um imposto de 5% sobre o rendimento da exploração, o que era importante para as obras a realizar na freguesia.

António Lopes da Silva.

de O Comércio de Viseu de 7 setembro de 1929 verificamos que as preocupações mais prementes e elementares da população da freguesia mantinham-se: a qualidade da água ou falta dela. Apesar de ser uma terra de muitas nascentes, a água que era disponibilizada ao consumo em fontes públicas não se encontrava em boas condições o que motivava, entre outras coisas, o surto de doenças como acontecera cinco anos antes. Ora, em 1934 a Comissão Administrativa da Junta pede apoio financeiro à Câmara Municipal de Viseu para substituir as fontes de chafurdo de Travanca e Bodiosa-a-Nova. Em 5 de agosto de 1934 a recém-empossada Comissão Administrativa da Junta de Bodiosa (24 de junho), presidida por António Lopes da Silva e da qual fazia parte também

António Gonçalves Ramalhoso e António Luiz Mendes Ribeiro Fernandes, gastou 4$50 na aquisição de três programas do 1º Congresso da União Nacional. Este facto não deixa de ser interessante porque era a primeira vez que se gastava algum dinheiro com propósitos meramente políticos, o que não deixa de ser significativo do teor do novo regime. Decorridos alguns meses, mais precisamente a 2 de dezembro, este pendor ideológico fica novamente vincado na ata da Junta, ao referir a propósito das eleições que iriam decorrer no dia 16 desse mês, que “foi ponderado a necessidade de propaganda das ideias do Estado Novo e dos preparativos para as próximas eleições de deputados da União Nacional”. Note-se que nestas “eleições” o único partido a concorrer era a União Nacional.

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Exército alemão.

Em 1939 eclodiu na Europa uma nova guerra que rapidamente se tornou mundial, sendo ainda mais devastadora do que a primeira. Com ela aumentou a procura de minérios, em particular do volfrâmio, para abastecer a indústria militar. Foi neste contexto que a inglesa Companhia Mineira Beralt Tin & Wolfram Ltd. se estabeleceu em Portugal tendo as concessões dos coutos mineiros da Panasqueira, do Malhão, da Borralha e de Bodiosa. No couto mineiro de Bodiosa exploravam a Mina do Cabrão, situada em Bodiosa-a-Nova. Todas as minas e explorações a laborar no couto tinham que

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2

1

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3

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1.Entrada da Mina Americana | 2.Interior da Mina Americana | 3.Edifício da Mina do Cabrão | 4.Edifício da Mina do Cabrão.

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1.Cabine elétrica da Mina do Cume | 2.Casa do engenheiro da Mina do Cume | 3.Poço da Mina do Cume | 4.Tanques de água da Mina do Cume.

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Joaquim Gonçalves Alexandre.

Livro de Despesas da Mina do Cabrão referente ao ano de 1955. Responsável da exploração: eng. James Edward Kening.

A exploração de volfrâmio no subsolo bodiosense começara no iní-

Já durante a 2ª Guerra Mundial o Estado português permitiu que

cio do século. O primeiro concessionário por tempo ilimitado da

ingleses e alemães explorassem diretamente as minas, naquilo que

mina de volfrâmio de Bodiosa-a-Nova foi o dr. Maximiano Pereira da

ficou conhecido como a “corrida ao volfrâmio”, retratada na nossa

Fonseca Aragão, professor e historiador viseense, por alvará passa-

literatura em obras magistrais como Volfrâmio (1944) de Aquilino

do em 12 de agosto de 1911 e publicado em Diário da República em

Ribeiro e Minas de San Francisco (1946) de Fernando Namora. Nessa

30 de novembro desse mesmo ano.

altura áurea da exploração de volfrâmio os valores da exportação

Durante a 1ª Grande Guerra, Portugal vendeu toda a sua produção

ultrapassaram largamente os da guerra de 1914-18. Também não

de volfrâmio aos países Aliados, tendo atingido no ano de 1917 o

são raras as histórias daqueles que de um dia para o outro ganha-

valor máximo de tonelagem exportada: 1500 t (NUNES, 2000: 42-

ram muito dinheiro com a venda deste minério, mas, assim como o

59). Desconhecemos, no entanto, qual o contributo da exploração

ganharam também o gastaram num ápice, voltando à condição de

da concessão de Bodiosa.

pobreza anterior.

Excerto de livro de Aquilino Ribeiro: O Volfrâmio foi para as populações do Norte, deserdadas de Deus, o que o maná foi para os Israelitas através do deserto faraónico. Volfrâmio

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Iniciais MR da fábrica de resina Manuel Raimundo.

Em 1 de fevereiro de 1942 tomou posse como presidente da Junta de freguesia Joaquim Gonçalves Alexandre. Este ficaria à frente dos destinos de Bodiosa até 13 de janeiro de 1975, ou seja, durante mais de três décadas. Foi um longo período de tempo, que coincide com importantes transformações ocorridas na freguesia, sobretudo a nível industrial, mas em que as preocupações da Junta continuaram centradas, essencialmente, nas condições em que se encontravam as vias públicas da freguesia e na qualidade da água das fontes. A partir de 1955 a Junta começou a passar dezenas e dezenas de atestados de residência a muitos bodiosenses para efeito de Abono de Família, numa freguesia que continuava profundamente marcada pelos fracos recursos económicos da maioria da sua população. O Abono de Família, que fora instituído precocemente em Portugal em 1942, pelo Decreto – Lei 32192 de 13 de agosto, excluía no entanto, entre outros, os agricultores. Já aqueles que trabalhavam nas unidades industriais que se estabeleceram nos inícios da década de 1940 na freguesia

de Bodiosa, como a empresa de resina Manuel Raimundo, depois Sociedade Comercial de Resinas, em Oliveira de Baixo, ou a Sociedade Comercial e Mineira da Coriscada (1941), depois Fábrica de Serração e Moagem de Henrique de Almeida Quental (1944) e finalmente Bodiosa Industrial Limitada (1949), em Bodiosa-a-Nova, e a Sociedade Mineira do Paiva, em Travanca, tinham direito ao abono de família. Só a partir de 1969 é que os agricultores viram conceder-lhes esse apoio social por parte do Estado A resina chegava à Manuel Raimundo em bidons de madeira ou chapa transportados em carros de bois e camionetas. Era despejada para um grande tanque em cimento, chamado “barca”, e daí ia para a destilação numa grande caldeira aquecida inicialmente a lenha, mais tarde a nafta. Saía então águarrás e o chamado “pez louro”, que eram colocados em bidons e depois despejados em camiões cisterna.

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1

2

3

4

Bodiosa Industrial Limitada: 1.moagem | 2.serração | 3.máquina a vapor Heinrich Lanz de Mannheim | 4.edifícios da fábrica.

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Pedreira em Oliveira de Cima nos finais da década de 1960: visita de estudo de alunos do professor Almiro Moreira Simões.

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A escola e o regime: Dia do Lusito. Sobre o quadro da sala de aula as fotografias de Oliveira Salazar (chefe do governo) e Óscar Carmona (Presidente da República).

Professora Emília Nascimento na escola de Oliveira de Baixo

Professor Almiro Moreira Simões na escola de Oliveira de Baixo

Professora Lucília de Almeida Alexandrino na escola de Oliveira de Baixo

(década de 1960).

(década de 1960).

(década de 1960).

que estava a ocorrer na freguesia por esta altura era a do crescente número de população alfabetizada por via da escolaridade obrigatória até à 4ª Classe do Ensino Primário. A alteração de três para quatro anos de obrigatoriedade de ensino, ocorrida em 1956, inicialmente só para os rapazes e depois de 1960 também para as raparigas, veio reduzir significativamente as elevadas percentagens de analfabetismo que ainda persistiam na freguesia de Bodiosa. Nos inícios dos anos 70 havia escolas do ensino primário em Queirela, Oliveira de Baixo, Cruzeiro, Silgueiros e ainda a “moderna” Tele-escola em Travanca a quem a Junta de Bodiosa entregava uma bolsa de 500$00 a cada um dos alunos. No dia 25 de Abril de 1974 o regime implantado no longínquo ano de 1926, foi derrubado pelos militares. O país começava uma nova fase da sua história contemporânea tentando cumprir um programa político que se sintetizava em três palavras começadas pela letra D: Democratizar, Descolonizar e Desenvolver. Os primeiros tempos de qualquer novo regime são sempre agitados e este também não foi exceção. Contudo, ao per-

No pós-guerra, a exploração mineira começou a decrescer significativamente e, em alguns casos, a passar para as mãos de pequenos empreendedores locais que tinham muito menor capacidade de exploração se comparados com as empresas estrangeiras que anteriormente aqui laboravam. No início dos anos 50, o minério era escoado para as separadoras das empresas Bodiosa Industrial Limitada e Sociedade Mineira do Paiva. Esta só aqui se estabelecera nos finais da década de 1940, inícios de 1950. Em sentido contrário, a extração de pedra nas serras envolventes da freguesia foi aumentando bastante nas décadas de 1950 e 1960. Em janeiro de 1972 a Junta fixou o valor do pagamento aos pedreiros que trabalhassem no baldio: os homens com mais de 15 anos recebiam 2$00/dia enquanto mulheres e rapazes até 15 anos recebiam 1$00/dia. Na segunda metade da década de 1960 a Junta de Freguesia realizou várias obras de calcetamento de ruas um pouco por todas as povoações que compõem a freguesia, arranjou chafarizes para melhorar o abastecimento de água e a qualidade do mesmo e fez pequenos melhoramentos no cemitério. Todavia, a transformação mais importante e duradoura 92

instrução

alfabetizados

alfabetizados

habitantes

homens

mulheres

homens

mulheres

% analfabetos

1900

2053

747

1112

173

21

90.5%

1911

2177

658

1084

332

103

80.4%

1930

2281

678

1001

435

167

73.6%

1950

3203

893

514

56.1%

Fonte: Censos da População: 1905, 1913, 1933 e 1952.

o propósito de reivindicar melhorias para as suas localidades. Em 6 de outubro de 1974 o prof. António José Correia Alexandrino é um desses representantes dos moradores e poucos meses depois, a 13 de janeiro de 1975, tomaria posse como presidente da Comissão Administrativa da Junta de Freguesia de Bodiosa, da qual também fazia parte Virgílio Gonçalves dos Santos e Manuel dos Santos. Mantiveram-se em funções até às primeiras eleições autárquicas livres em mais de meio século que decorreram em 12 de novembro de 1976.

correr as atas da Junta do ano de 1974 e 1975, ficamos surpreendidos pela aparentemente normalidade que se viveu em Bodiosa nesses primeiros anos de democracia. Não há qualquer referência aos acontecimentos políticos que se viviam, o antigo presidente manteve-se em funções até 13 de janeiro de 1975, apesar de ser alguém que ocupava o lugar há 33 anos. O único elemento que nos aproxima do novo ambiente social e político que se vivia é a constituição de comissões de moradores, cujos representantes participam ativamente nas reuniões de Junta com 93


Paróquia de São Miguel de Bodiosa

T

odos os documentos analisados a respeito da paróquia de Bodiosa, desde os mais antigos até aos atuais, permitiram-nos chegar à conclusão que o seu orago nunca sofreu alterações, permanecendo sempre atribuído ao Arcanjo São Miguel. Se tivermos em linha de conta que esta invocação era especialmente valorizada no longínquo período medieval, significa que podemos estar diante da primeira pista concreta (à qual se juntarão, mais à frente, muitas outras) reveladora da notável antiguidade desta paróquia. Convém esclarecer que a palavra orago, utilizada como sinónimo de patrono ou padroeiro, serve para designar qual o santo, anjo ou entidade divina a quem é dedicada uma igreja, uma povoação ou uma paróquia. Pela sua importância intrínseca, a escolha de um determinado orago nunca consistia num ato aleatório: devia ser o reflexo das crenças da população, das suas necessidades específicas, dos seus medos e anseios, das convicções mais profundas. Outras vezes, a existência de lendas ou o relato de algum milagre divino também podiam funcionar como catalisadores à devoção de um santo em particular, que assim passaria a ocupar o lugar mais destacado no interior da igreja (retábulo ou altar-mor), no calendário festivo da comunidade e até nas orações individuais. A figura do padroeiro era detentora de uma tal influência e

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autoridade que em casos extremos, mas não incomuns, o seu nome se fundia com o da própria povoação. Por mero acaso, em Bodiosa não existe nenhuma situação que nos possa servir de exemplo. Contudo, bastaria visitar a freguesia vizinha de São Miguel do Mato, ou a cidade de São Pedro do Sul, para constatar uma evidente conexão entre o topónimo dos lugares e a invocação religiosa. Como forma de compensar o orago pelas graças concedidas aos fiéis e pelo manto protetor que estendia a toda a paróquia, perpetuou-se ao longo de gerações o hábito de festejar o seu dia litúrgico. No caso de São Miguel, a celebração acontece a 29 de Setembro, uma data que é também partilhada pelos Arcanjos Gabriel e Rafael. Encontramos referências a São Miguel Arcanjo tanto no Antigo como no Novo Testamento, sendo por isso fácil de compreender a posição hegemónica que lhe é concedida, em simultâneo, no seio das religiões cristã e hebraica. No Livro de Daniel, ele é repetidamente apelidado de “príncipe” e surge como um guardião natural do povo de Israel. Uma das passagens mais elucidativas assegura, num tom marcadamente profético, que “naquele tempo se levantará Miguel, o grande príncipe, ele que está junto dos filhos de seu povo.”1 A relevância de São Miguel no contexto religioso só pode ser compreendida à luz das suas valências, tão diversifica-

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das quanto indispensáveis. Por um lado, é a ele que cabe o acompanhamento das almas na sua jornada final, após a morte, ficando também responsável pela execução do respetivo julgamento. É necessário fazer a pesagem dos méritos e de todos os pecados que marcaram a vida de cada um, avaliando desse modo se serão merecedores de entrar no Paraíso. Por cumprir essas funções, a sua iconografia habitual inclui uma balança de pratos suspensos, agarrada firmemente por uma das suas mãos. Ao mesmo tempo, ele age como comandante do exército celestial, liderando os soldados de Deus contra as terríficas forças do mal. As páginas do Apocalipse descrevem uma batalha de contornos épicos: “Houve então um combate no céu: Miguel e seus anjos combateram contra o dragão. Também o dragão combateu, junto com seus anjos, mas não conseguiu vencer: e não se encontrou mais lugar para eles no céu. Foi precipitado o grande dragão, a antiga serpente, aquele a quem chamam Diabo e Satanás, o sedutor do mundo inteiro. Ele foi precipitado à terra, e seus anjos com ele.”2A sua força, integridade e invencibilidade faziam dele um modelo de virtudes a ser seguido pelos guerreiros cristãos, sobretudo quando estava em causa a luta contra o inimigo muçulmano. À semelhan-

ça de São Jorge e de Santiago Mata-Mouros, tornou-se patrono da cavalaria medieval e ofereceu o seu nome a algumas ordens militares. De acordo com a tradição, o monarca português D. Afonso Henriques tinha tamanha devoção pelo Arcanjo que, após a tomada de Santarém, empreendeu a criação da Ordem Equestre e Militar de São Miguel da Ala. Aliás, ele poderá ter sido mesmo o primeiro padroeiro de Portugal, situação que entretanto mudaria durante o reinado de D. João I (com a adoção de São Jorge) e novamente após a Restauração de 1640, com a coroação de Nossa Senhora da Conceição. A vertente bélica de São Miguel Arcanjo é facilmente identificável nas suas representações artísticas já que, por regra, ele aparece vestido com uma armadura metálica e munido de uma espada ou de uma lança. Por baixo dos seus pés, visivelmente derrotada e em profunda agonia, permanece a figura de Satanás, umas vezes retratada com forma humana, outras na imagem de um dragão ou serpente. As orações que lhe são dedicadas também enaltecem, amiúde, o carácter corajoso e aguerrido que revela na luta contra as trevas. Num trabalho de pesquisa intitulado Estudo da Oração na Prática Religiosa em Bodiosa foi possível desvendar o seguinte exemplo:

“Celebramos com hinos de Glória O Arcanjo leal S. Miguel Que nos Céus conquistou a vitória Destronando o soberbo Lusbel Grande Arcanjo nos Céus poderoso Sois da Igreja fiel protector Protegei-a no embate ardoroso Contra as fúrias do Vil tentador Vós que sois o guerreiro valente Combatei pelo povo fiel Das milícias do bem ide à frente Grande Arcanjo de Deus, S. Miguel.”3

São Miguel Arcanjo. Escultura presente no retábulo-mor da igreja paroquial.

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Origens e evolução da paróquia

N

sões de domínio régio. Observemos o que vem escrito: “… quod ecclesia de Bodiosa est hedificata inter villam de Bodiosa et Ulvariam, que sunt forarie Regis de jugata, in ipso loco termino, in quo ecclesia sedit, nullus habet hereditatem nisi Rex, sed tamen parrochiani presentaverunt semper eidem ecclesie.”5 Neste ponto, importa fazer uma reflexão. Embora as pistas referentes à localização geográfica da igreja sejam bastante vagas e não permitam apontar com rigor nenhum lugar concreto do mapa, não deixa de ser curioso que o atual edifício da matriz corresponda aos critérios acima mencionados. Isto é, não só não se encontra erguido no interior de qualquer povoado, como fica sensivelmente a meio caminho entre as aldeias de Bodiosa-a-Nova e Oliveira de Baixo. É claro que este documento medieval não podia estar a citar a igreja que hoje conhecemos, uma vez que essa só foi construída nos últimos anos do século XIX. Mas será então possível que naquele mesmo espaço possa ter existido uma outra anterior e bastante mais antiga? Esta constatação é corroborada por memórias que têm perdurado por transmissão oral, relativas à presença de uma igreja, entretanto desaparecida, nos terrenos onde agora se vislumbra a casa paroquial. Ali, são visíveis vários vestígios materiais da construção antiga. Como é compreensível, sem que aconteça primeiro uma análise arqueoló-

ão existe, ou pelo menos ainda não foi encontrado nenhum documento que nos permita datar com exatidão o nascimento da paróquia de Bodiosa. No entanto, sabemos que a sua antiguidade será tão impressionante como inquestionável, devendo recuar seguramente aos primórdios da nacionalidade. A confirmação disso mesmo pode ser encontrada nas Inquirições Afonsinas de 1258, onde vem mencionada, de forma clara e explícita, a existência da “parrochia Sancti Michaelis de Bodiosa”4. À semelhança do que aconteceu com outros monarcas portugueses, D. Afonso III ordenou a elaboração de Inquirições Gerais. Em termos simplistas, este procedimento administrativo tinha como objetivo salvaguardar o património da Coroa, averiguando de uma maneira exaustiva se alguns dos seus bens e terrenos haviam sido usurpados ou indevidamente tomados pelo clero e pela nobreza. Hoje, as informações depositadas ao longo dos parágrafos que constituem as Inquirições permitem aos historiadores conhecer um pouco melhor a história do nosso País. No caso concreto de Bodiosa, somos desde logo informados que, naquela altura, o seu pároco se chamava “Martinus Johannis” e que era, simultaneamente, cónego de Viseu. Quanto à igreja, essa estaria construída algures entre as povoações de Bodiosa e Oliveira, numa região predominante constituída por posses-

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Casa paroquial.

Fragmento de um lavabo de sacristia e outros vestígios da igreja paroquial antiga.

mas apenas por curtos períodos de tempo transitórios; e, em épocas mais recuadas, a misteriosa igreja que julgamos ter existido junto à supracitada casa paroquial. Retomando o documento das Inquirições, nele são registadas várias indicações relativas aos bens associados à paróquia de São Miguel. Transcrevemos aqui dois exemplos, não apenas pela importância axiomática que assumem, mas também porque nos ajudam a conhecer os lugares e a toponímia do período medieval: - “…quod ecclesia de Badiosa habet de testamento unam hereditatem forariam Regis de Ulvaria, et vocatur Terrenos de Vinea, et modo ecclesia habet eam. De tempore non recordatur.”6; - “… quod Gunsalvus Pelagii Romao testavit ecclecie de Bodiosa unam vineam forariam Regis de sexta de focaria de Bodiosa in Bodiosa de Sauto; et modo ecclesia habet ipsam vineam et nullum forum facit Regi.”7

gica mais aprofundada, alguns desses vestígios afiguram-se muito difíceis de descrever e de datar, nomeadamente porque apresentam um avançado estado de degradação e porque o crescimento descontrolado da vegetação já engoliu a grande maioria das paredes em ruínas que por ali permaneciam imóveis. Contudo, subsiste ainda uma mão-cheia de artefactos que é possível identificar e que nos remetem, de imediato, para o espólio decorativo e simbólico de um templo: é o caso de um lavabo em granito, de uma pia batismal (entrementes transportada para a capela do Divino Espírito Santo), nichos de cantaria e outras pedras trabalhadas. À luz dos dados recolhidos podemos equacionar que no decurso dos séculos vivenciados pela paróquia, ela já conheceu (pelo menos) três sedes diferentes: a atual igreja paroquial, desde o ano de 1899; antes de si, a capela de Bodiosa-a-Nova, que terá de facto desempenhado as funções de matriz 100

As referências geográficas acumulam-se, pelo que é possível confirmar que em meados do século XIII a paróquia era composta pelos lugares de Bodiosa - com referências a Bodiosa Veteri e Bodiosa de Sauto; Ulvaria (agora conhecida pelo topónimo de Oliveira, estando subdividida em Ulvaria de Fine, de Medio e de Fundo); Sirgueyros; Valle; Pereyras; Queyreela e Travanca. Ou seja, em boa medida, as peças que hoje compõem o tabuleiro geográfico da freguesia já eram uma realidade neste passado remoto. Sobre as duas últimas povoações mencionadas na lista, houve o cuidado de sublinhar que elas não estavam sobre a alçada directa do Rei, sendo pertença do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e da Catedral de Viseu. O texto esclarece: “Queyreela, que est hereditas Sancte Crucis…” e “Travanca, que est hereditas ecclesie de Viseo et de Sancta Cruce…”.8 Esta ligação de Travanca à cátedra viseense já remontava ao

tempo do monarca D. Afonso Henriques. No ano de 1183, o primeiro rei de Portugal doou ao cabido e ao bispo de Viseu, na altura D. João Peres, os “herdamentos que possuía em Travanca de Bodiosa (…), com a condição dos cónegos manterem iluminado o altar de Santa Maria e aplicarem o rendimento remanescente na construção da Sé e na aquisição de livros e ornamentos para os seus altares”.9 O estudo que aqui se pretende fazer acerca da paróquia de Bodiosa ficaria severamente incompleto se nos limitássemos a mencionar as Inquirições de Afonso III. Além do mais, bastaria avançar apenas um século na cronologia para nos encontrarmos diante de uma nova fonte documental, demasiado importante para ser simplesmente ignorada. E com uma vantagem: como refere detalhadamente o rendimento de todas as igrejas, dentro e fora do Bispado de Viseu, torna simples a realização de análises comparativas e a determinação de quem dispunha de maior ou menor riqueza. 101


Recordemos que até à implantação do regime republicano em Portugal, altura em que foi decretada a obrigatoriedade e a exclusividade do registo civil (no ano de 1911), quase todas as informações disponíveis acerca de batizados, casamentos e óbitos haviam sido recolhidas pelos membros do clero nas suas respetivas circunscrições eclesiásticas. Esta prática já era comum no decorrer do período medieval, mas tornou-se ainda mais sistemática e rigorosa a partir do Concílio de Trento12, onde foi exigido o registo em livro próprio dos batismos e matrimónios. Poucos anos depois, em 1614, o Papa Paulo V havia de estender essa obrigatoriedade aos assentos de óbito para todos os católicos. Será interessante constatar que no lote dos registos pertencentes à igreja de São Miguel de Bodiosa existe um “livro de defuntos feito no anno de 1582”, ou seja, que antece a ordem do Papa em mais de três décadas. No primeiro apontamento, assinado pelo padre Aleixo de Paiva, podemos ler que: “Aos 21 dias do mes de Julho de 1582 falleceo Manuel Gonçalvez da povoa…”13. Ainda assim, é possível recuar mais no tempo. O registo mais antigo que encontramos é um assento de casamento lavrado pelo padre Pedro Martins no ano de 1566. Como o seu texto ainda é perfeitamente legível, ele serve bem de exemplo à quantidade de informações relevantes que dele um historiador pode extrair: o nome do pároco, a identificação dos noivos, os respetivos pais e/ou testemunhas, diversas referências a lugares e topónimos. Segue a transcrição: “Aos quatro dias do mees de agosto da era de myll e quynhemtos e LtaX e seys anos [1566] eu Pedro Martiinz cura de igreja de São Migel de Bodiosa rezebi comforme ho sagrado comzilyo a Tome Rodriguez viuvo morador em Querela da dita freguesia com(?) Briatriz Antonio filha d’Antonio Afonso e de sua molher Antonia Martiinz moradores em Alcafache da freyguisia de São Vicemte forão testemunhas Francisco Afonso morador em Sirgeyros e Antonio Rodriguez e com(?) moor(?) parte dos freygueyses e por verdade asiney aqui mees era ut supra (assinado) Pedro Martiinz (subscrito) Francisco Afonso (subscrito) Antonio Rodriguez”14

Antes de referirmos os valores ali colocados, será benéfico compreender o contexto em que se verifica o surgimento de tal documento. No ano de 1320, o Papa João XXII assinou uma bula onde era concedida ao monarca português D. Dinis, pelo período de alguns anos, a décima de todas as rendas eclesiásticas do seu Reino, com o propósito de financiar a guerra contra os infiéis muçulmanos e levar a bom termo o socorro da Terra Santa. Contudo, para que esta doação fosse aproveitada da forma mais eficaz possível, era necessário apurar previamente quantas igrejas e mosteiros existiam de facto, confirmando ao mesmo tempo qual o seu verdadeiro rendimento. Foi com esse objetivo que se deu início à elaboração do “Catálogo de todas as igrejas, comendas e mosteiros que havia nos reinos de Portugal e Algarves, pelos anos 1320 e 1321, com a lotação de cada uma delas.”10 Na página respeitante ao Bispado de Viseu, pode ler-se que: “Aos vinte e três do mês de Janeiro da era de mil e trezentos e cinquenta e nove principiaram os juízes executores na cidade de Viseu a taxar as Igrejas dela, e de todo o seu bispado na forma que adiante se segue. (…) A de S. Miguel de Bodiosa [inserida no grupo das igrejas da Terra Aquém do Monte] em cem libras.”11 O montante acima mencionado colocava-a numa posição de moderada riqueza, longe por exemplo das 300 libras apresentadas pelas igrejas de São Pedro do Sul e Santa Maria de Vouzela, mas também muito acima das igrejas de Fornos de Algodres (com apenas 50 libras), Santa Maria de Matança (com 40) ou São Pedro de Infias (com 10), sendo que estas três últimas faziam todas parte da mesma circunscrição de Bodiosa. Nas suas imediações, e meramente a título comparativo, pode mencionar-se ainda São Miguel do Mato (lotada em 90 libras), São Miguel de Ribafeita e São Pedro de Lordosa (ambas com 150). Continuando o trabalho de recolha da mais antiga documentação existente sobre a paróquia de Bodiosa, torna-se imperioso recorrer ao Arquivo Distrital de Viseu, onde permanecem guardados diversos livros de registos paroquiais referentes aos séculos XVI, XVII e XVIII.

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Registo de óbito, ano de 1582.

Na segunda metade do século XVII, a morte do bispo D. Manuel de Saldanha implicou a escolha de um sucessor para o cargo de maior responsabilidade na diocese viseense. A opção recaiu sobre D. João de Melo, até então bispo de Elvas, que haveria de tomar posse no decorrer do ano de 1673. Apenas dois anos depois de ter tomado posse do episcopado, D. João de Melo enviou para a Sagrada Congregação de Roma uma “Instrução e Relação da Catedral da Cidade de Viseu e mais Igrejas do Bispado”. Neste documento são identificadas 288 igrejas paroquiais em todo o território diocesano, sendo uma delas a de São Miguel de Bodiosa. Esta fazia parte do Padroado Real, era Abadia e estava inserida no Arciprestado do Aro, numa altura em que o bispado de Viseu era composto por oito arciprestados: Aro da Cidade, Besteiros, Mões, Alafões, Trancoso, Castelo Mendo, Pinhel e Pena Verde. Quanto ao espaço interior da igreja, refere-se que “tem Sacrário, dois altares colaterais, invocações de Jesus e Senhora do Rosário. (…) Está suficientemente ornada.”15 Para finalizar, refere-se que a paróquia “tem cura anual” e que possui

outras quatro ermidas, sem no entanto especificar as suas invocações ou qualquer tipo de localização. Prolongando a leitura do documento às restantes igrejas paroquiais, somos levados a concluir que o orago São Miguel Arcanjo era um dos mais comuns em toda a diocese, sendo apenas ultrapassado pela dedicação a Nossa Senhora e ao Apóstolo São Pedro. De entre as vinte igrejas que partilhavam o mesmo padroeiro de Bodiosa contava-se São Miguel do Mato, Queirã, Papísios, Parada, Faíl, Lajeosa, etc. No final da década de 1740 e inícios da seguinte, o padre Luís Cardoso editou os dois primeiros volumes da sua notável obra Diccionario geografico, ou noticia historica de todas as cidades, villas, lugares, e aldeas, rios, ribeiras, e serras dos Reynos de Portugal e Algarve, com todas as cousas raras, que nelles se encontrão, assim antigas, como modernas16. Este título deveras extenso adequava-se perfeitamente à envergadura do projeto que o autor tomava em mãos, já que a sua pretensão passava por compilar um estudo da corografia e da historiografia local das povoações existentes no interior das fronteiras nacionais. O primeiro passo, no sentido de iniciar

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Registo de casamento, ano de 1566.

acrescentando-se logo em seguida que era constituída pelos lugares de “Bodioza Nova, Valle, Silgueiros, Pereiras, Casas, Povoa, Oliveira debaixo, Oliveira de cima, Travanca dálem, Travanca pequena.”17 Todavia, aquilo que realmente mais nos desperta a atenção é o conjunto de pormenores orientados para a descrição da igreja paroquial e de todas as capelas que orbitavam à sua volta. Ao que parece, eram sete no total: “Há (…) no destricto da Freguesia varias Ermidas, como são, a do Espirito Santo, a de S. Marinha, e a de S. João Bautista; ficão fóra do povoado, mas acode a ellas grande concurso de romagem, principalmente nos dias dos seus Oragos, e lhe fazem festas

a recolha de dados, consistia no envio de um inquérito endereçado a todos os párocos. A escolha recaiu sobre eles pelas razões mais evidentes: sabiam ler e escrever, um privilégio ainda restrito a uma minoria da população; e estavam em permanente contacto com os paroquianos, podendo assim recolher com facilidade todos os esclarecimentos que se afigurassem pertinentes. Tendo em conta que um desses dois volumes publicados correspondia à letra B, sabíamos que a referência a Bodiosa não deixaria de estar presente. O início do texto serve para confirmar o seu estatudo enquanto “freguesia na Provincia da Beira, Bispado, Comarca, e Termo da Cidade de Vizeu”,

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solemnes: tem mais quatro, a saber, a de S. Eufemia, a de N. S. das Candeas, a de N. S. da Graça, e a de S. Christina, pouco, ou nada frequentadas de romagem.”18 Em relação à Matriz, composta por apenas uma nave, sabe-se que “he dedicada a S. Miguel Arcanjo, cuja Imagem se venera no Altar mayor: tem mais dous, hum dedicado a N. S. do Rosario, outro ao Menino Jesu. (…) O Paroco he Abbade: rende-lhe a Abbadia setecentos mil reis. Há nesta Igreja huma só Irmandade do Espirito Santo…”19 Embora o padre Luís Cardoso não introduza quaisquer detalhes acerca da dita irmandade, o simples facto de a ter mencionado permite-nos deduzir acerca da sua antiguidade, tendo sempre presente na memória que a mesma continua (ainda nos dias de hoje) a funcionar em pleno. Há muito que as irmandades e confrarias eram uma realidade frequente um pouco por toda a Europa católica, consistindo em associações de leigos que se reuniam em torno de um padroeiro. Esse culto teria depois lugar num templo construído pela própria irmandade ou, quando os recursos mais escassos assim o exigiam, num simples altar ou retábulo lateral reservado no interior da igreja paroquial. Para além da vertente religiosa, estas associações de fiéis católicos procuravam estabelecer outros objetivos, tais como a prática de obras de caridade, a proteção dos mais pobres ou a assistência aos peregrinos, e, claro está, uma permanente ajuda mútua entre os membros da irmandade. Essa ajuda era particularmente sentida no momento da morte, comprometendo-se os irmãos a realizar um funeral digno. No seio da paróquia de Bodiosa, a fundação da primeira irmandade recua a meados do século XVIII e assume, como foi dito, o título de Divino Espírito Santo. Contudo, ainda a centúria não tinha terminado e já assistíamos ao aparecimento de uma nova estrutura associativa, que desde logo se fixará na igreja matriz e que adotava como devoção principal o Santíssimo Sacramento. De acordo com os estatutos originais, foi constituída em 1781. O manuscrito ilustrado expõe detalhadamente o regulamento interno da irmandade, sem esquecer também os motivos que estiveram na sua origem.

“Nós não nascemos só pª. nós. (…) nós somos partes de hum grande todo, pª. cuja armonia, bem, e conservação, todos devemos concorrer, segundo a esfera da nossa possibilidade. (…) He em consequencia disto, que os homens, procurando os meios de socorrer-se huns aos outros nas necessidades reciprocas (…) sustentam e ligam entre si os vinculos sagrados da uniao Christam. Taes são as Confrarias, e Irmandades (…) Desta natureza pois he tãobem a illustre, nova, e sempre respeitavel Irmandade, q agora se erige nesta Parochial Igreja, debaixo dos immortaes auspicios, e augusto titulo do Smo. Sacramento. E q gloria, q felicidade, que prazer, que alegria não deve rezultar aos que tem, e vierem ater a ventura de ser membros desta nobre corporação, não só pela sublimidade do Protector q escolhe a grandeza do titulo, debaixo do qual se instaura, mas tãobem pelo grande numero de graças, e indulgencias com que a Sanctidade Reynante do Smo. em Christo Padre Pio Papa Sexto se dignou ornala e enriquecela.”

No que diz respeito aos estatutos em concreto, sucedem-se vinte e quatro capítulos distintos determinando todo o tipo de normas: - o número máximo de membros (“…q o numero dos Irmaons seja até trezentos, entre Sacerdotes, Leigos, e Irmans…”); - a contribuição que cabia a cada um deles (“Dará cada Irmão em cada hum anno de annual cem reis…”); - os castigos a aplicar em caso de infração (“O Reitor poderá condemnar em hum tostão a cada hum dos Irmaons q desobedecer ao que por elle ou pelos mais Officiaes lhe for mandado…”); - os bens indispensáveis para levar em cada procissão (“Haverá nesta huma Cruz de pau com seu Crucifixo em vulto, huma bandeira, (…) quatro lanternas, (…) duas campainhas…”); - o modo de administrar e aplicar o dinheiro recolhido (“Determinamos q em nenhum tempo do mundo se applique dinheiro desta Santa Irmandade para outras obras, nem pª. outro algum fim, mais do q pª. suffragios, ebem espiritual

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muitas vezes não têm paralelo em mais nenhum documento. No seio dos muitos volumes que compõem as Memórias Paroquiais, há um manuscrito que foi assinado pelo abade Francisco de Mesquita e Lemos e que diz respeito à paróquia de Bodiosa. Depois de fazer uma breve descrição da situação geográfica e jurisdicional da freguesia, e de referir que ela possuía “duzentos e secenta e sinco vezinhos” e um total de “novecentas e trinta e sete pessoas”21… o texto refere a não existência de qualquer convento, ermida ou casa da Misericórdia. Em compensação, há várias capelas a registar, seguindo-se a sua enumeração: “a capella do Divino Spirito Santo no lugar de Bodioza a Nova, na qual está ereta huma irmandade com o titullo do Spiritu Santo (…), a capella de Santa Eufemia no lugar de Bodioza a Velha (…), a capella de Sam Joam no lugar de Pereiras (…), a capella da Senhora da Graça no lugar de Travanca, a capella de Santa Cristina no lugar de Queirella, a capella de Santa Marinha no lugar de Silgueiros, a capella da Senhora das Candeias no lugar de Oliveira de Cima.” Nas primeiras três, o pároco Francisco de Mesquita tem a preocupação de acrescentar que “no seu dia concorre munta gente de varias partes em romaria”22. Em termos globais, a transcrição que acabámos de ler parece estar em sintonia com a obra Diccionario geografico, o que nos dá uma segurança acrescida sobre a fidelidade da informação ali contida. Não obstante, há pequenas incongruências que não passam despercebidas aos leitores mais perspicazes. A primeira delas está relacionada com a capela de Santa Eufémia, que ora se diz não ser frequentada por romeiros e peregrinos, como em seguida aparece incluída no lote das três mais concorridas em dia de festa. A segunda diferença prende-se com a renda auferida pelo abade, uma vez que as Memórias Paroquiais registam um número consideravelmente inferior. É dito o seguinte: “O paroco desta igreja hé abbade, hé da aprezentaçam de Sua Magestade Fidilissima, e tem de renda de prezentemente trezentos mil réis, por estar pensionada a Santa Igreja Patriarchal com as quartas nonas.”23 Ora, conforme se pode constatar, este

das Almas dos Irmaons defuntos e vivos, e para os paramentos q forem precizos…”); - por fim, os cargos existentes dentro da irmandade, a estrutura hierárquica em que se sucedem, a obrigatoriedade de participar na festa do Santíssimo Sacramento e no ritual fúnebre de qualquer irmão. Tal como acontecia com a anterior, também esta irmandade se mantém ativa até ao momento atual, cercando-se de uma importância histórica e de uma influência religiosa que não podem, de forma alguma, ser ignoradas ou desvalorizadas. O mesmo é verdade para todo aquele leque de confrarias que haveriam de surgir no contexto da paróquia, sendo do nosso conhecimento a Confraria de Nossa Senhora do Rosário, do Menino Jesus, de Santa Eufémia, do Santíssimo e de Santo António. Após o terrível Terramoto de 1755, surge a necessidade de enviar um novo questionário para todas as dioceses e paróquias do País. Desde logo, para determinar de uma forma concreta a extensão do cataclismo natural e os estragos causados por si. Por outro lado, havia que substituir todos aqueles inquéritos feitos na primeira metade do século (por iniciativa do padre Luís Cardoso) mas que se perderam irremediavelmente no fatídico dia da tragédia. No total, pedia-se agora a cada pároco que respondesse a sessenta questões, devidamente repartidas em três grupos principais. No primeiro, deviam descrever tudo o que fosse relevante acerca das terras e povoações; no segundo e terceiro grupos, deviam concentrar-se nas serras e nos rios. No final das perguntas, seguia ainda a recomendação de acrescentar “qualquer outra coisa notavel que não vá neste interrogatorio”20. O objetivo continuava assim a ser muito claro: promover um efetivo conhecimento do território português, com todas as suas particularidades e o que mais houvesse digno de constar na memória. Os resultados deste inquérito, hoje amplamente conhecidos pela designação de Memórias Paroquiais de 1758, tornaram-se numa ferramenta de trabalho inestimável para qualquer investigador, contendo dados e informações que Livro dos estatutos da Irmandade do Santíssimo Sacramento.

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tem a imagem do Menino Jesu, o altar para a parte da Epistolla que tem a imagem de Nossa Senhora do Rozario...”24 Finalmente, quando chegamos ao conjunto de perguntas que são dedicadas ao nome e às características dos rios, desvendamos uma curiosidade acerca dos privilégios atribuídos ao abade de Bodiosa. “O rio que passa por esta freguezia conserva sempre o nome de rio Trouce (…) Fazem-se neste rio algumas pescarias de Veram (…) As pescarias que nelle se fazem são livres, exceto o que contém o lemite e distancia do passal desta igreja, por correr este rio pello meio delle, o qual está priviligiado para os abbades da mesma igreja por El Rei o Senhor Dom Affonso Henriques, que fez mercê aos mesmos abbades e coutando-lhe para sempre para que nenhuma pessoa de qualquer qualidade podesse pescar nelle e na distancia que tem o mesmo passal, com pena de que quem fosse achado na dita coutada pagaria cem réis para os encoutos e seis mil soldos, e as redes e armadilhas para o abbade…”25

rendimento não chega sequer a ser metade daquele que é mencionado no primeiro questionário. Divergências à parte, estes dois textos dão-nos a oportunidade de desenvolver uma análise comparativa com o panorama religioso atual, de onde se pode concluir que todas as invocações existentes em meados de setecentos se mantêm inalteradas e corretamente associadas às mesmas povoações. Por outras palavras, os oragos permaneceram ao longo dos séculos, mesmo quando os templos onde estão inseridos foram alvo de profundas transformações arquitetónicas ou mesmo reconstruídos de raiz. Sobre a igreja matriz, as Memórias Paroquiais deixam uma descrição ligeiramente mais demorada, apesar de não acrescentarem qualquer novidade em relação ao que já registámos: “O orago desta igreja hé de Sam Miguel Arcanjo de Bodioza. Tem três altares, o altar maior que tem a imagem do mesmo Sam Miguel, o altar para a parte do Evangeho que Livro dos estatutos da Irmandade do Santíssimo Sacramento.

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Arquitetura Religiosa

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esde a fundação da nacionalidade, já lá vão quase novecentos anos, assistiu-se em Portugal a uma preponderância indiscutível e ininterrupta da religião cristã/católica sobre qualquer outro sistema de crenças ou fé. Por esse motivo, não surpreende o elevadíssimo número de igrejas e catedrais, capelas26 e ermidas, mosteiros e conventos, que marcam presença em todo o território nacional, sendo raras as povoações (por mais pobres ou rurais que se afigurem) que não possuam o seu respetivo templo. A freguesia de Bodiosa conta com a presença de doze espaços religiosos distintos, que cobrem de um modo uniforme toda a grelha topográfica da região, e garantem que nenhuma habitação se situa a mais de um quilómetro (em linha reta) de pelo menos um deles. O caso da aldeia de Travanca é ainda mais notável, uma vez que aparece servida por três capelas em simultâneo, uma delas com origem privada. Quando nos questionamos acerca de um número tão significativo de templos num espaço geográfico que se sabe ser reduzido - apenas 25km2 - devemos levar em consideração um conjunto alargado de fatores, funcionando muitas vezes de forma cumulativa: - em primeiro lugar, há que recordar a morosidade e a dificuldade que as deslocações no passado envolviam, sobretudo nos períodos de inverno ou quando as condições cli-

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matéricas se apresentavam mais rigorosas. Hoje em dia, a extensa rede viária existente, em conjunto com os transportes públicos e a proliferação dos automóveis, quase fazem esquecer que apenas há algumas décadas atrás as pessoas se deslocavam maioritariamente a pé, o que colocava sérios entraves à população mais idosa, doente, ou que vivesse afastada da Matriz. A edificação de uma capela em cada aglomerado habitacional podia assegurar uma participação mais ativa e assídua de todos nas celebrações eucarísticas; - a segunda razão prende-se com a existência de alguma devoção especial a um determinado santo ou a Nossa Senhora, muitas vezes associada à realização de um milagre. Um exemplo comum engloba a imensidão de estórias e lendas relatando a descoberta de uma estatueta da Virgem, normalmente por pastorinhos e em lugares inusitados (como grutas ou riachos). De cada vez que alguém tentava transportar essa imagem para sua casa ou para o altar de uma igreja, ela desaparecia de forma inexplicável e voltava a ressurgir no local original. Perante um sinal divino tão flagrante e explícito, a população sentia-se impelida a reunir esforços e a construir um novo edifício naquele preciso lugar, passando a ser não raras vezes um destino de romarias e peregrinações. O caso do Santuário de Nossa Senhora da Lapa, em Sernancelhe, será talvez um dos mais conhecidos em toda a zona beirã, mas bastará conversar com os habitantes de

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Nossa Senhora das Candeias não se voltaram a fazer ouvir; - entretanto, a questão acima colocada também nos obriga a dissertar sobre o acentuado crescimento demográfico observado nos últimos séculos, um facto que se traduziu num número crescente de fiéis e numa motivação complementar à construção de novos espaços. Veja-se que em inícios do século XVIII as estimativas apontavam para a existência de 230 ou 240 fogos na freguesia, ao passo que apenas cento e cinquenta anos depois esse número já ultrapassava a barreira dos 400. Algumas décadas mais tarde, quando a centúria de oitocentos terminava e era substituída pelo século XX, aí já são referidos perto de 500 fogos e cerca de 2000 habitantes. É um movimento demográfico linear e sempre apontado no sentido do crescimento, culminando na situação atual com quase 4700 moradores. Ora, a nova capela de Nossa Senhora da Graça, em Travanca, veio beber a este argumento grande parte da sua justificação. Na altura, o padre Valdemiro Pereira Coelho salientava: “… a Capela que possuímos não tem dimensões que satisfaçam, nem condições mínimas para acolher os habitantes de Travanca e arredores. (…) Queremos um templo majestoso, para Deus tudo é pouco; queremos um templo espaçoso para que a família se possa condignamente reunir.”27; - por último, deparamo-nos com o desejo (impelido não por uma qualquer necessidade prática e concreta, mas pelo mero simbolismo do ato) de trazer a presença de Deus para mais perto da comunidade. Nem sempre existe uma razão tangível que fundamente a edificação de uma determinada capela; pode ser apenas uma forma de materialização do fervor religioso, ou um ato espontâneo de generosidade coletiva. Mesmo sem nunca perder os vínculos de ligação à

Pedra onde, segundo a tradição, a imagem de Nossa Senhora das Candeias reaparecia (lugar de Santa Maria, Oliveira de Cima). A pedra sugere-nos poder ter sido a base de uma mesa de altar, sendo que no seu orifício teria sido depositada a lipsanoteca da fundação.

Oliveira de Cima para reconhecer (também aqui) uma lenda de contornos semelhantes. Conta-se que no tempo da capela antiga a escultura de Nossa Senhora das Candeias tinha o hábito de “fugir” em direção aos campos agrícolas que se estendem para Norte da povoação. O seu destino final era sempre o mesmo, tendo ficado conhecido como lugar de Santa Maria. Aí, permanece ainda erguido um bloco de granito paralelepipédico (com um orifício retangular escavado na sua face superior) marcando o sítio exato das reaparições. Curiosamente, quando a capela antiga foi demolida, não se levou em consideração a hipotética “vontade” da padroeira: o terreno escolhido para assentar as fundações do novo edifício não só não correspondia ao que era mencionado na lenda, como ainda se afastava mais para Sul, numa lógica de acompanhamento do previsível crescimento da aldeia. Seja como for, os relatos de desaparecimento de

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Capela de Nossa Senhora da Luz.

aqui que todos procuravam abrigo em caso de catástrofe ou ataque militar, alertados pelo badalar dos sinos que sempre antecipavam a chegada das notícias mais importantes. No final, todas as principais fases do ciclo de vida humana nascimento, casamento e morte - encontravam aqui o seu elo de ligação. Ao analisar o modo como a devoção religiosa se foi gradualmente traduzindo em novos espaços arquitetónicos, compete-nos abordar também o caso concreto e muito peculiar das capelas privadas, ou seja, daquelas cuja construção se ficou a dever ao investimento individual e/ou familiar. É um tema de abordagem obrigatória, porquanto em Bodiosa existem duas capelas que tiveram assim a sua origem: Nossa Senhora da Luz, sita em Travanca, e Nossa Senhora da Saúde, localizada na Póvoa. Um empreendimento deste tipo exigia um esforço financeiro

igreja paroquial, as populações tendem a ansiar por uma capela que sintam e que possam chamar de “sua”, devotando-lhe o seu tempo e atenção, o seu esforço e doações. É sempre um motivo de orgulho, independentemente da riqueza artística das fachadas, do seu tamanho mais ou menos impressionante, ou do espólio que alberga no interior. Mais do que outra coisa qualquer, é aqui que gostam de celebrar a eucaristia e que podem dedicar alguns minutos do seu dia à oração individual. Mas não é tudo. A História encarregou-se de nos ensinar que, sobretudo nas zonas rurais, as igrejas e capelas extravasavam em muito as suas funções meramente religiosas, sendo também fundamentais dos pontos de vista social, cultural e económico. Era geralmente à sua volta que as populações se reuniam e sociabilizavam, que organizavam as festas ou discutiam os assuntos comunitários. Era também

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Capela de Nossa Senhora da Saúde.

Da esquerda para a direita: monumento erguido na povoação de Pereiras; imagem de Santa Eufémia, num terreno particular em Bodiosa-a-Velha; painel de azulejos ladeando a entrada de uma casa em Travanca; fachada de uma habitação em Queirela.

A fundação de uma capela particular podia ser justificada com várias ordens de razão. Podia tratar-se de um simples gesto de fé, induzido pela devoção a um patrono específico. Podia ser o cumprimento de uma promessa. Podia traduzir o desejo de uma maior privacidade e comodidade para o agregado familiar. De um ponto de vista mais pragmático e terreno, podia também ser (e foi seguramente) o caminho encontrado por algumas famílias para potenciar o seu prestígio social, ao mesmo tempo que promoviam uma subtil ligação entre o poder económico que já detinham, e a influência espiritual que almejavam. A ausência de registos escritos leva-nos a não ter certezas sobre quais as motivações que estiveram na origem das duas capelas privadas da freguesia de Bodiosa. Na Póvoa, o distanciamento em relação à igreja paroquial e a ausência de qualquer outro espaço religioso nos limites da aldeia, po-

considerável, pelo que o seu universo se mantinha bastante limitado aos extratos mais elevados da sociedade, sobretudo famílias de linhagem nobre ou burguesia endinheirada. Não estava apenas em causa a construção das paredes do edifício; era também necessário garantir o seu recheio e embelezamento interior, dotando-a com a imaginária e as alfaias litúrgicas consideradas essenciais. Concomitantemente, era essencial estipular um conjunto de bens e recursos que ficassem adstritos à capela - o chamado dote patrimonial - garantindo assim no futuro a sua apropriada manutenção e conservação. Apesar do seu carácter privado, estes espaços religiosos tinham de ser autorizados e examinados pelo bispo, a quem cabia (caso considerasse que estavam reunidos os requisitos e a dignidade indispensáveis) realizar a bênção e autorizar a celebração da missa, mediante o pagamento do respetivo selo.

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dem ter funcionado como razões de força maior. Em Travanca, como já existia uma capela no meio do povo, as circunstâncias prevêem-se diferentes; talvez tenha sido o resultado de alguma promessa ou o agradecimento por uma mercê divina. Privadas ou do povo, grandes ou modestas, fundamentadas com um ou com outro argumento distinto, a criação de novos locais de culto foi uma prática incentivada pelas próprias autoridades eclesiásticas. Pode ler-se, nas Constituições Sinodais da Diocese do Porto, o pequeno mas elucidativo excerto: “Ainda que he cousa muito pia & louvavel edificarem-se ermidas em honra & louvor de Deos nosso Senhor, da Virgem nossa Senhora, & dos Santos, porque com isso se incita & affervora a devoção dos fieis, & se segue a utilidade de aver nas Parochias grandes lugares decentes, em que comodamente se possa celebrar…”28

Se houve algum aspeto que se manteve imutável ao longo de todos estes séculos, foi o forte sentimento religioso que ainda hoje é partilhado pela maioria da população. Tamanho fervor não deixaria de ter profundas implicações no quadro vivencial das comunidades, influenciando os costumes e as tradições, o calendário e as festas, o próprio dia-a-dia de cada família. Ao mesmo tempo, haveria de se repercutir também ao nível da paisagem, permanentemente marcada pela silhueta das igrejas e capelas, pela presença de alminhas e cruzeiros ao longo dos caminhos, pela inclusão de pequenos nichos e painéis de azulejos nas fachadas mais expostas das habitações. Não é preciso procurar com demasiada atenção: os vestígios aparecem um pouco por todo o lado, comprovando que a escassez de recursos económico-financeiros destas povoações rurais e agrícolas não constituiu um entrave suficiente à expressão pública e artística da Fé que sentiam.

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Igreja Paroquial

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e todas as construções religiosas que marcam o horizonte de Bodiosa, aquela que mais se destaca - não apenas pela imponência das suas fachadas, mas igualmente pela localização estratégica que ocupa, erguendo-se num ponto central e de fácil acesso a partir de todas as povoações - é a igreja paroquial de São Miguel Arcanjo. Como se pode depreender das inscrições que estão presentes na frontaria, a sua construção não é particularmente antiga, tendo ocorrido em finais do século XIX (com a inauguração a acontecer no ano de 1899). Esse acontecimento em particular suscitou um grande entusiasmo entre toda a população, já exausta de protestar contra o estado deplorável em que a igreja antiga se mantinha há tantos anos. Quando analisamos as atas da Junta de Paróquia, compreendemos que este problema se arrastava efetivamente há tempo demasiado. Em Janeiro de 1863, já se discutia o estado de ruína a que o edifício havia chegado. Porém, vinte anos depois a situação mantinha-se inalterada, havendo uma nova ata (assinalada com a data de 4 de Maio de 1884) onde se repetem as mesmas lamentáveis conclusões. No ano seguinte foram empreendidas algumas obras de requalificação, para as quais o cónego Ignácio Alexandre Magalhães doou inclusivamente mil réis, mas a prova de que terão sido insuficientes reside no facto de pouco tempo depois se voltar a considerar

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a hipótese de construir uma igreja de raiz. Ao longo do ano de 1889 assiste-se ao estabelecimento de uma Comissão de Beneficência, focada nesse propósito, e sabemos que um paroquiano de nome Custódio Rodrigues Pereira tomou a iniciativa de oferecer um terreno na Quinta do Cruzeiro. Estavam finalmente dados os primeiros passos concretos! O esboço e a execução da obra haveriam de ficar a cargo do mestre-pedreiro Serafim Lourenço Simões (1839-1908), um nome relativamente desconhecido para a maioria dos viseenses, mas cujo vasto legado profissional merece uma respeitosa alusão. Sobre Serafim Lourenço Simões sabemos que nasceu em Sanguinhedo de Maçãs, na freguesia de Lordosa, e que até aos vinte e sete anos de idade permaneceu analfabeto, algo que ele próprio encarava como um grave obstáculo às suas aspirações. Foi então que decidiu frequentar a Escola Noturna conciliando, ao mesmo tempo, lições de desenho ministradas pelo professor António José Pereira. O seu esforço e desempenho terão sido bem-sucedidos já que, doravante, para além de concretizar os projetos que lhe eram atribuídos por outros arquitetos, ele próprio se aventurou na arte de esboçar e riscar alguns dos edifícios que haveria de construir. Não cabe aqui descrever detalhadamente todos os trabalhos que empreendeu na cidade e no concelho de Viseu.

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Igreja paroquial de Calde.

Igreja paroquial de Rio de Loba.

No entanto, não deixará de ser interessante referir que, na transição do século XIX para o XX, ele tomou em mãos a edificação do Asilo Anjo da Caridade e Viscondessa de São Caetano; construiu o Asilo da Infância Desvalida e Hospício de Expostos; elaborou o pedestal que ampara a estátua do bispo D. Alves Martins (exposta no Largo de Santa Cristina); alteou a torre sineira da igreja do Seminário Maior; esculpiu jazigos e mausoléus no cemitério antigo de Viseu… Simultaneamente, participou em diversas obras de conservação e restauro, tendo ganho particular reconhecimento e notoriedade quando aceitou resgatar da ruína as “escadas suspensas” do antigo Convento da Ordem de São Filipe Néri, uma tarefa com tamanho grau de dificuldade que muitos outros artistas e engenheiros já haviam recusado. Por fim, e é este o aspeto que mais nos importa abordar,

são também da sua autoria as três igrejas paroquiais que se erguem em Calde, Rio de Loba e Bodiosa. Como facilmente se depreende até pela simples observação das fotografias, estas igrejas apresentam uma notável semelhança em termos de planimetria e linguagem decorativa, bastando analisar cada uma das fachadas principais (com o seu respetivo frontão contracurvado, a conjugação de um portal com três janelas logo acima, a presença de uma torre sineira de três andares adossada a um dos lados…) para se captar, desde logo, um bom número de analogias. Outro aspeto que não passa despercebido é o carácter revivalista das suas arquiteturas, já que nos encontramos na presença de diversas características que mais fazem lembrar os modelos barroco e rococó, estilos artísticos que tinham tido o seu apogeu há bem mais de cem anos atrás. No entender

Igreja paroquial de Bodiosa.

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liente em jeito de arco canopial. Na pedra chave desse arco, mantém-se a inscrição incisa e avivada a negro que relembra a todos os visitantes o seu ano de construção. Imediatamente acima, distingue-se uma tríade de janelas dispostas em linha horizontal e todas, de momento, decoradas com vidro pintado. A do centro é um pouco maior e exibe uma representação figurativa de Jesus Cristo, segurando nas Suas mãos os dois símbolos máximos da eucaristia: o pão e o cálice com vinho. As que ocupam as posições laterais contam com as imagens do Imaculado Coração de Maria e do Sagrado Coração de Jesus. Porém, mais do que salientar estas representações pictóricas de traço popular, aquilo que nos apraz referir é o meticuloso trabalho de cantaria que embeleza cada uma das janelas, destacando-se a terminação superior em frontão de lanços e o remate inferior com avental afunilado. A fachada principal culmina numa empena contracurvada, coroada por uma cruz branca de hastes flor-de-lisadas, bem como por dois pináculos bojudos que se erguem na continuidade dos cunhais. No flanco da Epístola vemos surgir uma torre sineira de secção quadrangular e estruturada em três registos sobrepostos, devidamente separados por cornijas. Para além de um relógio circular e de algumas pequenas janelas com remate em arco abatido, a torre possui quatro ventanas sineiras abertas no andar superior, embora em apenas duas delas se verifique realmente a presença de sinos. A torre é encimada por um elemento em forma de cúpula, estando enquadrado por uma platibanda cuja decoração consiste numa sequência de círculos encadeados entre si. Em cada um dos seus ângulos, elevam-se ainda pináculos. O alçado direito da igreja exibe quatro janelas gradeadas (todas partilhando uma configuração semelhante, embora a úl-

de alguns investigadores, o “arcaísmo da sintaxe utilizada pelo mestre Serafim Lourenço Simões” ficava a dever-se à “ausência de um processo de formação de base, [que] condicionou as suas propostas criativas, desenvolvendo o seu ofício num quadro manifestamente limitado de formas e esquemas planimétricos, desenquadrados dos cânones dominantes na época.”29 Seja como for, do seu engenho aplicado em Bodiosa resultou um edifício de generosas dimensões e com um eixo longitudinal orientado para Sul. Apresenta uma planta quase perfeitamente retangular (apenas adulterada no lado da Epístola pela colocação da torre dos sinos) e uma cobertura única em telhado cerâmico de duas águas. Quanto às fachadas, encontram-se em grande medida rebocadas e pintadas de branco, restando apenas alguns elementos estruturais, como é o caso do embasamento e dos cunhais, com a cantaria granítica aparente. A riqueza decorativa da igreja, longe de procurar uma exuberância desmedida, ficou sobretudo concentrada nas molduras envolventes de portas e janelas. No entanto, deve levar-se em consideração que o desenho apresentado por essas molduras é muito diferente consoante as fachadas observadas, notando-se uma clara simplificação à medida que nos aproximamos da cabeceira. Este ecletismo de formas, também partilhado pelas matrizes de Calde e Rio de Loba, traduz-se assim numa sobrevalorização da fachada principal (com o seu portal e os janelões ricamente ornamentados), relegando para o alçado posterior as mais básicas fenestrações retangulares. Regressando ao frontispício para uma descrição mais detalhada, reparamos que ele é rasgado por uma porta axial de madeira, cuja moldura de cantaria enuncia um contorno semicircular, logo depois sobrepujado por uma cornija sa-

Interior da nave e capela-mor.

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Parede lateral direita da nave.

Cemitério de Bodiosa.

cerdotes proferirem os seus sermões; e uma capela batismal, inserida no segmento inferior da já citada torre sineira. O coro-alto também marca a sua presença, exibindo uma estrutura assente em quatro pilares e três arcos de volta perfeita. O início da capela-mor é definido, tanto física como simbolicamente, pelo alteamento do solo com alguns degraus e pelo despontar de um imponente arco triunfal, decorado no seu fecho com uma interessante fusão de motivos vegetalistas e concheados. Contíguos a si estão quatro retábulos de talha branca e dourada, albergando nas suas tribunas e peanhas uma vasta lista de imaginária. Sobre a parede fundeira, o centro das atenções não poderia ser outro senão o retábulo-mor, lugar privilegiado para a colocação do sacrário, do trono e da imagem de vulto de São Miguel.

tima sendo claramente mais pequena) e uma porta travessa orientada para a zona da nave. Este esquema arquitectónico irá repetir-se na fachada do lado oposto, havendo aqui apenas a acrescentar a presença de uma segunda porta, com acesso direto ao interior da sacristia. Falta-nos mencionar a parede posterior, onde se vislumbram dois pares de janelas de verga reta, cada um deles correspondendo ao seu piso distinto; e uma empena triangular, sobre a qual repousam uma cruz latina trilobada e dois fogaréus. Cruzando as portas da igreja em direção ao seu espaço interior, multiplicam-se os elementos merecedores de descrição. Inseridos numa nave única de perímetro retangular, é possível observar quatro pias de água benta (adossadas junto ao guarda-vento e em cada uma das paredes laterais); dois púlpitos afrontados, onde era hábito no passado os sa-

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Com uma área de quase 4500 metros quadrados, o cemitério

ro de obitos dos ultimos cinco annos (…) devido ao grande

de Bodiosa está situado junto à igreja paroquial e apresenta

augmento da população, e, tendencia para augmentar…”. O

uma data de construção mais recuada do que a sua. Conforme

valor estimado para a execução dos trabalhos era de “471$551

consta de uma inscrição gravada no lado direito do portal, o

reis”30. O próprio cruzeiro de templete teve de ser desmontado

primeiro enterramento aconteceu “a 19 DE MARÇO DE 1869”.

e recolocado alguns metros ao lado, para assim não ser engo-

O cemitério original não possuía, certamente, dimensões tão

lido pelo novo traçado dos muros.

dilatadas. Contudo, no ano de 1911 foram empreendidas pro-

O portal de entrada do cemitério exibe um aprimorado traba-

fundas obras de ampliação, originando daí a configuração e

lho de cantaria, com duas pilastras de fuste canelado encima-

o tamanho que atualmente apresenta. A memória descriti-

das por fogaréus e interligadas por um portão de ferro forjado.

va do projeto anunciava o seguinte: “A Junta de Parochia da

A todos os visitantes é deixada uma mensagem: “PULVIS ES /

freguezia de Bodioza deseja amplear o cymiterio da referida

PARVUS ET MAGNUS / IBE SUNTE”, o que em português signi-

freguezia, em vista do actual não poder comportar o nume-

fica “tu és pó; o pequeno e o grande ali estão”31.

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Igrejas Anexas

C

onforme já ficou esclarecido atrás, a paróquia de Bodiosa é composta por onze igrejas anexas, cuja localização espacial permite uma cobertura uniforme de todo o seu território. Por regra, cada povoação desfruta da sua própria capela, surgindo como únicas exceções os casos antagónicos de Travanca (em cujos limites se encontram três) e de Aval (que partilha a capela de Santa Marinha com a aldeia vizinha de Silgueiros). A respeito do enquadramento cronológico, somos desde logo confrontados com situações muito díspares e habitualmente complexas. O exemplo de Travanca volta a ser paradigmático: se por um lado a capela nova da Senhora da Graça ainda não atingiu as duas décadas completas de idade, aquela que veio a ser substituída já gozava de antiguidade suficiente para figurar nos inquéritos paroquiais de 1732 e 1758 (não obstante as transformações arquitetónicas que entretanto sofreria no decorrer dos séculos seguintes). Pelo meio, assistiu-se ainda ao nascimento da capela privada de Nossa Senhora da Luz, logo na primeira década do século XX, o que nos deixa com três períodos de construção radicalmente distintos. Mas os casos emblemáticos não se ficam por aqui. O traçado contemporâneo apresentado pelo templo de Queirela está em perfeita harmonia com a época que o viu surgir, ten-

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do a inauguração acontecido no ano de 1990. Porém, isso não pode apagar da memória que, no exato local onde estas paredes agora se elevam, havia existido uma capela mais antiga, novamente corroborada pelos inquéritos setecentistas. Nas povoações de Pereiras e Oliveira de Cima ter-se-á assistido a um processo evolutivo com algumas semelhantes, já que na primeira metade do século XX ambas as capelas foram desmanteladas e a sua pedra transportada para um novo lugar, onde teve início a construção dos edifícios que agora conhecemos. Das restantes cinco capelas que nos falta mencionar, sabemos que duas terão uma origem mais recente - Nossa Senhora da Saúde e Nossa Senhora da Piedade - enquanto as restantes já são alvo de menção nas Memórias Paroquiais: Santa Eufémia, Divino Espírito Santo e Santa Marinha. Apesar disso, as sucessivas adulterações e restauros que lhes foram sendo aplicados ajudaram a descaracterizar as fachadas e anularam muitos dos elementos que talvez fossem originais. Cruzando a diversa documentação que chegou até nós, constatamos que ao longo dos séculos se mantiveram os oragos dos diversos espaços religiosos. Na panóplia de invocações, não passa despercebida uma particular devoção pela figura da Virgem Maria que, embora exibindo títulos diferentes, ocupa o lugar de maior primazia em mais de me-

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Estas características são muitas vezes potenciadas pela escassez de recursos financeiros, à qual se junta depois a utilização de meios técnicos rudimentares e o aproveitamento de uma mão-de-obra local, quase sempre não especializada. Em muitos casos, são os próprios membros da comunidade que oferecem espontaneamente o seu trabalho e colaboração, não se lhes podendo por isso exigir o talento ou a experiência dignos dos grandes mestres. Compreende-se assim a preferência dada aos esquemas arquitetónicos mais simples, sem que haja uma preocupação manifesta em seguir algum estilo artístico específico ou reproduzir os cânones considerados dominantes. Espreitando o interior das capelas, somos levados a reconhecer que o mesmo tipo de sobriedade patente nas paredes exteriores volta de novo a marcar presença. Na melhor das hipóteses, em conjunto com algumas pias de água benta e um púlpito adossado à lateral, destaca-se um modesto retábulo-mor abrigando a imagem do patrono. Num esforço de levar a cabo uma análise comparativa mais rigorosa e completa dos edifícios em causa, constatámos que seria possível traçar um perfil arquitectónico padrão, extensível à maioria das capelas. Para o compreender melhor, comecemos por tomar em consideração as que se erguem em Oliveira de Baixo, Pereiras, Silgueiros e Travanca (neste caso referindo-nos à mais antiga):

tade das capelas: aparece duas vezes como Nossa Senhora da Graça, outra como Senhora da Luz, e as restantes com a designação de Saúde, Piedade e Candeias. Se desejarmos aprofundar esta evidência, mais não será necessário do que regressar à igreja matriz e observar os seus retábulos colaterais, todos eles aludindo a invocações marianas. Uma delas está, inclusivamente, associada ao aparecimento de uma confraria: a de Nossa Senhora do Rosário. Por outro lado, também poderíamos tentar fazer uma listagem de todas as esculturas de Nossa Senhora de Fátima que permanecem no interior das capelas; ou ainda, para terminar, das representações figurativas que se podem encontrar nas janelas pintadas (uma de Nossa Senhora de Lourdes, e outra do Imaculado Coração de Maria). Esta afeição atinge o seu ponto mais alto ao longo do mês de Maio, altura em que é celebrada a primeira aparição de Nossa Senhora a três pastorinhos na Cova da Iria.32 Como forma de rememorar e enaltecer esse milagre, as populações organizam entre si a chamada “Senhora Peregrina”. Escolhem uma imagem de vulto da Virgem - habitualmente a que se encontra na capela de Pereiras, apenas por ser mais pequena e fácil de transportar - e levam-na a percorrer todos os espaços religiosos da freguesia, permanecendo em cada um deles pelo tempo de alguns dias. O último ponto de paragem é sempre a igreja paroquial. Em termos de planimetria e de morfologia, uma breve análise pelos diferentes edifícios religiosos será mais do que suficiente para detetar um assinalável número de semelhanças, que dificilmente resultarão de meras ou acidentais coincidências. Logo à partida, nota-se uma clara preponderância de capelas com dimensões modestas e plantas de formato retangular, sendo constituídas por volumes elementares e fachadas despretensiosas, totalmente retilíneas, e quase sempre marcadas pela ausência de exuberância decorativa. Neste aspeto em particular, a capela de São João Baptista emerge como um dos melhores exemplos, uma vez que só a presença do campanário e das cruzes erguidas sobre o telhado, evitam que ela seja confundida com qualquer outra construção de foro civil.

- todas elas são constituídas por um volume principal, retangular, onde se integram em simultâneo os espaços da nave e da capela-mor. Exteriormente, não existe nenhum elemento que nos permita determinar onde finda o primeiro espaço e começa o segundo: é preciso regressar ao interior dos edifícios para visualizar uma separação feita por degraus; - a cobertura do volume referido no ponto anterior acontece sempre com um telhado de duas águas. Como consequência natural, o remate das fachadas frontal e posterior assume o desenho de uma empena triangular, emergindo depois sobre o seu vértice uma cruz pétrea de configuração latina; - as suas estruturas estão dispostas ao longo de um eixo longitudinal, não havendo nenhum caso (nem neste grupo,

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Antiga capela de Queirela.

nem nas restantes capelas da paróquia) de edifícios com planta centrada;

- a nível interno, verifica-se permanentemente a adoção de uma nave única, complementada na sua zona inicial com a instalação de um coro-alto;

- os frontispícios apresentam-se rasgados por uma porta axial e por um conjunto de três janelas, que copiam fielmente o formato da sua moldura. Duas dessas janelas situam-se num registo inferior, ladeando a entrada, ao passo que a terceira se abre mais acima;

Esta listagem de tópicos, ainda que muito abreviada, faz-nos compreender realmente que as semelhanças são inequívocas; a única diferença substancial patente nestes quatro edifícios acaba por se resumir à presença, ou ausência, de um volume anexo para funcionamento da sacristia. Mas a nossa busca por paralelismos não se deve quedar por aqui. Aqueles que se recordam da anterior capela de Queirela, podem confirmar que era em tudo semelhante às que acabámos de mencionar aqui, tornando este padrão ainda mais consistente. Por sua vez, o templo de Nossa Senhora da Luz também partilha quase todas as características enunciadas, distinguindo-se somente pelo campanário mais pequeno e pelo seu posicionamento no lado contrário (lado esquerdo), o mesmo acontecendo com as escadas de acesso ao coro-alto.

- possuem um campanário adossado sempre do lado direito da frontaria, sendo o mesmo constituído por uma única ventana sineira com núcleo de recorte arredondado. Na parte posterior do campanário assiste-se ao desenvolvimento de uma escadaria exterior, que permite o acesso à porta do coro-alto; - ao longo dos seus alçados laterais ostentam, pelo menos, uma porta travessa direcionada para o interior da nave. Em nenhum dos casos foi descuidada a colocação de uma pia de água benta, para que assim os fiéis se possam purificar antes de participarem na eucaristia;

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Capela-mor e pormenor do sacrário.

Capela de Santa Cristina Localizada no centro da povoação de Queirela e envolvida por um adro gradeado de contorno trapezoidal, a capela de Santa Cristina exibe uma arquitetura contemporânea e um eixo longitudinal orientado para és-sudeste. As suas fachadas apresentam-se predominantemente pintadas de branco, permanecendo como deliberada excepção o pano de parede que ostenta a ventana sineira. Elevando-se do lado esquerdo do frontispício, esse segmento mural mantém visível a sua estrutura em alvenaria de tijolo o que, aliado à cruz latina de grandes dimensões que se encontra aposta junto ao sino, conquista facilmente a atenção dos visitantes. Os alçados laterais do edifício desenvolvem-se de forma simétrica e assumem um formato angular, originando quatro

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A capela antiga existia neste preciso local, tendo sido demolida na sua totalidade para a construção do novo edifício, cuja primeira pedra foi solenemente colocada a 21 de Maio de 1989. Na altura, a Comissão encarregue das obras justificou-se assim à população: “Há já vários anos que (…) se sente a necessidade urgente de resolver o problema da nossa Capela de Stª Cristina: necessita de sérias reparações, não tem sacristia e muitas vezes é já insuficiente para acolher, com um mínimo de comodidade, todas as pessoas que pretendem participar nos actos de fé que ali se realizam.” A resposta não demoraria a chegar, na forma de doações, oferta de materiais de construção e dias de trabalho gratuito.

vértices salientes, quase todos ornamentados com janelões de vidraças coloridas. O traçado em ziguezague é uma opção de cariz estético mas que também, segundo a opinião dos arquitetos, tem a vantagem de permitir uma melhor propagação do som em todo o seu espaço interior. A parte final da capela-mor aparece assinalada exteriormente com uma extensão da sua parede acima da altura do telhado, aludindo a um simbolismo evidente de ascensão e proximidade com o céu. Quando é transposto o portal principal da capela, vislumbra-se de imediato uma placa epigrafada recordando a data em que foi benzida: ”BENÇÃO DESTA CAPELA / E SAGRAÇÃO DO ALTAR / POR SR. D. ANTÓNIO MONTEIRO / BISPO DE VISEU / 1990-2-25”.

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Capela-mor e respetivo retábulo.

Lugar de São João Velho, onde estaria implantada a antiga capela da povoação.

simplicidade e sobriedade. Apresenta quatro paredes retilíneas dispostas numa planta retangular; portas e janelas de verga reta, desprovidas de qualquer tipo de ornamentação; a pedra totalmente despida de reboco ou pintura, deixando assim patente um aparelho de feição regular/isódomo. Ao pretendermos destacar um elemento, essa honra caberia ao campanário, sobretudo pelas semelhanças que manifesta com os também existentes nas capelas de Santa Marinha e de Santa Eufémia. Para além de partilharem as mesmas dimensões, todos eles são compostos por uma única ventana sineira de topo arredondado e por um remate triangular de lados ligeiramente abatidos, com um círculo vazado ao centro e uma cruz latina a coroar o conjunto.

Sobre a hipotética localização da capela antiga, que sabemos com certeza ter existido nesta povoação, parece que a chave do enigma repousa na toponímia. Partindo do centro da aldeia em direção a Oeste, corre um caminho vicinal a que chamam Rua de São João Velho. Como é evidente, o adjetivo não se aplica diretamente ao santo que, segundo a tradição, até morreu em idade jovem.34 Refere-se sim ao templo que continha a sua invocação. O lugar exato é agora marcado por um cruzeiro de cantaria, situado diante de um casarão abandonado, numa vasta propriedade cercada por muros.

Capela de São João Baptista A capela de São João Baptista, em Pereiras, terá sido construída no ano de 1937, permanecendo a data registada no topo da sua fachada principal. Assim que as obras terminaram, e por forma a garantir que todas as condições indispensáveis estavam reunidas para que o Bispo a pudesse benzer, o cónego António Domingues Nunes deslocou-se até ela e procedeu à respetiva vistoria. A sua avaliação foi positiva: “Em cumprimento das reverendas ordens de Vª. Exª. (…) tenho a honra de informar que fui ver a capela de S. João Baptista, do povo de Pereiras (…) Foi toda construída de novo (…) A obra de pedreiro está muito boa. (…) Vizeu 25 de Novembro de 1937”.33 O edifício revela um modelo arquitectónico pautado pela

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Pormenores da fachada da capela e fotografia do seu interior.

Capela de Santa Marinha do e representações de carácter figurativo. Não se tratam de vitrais35, como tantas vezes as pessoas referem de forma equivocada, mas a verdade é que os princípios que lhe estão subjacentes permanecem muito semelhantes. Recordemos que o vitral, surgido em plena Idade Média, foi grandemente apreciado pela beleza que conferia às catedrais, conseguindo transformar a simples luz solar num verdadeiro jogo de cor e contraste, que oferecia ao ambiente uma áurea de misticismo e convidava à oração. Adicionalmente, e este é um ponto que merece ser sublinhado, a sua capacidade para representar, de uma forma clara e atrativa, os mais diversos episódios bíblicos e personagens da tradição cristã,

Dentro dos limites da paróquia, a capela de Santa Marinha é a única que serve em simultâneo duas povoações diferentes: Silgueiros e Aval. A sua localização estratégica, contudo, junto à escola de ensino básico, permite um acesso facilitado a ambas as populações. Subindo os poucos degraus que dão acesso ao interior do adro, deparamo-nos com um edifício de linhas simples e planta poligonal, cuja cabeceira, tal como impunha o costume antigo, se dispõe orientada para Este. A sua fachada principal é dominada pelas três janelas em arco abatido que circundam o portal e o respetivo alpendre, apresentando-se todas elas ornamentadas com vidro pinta-

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transformou-o numa poderosíssima ferramenta didática, conseguindo transmitir a uma população analfabeta aquilo que nenhum livro lhes poderia ensinar. Como afirmava o Arcebispo de Braga Bartolomeu dos Mártires (século XVI): “As imagens servem de livros aos que não sabem ler, porque ali vem pintado o que no Evangelho está escrito. E muitas vezes mais perfeita e prestamente vem à memória um mistério, ou a vida de um santo, vendo uma imagem que lendo um livro (…) E também as coisas vistas com os olhos, comovem e acendem mais o coração, que as coisas somente lidas ou ouvidas.”36 Regressando à fachada da capela de Santa Marinha, pode-

mos imaginar que estes mesmos objetivos pautaram o trabalho do autor, sendo que a opção da pintura relativamente ao vitral ter-se-á devido apenas ao seu custo mais baixo e execução mais simples. Com um traço de gosto popular e uma técnica rudimentar, as figuras representadas são: ao centro, Jesus Cristo com os joelhos sobre o chão e os braços soerguidos, incidindo sobre o Seu rosto um raio de luz divina; no flanco do Evangelho, São José amparando o Menino Jesus ao colo, distinguindo-se ao lado de ambos um anjinho a tocar violino; na última janela, a aparição de Nossa Senhora de Lourdes a uma jovem camponesa, que se prostra diante si e a recebe de braços abertos.

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Interior da capela de Santa Eufémia.

O sino está marcado com a inscrição “1709 * IHS * MARIA * IOZEPH”.

Capela de Santa Eufémia No interior da aldeia de Bodiosa-a-Velha, acomodada entre ruas estreitas e quase escondida pelo casario de habitação envolvente, está uma capela de pequenas dimensões dedicada a uma das santas mais veneradas em Portugal. Santa Eufémia, que terá nascido em finais do longínquo século III, continua a suscitar uma profunda admiração e respeito, não apenas pelos milagres que se lhe atribuem, mas sobretudo pela fé e coragem com que soube enfrentar os mais terríveis martírios. Foi presa, torturada e colocada num fosso cheio de leões. Segundo as informações recolhidas junto da população, o edifício sofreu obras de ampliação na década transata, passando a usufruir de um espaço anexo para a sacristia, lava-

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bos e arrumações. Curiosamente, é neste espaço recente que permanece um dos elementos mais antigos da capela: um sino com mais de trezentos anos que, apesar de coberto por uma fina camada de pátina esverdeada, ainda se afigura totalmente operacional. De resto, voltamo-nos a deparar com um edifico retangular, singelo, cujo reduzido espaço da fachada principal se encontra quase totalmente preenchido pela porta axial de madeira e por duas janelas gradeadas emergindo nos seus flancos. Sobre a empena triangular, truncada ao centro para colocação da sineira, erguem-se ainda dois pináculos com remate periforme.

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Pormenor do campanário e do sino.

Capela-mor.

texto: “INAUGURAÇÃO / OBRA DE RESTAURO E SACRISTIA / 30 JANEIRO 2004”. Ressalva-se que a sacristia referida na inscrição não é aquela que hoje se encontra adossada do lado direito da capela-mor, mas antes uma pequena estrutura anexa, deslocada poucos metros à frente, que durante alguns anos serviu de solução temporária. Contudo, por se achar que não era a situação ideal, em finais de 2011 avançou-se com um novo projeto do qual resultaria, logo no ano seguinte, a edificação do atual corpo arquitectónico. Por ser uma obra tão recente, existe abundante documentação a relatar os pormenores do processo. De qualquer das formas, se a mesma não existisse, a diferença notória dos aparelhos graníticos seria pista suficiente para conjeturar um período de construção mais recente.

Regressando à descrição do frontispício, o seu registo superior desenvolve-se em empena triangular, repousando sobre o vértice uma cruz de configuração latina e hastes recortadas em trevo. No lado direito, essa empena é interrompida pela colocação de um pináculo piramidal, assente sobre quatro esferas e coroado com uma última. No flanco oposto, o pináculo desaparece e dá lugar ao campanário, devidamente ornamentado com uma estrela insculpida na pedra e uma cartela retangular cercando a data de “1897”. Junto à cabeceira cega do edifício, encontra-se hoje colocada uma singela fonte, uma “OFERTA / DA C. FESTAS” no ano de “1995”.

Capela de Nossa Senhora das Candeias Há muito que a capela de Nossa Senhora das Candeias abandonou a sua localização primitiva, no seio do “povo antigo”, para se instalar algumas centenas de metros mais a Sul, onde as novas casas e bairros modernos insistiram em crescer. Sobrou apenas o nome Rua da Capela para imortalizar esse lugar, que agora é ocupado por um mero barracão. A sua fachada principal, orientada para Sudoeste, compõe-se de um portal aberto ao centro e duas frestas gradeadas, mantendo em comum molduras simples de cantaria em arco abatido. Do lado esquerdo, sobrepõem-se dois elementos que merecem igual destaque: um painel de azulejos figurativo, contendo uma representação polícroma do orago (seguramente inspirada na escultura de pedra que se encontra no retábulo-mor); e uma placa epigrafada com o

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Interior da capela.

Pormenor da capela-mor.

a indicação da “Capela da Senhora da Piedade na Povoação de Oiveira de Baixo com as suas imagens e respectivos paramentos”.38 Se dúvidas ainda restassem quanto à idade secular da capela, o livro de registo das visitas pastorais iniciado pelo Bispo de Viseu D. José Dias de Carvalho, permite-nos colocar um ponto final sobre o assunto. Segundo ali consta, no dia 4 de Julho de 1915 foi visitada a “Capella de Nossa Senhora da Piedade, de Oliveirinha, [que] tem o sepulcro partido.”39 Não gostaríamos de terminar o texto sem antes afirmar que a maior originalidade da capela, no que toca a elementos arquitetónicos, se prende com o campanário, adossado do

lado direito do frontispício e detentor de uma acentuada verticalidade, reforçada posteriormente com um remate triangular pontiagudo. Por sua vez, no interior da capela-mor o aspeto mais singular prende-se com o nicho de granito delineado na parede fundeira, servindo de proteção à imagem da Pietà. Todas as pedras que formam a sua estrutura em arco exibem um pequeno motivo vegetalista em relevo, distinguindo-se depois a chave por possuir um resplendor circular de raios setiformes.

Capela de Nossa Senhora da Piedade ásticos, lavrados na década de 1940. É certo que eles não esclarecem o ano exato da construção (nem era essa a sua função); porém, quando a designação de alguma igreja ali aparece mencionada, não só ganhamos a hipótese de anotar a data do documento, como podemos deduzir, com uma certa margem de certeza, que a mesma já existia nos primeiros anos do século transato. Tal dedução pode ser feita porquanto sabemos que a nacionalização dos bens da Igreja foi levada a cabo pela Primeira República, logo nos primeiros anos de governação.37 Pois bem, no conjunto dos imóveis que foram devolvidos à paróquia de Bodiosa, por entre os nomes que já se adivinhavam estar presentes na certidão de entrega, eis que surge

Situada numa praceta de Oliveira de Baixo, está uma capela de traçado elementar dedicada a Nossa Senhora da Piedade, cujos festejos se realizam a meio do mês de Setembro. A sua arquitetura eclética não nos revela grandes pistas acerca da eventual cronologia. À partida, as únicas coisas de que tínhamos conhecimento eram que a mesma ainda não existia na primeira metade do século XVIII (uma vez que não vem mencionada nos inquéritos das Memórias Paroquiais) e que a maioria dos elementos que agora ostenta nas fachadas parece ser fruto de intervenções decorridas no século XX. Na ânsia de aprofundar um pouco mais esta questão, fomos averiguar os chamados autos de entrega dos bens eclesi-

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Capela de Nossa Senhora da Saúde trastando com a profunda devoção depositada pelos fiéis. A padroeira é sobretudo invocada pelos doentes que, nos momentos de maior aflição, e tal como já acontecia no passado - por exemplo em alturas de peste - pediam a sua miraculosa intervenção. Num dos seus sermões, já padre António Vieira comentava o seguinte: “Perguntai aos enfermos para que nasce esta celestial Menina, dir-vos-ão que nasce para Senhora da Saúde…”.41 A sua planta apresenta um contorno retangular e é constituída por apenas dois volumes. O primeiro corresponde a um alpendre fechado, estando a sua cobertura em duas águas apoiada sobre igual número de pilares. No interior encontra-se resguardada uma mesa de altar, talhada em pedra e reservada para os dias de romaria, onde a afluência

A primeira referência documental disponível acerca da capela de Nossa Senhora da Saúda está datada de 1916. Em reposta à circular de 2 de Maio desse ano enviada pelo então Bispo de Viseu D. António Alves Ferreira, o abade de Bodiosa procedeu à elaboração de uma lista contendo todos os imóveis religiosos da sua paróquia. Sobre aquele que se encontra construído nas imediações da aldeia da Póvoa, ele afirma que “é particular e não posue paramento algum”40. Embora sendo na sua origem privada, foi o povo que teve a iniciativa de proceder à reconstrução da capela no ano de 1994, acontecendo a inauguração no dia 17 de Abril (conforme está registado numa placa epigrafada que ali permanece afixada a um grande monólito de granito). Trata-se de um santuário pequeno e modesto, em muito con-

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cresce exponencialmente. O segundo volume emerge logo atrás, englobando ao mesmo tempo os espaços da nave e da capela-mor. Tendo as suas fachadas rebocadas e pintadas de branco, a descrição da capela não suscita dificuldades. No frontispício contém a única porta de acesso, estando a mesma envolvida por uma moldura de cantaria em forma de arco abatido. É ladeada por dois pequenos vãos gradeados, de contorno retangular, existindo outros tantos de semelhante feição rasgados nos alçados laterais. O remate da fachada principal é feito por uma empena triangular, com cruz latina no vértice e pináculos sobre os cunhais. No lado do Evangelho, falta apenas mencionar a presença de uma armação metálica que serve de suporte ao sino. Este é datado de inícios do século XVIII e apresenta-se ornamentado com uma invulgar representação zoomórfica: uma ave de asas abertas e com o corpo trabalhado em relevo. Porém, bastante mais interessante do que propriamente a sua arquitetura, é a localização que apresenta no cimo de uma encosta, disfrutando de uma vista privilegiada sobre os montes e campos que se estendem para Norte. A colocação de santuários em locais deste género (com topografias elevadas) não é, contudo, um facto invulgar. Desde a pré-história que o Homem tem professado uma grande admiração, quando não mesmo veneração, pelos montes e serras que mais se destacam na paisagem, conferindo-lhes poderes místicos e/ou associando-os à morada dos deuses. Os gregos, por exemplo, acreditavam que as suas divindades habitavam no alto do monte Olimpo. Tais crenças levaram à construção de templos na crista de terrenos altaneiros, ou então, quando a geografia assim obrigava, eram os próprios monumentos que simulavam o formato de montanhas sagradas. Veja-se o caso das pirâmides do Egipto, de alguns monumentos da América do Sul ou dos zigurates construídos pelas civilizações do Médio Oriente. Com o surgimento do Cristianismo, estes locais não perderam a sua importância. A montanha continuou a evocar a proximidade com o Céu, não sendo por isso de estranhar que inúmeros episódios da Bíblia tenham ocorrido ou este-

Escadaria monumental do santuário de Nossa Senhora da Saúde.

jam associados a si: a entrega das Tábuas da Lei a Moisés no monte Sinai; a disputa entre o profeta Elias e os adoradores de Baal no monte Carmelo; a Transfiguração de Jesus no alto do monte Thabor. Outro aspeto simbólico e em perfeita ligação com tudo o que já foi mencionado prende-se com a construção de escadarias monumentais, que funcionam não apenas como um meio de acesso à igreja, mas sobretudo como caminhos de redenção e de ascensão ao Paraíso. É o que acontece no Santuário do Bom Jesus em Braga, no Santuário de Nossa Senhora dos Remédios em Lamego… e aqui, com toda a clareza, no Santuário de Nossa Senhora da Saúde, diante do qual se ergue um imponente escadório com um total de 109 degraus, repartidos em 11 lanços.

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Fachada lateral do Evangelho.

Prespetiva do interior da capela.

de Travanca estava decidido a unir esforços, no sentido de restaurar o monumento e devolver-lhe a dignidade merecida. Foi criada uma Comissão, responsável pelo decorrer dos trabalhos, e que emitiu o seguinte comunicado à população de Travanca: “A dôr causada nos corações de muita gente cristã ao ver uma Capela em ruínas num dos locais mais aprazíveis da aldeia (…) levou-nos a um movimento dispendioso e imperativo que começou pela criação de uma Comissão de Obras e Angariação de Fundos para a reconstrução da Capela de Nossa Senhora da Luz, que finalmente deixou de ser propriedade privada para se tornar pertença do povo. As obras estão a realizar-se e em curso adiantado (…) A imagem de Nossa Senhora da Luz será incorporada, este ano,

na procissão de Nossa Senhora da Graça a quando da Festa a celebrar no próximo dia 1 de Junho. Ao chegar à Cruz ela retomará o lugar na sua Capela onde ficará a permanecer e velar por todos nós.”43 Embora dessas placas hoje já não restem vestígios, numa fotografia de 1999 vê-se claramente que junto à fachada principal repousavam duas epígrafes. A primeira anunciava: “DOAÇÃO FEITA / PELA FAMÍLIA DE / MANUEL DE ALMEIDA / CORREIA”. A segunda complementava: “RECONSTRUIDA / PELO POVO NO ANO DE / 1980”.

Capela de Nossa Senhora da Luz De uma maneira bastante similar ao exemplo anterior, também a capela de Nossa Senhora da Luz beneficia de uma localização proeminente, tendo-lhe sido adicionada uma escadaria de acesso no início do presente século. Diz a placa comemorativa que tal acrescento foi “OBRA DO POVO DE TRAVANCA / INAUGURADA A 19-08-2001 / PELO P. CARLOS A.R.SOUSA / PÁROCO DE BODIOSA”. Edificado com o seu altar direcionado para Sul, este singelo templo de traçado retangular exibe todas as suas fachadas pintadas de branco, assim como uma cobertura única em telhado de duas águas. A frontaria é marcada por quatro vãos diferenciados que, no entanto, apresentam em comum o desenho das molduras. O maior desses vãos corresponde

à porta axial, sendo sobrepujada de imediato por uma pedra epigrafada onde se lê, em caracteres incisos e pintados de negro, “ANNO / DE / 1905”. Trata-se, com certeza, da data de construção. Na mesma linha evolutiva da capela da Póvoa, também esta começou por figurar como um edifício religioso privado. A escassez de documentação a seu respeito não nos permite descrever com o desejável número de pormenores o contexto e os meandros deste seu nascimento. Aquilo que sabemos é que na década de 1980, a Sra. Mercês Almeida Correia e o Sr. Honorato Almeida Correia procederam à sua doação a favor da Fábrica da Igreja de Bodiosa.42 E ainda o processo de transferência não tinha sido concluído, já o povo

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A capela antes e durante os trabalhos de requalificação. (Fotografias gentilmente cedidas pelo Sr. Carlos de Almeida Rodrigues, da Comissão responsável pelas obras.)

Capela antiga de Nossa Senhora da Graça novo desígnio. Surgiu assim a ideia de reconvertê-la numa capela-museu, um sítio privilegiado para exposição de peças religiosas com maior interesse histórico e artístico, e capaz de suscitar entre os jovens um redobrado interesse pelo passado e evolução da sua comunidade. Lado a lado com as pias de água benta, o púlpito ou o retábulo-mor em talha branca e dourada (agora guardando na tribuna a imagem do mártir São Sebastião), foram entretanto distribuídos vários expositores contendo esculturas, paramentos e alfaias litúrgicas. Quando observada à distância, notamos que a capela se encontra erguida sobre uma plataforma artificial que ajuda a nivelar o terreno, formando depois um muro do lado Sul, que delimita o espaço do adro. O mais interessante é que na parte exterior desse muro foram abertos dois vãos em forma

Em Travanca é possível visitar duas capelas vinculadas à mesma padroeira, Nossa Senhora da Graça. Por agora, interessa-nos rumar ao coração da aldeia e apreciar a mais antiga, cuja origem, ainda que incerta, remontará pelo menos à centúria de setecentos, já que vem mencionada nas Memórias Paroquiais. Com a construção do novo espaço religioso e a subsequente transferência de todas as celebrações litúrgicas, a capela primitiva ficou subitamente abandonada. Vazia de fiéis e de funções, restou-lhe acumular sintomas cada vez mais preocupantes de uma degradação física e estrutural. O ponto de viragem chegaria em 2010, com o arranque de um ambicioso plano de recuperação, aliado à consciencialização de que talvez fosse benéfico, ou mesmo imperioso, atribuir-lhe um

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Fontes e tanque público, em Travanca.

Capela-mor e retábulo.

Em termos arquitetónicos, começamos por distinguir uma planta poligonal e uma orientação geográfica cuidadosamente orientada para Este. Temos vindo a aludir a esta orientação em quase todas capelas por uma razão concreta, que não mero capricho, uma vez que ela nos pode servir como elemento de datação. Atualmente, e isso é sobretudo recorrente nas grandes cidades, o reduzido espaço de construção disponível e/ou as inúmeras exigências técnicas e estéticas que se colocam a arquitetos e engenheiros, fizeram com que a preocupação de manter o altar-mor direcionado para um ponto específico da bússola se tornasse largamente secundária. Nas igrejas mais antigas, porém, só raramente e por motivos muito fortes é que essa imposição simbólica não era respeitada, observando-se de modo sistemático o posicionamento da porta principal na extremidade do lado Oeste,

de arco, demarcando respetivamente a fonte e o tanque público. Entre ambos, e numa data posterior, foi ainda introduzida uma terceira bica de água, confirmando a importância deste lugar para a população e a sua utilização ininterrupta ao longo de décadas sucessivas. É difícil determinar o que terá aparecido em primeiro lugar - se uma fonte primitiva, anterior às datas que ali aparecem registadas, se a capela - e até que ponto a associação entre ambas terá sido propositada ou casual. O certo é que deste modo a igreja reforçava o seu estatuto como centro indiscutível deste micro-universo rural, onde todos tinham de se deslocar até para a realização de uma das mais básicas tarefas do quotidiano: a recolha de água. E tal como essa água era indispensável para a sobrevivência de homens, animais e colheitas, também a capela surgia logo ao lado como fonte de vida e de salvação.

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ao passo que o altar-mor se estendia para nascente. Mais: a própria celebração da Missa era realizada “ad Orientem”, ou seja, com os sacerdotes voltados para o sacrário e de costas para a assembleia de fiéis.44 Desse modo, a igreja, quer enquanto edifício de pedra, quer enquanto comunidade de crentes, permanecia sempre voltada para Jerusalém, a cidade sagrada do Cristianismo. Simultaneamente, é no Oriente que nasce o Sol, fazendo-se assim uma espontânea associação entre a doutrina de Cristo e a luz que ilumina o Mundo. Para ultimar a descrição do edifício, digamos que a sua fachada principal mantém o aparelho granítico aparente (algo que não acontecida antes dos supracitados trabalhos de restauro) e apresenta uma porta de madeira rasgada ao centro, exibindo uma moldura de cantaria em arco abatido. Esta configuração está também presente nas duas janelas mais pequenas que ladeiam o portal, e numa terceira de maiores

dimensões que se posiciona no registo superior. As extremidades laterais do frontispício aparecem delimitadas por cunhais, enquanto o remate superior é feito por uma empena triangular, que dá o mote a um telhado de duas águas. Sobre o vértice dessa empena desponta uma cruz latina, de faces emolduradas e hastes recortadas em trevo. Do lado direito da fachada eleva-se uma torre quadrangular encimada por campanário. Na sua parede lateral distinguem-se duas inscrições. A de cima é mais sucinta, enunciando “JFB / 1893”; a de baixo encontra-se inserida numa placa pétrea e recorda “o apoio do povo de Travanca” na altura da reconstrução, possibilitando que a capela fosse “inaugurada por sua Exc. Rev. o Sr. Bispo de Viseu / D. ILIDIO PINTO LEANDRO / em 08-08-2010”.

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Capela-mor.

Salão Social de Travanca.

Mais do que um elemento puramente estético, a torre procura sempre dar resposta a um conjunto de exigências, algumas delas de carácter pragmático, outras predominantemente simbólicas. Antes de mais, a sua proeminente altura possibilitava que o templo se tornasse no, ou pelo menos num dos mais altos e distintos edifícios da povoação, tornando-se assim visível a uma longa distância e de todos os quadrantes geográficos. Ficava deste modo garantida uma vigilância mútua e permanente entre o divino e o profano: todos os habitantes conseguiam observar a cruz que existia no alto da torre, o que os ajudava a relembrar os seus deveres enquanto cristãos; inversamente, a cruz estaria a observá-los a eles, deixando claro que nenhuma das suas ações (boas ou más) passaria despercebida aos olhos de Deus.

Ao mesmo tempo, a verticalidade da torre sempre inspirou no Homem um forte sentimento de ascensão e de maior proximidade com Céu. Note-se o paralelo com a Torre de Babel. Finalmente, as torres assumem-se como locais privilegiados para a colocação dos sinos, já que a sua destacada altura propiciava uma eficaz distribuição do som por uma vasta zona envolvente. Como é compreensível, nos templos religiosos mais pequenos e/ou onde os recursos financeiros eram parcos, a torre era muitas vezes substituída por uma estrutura mais simples e pequena, que já anteriormente fomos apelidando de campanário.

Capela nova de Nossa Senhora da Graça Referidas que estão duas capelas em Travanca de Bodiosa, urge dedicar alguns momentos de atenção ao seu espaço religioso mais recente e que, sem surpresas, se afigura também como o mais imponente. Conservando a mesma invocação de Nossa Senhora da Graça, foi construído a apenas 200 metros da capela antiga, e formando com esta uma linha reta imaginária que mantém sempre inalterado o valor da latitude. Na prática, isso significa que os dois edifícios permanecem com as suas fachadas principais alinhadas entre si e perfeitamente afrontadas. A primeira pedra foi lançada no dia 31 de Maio de 1992. A inauguração ocorreria cinco anos depois, tendo contado com a presença do então bispo de Viseu, D. António Monteiro. Na mesma data de 3 de Agosto de 1997, o Presidente

da Câmara Municipal também esteve presente e cortou simbolicamente a fita do Salão Social de Travanca, construído conjuntamente com a igreja e ocupando a parte posterior do seu vastíssimo adro. As duas edificações conservam uma placa epigrafada guardando memória da ocasião, e salientando em letras maiores que são “OBRA DO POVO”. Como será evidente, estamos perante um exemplar de arquitetura religiosa contemporânea, afastando-se da tradicional planta retangular e optando por um desenho poligonal intencionalmente mais complexo. Apesar disso, as suas linhas permanecem sóbrias e com um tratamento artístico reduzido ao essencial. O elemento que mais se destaca é a torre sineira, construída do lado direito e coroada com uma cruz de metal.

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Fachada lateral da Epístola, ladeada pelo cruzeiro.

Capela do Divino Espírito Santo Guardámos para o final a capela do Divino Espírito Santo, que repousa num lugar tranquilo e isolado, fora do núcleo central da povoação de Bodiosa-a-Nova, e ainda em perfeita harmonia com a natureza envolvente. É circundada por um amplo adro, no qual se encontra erguido um cruzeiro de cantaria. São várias as razões que conferem a este monumento uma importância particular no seio da paróquia. Distingue-se pela sua antiguidade, que se sabe recuar pelo menos ao século XVII; pelas suas proporções francamente superiores à da maioria das capelas vizinhas (sendo apenas igualado por aquelas que surgiram nas décadas mais recentes); ou por ser a residência de uma Irmandade que ainda hoje acompanha a vida religiosa da comunidade. Por fim, não esquecer o

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facto de ter assumido, durante dois períodos distintos, o estatuto de igreja matriz. Junto à porta lateral direita da nave, uma placa epigrafada acrescenta: “… foi esta capela igreja paroquial / de Bodiosa de 1728 a 1899 e de / 12 de Julho a 3 de Outubro de 1999”. Aqui, no entanto, as informações documentais que possuímos começam a entrar em contradição com a memória popular estabelecida. O segundo período de tempo não nos merece qualquer discussão; sabemos que corresponde às obras de restauro levadas a cabo na matriz atual. Porém, os 171 anos referidos no ponto anterior, de modo algum podem corresponder à verdade. Vejamos o porquê, utilizando como prova maior os inquéritos paroquiais de 1758… Quando o abade Francisco de Mesquita e Lemos é questionado sobre

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Interior da capela do Divino Espírito Santo.

Pormenor do campanário.

a igreja paroquial, ele responde que o seu “orago (…) hé de Sam Miguel Arcanjo de Bodioza”. Depois, apenas algumas linhas à frente, ele afirma que existem “…algumas capellas pertencentes à mesma freguezia, como são, a capella do Divino Spirito Santo no lugar de Bodioza a Nova…”45. Ou seja, naquela data em concreto, fica comprovado que a matriz e o templo do Espírito Santo são dois espaços distintos, não fazendo o menor sentido equacionar-se a hipótese de uma justaposição. Aquilo que eventualmente terá acontecido, mas isso já no decurso do século XIX, foi um progressivo declínio da igreja paroquial mencionada pelo abade (a tal que, num capítulo anterior deste livro, afirmámos que em princípio estaria erguida junto à casa paroquial). E então sim, quando as condições mínimas para o culto deixaram de ser possíveis, o

estatuto de matriz foi temporariamente entregue à capela do Espírito Santo, pelo menos enquanto não se procedesse à construção de um novo espaço religioso - coisa que viria a acontecer em 1899. No futuro, esperamos encontrar novas fontes históricas que atribuam maior firmeza a este conjunto de afirmações. Seja como for, fica feita a sugestão para que a placa informativa seja revista e corrigida. Morfologicamente, a capela que encontramos em Bodiosa-a-Nova apresenta linhas simples e retilíneas, que se traduzem numa planta poligonal composta por quatro volumes: nave, capela-mor, campanário e sacristia. As coberturas são feitas em telhado cerâmico de duas águas; as fachadas mantêm-se sem reboco ou pintura, deixando vislumbrar um aparelho granítico regular e as juntas preenchidas de argamassa. O frontispício aparece trespassado por uma porta e uma

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mais corpos arquitetónicos, nomeadamente ao da sacristia, que se apresenta adossado à esquerda da capela-mor. No interior da igreja, as atenções dirigem-se de imediato para os dois retábulos gémeos que ladeiam o arco-cruzeiro, havendo ainda uma terceira estrutura retabular integrada na parede mais recuada. Esta constitui o palco cénico onde se integram as esculturas de São Lourenço, São Brás e Santíssima Trindade, devidamente acompanhadas pela pintura de uma pomba resplendorosa. No cômputo geral, o edifício manifesta um estado de conservação quase irrepreensível, a que não será alheio o processo de restauro ocorrido em 2011.

janela dispostas no mesmo eixo vertical, conservando em comum molduras de cantaria retangulares. De cada lado, a fachada é delimitada por cunhais salientes, no final dos quais irão assentar pináculos piramidais com esfera no topo. Muito próximo do cunhal do lado esquerdo, em posição subtilmente recuada, eleva-se o campanário e a respetiva escada exterior de acesso. Como é costume, esse campanário contém apenas uma ventana sineira em arco de volta perfeita, sendo depois rematado com dois novos pináculos e uma cruz de fisionomia latina. O alçado lateral do Evangelho prossegue com uma janela de grandes dimensões e uma porta travessa abertas no pano da nave. Como se pode observar, este volume ganha destaque pelo seu comprimento excecionalmente grande, criando uma evidente desproporção em relação à largura e aos de-

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Cruzeiros

D

lização (e aqui bastaria citar os milhares de escravos que, de uma só vez, foram crucificados após terem participado na revolta de Espártaco) mas sobretudo pelo papel basilar, ainda que involuntário, que acabaria por ter no nascimento do Cristianismo. De facto, com a condenação de Jesus Cristo e a sua consequente morte no cimo do monte Gólgota, a cruz não tardaria muito a ganhar uma simbologia diametralmente diferente, pelo menos para todos aqueles que depositaram a sua fé na Ressurreição. Ela tornou-se especial e emblemática, de tal forma que os apóstolos São Pedro e Santo André se recusaram a ser martirizados do mesmo modo que o seu Mestre. Segundo consta da tradição da Igreja, o primeiro terá pedido para ser crucificado de cabeça para baixo, ao passo que o irmão suplicou por uma cruz de formato diferente, ao que lhe foi atribuído uma em forma de “X” (conhecida como “crux decussata”). Aos olhos dos fiéis, a cruz deixou então de ser interpretada como um mero aparelho de tortura e transformou-se no mais fidedigno sinal da Salvação. É uma prova inquestionável do amor ilimitado de Deus, que sacrificou o próprio Filho na esperança de acudir a Humanidade. É um símbolo de esperança, de triunfo do bem sobre o mal - “In hoc signo vinces”46 - e da vida sobre a morte. Em suma, converte-se

esde tempos imemoriais, a cruz tem sido repetidamente utilizada nas mais diversas representações artístico-religiosas. Mesmo recuando aos longínquos períodos da Pré-História e às primeiras tentativas do ser humano em exprimir-se através da arte, concluímos, com base nas pinturas e gravuras rupestres que ainda subsistem, que não raras vezes se verificava a conjugação de figuras animais e antropomórficas com motivos geométricos, destacando-se no seio destes os elementos cruciformes. É evidente que hoje se torna muito difícil compreender o significado desses elementos, mas parece ser óbvio para a maioria dos arqueólogos que eles tinham amplas ligações ao mundo da magia e do sagrado. Mais tarde na História, a cruz viria a ser utilizada por diferentes povos como instrumento de castigo e suplício, originando um dos mais cruéis métodos de execução conhecidos pelo Homem. Para além do manifesto sofrimento físico que dela resultava, a crucifixão servia ainda como forma de humilhação e ultraje público. Funcionava como um exemplo para os demais infratores e como maneira eficaz de assegurar a soberania política. Embora não tenha sido uma prática exclusiva da civilização romana, é com ela que vai adquirir uma importância peculiar, não só pela amplitude da sua uti-

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Cruzeiros.

Cruzeiro de templete.

cular, estes monumentos são, e sempre foram, uma clara manifestação pública de fé. Ao mesmo tempo, ajudavam a concretizar outros objetivos valiosos, que passavam por consagrar e reconverter antigos locais de culto pagão; proteger os lugares mais perigosos ou habitualmente associados a práticas maléficas (desempenhando assim um papel apotropaico, tão bem resumido na expressão popular “como o Diabo foge da cruz”); incentivar a piedade e a oração de todos quanto passassem por si; celebrar e/ou manter memória de acontecimentos marcantes da comunidade: uma batalha, uma epidemia, um milagre… Por fim, alguns deles eram ainda construídos como forma de cumprir um voto ou retribuir uma graça. Partilhando quase sempre uma morfologia similar, baseada em três elementos primordiais - uma cruz latina no topo, uma coluna e/ou pedestal ao centro, uma plataforma com degraus a servir de base - os cruzeiros encontram-se com relativa facilidade e abundância em todo o território portu-

na mais elementar e sublime insígnia da religião cristã, não sendo por isso de admirar a sua veloz propagação em todos os espaços e contextos. Nomeadamente nos espaços exteriores e de domínio público! Eis-nos perante o conceito fundamental dos cruzeiros: são grandes cruzes de madeira ou de pedra que, ao serem erguidas nas praças, nos largos, no alto dos montes, à beira dos caminhos ou junto das encruzilhadas, funcionam como pequenos faróis que sacralizam tudo em seu redor. Transportam para a rua e para o meio da comunidade uma centelha da chama divina, provando assim que ela não está confinada ao interior das paredes das igrejas. Independentemente do seu tamanho mais ou menos grandioso, de possuírem uma decoração muito elaborada ou de serem simplesmente duas hastes colocadas na perpendi-

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Essa cruz, convenientemente resguardada no interior do alpendre, surge como um elemento dissonante em virtude de ser feita de calcário, quando todo o restante monumento se afigura talhado em granito. O calcário é uma pedra mais macia, mais fácil de cortar e aperfeiçoar, pelo que não é de estranhar a sua ampla utilização no seio da escultura. Neste caso, contudo, a diferença de materiais leva-nos a concluir, de uma forma quase intuitiva, que se trata de um acrescento ou de uma remodelação posterior, muito embora não tenha sido possível descobrir qualquer registo documental que confirmasse essa suspeita. Quanto à restante estrutura, tudo parece apontar para uma data de construção situada na segunda metade do século XIX. Continuando a descrição da cruz, observamos que ela exibe uma configuração latina e secção retangular, ostentando na haste superior a habitual filactera com a inscrição “INRI” (significando, em português, “Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus”). Logo abaixo, emerge a figura do Salvador, com os

guês, manifestando-se como importantes vestígios do engenho artístico e da devoção popular. O exemplar mais interessante da freguesia de Bodiosa situa-se precisamente junto à igreja paroquial de São Miguel, consistindo numa obra de cantaria protegida por templete. Quem visita a igreja matriz ou o cemitério que lhe fica anexo, dificilmente permanece indiferente ao cruzeiro que se ergue junto a eles. A sua grande marca distintiva prende-se com a presença de um alpendre, constituído por quatro colunas toscanas assentes sobre pedestais paralelepipédicos, e que aparecem a suportar uma cobertura em forma de pirâmide quadrangular. Como facilmente se deduz, este elemento arquitectónico foi projetado com o intuito de oferecer proteção e conferir solenidade. Há, no entanto, um outro pormenor de relevo que também ajuda a individualizar este cruzeiro perante todos os restantes que se encontram nas imediações: uma imagem de vulto de Jesus Cristo esculpida sobre a cruz.

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Cruzeiros.

nar que os mesmos teriam uma função processional e que estariam integrados num grupo mais abrangente. Essa hipótese parece ganhar consistência quando se empreende uma simples caminhada em redor da igreja, uma vez que, num raio de apenas 400 metros, se assinalam mais cinco cruzeiros de morfologia semelhante. Um deles localiza-se a Sudoeste e está praticamente “escondido” no meio de um pinhal, nas traseiras da farmácia; outro permanece a Oeste, junto a um barracão; dois ficam a Norte, escoltando um dos caminhos que partem da EN16 em direção à Matriz (a chamada Rua da Igreja); o último emerge no flanco Este, sendo o único a apresentar um ligeiro trabalho ornamental. Para ser mais preciso, a face principal da sua cruz aparece emoldurada por uma faixa em relevo, distinguindo-se depois na extremidade lateral das suas hastes o desenho de uma flor estilizada. Quanto ao pedestal, ostenta na parte frontal (e apenas nesta) um motivo losangular insculpido na pedra. No interior do Centro Social de Bodiosa está erguido um outro cruzeiro, que apenas não foi incluído na listagem ante-

olhos fechados e uma coroa de espinhos sobre a cabeça. Com o corpo tapado apenas por um cendal, Ele apresenta os braços esticados e horizontalizados, culminando nas mãos pregadas mas com os dedos em gesto de abençoar. A cruz repousa diretamente sobre uma coluna de fuste liso (em tudo semelhante às que já foram mencionadas para o alpendre) distinguindo-se, abaixo dela, um pequeno pedestal emoldurado, composto por faces laterais contracurvadas. A extremidade inferior do cruzeiro inclui uma plataforma estruturada em dois degraus, ambos de contorno quadrangular. Apenas alguns metros ao lado deste cruzeiro, no caminho que segue paralelo ao cemitério e que serve de ligação à casa paroquial, somos confrontados com outros três exemplares, praticamente seguidos e dispostos em linha reta. De aparência bastante mais modesta, englobam unicamente uma cruz latina de faces lisas pousada sobre uma base paralelepipédica. Em nenhum dos casos se vislumbram quaisquer elementos decorativos ou inscrições, sendo fácil imagi158

Partindo deste local em direção a Sul e assumindo como pontos de referência as ruas da Rigueira e do Calvário, encontraremos, mesmo à entrada da aldeia de Vendas, um conjunto de três cruzeiros partilhando o mesmo soco retangular. Como facilmente se depreende, e como a própria toponímia deixava adivinhar, trata-se de uma representação do calvário. As três cruzes de granito, iguais entre si tanto em forma como em dimensões, personificam as palavras dos Evangelhos quando referem que Jesus foi preso à cruz e “com Ele, foram crucificados dois salteadores, um à direita e outro à esquerda.”47 Por fim, no adro da igreja do Divino Espírito Santo, em Bodiosa-a-Nova, eleva-se o último exemplar a que faremos referência. Orientado para Este, é composto por cruz simples de configuração latina, sucedida por um pedestal paralelepipédico ao qual se afixou uma placa epigrafada com a data de construção: “11-6-2000”. Imediatamente abaixo, desenvolve-se uma plataforma alteada em dois degraus.

rior porque é sabido que a sua localização original não correspondia a este lugar. Além do mais, apresenta uma particularidade artística que importa realçar: a haste superior da sua cruz aparece ladeada por duas aletas, terminando ambas em volutas. Já na povoação de Travanca, a escassos metros da capela antiga de Nossa Senhora da Graça e encostados às fachadas de um admirável solar de finais do século XVIII - admirável, ainda que em estado de ruínas - encontram-se edificados dois novos cruzeiros. Um deles é deveras rudimentar, não passando de uma mera cruz latina elevada sobre um afloramento rochoso. No segundo caso, porém, nota-se um trabalho de cantaria bastante mais cuidado e com alguns apontamentos de cariz decorativo. As faces da cruz apresentam-se enriquecidas com uma moldura saliente e possuem duas flores esculpidas em relevo, cada qual exibindo um número diferente de pétalas. O seu pedestal contém um painel retangular ligeiramente reentrante, de onde emerge depois um duplo losango. 159


Alminhas

A

s alminhas são pequenos monumentos religiosos, de carácter popular, habitualmente localizados à beira dos caminhos vicinais e nas encruzilhadas. Constituem um importante vestígio do passado, em particular da nossa herança cultural e religiosa. Antes de mais, importa salientar que elas se revestem de um duplo significado e importância: por um lado, podem e devem ser contempladas enquanto verdadeiras obras-de-arte construídas pela mão de antigos e habilidosos artesãos, cujos nomes quase sempre desconhecemos. Por outro, são símbolos marcadamente religiosos, estando impregnados no seu âmago da mais pura devoção, piedade e espiritualidade católicas. Os estudos existentes sobre o tema mostram que as alminhas podem ser encontradas praticamente em todo o País, sendo sobretudo numerosas nas regiões do Norte e Centro de Portugal. O concelho de Viseu e, em particular, a freguesia de Bodiosa, são disso um ótimo exemplo, existindo literalmente dezenas de monumentos espalhados pelos campos e pelas ruas das povoações. Só na aldeia de Pereiras é possível contabilizar oito! Mais do que serem abundantes, porém, há outro pormenor que interessa destacar e que está relacionado com a sua intrínseca originalidade. Segundo afirma o professor de história António Matias Coelho, “as

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alminhas são uma criação genuinamente portuguesa e não há sinais de haver este tipo de representação (…) em mais lado nenhum do mundo”.48 Acima de tudo, as alminhas são padrões de culto aos mortos, revelando assim uma crença inabalável na vida além-túmulo. O seu objetivo passa por relembrar todos os viandantes de que o Purgatório existe e que, no meio das suas aterradoras labaredas, permanecem muitas almas necessitando de toda a ajuda - seja na forma de orações ou de esmolas - para que um dia consigam ascender ao Paraíso. É por esse motivo que, na grande maioria dos casos, estes monumentos estavam originalmente decorados com pinturas e/ou com painéis de azulejos representando as tais almas, sempre rodeadas pelo fogo e implorando a salvação. Aparecem usualmente no registo inferior da composição, desnudas, com os braços erguidos ao alto e as mãos postas em oração, olhando de forma humilde para o Céu que se estende logo acima. Aqui, o destaque recai sobre as figuras dos anjos e de Jesus Cristo crucificado, embora também não seja incomum observar-se a presença da Virgem Maria, de Santo António, do Espírito Santo (na sua tradicional forma de pomba branca) ou mesmo de Deus Pai. Será curioso constatar que nestas representações pictóricas das almas tanto aparecem homens como mulheres, jovens e anciões, ricos e pobres. Em casos extremos, até cabeças

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e se disseminou pelos espaços públicos e familiares. Primeiro, terão surgido simples painéis de madeira contendo a figuração iconográfica do Purgatório, que ficariam suspensos nas portas das casas ou colocados nas suas paredes exteriores. Mais tarde, foram aparecendo oratórios de cantaria para albergar esses painéis, surgindo assim as alminhas tal como hoje as conhecemos. Compreenda-se que esses oratórios ajudavam a proteger as tabuinhas contra o desgaste inevitável causado pelos elementos naturais (chuva, vento, sol, etc.) ao mesmo tempo que lhes conferiam uma maior imponência e dignidade. No final, o monumento era quase sempre rematado por uma cruz de configuração latina, podendo ainda contar com a presença de uma pequena caixa de esmolas. Embora a origem de algumas destas construções possa recuar ainda a meados do século XVIII, parecem não restar dúvidas de que o período mais profícuo corresponde à centúria de oitocentos. Isso mesmo pode ser comprovado em diversas alminhas da paróquia de Bodiosa, uma vez que ostentam a respetiva data insculpida no segmento inferior. A prospeção no terreno que antecedeu a elaboração deste capítulo permitiu o registo de trinta e oito alminhas distintas, embora não possamos descartar a possibilidade de existirem outras (ou fragmentos delas) que tenham passado despercebidas. Elas encontram-se geograficamente dispersas por quase todo o território que compõe a freguesia, não havendo uma única aldeia que não possua, pelo menos, um desses exemplares. É claro que em determinadas zonas a densidade numérica se afigura muito maior, ao passo que noutras ocorre o inverso. A extremidade Sudeste da freguesia é demonstrativa do segundo caso, tendo-se assinalado apenas uma alminha, à saída da povoação de Póvoa (na estrada de ligação a Queirela). Com a agravante de estar tão coberta por musgo e vegetação que a sua deteção se torna virtualmente impossível para todos que ainda não a conheçam. No lado oposto da balança, observamos que as maiores concentrações de monumentos têm lugar nos sítios de Oliveira de Baixo e Silgueiros (com cinco exemplares cada) e Pereiras (que encabeça a lista com um total de oito).

com coroas e mitras se distinguem no seio da multidão. Existe assim uma mensagem explícita e muito direta de que ninguém está livre da morte, nem sequer de um futuro castigo divino, caso a sua conduta se desvie gravemente dos preceitos da Igreja. Os únicos que nunca estão representados são precisamente as crianças uma vez, que sendo símbolos de pureza e de inocência, têm sempre garantida a entrada imediata no Reino dos Céus. Como forma de tornar estas imagens ainda mais sugestivas, algumas vezes elas eram acompanhadas de pequenas inscrições, em jeito de quadra popular. As mais comuns anunciavam o seguinte: “Ó vós que ides passando / Lembrai-vos de nós que estamos penando”; ou então “Nós penamos e vós zombareis / Mas lembrai-vos que em breve como nós sereis”. Em Oliveira de Baixo existe um exemplar deste tipo, muito embora a sua mensagem manifeste uma sugestiva ligação à devoção mariana: “Se queres que a tua dor / se converta em alegria, / não passes, ó pecador, / sem saudar a Maria.” Concluímos assim que as alminhas são marcos simbólicos que ajudam a perpetuar a memória daqueles que já partiram e que apelam à misericórdia dos fiéis. Quem se cruzasse com elas devia fazer uma oração, acender uma velinha, deixar algumas flores ou oferecer uma esmola. Com o passar do tempo, estes monumentos tornaram-se uma presença indissociável da paisagem rural e da própria comunidade, acabando por ser integrados no percurso de diversas romarias, procissões e funerais. O culto das almas ganhou grande parte da sua importância após o movimento da Contra-Reforma49, no século XVI. Entre outras resoluções, o Concílio de Trento confirmou o dogma da existência do Purgatório (como local de passagem temporária para remissão dos pecados) e reafirmou a importância da eucaristia e da oração no sufrágio dos fiéis. Como consequência disso, assistiu-se em todo o mundo católico à criação das Confrarias das Almas e à proliferação das representações artísticas baseadas nesse tema. Concretamente em Portugal, a intensidade da devoção foi de tal ordem que rapidamente extravasou o interior das igrejas

Pormenor de uma alminha existente em Oliveira de Baixo.

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Alminha junto à EN16.

Tabuinha com representação das Almas, numa alminha de Pereiras.

Entretanto, resta-nos proceder a uma análise comparativa das características morfológicas das alminhas encontradas. As conclusões adivinham-se muitas e prenhes de significado, sobretudo quando há tão pouca bibliografia dedicada a este tema. Todavia, não querendo incorrer no risco de tornar este texto demasiado longo ou tecnicista, simplificaremos a informação em cinco pontos esquemáticos: - todas as alminhas examinadas apresentam o mesmo material base de construção - o granito - revelando assim o aproveitamento de uma matéria-prima muito abundante na região e que, para além do mais, é bastante resistente à erosão; - em termos de configuração, a esmagadora maioria exibe um formato retangular mas com a terminação superior arredondada, ora desenhando um arco de volta perfeita, ora uma curvatura abatida. Embora sejam comuns noutras zonas do País, aqui identificaram-se poucos exemplares de contornos perfeitamente paralelepipédicos; e apenas uma alminha, situada na extremidade Sul de Silgueiros, aparece com remate triangular;

Outro aspeto relevante que merece ser mencionado prende-se com a grande percentagem de alminhas - acima dos 25% - que se situa ao longo da EN16, encostada à sua berma ou embutida num dos muros que lhe fazem fronteira. Não será um mero acaso, mas apenas a confirmação de que este é o principal eixo rodoviário de entrada e saída de Bodiosa, sendo igualmente a via de acesso privilegiada para quem faz a ligação com Viseu. Quanto à orientação espacial das alminhas (isto é, para que lado a sua face principal se encontra voltada) foi sem surpresa que nos deparámos com a ausência de um padrão comum. Mesmo que alguma vez ele tivesse existido, e isso parece-nos pouco provável, sabemos que algumas delas já foram deslocadas do seu local primitivo ou da sua posição original. Depois, e ao contrário do acontecia com as igrejas mais antigas - quase sempre orientadas para Este - aqui o mais importante não era direcioná-las para um ponto específico da bússola, mas sim garantir que ficassem de frente para a estrada ou caminho, de modo a poder encarar os viajantes que se aproximavam.

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tornos mais ou menos elaborados e onde a cruz assentaria; noutras ocasiões, o espaço disponível foi utilizado para abrir um nicho pouco profundo, sempre de secção arredondada e com a função de abrigar uma figuração das almas. Vários motivos ditaram que, nos dias de hoje, essas representações estivessem quase todas desaparecidas ou irremediavelmente destruídas. O único exemplar sobrevivente permanece na aldeia de Pereiras, conforme se pode constatar na figura acima colocada; - seria uma prática comum registar a data de construção do monumento no seu segmento inferior. Pois bem, de todas as alminhas que permanecem na freguesia de Bodiosa, existem vinte e quatro onde ainda é possível efetuar a leitura dessa data, que aparece sempre incisa na pedra e algumas vezes avivada a negro. O enfoque cronológico recai quase inteiramente sobre o século XIX, destacando-se o intervalo temporal compreendido entre 1822 (com este ano a repetir-se várias vezes) e 1898. Apenas duas exibem uma data posterior, já referente ao século XX (concretamente 1930 e 1964).

- as dimensões genéricas de cada monumento denotam uma tendência relativamente homogénea. É verdade que existem exceções: alminhas que se destacam pela sua imponência, alcançando os dois metros de altura, e outras que primam pela modéstia, não ultrapassando os 73,5 cm. No entanto, aquilo que verificamos a nível global é que elas não se afastam de forma muito significativa de uma medida modelar, equivalendo, grosso modo, a 145 cm de altura, 60 cm de largura e 35 cm de profundidade; - na totalidade dos casos, é possível constatar que apenas uma das faces da alminha aparece trabalhada com motivos decorativos, permanecendo as restantes lisas ou até apenas toscamente afeiçoadas. No segmento superior dessa face principal, o elemento representado é invariavelmente o mesmo: uma cruz latina, composta por hastes simples ou então com as extremidades trilobadas (sendo que este desenho é o mais recorrente, encontrando-se presente em vinte e sete das alminhas). Mais abaixo, as opções estéticas repartiam-se por dois caminhos. Algumas vezes, os artífices optavam por esculpir uma simulação de pedestal, de con-

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Travanca de Bodiosa.

Travanca de Bodiosa.

Queirela.

Queirela.

Queirela.

Travanca de Bodiosa.

Travanca de Bodiosa, junto à capela de Nossa Senhora da Luz. A sua face principal exibe uma cruz latina assente sobre uma original base de contornos curvilíneos, em cujo interior foi gravado o desenho de um cálice.

Bodiosa-a-Velha, no quintal de uma casa particular.

Bodiosa-a-Velha. A alminha encontra-se bastante mutilada, já nada restando da sua extremidade superior. Em baixo, é possível ler a data de “1878”.

Oliveira de Baixo.

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Oliveira de Baixo.

Oliveira de Baixo.

Oliveira de Baixo.

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Oliveira de Baixo. Embora não seja uma das alminhas mais antigas (pelo menos a acreditar na data que tem insculpida, e que refere o ano de 1964 ) esta é, sem dúvida, uma das mais interessantes em termos de trabalho decorativo e próspera em simbolismo, estando indubitavelmente associada ao culto mariano. O registo superior da sua face principal aparece ornamentado com a habitual cruz latina, mas sobre ela foi adicionada uma imagem de madeira representando Nossa Senhora com o Menino Jesus ao colo. Mais abaixo, destaca-se um nicho pouco profundo e preenchido com um painel de azulejos, que relembra a todos os viandantes que “SE QUERES QUE A TUA DOR / SE CONVERTA EM ALEGRIA, / NÃO PASSES, Ó PECADOR, / SEM SAUDAR A MARIA.”


Pereiras.

Pereiras, junto à central elétrica.

Pereiras.

Bodiosa-a-Nova.

Bodiosa-a-Nova.

Bodiosa-a-Nova, muito próxima da capela do Divino Espírito Santo.

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Pereiras.

Pereiras.

Pereiras.

Vendas de Travanca.

Vendas de Travanca.

Pereiras. Datada de “1865”, esta é a única alminha que ainda mantém presente a sua tabuinha de madeira original. Apesar da mesma já ter perdido quase totalmente a sua película cromática, é possível distinguir o contorno de Jesus Cristo crucificado, ladeado por duas figuras que não se conseguem identificar (embora a que se encontra do Seu lado direito pareça estar a segurar um Menino Jesus ao colo). Mais abaixo, vislumbra-se uma alma envolvida pelas chamas do Purgatório.

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Pereiras. Aquilo que mais individualiza este espécime é o painel de azulejos figurativo e polícromo que preenche o interior do seu nicho. Severamente danificado, esse painel retrata duas crianças junto a uma ponte de madeira, sendo seguidas de perto pela figura do Anjo da Guarda, que abre os seus braços numa atitude protetora.


Silgueiros. O seu nicho, rasgado no segmento inferior do monumento, encontra-se preenchido com um pequeno painel de azulejos, contendo uma representação da Sagrada Família.

Silgueiros, em frente à capela de Santa Marinha.

Silgueiros. Apresenta uma curiosa similaridade com outra alminha que haveremos de descrever em Aval. Contém a representação de duas figuras antropomórficas, de braços erguidos e ao lado de uma cruz. Ao fundo, tem a data de “1849”.

Silgueiros.

Silgueiros, numa zona de campos agrícolas e terreno florestal. Alminha de consideráveis dimensões e ainda elevada sobre uma base de cantaria ornamentada. É o único exemplar com terminação superior em triângulo. Está marcada com a data de “1868”.

Oliveira de Cima, numa zona isolada e envolvida por pinhal. A alminha encontra-se erguida sobre um afloramento natural de granito, que lhe confere uma grandeza e uma visibilidade bastante inflacionadas. Ao fundo, exibe a data de “1843”.

Aval.

Aval. A localização original desta alminha distanciava-se algumas dezenas de metros para Norte, junto da antiga linha ferroviária. Contudo, depois de ter sido furtada e de passar alguns anos desaparecida, a Junta de Freguesia decidiu recolocá-la mais perto das habitações, orientando a sua face principal na direção da capela do Divino Espírito Santo. Ostenta a data de “1846”

Aval. Apresenta um dos trabalhos decorativos mais originais, contendo duas figuras antropomórficas, muito estilizadas, ladeando a respetiva cruz central. As figuras aparecem representadas de pé e em posição frontal, a do lado esquerdo segurando uma custódia, enquanto a outra exibe um cálice de grande proporções. Mais abaixo, nota-se a presença de uma data incisa: “18(?)0”.

Póvoa de Bodiosa.

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Aval. Apesar da cruz se encontrar amputada, a alminha continua a exibir um notável trabalho de cantaria ao longo da sua face principal. Baseando-se num modelo marcadamente arquitectónico, a sua decoração é constituída por uma teoria de nicho vazia, encimada por uma flor em relevo e uma cornija triangular. Logo acima, dois elementos em forma de losango (lembrando pináculos) fariam o enquadramento da cruz. Na extremidade inferior do monumento ainda se vislumbra uma cartela incisa, mas sem que no interior se consiga ler qualquer inscrição.


Festas Religiosas

A

s festas religiosas são uma maneira singular - e porque não assumi-lo também, aprazível de cada população manifestar abertamente as suas convicções mais arreigadas. Por serem capazes de mobilizar um grande número de fiéis, continuam a assumir-se como momentos decisivos da vida e do calendário comunitários, muitas vezes ultrapassando os limites da esfera do sagrado. As festividades, com todos os elementos que se agregam junto a si e lhes conferem a sua forma característica, proporcionam uma subtil interligação entre a fé e o convívio, a devoção e a diversão. Ajudam a quebrar a rotina do quotidiano, recuperam e perpetuam as tradições mais antigas… e, nas palavras do anterior Bispo de Vila Real, D. Joaquim Gonçalves, “aproximam o povo, alimentam o espírito de comunidade e podem ser veículo de evangelização.”50 Nas diversas povoações da freguesia de Bodiosa continuamos a assistir, ao longo do ano, à realização das festas em honra dos seus padroeiros. O costume, em alguns casos, afigura-se já muito antigo. No segundo volume da obra Diccionario Geografico, publicado em 1751, diz o padre Luís Cardoso que as capelas do Espírito Santo, Santa Marinha e São João Baptista “ficão fóra do povoado, mas acode a ellas grande concurso de romagem, principalmente nos dias dos seus Oragos, e lhe fazem festas solemnes…”51

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Numa data mais recente, o padre Adelino Marques Cardozo - que permaneceu nesta paróquia enquanto coadjutor nas primeiras décadas do século XX - teve a iniciativa de elaborar uma lista pormenorizada das “Festas que se costumam realisar na freguezia de Bodiosa”52. Começou por aludir à “Egreja parochial”, onde pôde constatar as seguintes: “- Festa do Menino Deus no dia 1º de janeiro. - [Festa] de S. Sebastião no domingo imediato ao dia 20 de janeiro. - [Festa] de S. Jose no dia 19 de março. - [Festa] de S. Barbara em um dos domingos do mez de maio. - [Festa] do Santissimo Sacramento no domingo imediato ao dia do Corpo de Deus. Nesta festa costumam confessar-se e comungar 400 pessoas aproximadamente. - Festa de Nossa Senhora do Carmo no domingo imediato ao dia 16 de Julho, quando esta não cai ao domingo. - Festa de S. Antonio no domingo imediato ao dia 13 de junho. - [Festa de] Nossa Senhora do Rozario no 1º domingo d’outubro.”

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Festa de Nossa Senhora da Luz, ano de 1999.

Festa de Nossa Senhora da Graça, anos de 2002 e 2006. Em Travanca, durante a ocasião das festas, as ruas da aldeia são cobertas com exuberantes tapetes de flores, que se afiguram como mais um motivo de apelo à participação de todos os populares. (Fotografias gentilmente cedidas pela mordomia da igreja de Travanca.)

- Festa de N. Senhora da Piedade no domingo imediato ao dia de S. João na sua capela d’Oliveira de Baixo.

É curioso não haver qualquer referência à celebração de São Miguel Arcanjo, o orago da igreja e da paróquia, que deveria coincidir com o dia 29 de Setembro. Acreditamos, contudo, que não era uma data ignorada, cercando-se da mesma importância que ainda hoje lhe é atribuída. Em seguida, ele faz um registo de todas as festividades que se encontravam associadas às diversas capelas:

- Festa de N. Senhora da Graça no segundo domingo do mez de julho, na sua capela de Travanca. - Festa de S. Christina, no 1º domingo d’agosto na sua capela de Queirela. - Festa de S. Marinha no domingo imediato ao dia 18 de julho na sua capela de Silgueiros.

“- Festa de Nossa das Candeias no domingo imediato ao dia 2 de fevereiro na povoação d’Oliveira de Cima (…)

- Festa de S. Eufemia na sua capela de Bodiosa Velha no domingo imediato ao dia 16 de setembro.

- Festa do Divino Espirito Santo no seu dia proprio, na sua capela de Bodiosa Nova. Para esta festividade ha confissões de vespera; no dia da festa costumam comungar pª. cima de 500 pessoas. Não ha arraial.

- Festa de N. Senhora da Saude na sua capela da Povoa, na quinta feira d’Ascensão. - Festa de S. Sebastião na capela de N. Senhora da Graça em Travanca, que esta povoação prometeu celebrar todos os anos depois da pneumonica.”

- Festa de S. João no dia 24 de junho na sua capela de Pereiras (…)

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mera curiosidade histórica, um acontecimento bizarro que marcou a povoação de Silgueiros. Não conhecemos o motivo que terá desencadeado todo a catadupa de acontecimentos, mas sabemos que um arraial particularmente indisciplinado originou a suspensão do culto na capela de Santa Marinha. Uma suspensão que se prolongou por, nada mais, nada menos, um ano inteiro. Todas as informações disponíveis estão reunidas num requerimento de 1943, enviado pelo pároco de Bodiosa Joaquim Coelho de Mendonça ao Exmo. Bispo de Viseu: “Faz um ano que em Silgueiros, desta freguesia, se fez um arraial que, pelas circunstâncias da ocasião - coincidia com a proximidade de uma festa - motivou a suspensão do culto na capela daquêle lugar. Passados aquêles dias, pareceu que o povo - uma grande parte do qual não havia calado o seu protesto - caiu em si, de modo que não houve, depois

Quando comparamos estes dados com o que acontece no presente, notamos sobretudo uma linha de continuidade. É certo que existem algumas discrepâncias, mas essas concentram-se sobretudo ao nível da calendarização, não merecendo por isso demasiado enfoque. De resto, é possível destacar a posterior introdução da festa de Nossa Senhora da Luz, que terá sido incentivada pelo povo de Travanca no momento em que a capela foi doada à Fábrica da Igreja pelos seus antigos proprietários. É claro que a este conjunto de festividades eminentemente religiosas se juntavam depois, tal como ainda hoje se verifica, outros bailes, celebrações e arraiais de carácter mais profano. Por regra, a sua coexistência decorria de forma pacífica, mas isso não invalida a existência de exceções… algumas com repercussões verdadeiramente inesperadas! O exemplo que se segue deverá ser encarado como uma

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Festas da Freguesia de Bodiosa - Festas da Paróquia: São Miguel, no dia 29 de Setembro ou no domingo seguinte; Nossa Senhora do Rosário, no 1º domingo de Outubro; Santa Bárbara, no dia 2 de Dezembro ou no domingo seguinte; Nossa senhora do Carmo, no dia 16 de Julho ou no domingo seguinte; Santíssimo Sacramento, no dia do Corpo de Deus; Espírito Santo, no dia do Pentecostes; - Queirela: festa religiosa e festas populares no dia 24 de Julho ou no domingo seguinte; - Travanca: Nossa Senhora da Luz, no 3º domingo de Agosto; Nossa Senhora da Graça, no último domingo de Maio ou no 1º domingo de Junho; festas populares, no 1º domingo de Agosto; - Oliveira de Cima: Nossa Senhora das Candeias, no dia 2 de Fevereiro ou no domingo seguinte; festas populares, no último domingo de Julho; - Oliveira de Baixo: Nossa Senhora da Piedade, no dia 16 Setembro ou no domingo seguinte; festas populares, no 2º domingo de Julho; Festa de Nossa Senhora da Graça, no remoto ano de 1959. Entre tantos outros pormenores, é possível observar a decoração dos andores, as ruas apinhadas de fiéis e a presença indissociável da música. Na última imagem, a banda de Ribafeita percorre uma viela de Travanca precedida por um grupo de jovens rapazes.

- Pereiras: festa religiosa e festas populares no dia 24 de Junho ou no domingo seguinte; - Póvoa: festa de Nossa Senhora da Saúde e festas populares no dia 15 de Agosto; - Bodiosa-a-Nova: festa de São Macário, no 1º domingo de Agosto; - Bodiosa-a-Velha: festa de Santa Eufémia, no dia 16 de Setembro ou no domingo seguinte; - Silgueiros e Aval: festa de Santa Marinha, no dia 18 de Julho ou no domingo seguinte.

Dadas estas circunstâncias, e encontrando-se o povo decidido a ereitar e a impedir tanto quanto possivel novos actos de indisciplina, e acrescentando ainda que muito merecem a reabertura da capela, junto ao do mesmo povo o meu proprio pedido para que V. Ex.ª Rev.ma se digne conceder a necessária licença, se assim o tiver por bem! (…) Bodiosa, 16 de Julho de 1943.”53

daquilo, qualquer outra ostensiva manifestação de indisciplina, tendo, ao contrário havido claras mostras de acatamento. Este manifesto acatamento teve relêvo particular e tomou um aspecto digno de atenção pela ocasião da visita pascal, em que ostensivamente se fez dêle, alem de tudo, um protesto contra as manifestações de espirito de revolta, da véspera (Domingo de Páscoa).

A lista foi cedida pela Junta de Freguesia de Bodiosa.

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Lendas e tradições

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riqueza patrimonial de um País ou de uma sociedade não se pode limitar aos seus monumentos edificados e objetos mais importantes. Não pretendemos com isso afirmar que se devem poupar esforços no momento de estudar, de preservar e/ou de dinamizar o património material existente. Muito pelo contrário, é sabido que os “bons” investimentos efetuados nesse sentido podem ser extremamente recompensadores, acartando consequências positivas não só ao nível do conhecimento científico, mas também do ponto de vista turístico, económico, social… e até como forma de combate à desertificação do interior. De qualquer maneira, parece-nos que todo esse esforço acabaria por ser insignificante (ou pelo menos incoerente) se não houvesse uma digna correspondência com a defesa do património imaterial. As lendas, as festas, o artesanato e as tradições, fazem parte de um passado coletivo que não se pode simplesmente ignorar ou deixar cair em esquecimento. Por todas as razões conhecidas, até mesmo por uma simples questão de respeito para com os nossos antepassados - que sempre revelaram o cuidado e a preocupação de transmitir esse conjunto de saberes ao longo das gerações sucessivas - devem ser tomadas as mais variadas diligências no sentido de documentar essas tradições e perpetuar o conhecimento que delas ainda se tem.

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Durante séculos, as tradições ajudaram a formar laços sociais mais fortes entre os membros de uma determinada comunidade, permitindo a criação de um verdadeiro espírito de grupo e fomentando o sentimento de pertença. Ao mesmo tempo, garantiam uma constante estabilidade e continuidade entre o passado, o presente e o futuro. Hoje, elas devem ser encaradas como um dos poucos caminhos possíveis para salvaguardar aquilo que permanece da nossa identidade e individualidade, num mundo que se afigura cada vez mais globalizado e estandardizado. Nas povoações que compõem a freguesia de Bodiosa, esta dicotomia tão própria da sociedade atual (pondo, frente a frente, modernidade versus tradição) não poderia deixar de se fazer sentir. O mais importante, contudo, é constatar a existência de pessoas e associações que ainda se mantêm empenhadas na divulgação e na sobrevivência de algumas práticas e rituais considerados ancestrais. Na grande maioria dos casos, esses rituais são de matriz religiosa e permanecem, de modo intrínseco, ligados ao culto e ao calendário católicos. Ainda assim, de quando em vez, lá se reconhecem alguns laivos de paganismos despontando ingenuamente nas celebrações mais animadas, como teremos a possibilidade de testemunhar, por exemplo, na curiosa e sempre enigmática tradição de Serrar a Velha. Os rituais religiosos mais significativos e que, por conseguin-

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almas”, “encomendar”, “lamentar”), no fundo, o objetivo mantinha-se sempre o mesmo, passando por recordar todos aqueles que já haviam partido, e com uma especial atenção pelas almas em sofrimento retidas no Purgatório. Tal como havíamos deixado claro, a propósito dos monumentos apelidados de alminhas, era fundamental incentivar a oração e a misericórdia dos fiéis, já que deles podia depender uma mais célere subida ao Paraíso. Em moldes gerais, esta tradição popular baseava-se num conjunto de rezas e cânticos, levados a cabo por um grupo de homens55 da mesma povoação que, de forma espontânea e continuada, se juntava após o cair da noite e percorria um conjunto de lugares previamente estipulados. Por regra, seriam lugares com algum tipo de simbolismo religioso ou então que se destacavam dos restantes pela sua altura e centralidade, possibilitando a projeção das vozes a uma maior distância e a sua fácil audição por todos os que permaneciam em suas casas. Algumas vezes, também podia acontecer que essa responsabilidade ficasse inteiramente nas mãos de apenas um homem, que assim assumia a designação de “botador das almas”. Num artigo da Revista de Guimarães, publicado em 1891, encontramos a seguinte descrição: “Já noite entrada, o «botador das almas» ia pela encosta das montanhas a tocar campainha, e, na direcção dos povoados, trepava ao cume dos penedos, ou ao alto das arvores, e, em alta voz, compassada e plangente, exhortava : «Irmãos, rezai um P. N. e uma A. M. pelas almas que estão nas penas do fogo do Purgatório».”56 No nosso espaço geográfico de estudo - Bodiosa - a figura do “botador” não parece ter sido frequente, se é que alguma vez realmente existiu. O que não invalida que a prática da Ementação tenha sido adotada e valorizada por praticamente todas as povoações, começando apenas a perder o seu fôlego em meados do século passado. Recorrendo às palavras de Helena Lourosa, numa comunicação levada a cabo a propósito da aldeia da Póvoa, ficamos a saber que “até à década de 30 do século XX era comum cantar-se a Ementação das Almas (…). Nessa época os homens da aldeia juntavam-se durante todos os dias da Quaresma, ao

te, também lograram persistir no tempo de forma mais duradoura, são aqueles que se encontram associados ao período do Natal e à época da Páscoa. Não se trata, com certeza, de um mero acaso do destino: estas são as duas datas mais marcantes da tradição cristã, pelo que mereciam ser celebradas de forma condigna e intensa. Não nos esqueçamos que simbolizam, respetivamente, o nascimento e a morte de Jesus, sendo esta sucedida pelo milagre da Ressurreição. Mas é sobretudo no tempo da Quaresma que devemos estabelecer o foco da nossa pesquisa, começando por atribuir uma atenção redobrada à Ementação das Almas e ao cântico dos Martírios. Em qualquer dos casos, adivinha-se uma origem antiquíssima, posteriormente alimentada pelo voluntarismo dos mais crentes. É claro que nenhuma destas práticas é exclusiva da região viseense ou sequer do planalto beirão, havendo registos da sua ocorrência ao longo de praticamente todo o território nacional, com particular incidência nas zonas rurais. No entanto, não é raro acontecer que esses mesmos rituais assumam formas e/ou denominações ligeiramente diferentes consoante as zonas do País analisadas. Isso será, porventura, uma consequência de estarmos “perante uma etnografia que tradicionalmente acontece num registo oral, o que permite aos «actores» uma grande flexibilidade e abertura nos processos…”.54 De facto, o método de transmissão oral teve o mérito de ser o único que, durante milénios, esteve disponível para a grande maioria da população, mas é impossível negar a sua permeabilidade a imprecisões (dado o carácter falível da memória) e o espaço que concedia à imaginação, dando jus à expressão “quem conta um conto, acrescenta um ponto”.

Ementação das Almas O ancestral ritual da Ementação das Almas tem lugar durante o período da Quaresma e está intimamente relacionado com o culto dos mortos. Embora o seu nome pudesse variar bastante de uma aldeia para outra (em Oliveira de Baixo, por exemplo, diz-se “amentar das almas”, mas são igualmente conhecidas as expressões “botar as alminhas”, “deitar as 180

tam uma “Salvé Rainha” e dão o ritual por terminado. Os cânticos que compõe esta tradição apenas acontecem à porta da capela (que, como já foi mencionado, marca o início e o fim do caminho) e nos lugares assinalados com cruzes. Em todo o restante percurso há um silência absoluto e não se toleram quaisquer distracções. Do mesmo modo, não se verifica a utilização de instrumentos musicais. Apenas se podem escutar as vozes masculinas, entoando de forma dolente e respeitosa os mesmos versos que já haviam sido repetidos pelos pais e pelos avós: “As almas do Purgatório, em grandes penas estão / Nos mandam pedir por elas, com amor e devoção”.

anoitecer, no topo de um gigantesco penedo onde interpretavam, depois da ceia, a Ementação das Almas. Antes de se iniciar propriamente a Ementação, os homens rezavam em conjunto o «Padre Nosso Rigoroso».”57 O facto de ser feito à noite tinha dois fundamentos principais: por um lado, não se sobrepunha às atividades profissionais do quotidiano, permitindo uma maior participação dos populares; por outro, a escuridão sempre esteve associada à morte e ao mundo dos espíritos, sendo assim o momento ideal para evocar os antepassados e interceder pelo seu destino. Na povoação de Queirela, um número considerável de pessoas inquiridas também afirmou guardar na memória a concretização desse ritual. Recordam que não era só aqui; todas as povoações vizinhas partilhavam um genuíno orgulho no cumprimento das suas tradições quaresmais. Pena que as mesmas não tenham conseguido competir com o advento da nova sociedade tecnológica e com o galopante desinteresse demonstrado pelos mais jovens. Subsistem, contudo, algumas honrosas exceções. Em Oliveira de Baixo, e graças sobretudo aos esforços levados a cabo pela ARDCOB (Associação Recreativa, Desportiva e Cultural de Oliveira de Baixo), o Amentar das Almas continua a repetir-se todos os anos, sempre mantendo a essência do costume. Em 2013, conseguiu reunir uma média de vinte participantes por jornada, apesar do Inverno frio e rigoroso que aqui se fez sentir. Atualmente, o ritual só tem início após o dia do Micareme58 e prolonga-se até ao domingo de Ramos. Todas as noites, por volta das 21h, os homens (e apenas estes) reúnem-se à porta da capela de Nossa Senhora da Piedade e dão início à procissão. Empreendem um percurso que engloba seis locais diferentes, cinco deles marcados com cruzes de madeira e o último coincidindo com uma alminha de cantaria, decorada ao centro com as imagens da Virgem e do Menino Jesus. Para o caminho ser menos moroso e dificil de cumprir, os participantes são agora divididos em dois grupos distintos, ficando cada um deles incumbido de percorrer metade das cruzes. Ainda assim, afirmam que o cortejo se prolonga por mais de uma hora! No final, reúnem-se todos novamente na capela, onde can-

Martírios Também no período da Quaresma, e com uma origem que recua seguramente muitos séculos no passado, desenvolveu-se o ritual dos Martírios. O seu nome não deixa enganar: com a aproximação da Páscoa, os fiéis eram convidados a recordar todo o sofrimento e dor que Jesus Cristo havia suportado nas últimas horas da Sua vida. Por hábito, esta tradição tinha o seu início logo na quarta-feira de cinzas, implicando um compromisso sério com todos os participantes para que a mesma fosse repetida, sem interrupções, até ao sábado de Aleluia. Reunindo-se depois do anoitecer, homens e mulheres percorriam lenta e silenciosamente as ruelas das aldeias, parando apenas em alguns lugares específicos (muitos vezes associados a marcos na paisagem, como alminhas, cruzeiros, pelourinhos…) para entoar as várias quadras que compunham o cântico dos Martírios. Uma vez mais, não havia acompanhamento instrumental, porque o momento era de pesar e introspeção. O silêncio da noite somente podia ser apaziguado pela voz dos cantadores, que amiudadamente permaneciam com os seus olhos fechados e os rostos graves apontados para o chão, num claro sinal de respeito e de profunda meditação. O texto de cada quadra, apesar das ligeiras variações conhecidas em tempos e sítios diferentes, era sempre elaborado com base num elemento específico do corpo de Jesus e na 181


res. Por essa razão, é muito frequente escutar que durante a Quaresma se “Cantam às Cruzes”, uma expressão simples e generalista que engloba de uma assentada estas duas tradições diferentes. Quanto à hora de início, essa sim é bastante diferente. Acontece quando os ponteiros do relógio marcam cinco da madrugada, havendo de se repetir todos os dias até ao sábado que se avizinha. Em cada cruz, os homens repetem um “Padre Nosso Rigoroso” e cantam duas das quadras dos Martírios. Hoje, já quase todos se socorrem de uma folha contendo a letra e a ordem dos versos, mas não há muito tempo atrás os participantes utilizavam apenas o poder da sua memória. Tal como também acontecia no caso anterior, as mulheres continuam sem poder participar no cortejo, tendo desenvolvido um ritual próprio onde expressam a sua devoção. Nos últimos três dias da Semana Santa (quinta, sexta e sábado de Aleluia) saem para a rua à mesma hora dos homens, mas para cantar a “Morte e Paixão do Senhor”. Param em todas as encruzilhadas da aldeia e murmuram incansavelmente o mesmo texto: “Morreu Jesus / Morreu Jesus / Pela sagrada morte e paixão / um Padre Nosso e uma Avé Maria”. Depois de cumpridas as orações, partem em direção ao próximo cruzamento, havendo sempre o cuidado e a preocupação de não se cruzarem com o grupo dos homens. Por respeito aos “antigos”, os grupos podem ouvir-se mutuamente mas nunca se devem encarar. Chegados à Páscoa, todos os cânticos tristes e introvertidos dão lugar à festa e alegria, incentivadas pelos sinos das igrejas que anunciam a Ressurreição e incitam aos clamores de Aleluia. Nas várias aldeias era costume lançarem-se foguetes e as pessoas preparavam cuidadosamente o seu lar para a visita da cruz, trazida pelo padre ou por um seu representante. O compasso, ou visita pascal, continua a permitir ainda hoje que as casas dos fiéis sejam benzidas com água benta, ao mesmo tempo que dá cumprimento às palavras escritas pelo evangelista São Mateus: “Ide pois, imediatamente, e dizei aos seus discípulos que já ressuscitou dentre os mortos.”59

forma como fora maltratado durante os momentos da Paixão. Resultava daí uma mensagem severa, bastante gráfica e extremamente explícita, onde também não ficava esquecido um pedido de clemência pela culpa dos pecadores na morte do Salvador. A leitura de algumas quadras serão suficientes para se compreender o seu conteúdo geral: “Os Vossos divinos ouvidos / Ouviram cruel sentença / Por causa dos meus pecados / Senhor tende paciência” ; “O Vosso divino peito / Foi cruelmente rasgado / Dele corre a abundância / E o remédio pró pecado” ; “Os Vossos divinos pés / Mais alvos que a neve pura / Já correm rios de sangue / Pelas ruas da amargura”. Em algumas ocasiões, os Martírios também podiam ser interpretados por apenas duas pessoas, que, neste caso, cantavam alternadamente e quase em jeito de desafio. Cada um escolhia um lugar diferente da aldeia e tinha depois de garantir que era ouvido pelo outro, que devia dar início à sua quadra assim que o companheiro terminasse a anterior. O poder vocal era sempre um requisito essencial! Em Bodiosa, as vicissitudes da sociedade atual ainda não apagaram por completo o hábito de cantar os Martírios. Ainda que durante menos dias, uma parte da população sente-se impelida a reviver esta tradição, seja por convicção religiosa, por respeito aos costumes antigos, ou para cumprimento de alguma promessa. Os mais idosos aplaudem a iniciativa, mas sempre sinalizando algumas diferenças notórias. O Sr. Horácio Figueiredo (80 anos), morador em Pereiras, relembra que “antigamente não havia televisão nem computadores. As pessoas tinham menos distrações, pelo que aguardavam com expectativa este tipo de acontecimentos. Quando alguém, em sua casa, ouvia o cantar dos Martírios, a família toda corria para a janela.” Novamente, abordaremos com maior pormenor o que acontece em Oliveira de Baixo. O domingo de Ramos marca o início da Semana Santa e, com ela, os oliveirenses deixam de entoar a Ementação das Almas e substituem-na pelo cântico dos Martírios. O trajeto que é suposto percorrerem, contudo, não sofre qualquer alteração, continuando a englobar as seis cruzes que permanecem pousadas nos mesmos luga-

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Cantar às Cruzes (Amentar das Almas) “Pelo sinal da Santa Cruz, livre-nos Deus Nosso Senhor E dos nossos inimigos, em nome do Pai e do Filho E do Espírito Santo Amém, Jesus Maria José --&-Acordai se estais dormindo, nesse sono em que estais Que vos bate Deus à porta, vós dormis e descansais. À porta das almas santas, bate Deus a toda a hora As almas lhe responderam, meu Deus que quereis agora. Quero que vos preparai-vos, para irmos à Glória Nós já estamos preparados, meu Jesus vamos lá agora. Vamos cantar um Bendito, que os Anjos também o cantam Que dizem as almas santas, Santíssimo sacramento. -&-Espírito Santo Divino, no Reino Celestial Nós pedimos para as almas, elas nos hão-de ajudar. As almas do Purgatório, em grandes penas estão Nos mandam pedir por elas, com amor e devoção. Ouvir os tristes gemidos, mais os ais dos vossos pais Que lá estão na outra vida, vós deles não vos lembrais. Rezamos às almas santas, e mais à Virgem Maria Por elas um Padre Nosso, com mais uma Avé Maria. --&-Rezamos mais um Padre Nosso, com mais uma Avé Maria Pelas almas do Purgatório, seja por amor de Deus.”

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Cantar às Cruzes (Martírios)

Cantar às Cruzes (final de cada procissão: Salvé Rainha)

“Pelo sinal da Santa Cruz, livre-nos Deus Nosso Senhor E dos nossos inimigos, em nome do Pai e do Filho E do Espírito Santo Amém, Jesus Maria José

“Rezemos uma Salvé Rainha, à Virgem Nossa Senhora Pelas Almas do Purgatório, seja por amor de Deus.

--&--

O Vosso Sagrado Rosto / Cheio de escarros nojentos Por nossos feios pecados / Senhor Deus tantos tormentos.

(Padre Nosso Rigoroso) Padre Nosso rigoroso / Oh triste desconsoloso. Oh Bom Jesus eu pequei / E foi contra a Vossa vontade. Diz o Autor Rei da verdade / Oh Cristão oh cristalino Olha que não és eterno / E lembra-te que hás-de morrer. Hás-de dar contas a Deus / Do teu bom e mau viver. São os três inimigos d’alma / que andam para nos tentar. Põe os joelhos no chão / Reza bem com devoção Um Pai Nosso e uma Avé Maria / à Senhora da Conceição.

Na Vossa Sagrada Boca / Vinagre e fel amargoso Provou poupar a nossa alma / Do castigo eterno horroroso. Vosso Pescoço Divino / De grossas cordas ligaram De rua em rua com elas / Como réu o arrastaram. Os Vossos Sagrados Ombros / Pesada cruz conduziram Por entre agudíssimas dores / Mais e mais chagas se abriram.

--&-(Martírios) Suportou grandes tormentos / Duros martírios na cruz Morreu para nos salvar / Seja bendito Jesus.

Vossas mãos puras divinas / Pregaram nesse madeiro Delas pendente ficaste / Oh Bom Jesus Deus verdadeiro. O Vosso Santíssimo Peito / Foi cruelmente rasgado Dele correu abundante / Remédio para o pecado.

Quanto por nós padecestes / Oh bom Jesus Salvador Quem é que possa entender / Tantos incensos de amor.

O Vosso Corpo Divino / Ferido todo chagado Horrendo todo nos diz quanto / E quanto é medonho o pecado.

Na Vossa Santa Cabeça / Coroas de espinhos cravaram. Por entre dores incríveis / Fontes de sangue manaram.

Os Vossos Pés Sacro-Santos / Com ferros foram ofendidos Mas foi rasgada a sentença / Contra milhões de perdidos.

Vossos Cabelos Divinos / Foram em sangue ensopados Sangue que veio remir / Os nossos feios pecados.

Ó Salvé Rainha / Mãe de Misericórdia Vida doçura / esperança a nossa Salvé a Vós bradamos / e os degradados Filhos de Eva / a Vós suspiramos Gemendo e chorando / neste vale de lágrimas E depois Senhora / advogada nossa Esses vossos olhos / misericordiosos / a nós volvei Depois deste desterro / nos mostrai Jesus Bendito é o fruto / do vosso ventre Ó Clemente, ó piedosa / piedosa ó doce Ó doce ó sempre / Virgem Maria / rogai por nós Santa Mãe de Deus / pra que sejamos dignos Das promessas de Cristo / para sempre Amém Maria e José / salvai a minh’alma Que ela Vossa é / que ela Vossa é Que ela há-de ser / salvai a minh’alma Quando eu morrer / quando eu morrer Quando acabar / levai a minha alma Para o bom lugar / para o bom lugar Para o Paraíso / salvai a minh’alma Dia de Juízo / dia de Juízo Senhora da Esperança / salvai a minh’alma Bem Aventurança.”

Por merecimentos infinitos / De tão amarga paixão Terno Jesus concedei-nos / Dos nossos crimes perdão.

Os Vossos Sagrados Olhos / Verteram lágrimas ternas Para livrar as nossas almas / Do fogo, penas eternas.

--&-Vossas Santíssimas Faces / Sofreram mil bofetadas Por duros ferros algozes / E escarnecidas pisadas.

“Rezamos mais um Padre Nosso, com mais uma Avé Maria Pela Sagrada Morte e Paixão / de Nosso Senhor Jesus Cristo.”

As letras foram cedidas pela ARDCOB.

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Representação satírica do Serrar a Velha, exibida na revista Ilustração Portuguesa (1924).

Serrar a Velha de personificar a natureza moribunda e fustigado pelo inverno na personagem de uma velha corcovada e cheia de rugas. Do mesmo modo, Teófilo Braga havia chegado à conclusão que a Velha “…hoje é uma entidade vaga, sem sentido, que o povo vai serrar (…) como quem repele para longe as brumas e as neves do inverno.”60 Entretanto, para outros autores, a ênfase deste ritual deve colocada no verbo serrar, uma vez que ele acontecia no preciso momento em que a Quaresma se “partia” ao meio, permitindo uma breve explosão de alegria e ruído num tão vasto período de recolhimento. Sobretudo os mais novos, aguardavam com impaciência o dia em que podiam extravasar toda a sua energia, esquecendo por alguns instantes os pedidos de jejum, penitência e sacrifício recomendados pela Igreja. Em termos formais, verificamos que o ritual podia assumir os mais diversos contornos. Em alguns casos, envolvia o ato de serrar uma boneca de trapos, ou então uma velha feita de palha e espetada num pau. Não sem antes se fazer, claro está, a leitura do respetivo testamento, que era um momento privilegiado para a crítica social.

A curiosa tradição de Serrar a Velha acontece, uma vez mais, durante a época da Quaresma (mais concretamente, na quarta-feira da terceira semana) muito embora, neste caso, o carácter e a inspiração de teor pagãos pareçam visivelmente mais fortes do que qualquer conexão imediata à doutrina cristã. Na verdade, Serrar a Velha conta com muitas e variadas interpretações. Desde logo, pode ser entendida como uma celebração relacionada com o desfecho do inverno e o início da primavera, marcando assim o começo de um novo ciclo na agricultura e o renascimento da natureza. A chegada dos dias mais longos e amenos era uma necessidade vital para quem dependia da generosidade da terra e dos frutos da lavoura. De um modo simbólico, significava também o triunfo da luz e do Bem sobre o poder maligno das trevas, sempre associado à fome, à doença e à morte. Esta ligação entre a palavra velha e o conceito de inverno não resulta de uma interpretação forçada nem meramente subjetiva. No “Auto do Triunfo do Inverno”, escrito no século XVI pela mão de Gil Vicente, o dramaturgo já fazia questão 186

Noutros casos, os grupos de jovens equipavam-se com chocalhos e panelas, latas e latões, de modo a fazer o máximo de barulho possível e importunar as mulheres mais idosas da aldeia. Levavam também pedaços de madeira com que imitavam o ruído de uma serra, sendo que, no meio de tamanha algazarra, ainda conseguiam tempo para entoar melodias feitas para a ocasião, sempre em tom satírico e repletas de subtil malícia. O alvo preferencial seria a mulher mais velha da povoação, especialmente se fosse solteira e capaz de dar luta aos foliões, atirando ovos podres ou impropérios que, invariavelmente, suscitavam o riso entre todos os que assistiam à brincadeira. Um último conjunto de relatos refere que a mocidade, devidamente munida de serrotes, ia percorrer todos os caminhos conhecidos à procura das avós, repetindo a monótona cantilena: “serrar minha avó, que dá ponto sem nó”. No final, alguns dos rapazes vestiam-se com a roupa das idosas e os colegas davam início à cerimónia da serração. Na freguesia de Bodiosa, as cerimónias populares da Serração da Velha perderam largamente o seu ímpeto mobilizador. Apenas as memórias conseguiram sobreviver. Quem nelas participou, recorda o entusiasmo dos mais jovens pela oportunidade que lhes era concedida de atormentar os mais idosos ou escarnecer dos elementos menos estimados da comunidade. Destes, os mais precavidos escusavam-se a sair à rua durante aquele dia, mas nem por isso podiam evitar que os bandos ruidosos lhe parassem diante da porta e soltassem uns quantos gracejos. No final do dia, a atmosfera festiva cessava por completo. Em poucas horas teria início o “Cantar às Cruzes”.

nunca se perca no esquecimento. Em que é que consistia? Depois de reunir o nome de todos os rapazes e raparigas solteiras, havia que os escrever em pequenos pedaços de papel e separar em duas cestas ou bolsas distintas. O passo seguinte consistia em retirar, de forma alternada e aleatória, dois desses nomes, formando assim um “casal”. O processo devia repetir-se até que todos possuíssem um respetivo companheiro, havendo, no final, alguém que ficava incumbido de subir ao ponto mais alto da povoação e anunciar, com a ajuda de um funil, os resultados do sorteio. Tal anúncio era feito durante a noite cerrada, garantindo assim que todos estavam em suas casas e prontos para escutar. Desde esse dia em diante, sempre que um dos moços avistasse o seu par apressava-se a dizer “comadre reza” ou “compadre reza”, tal como se fosse um jogo em que o vencedor seria o primeiro a falar. O momento decisivo desse jogo correspondia ao sábado de Aleluia que, por ser o último dia da brincadeira, despertava nos mais competitivos a vontade de surpreender o companheiro, apanhando-o desprevenido e brindando-o com um derradeiro “reza”. Chegada a Páscoa, os jovens deviam trocar uma prenda entre si, como forma de celebrar o momento. Embora a maioria não atribuísse demasiada importância a esta tradição, restava sempre quem a encarasse como uma oportunidade de encontrar um namorado, havendo ainda hoje quem garanta a pés juntos que alguns casamentos tiveram aqui o seu início.

Desfolhadas Estando perante um conjunto de comunidades com um passado tão arreigadamente agrícola, não foi difícil encontrar referências e testemunhos que mencionassem a tradição das desfolhadas. Quando se aproximava a chegada do Outono (em meados do mês Setembro ou inícios de Outubro) as canas do milho previamente cortadas e devidamente maduras eram colocadas num recinto apropriado, ao ar livre, chamado de eira, onde teria lugar todo o processo da desfolhada. Numa altura em

Compadres e Comadres Continuamos este capítulo com mais uma tradição do período Quaresmal, levando-nos a concluir que, de facto, este intervalo cronológico era o mais próspero em termos de práticas religiosas e de costumes culturais. Como não tem sido realizado nos anos mais recentes, será importante deixar uma referência ao sorteio dos Compadres e das Comadres, garantindo desse modo que o mesmo 187


era expectável encontrar as famosas narrativas de mouras encantadas, talvez com alguns animais lendários pelo meio, e incríveis tesouros escondidos na profundeza das grutas mais secretas. O jejum só seria amenizado com os testemunhos recolhidos em Oliveira de Cima, todos eles mencionando uma estória parca em pormenores mas com um enredo deveras sugestivo. Há muito tempo atrás, numa época obscura e convenientemente indeterminada - como quase sempre acontece nas lendas - existiu um lavrador de tal modo rico e bafejado pela sorte que as suas alfaias agrícolas eram feitas de ouro puro. Por uma razão desconhecida, ou talvez apenas por medo de que as mesmas fossem alvo da inveja de algum vizinho, ele decidiu ocultá-las num lugar inacessível, nunca revelando o seu verdadeiro paradeiro, nem mesmo quando a morte decidiu bater-lhe à porta. Desde então, a cobiça e a curiosidade fizeram com que muitos aventureiros procurassem de forma árdua o tesouro do lavrador, socorrendo-se da única pista que havia ficado gravada na tradição popular. Benilde Marques, uma moradora de Oliveira de Cima com 79 anos, partilha connosco essa pista: “entre Sampaio e Sampaínho, há uma grade de ouro e um cambãozinho”61. Ou então, como outros preferem dizer: “entre Sampaio e Sampaínho, há um cambão e um aradinho”. A diferença entre as frases não é minimamente relevante, uma vez que os elementos principais da lenda mantêm-se consistentes. Fazem a devida referência aos instrumentos agrícolas e avançam com uma hipotética localização, algures a meio caminho entre dois lugares existentes nos arrabaldes da aldeia. Contudo, como nunca foi possível chegar a um consenso sobre os topónimos em causa (permanecendo por esclarecer onde ficam realmente Sampaio e Sampaínho), a imaginação das pessoas não tardou a fazer uma elaborada associação entre a lenda, as duas sepulturas antropomórficas existentes a Oeste da povoação, e o passado de exploração mineira que marcou toda a região. Assim, aquele que quiser triunfar onde todos os outros até agora falharam, deve dirigir-se até às “campas dos mouros” e procurar a entrada de uma antiga e misteriosa mina, que está repleta de tão grandes perigos quanto riquezas no seu interior.

que a mecanização da agricultura estava longe de ser uma realidade, tudo dependia do número de braços disponíveis e do esforço realizado por cada um. Por isso mesmo, era comum assistir-se à reunião de familiares, amigos e vizinhos, misturando homens e mulheres, novos e velhos, num esforço verdadeiramente intercomunitário e intergeracional, indispensável para o sucesso da operação. Era um trabalho duro, repetitivo e desgastante, mas que se tentava aligeirar com a partilha de estórias e anedotas, com música e cantares típicos, e com a promessa de uma merenda bem regada no final de cada turno. Para aumentar o entusiamo e o empenho dos mais jovens, surgiu também o costume de premiar aqueles que descobrissem o milho-rei, isto é, uma daquelas espigas de milho invulgares que se apresentam na cor vermelha. Por entre risos e comentários jocosos, o feliz contemplado ganhava prontamente o direito de abraçar e beijar todos os restantes companheiros, o que lhe permitia um contacto físico mais próximo e pouco habitual com os membros do sexo oposto. Mesmo para os namorados, esta oportunidade de beijar publicamente a face do(a) amado(a) não era algo que quisessem desperdiçar. Por esse motivo, consta que alguns moços mais ardilosos tinham o cuidado de “fabricar” a sua própria sorte, levando já uma espiga de casa, convenientemente escondida no bolso. Folias à parte, as desfolhadas constituíram durante muito tempo uma atividade agrícola fundamental e onde a participação de toda a comunidade se fazia sentir de forma evidente. Terminada a recolha das espigas, uma parte seria debulhada, a outra era transportada e armazenada nos espigueiros ou canastros. Por vários sítios da freguesia, ainda é possível admirar um conjunto apreciável desses espigueiros, erguendo-se como lembrança de um passado não muito distante.

Lendas De uma forma talvez um pouco inesperada, constatou-se a quase total ausência de lendas no seio da memória coletiva dos habitantes. Sendo o povoamento da região tão antigo,

Eira e espigueiro, no Bairro do Penedo. 188

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O património integrado e móvel

imputar diferença ao espaço e transpor para o mundo terreno a prefiguração do paraíso, do cosmos divino, veiculando os princípios doutrinários e aproximando os fiéis de Deus. Nas constituições sinodais de Viseu é sublinhada a importância dos fiéis frequentarem e rezarem nas igrejas e capelas, por ser um local especialmente sagrado: “quer Deos, que o louvemos juntos nos seus Templos com ânimos concordes, porque assi lhe he mais aceito o sacrifício de nossas oraçoens, como o tinha dito a Salamam, prometendo-lhe de ouvir os que lhe sacrificassem no seu templo (…) que se ouvera perfeita concórdia entre nós, naõ tivéramos outras casas mais que os Templos” (CONSTITUIÇÕES, 1684: 194). Todo este património corresponde à materialização da fé dos fiéis, que o procuravam dotar de objetos e ornatos com valor simbólico e estético. Desta forma demonstravam o seu amor a Deus, a gratidão pelas graças concedidas e o arrependimento pelos desvios cometidos. A oração era, assim, complementada pela vertente material, como forma de perpetuarem a fé individual e coletiva.

A generalidade dos espaços de celebração da freguesia foi objeto de intervenções ao longo dos séculos, algumas das quais inadequadas, que alteraram de forma significativa a sua fisionomia primitiva. No que concerne ao património móvel e integrado, observamos que a talha, a pintura e a imaginária, na quase totalidade dos espaços religiosos, foram transformadas de forma significativa. Não obstante a análise que apresentamos ser segmentada por tipologias artísticas, todo este universo patrimonial tem que ser entendido como um todo, tanto na sua orgânica espacial, onde cada elemento cumpre uma função e tem um simbolismo, como na sua relação de beleza e de espiritualidade com os fiéis, as comunidades que ao longo dos séculos deram forma a este património. As peças assumem um sentido pleno, se integradas numa ambiência, que é única: os retábulos, distribuídos no espaço, a imaginária com os santos pelos quais há particular devoção, articulam-se com a riqueza da paramentaria, cujo brilho e cores se encontravam em harmonia com o calendário religioso, com a exuberância e o brilho das peças de ourivesaria. Tudo se conjuga para

Capela do Espírito Santo

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A arte da talha

A

ralelo com o que se verificou por todo o território nacional, onde esta vertente artística assumiu excecional desenvolvimento e originalidade entre os séculos XV e XIX, convertendo-se num recurso indispensável nas igrejas e capelas. No conjunto da freguesia, na atualidade, observamos a ausência de talha nos púlpitos, abóbadas, sanefas, etc., circunscrevendo-se a sua utilização essencialmente aos retábulos e castiçais. Contudo, ressalvamos que muito provavelmente existiram caixas de púlpito e sanefas de talha, que terão sido removidas, como podemos observar na capela de São João Batista de Pereira onde subsiste a base de granito do púlpito. Para além do impacto visual e cenográfico, as estruturas retabulares codificam estruturalmente e decorativamente uma linguagem simbólica e alegórica, que veiculava o elenco de princípios doutrinários que se pretendiam divulgar e afirmar, cuja exegese por parte dos crentes era potenciada pelas palavras, cores e gestos dos cerimoniais. Assim, os retábulos ultrapassam uma função meramente decorativa ou cenográfica e assumem um papel ativo na interação com o observador, unindo a fruição estética com a vivência espiritual dos fiéis, induzindo-os a abraçar a fé. A talha comportava “motivações visuais e espirituais” (SALTEIRO 1989: 405) que capitalizava as emoções dos fiéis, aproximando-os afetivamente de Deus.

A leitura da arquitetura religiosa da freguesia consubstancia o domínio de edifícios que, não obstante terem sido objeto de inúmeras transformações ao longo dos séculos que dificultam a sua análise, se caracterizam por fachadas despretensiosas, carentes de ornatos e de formas dinamizadoras, predominando os volumes simples e o despojamento. A componente decorativa concentra-se nos interiores, através do recurso às composições retabulares em talha dourada e policromada e à imaginária, que contribuem para configurar o contraste entre o exterior e o interior, evidenciando simbolicamente a oposição entre os dois espaços: o sagrado no interior e o profano no exterior. Trata-se de uma confrontação catequética, pois no interior os fiéis sentiam com maior fervor a sacralidade do espaço, a sensação de terem idealmente acesso ao Céu na terra. No âmbito da renovação e da metamorfose empreendida nos espaços religiosos de Bodiosa, ao longo dos séculos, as estruturas de talha assumiram um claro protagonismo, pelas suas potencialidades em correlação com a mentalidade e a sensibilidade das populações, as quais queriam que os espaços de celebração, ainda que adequados à penitência e recolhimento, desfrutassem de ambientes cénicos magnificentes. Este recurso á talha para valorizar o interior dos espaços religiosos, em particular a zona dos altares, tem pa-

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O brilho e a cor do ouro que revestia a madeira entalhada das composições de madeira desempenhavam um papel determinante, não só pelo seu impacto visual, mas especialmente pelo seu simbolismo, pois o ouro que reveste as formas reportava-as para o espaço divino, transcendental. O ouro simbolizava a luz de uma nova vida, imprimia essência divina ao espaço e propiciava aos fiéis a experiência de uma antevisão do reino prometido, representando uma rutura com a existência resgatada pelo sofrimento e pela dor. Esta vivência no e do sagrado estimulava a piedade e solidificava a espiritualidade, encaminhando os crentes para a procura da perfeição no seu quotidiano. Paralelamente, não podemos descurar a importância que os retábulos assumem enquanto espaço de colocação dos santos, conferindo-lhes maior dignidade e honra, bem como potencializando o seu impacto visual sobre os observadores. Inseridas em composições retabulares ao invés das simples peanhas, fica reforçada a eficácia da comunicação dos santos, bem como o sentido da sua ação intercessora entre Deus e os fiéis, que procuravam neles conforto para as suas expectativas espirituais e materiais e contemplavam os santos como exemplos para uma conduta edificante. Os retábulos constituem o “palco” para os eleitos da devoção de cada comunidade, os fiéis, posicionados num plano inferior, tinham que elevar o seu olhar para o alto, direcionado para o céu. A eficácia cenográfica deste enquadramento de talha dourada e policromada determinou a proliferação de retábulos colaterais e laterais à medida que se iam ampliando as devoções, sobretudo nas igrejas matrizes, como testemunha a desta paróquia. O retábulo, enquanto elemento valorativo do ponto primacial do espaço litúrgico, o altar do sacrifício, constitui um complemento essencial ao cerimonial religioso: na maioria dos retábulos-mores integra-se o sacrário com a Reserva Eucarística. Para além da sua estrutura e ornamentação codificarem toda uma linguagem simbólica que “ilumina” as palavras e os gestos do sacerdote, devemos considerar a sua articulação com outros componentes essenciais às celebrações, nomeadamente os paramentos e as alfaias litúrgicas, que abordaremos nesta obra.

Talha dourada e policromada, pormenor 194

Igreja de São Miguel Arcanjo

que não respeitaram as autenticidades material, estética e histórica das obras. A composição de talha mais antiga da paróquia é o retábulo da capela-mor da capela do Espírito Santo de Bodiosa-a-Nova, onde se encontra instalada a irmandade com a mesma invocação. Trata-se de um retábulo de sintaxe maneirista, que deverá ter sido executado pelo “maginário e escultor” Francisco Lopes de Matos, familiar do Santo Oficio, natural da freguesia de Orgens, morador em Viseu, na rua do Soar, que “foi um dos grandes mestres viseenses do século XVII, na arte de trabalhar a madeira” (ALVES, 2001: 199 ). Este mestre executou o retábulo-mor do convento de São Francisco de Orgens e é-lhe atribuído o retábulo do Sagrado Coração de Jesus, que atualmente ocupa o topo do transepto, lado do Evangelho, da Catedral de Viseu. A identificação da autoria do retábulo do Espirito Santo encontra-se registada num documento do processo de habilitação do mestre entalhador

O universo dos retábulos que subsistem nos vários espaços religiosos da paróquia de Bodiosa apenas permitem uma abordagem parcelar em relação à expressão que acreditamos que esta vertente artística terá alcançado. Muitos retábulos terão desaparecido, nomeadamente os da primitiva igreja matriz, pois o retábulo constituía uma das peças obrigatórias para que os espaços tivessem as condições necessárias para serem benzidos e neles se poder celebrar missa. De acordo com as Constituições Sinodais de 1684, entre os ornamentos para o culto divino considerados necessários nas igrejas e capelas, encontra-se o “retabulo pintado com pintura, ou Imagens de vulto decentes, e honestamente pintadas e vestidas” (CONSTITUIÇÕES, 1684: 125). Paralelamente, para além da talha desaparecida, os exemplares que subsistem, com exceção dos pertencentes à capela do Espírito Santo de Bodiosa-a-Nova, encontram-se profundamente adulterados na sequência de intervenções 195


Retábulo-mor, capela do Espírito Santo

Corpo lateral, retábulo-mor, capela do Espírito Santo

três painéis retangulares, ornados, os das extremidades, com cartelas circulares que envolvem florões, e o central com ramos serpentiformes dispostos simetricamente. No corpo central abre-se o nicho com remate curvo, onde se eleva a imagem da Santíssima Trindade, assente em peanha retangular. Nos corpos laterais os intercolúnios comportam painéis retangulares com moldura entalhada, num formato subsidiário das estruturas com pinturas. Podemos equacionar a possibilidade de estes espaços terem primitivamente incorporado composições pictóricas. Atualmente têm apostas peanhas de perfil curvo camufladas por folhas, que sustentam as imagens de São Lourenço e de São Brás. As quatro colunas suportam o entablamento, onde se perfilam ramos serpentiformes e duas cabeças aladas, uma em cada ilharga. O remate ostenta a característica planta maneirista, com uma edícula central que incorpora a pintura do Espírito Santo, sobrepujada por um frontão curvo, com

para familiar do Santo Oficio, no qual, de acordo com o depoimento de duas testemunhas, ele teria executado várias obras de carpintaria no convento franciscano de Santo António de Viseu e um “retábulo do Espírito Santo e outras obras” (ALVES, 2001: 200) em Bodiosa-a-Nova. Assim, esta obra terá sido realizada entre 1662 e 1680. O facto de os seus pais e avós62 serem naturais de duas localidades da freguesia de Bodiosa reforça a possibilidade de esta obra ter sido entalhada por este mestre. O retábulo subdivide-se em três corpos verticais, definidos pelas colunas coríntias, cujo terço inferior do fuste se encontra lavrado com ramagens de acantos de média volumetria, formando composições distintas nas colunas das extremidades em relação às centrais. Os restantes dois terços do fuste apresentam sulcos verticais. As colunas assentam sobre mísulas de perfil curvo, compostas por grandes folhas de acanto com as extremidades recortadas, que delimitam 196

Espírito Santo, retábulo-mor, capela do Espírito Santo

Frontal, retábulo-mor, capela do Espírito Santo

imitar os tecidos, foi recorrente na época, por se tratar de um recurso mais económico do que a aquisição de frontais em pano das diferentes cores, que para além de dispendiosos se danificavam muito facilmente. Os retábulos colaterais desta capela, que se erguem junto ao arco-cruzeiro, são ligeiramente posteriores ao retábulo-mor, devendo ter sido executados por volta de 1690. Estilisticamente inserem-se no protobarroco, são exemplares de transição, nos quais podemos identificar já alguns dos novos carateres de dinamização estética do barroco, mas ainda interligados com formas de matriz maneirista. Na diocese de Viseu é significativa a quantidade de espécimes retabulísticos que patenteiam este comprometimento com a tradição, a par da introdução de alguns cânones inovadores, evidenciando a perenidade que o formulário maneirista assumiu na época. Nestes dois exemplares, denota-se o contraste entre o cor-

moldura denticulada, e ladeada por aletas e dois pináculos de corpo e remate esféricos. A pintura da edícula, de caráter ingénuo e popular, apresenta uma composição figurativa muito simples, sobre um fundo de tons castanhos, no qual se abre uma nuvem de luz que circunda a pomba do Espírito Santo, com as asas abertas e lançando as línguas de fogo, em conformidade com a passagem bíblica: “Viram então aparecer umas línguas, à maneira de fogo, que se iam dividindo, e poisou uma sobre cada um deles. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar outras línguas, conforme o Espírito lhes inspirava que se exprimissem.” (Atos 2, 3-4) O frontal de altar apresenta uma pintura formada por ramagens, simulando tecidos de damasco. Apresenta duas cores: na cercadura a cor verde, ao centro uma tonalidade entre o roxo e o castanho. Na parte superior, a ligação entre as duas composições, é delimitada por uma pintura que simula as franjas douradas. Esta tipologia de frontal, com pintura a 197


Retábulos colaterais, capela do Espírito Santo

Pinturas, retábulos colaterais, capela do Espírito Santo

ra curva, enformada por círculos em cadeia, que circundam flores. O entablamento, lavrado com folhas dispostas em círculo e cabeças aladas, demarca o corpo do remate. Este repete o esquema maneirista arcaizante: um painel pintado ao centro, flanqueado por aletas e sobrepujado por um frontão triangular. Nas pinturas, de cariz popular, figuram a Pietá (lado do Evangelho) e Santo Antão (lado da Epístola). Na composição da Pietá, sobre um fundo cinzento e junto à base da cruz, encontra-se Nossa Senhora com Cristo morto no regaço. Os tons escuros das vestes da Mãe contrastam com o corpo nu de Cristo, conferindo-lhe maior protagonismo, não obstante a manifesta desproporção entre as duas figuras, bem como a ausência de perspetiva na composição. A mesma simplicidade caracteriza o painel da pintura de Santo Antão, legendado na parte superior com a inscrição identitária do santo: S. ANTAM. O eremita é figurado com o

po, mais atualizado, sem a tradicional divisão em três registos verticais, e o ático, profundamente anacrónico. O enquadramento do corpo processa-se através das características colunas torsas, pseudosalomónicas como são características da primeira fase do barroco com o denominado estilo nacional, assentes em mísulas com folhas de acanto e com as espiras enobrecidas com os motivos distintivos do barroco nacional: pássaros, pâmpanos e meninos. Em substituição da segunda coluna apresentam painéis retangulares, lavrados com grandes ramagens de folhas de acanto enroladas, com volumetria alteada, de cujas extremidades se precipitam cabeças humanas, com uma fisionomia similar aos rostos dos querubins barrocos. Ao centro, sobre uma peanha, eleva-se a imagem correspondente à invocação do altar, São Macário no do lado do Evangelho, Santa Bárbara no da Epístola. A emoldurar os santos perfila-se uma moldu-

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Frontal, retábulos colaterais, capela do Espírito Santo

duas cores que assinalámos no frontal do retábulo-mor, estes configuram as quatro cores: o verde, o vermelho, o bege e o castanho. O retábulo da capela de Santa Eufémia de Bodiosa-a-Velha apresenta uma planimetria similar aos dois exemplares protobarrocos da capela do Espírito Santo, devendo ter sido executado antes destes, pois apresenta-se muito mais planiforme, os ornatos têm pouca volumetria e são mais dispersos e em número reduzido. Nesta composição ainda persiste o recurso à pintura, nas ilhargas figuram São José e Nossa Senhora com o Menino e na edícula do remate representa-se Santa Luzia. No nicho central enquadra-se a escultura da padroeira, a mártir Santa Eufémia. Os componentes com maior decorativismo e dinâmica formal são as pilastras de fuste ondulado que delimitam as partes laterais e a moldura do nicho central, corporizada por folhas. Contudo, a profun-

hábito da ordem dos Antoninos, sustenta um singelo báculo na mão direita, enquanto na esquerda possui o livro da Regra de Santo Antão, aberto. Santo Antão é o padroeiro das doenças contagiosas e das curas milagrosas, sendo frequente o culto a este santo na Diocese, nomeadamente em zonas rurais como era Bodiosa-a-Nova. Os frontais destes dois retábulos colaterais seguem a mesma tipologia do pertencente ao retábulo-mor, sendo estes mais elaborados na composição pictórica que reproduz em padrão vegetalista os tecidos de damasco, amplamente utilizados na produção de paramentos. Com formato retangular, os frontais são compartimentados em cinco faixas verticais, delimitadas por uma fita dourada, simulando o galão das peças de tecido, lavrada com ornatos triangulares concêntricos. Na parte superior, a divisão horizontal decorre de uma franja, bastante elaborada, também dourada. Ao invés das

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Retábulo, capela de Santa Eufémia

Retábulo, capela de N.ª Sr.ª das Candeias

Retábulo, capela de São João Batista

Retábulo, capela de Santa Marinha

da transformação que este exemplar sofreu, tanto ao nível da talha como das pinturas, inviabiliza uma análise estilística adequada. Não obstante o ecletismo do retábulo da capela de Nossa Senhora das Candeias, sita na povoação de Oliveira de Cima, observamos que a moldura de fundo, de recorte curvo, ostenta a característica decoração barroca, composta por acantos curvos e duas volumosas cabeças aladas. O formato desta moldura leva-nos a equacionar a possibilidade de primitivamente enquadrar uma composição pictórica, que terá sido tapada ou adulterada pela pintura atual. Nos finais do século XVII as novas propostas compositivas e decorativas dominam plenamente, abrindo-se o ciclo do barroco. De acordo com a taxonomia de Robert C. Smith, a primeira fase do barroco assume características singulares em Portugal, pelo que a designou de fase do barroco nacional, a qual dominou até 1720/25 (SMITH, 1950:17).

Os retábulos das capelas de São João Batista, em Pereiras, e de Santa Marinha, em Silgueiros, também se encontram profundamente transformados na sequência de restauros. Estilisticamente inserem-se na primeira fase do barroco, no estilo nacional. Ambos possuem colunas pseudosalomónicas envolvidas por ramos de videira e cachos de uvas, que se encontram a ser debicados pelas aves de fénix, simbolizando o caminho para a eternidade, o renascer para uma nova vida que os cristãos desejam alcançar. Nos remates dispõem-se os arcos de volta perfeita, concêntricos, dos quais o mais exterior prolonga a forma e a decoração das colunas. No retábulo de Pereiras as ilhargas são largas e possuem peanhas, enformadas por flores e folhas, para a colocação de santos, o Sagrado Coração de Maria à esquerda e o Sagrado Coração de Jesus à direita. Na peanha central, por entre as folhas sobressai um atlante. Nesta eleva-se a imagem do padroeiro, São João Batista. No fecho do retábulo dispõe-se

uma figura feminina, cujos membros se diluem em folhas. A banqueta deste retábulo é posterior, com a forma de urna amplamente divulgada a partir da segunda metade de setecentos. As ilhargas do retábulo de Silgueiros são mais estreitas, comportam apenas uma pilastra seguida de uma coluna, com o fuste guarnecido por imbricados de folhas e pássaros a debicar flores. Esta disposição motiva um alargamento do espaço central, onde sobre a peanha repousa a escultura de Santa Marinha. Os dois arcos do remate são unidos por três peças dispostas de forma radial, formadas por folhas e cabeças aladas, remetendo-nos simbolicamente para a luz da vida que domina o reino do céu. Observamos que na freguesia não se encontra nenhuma composição retabular dos estilos barroco joanino e do rococó, sendo provável que tenham sido removidas ou substituídas por outras. São os exemplares enformados pela

sintaxe neoclássica que predominam na freguesia. A talha neoclássica começa a dominar a partir de finais do século XVIII e, em algumas zonas, particularmente as mais afastadas dos grandes centros de produção artística, manteve-se até à primeira metade do século XX, como testemunham os retábulos da igreja de São Miguel, matriz da freguesia. Esta fase corresponde ao período de decadência da arte da talha, em correlação com a escassez de recursos para a compra de ouro e com a adoção de esquemas compositivos e da gramática decorativa influenciada pela arte clássica. A igreja Matriz de Bodiosa incorpora o melhor conjunto de talha neoclássica da freguesia, ainda que também se encontre muito transformado, particularmente no que concerne à policromia, devido à intervenção de restauro realizada há pouco mais de uma década. A execução destes retábulos ocorreu na primeira década do século XX, ainda que em anos diferentes, devendo o retábulo-mor ter sido o primeiro

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a ser executado, seguindo-se os colaterais e os laterais. Verificamos, assim, que não foram reutilizados os retábulos da antiga igreja paroquial, que deveriam ser três, conforme referiu o Pe. Francisco de Mesquita Lemos em 1758: “Tem três altares, o altar-mayor que tem a imagem do mesmo Sam Miguel, o altar para a parte do Evangelho que tem a imagem do Menino Jhezu, o altar para a parte da Epístolla que tem a imagem de Nossa Senhora do Rozário” (MEMÓRIAS PAROQUIAIS, 1758: 930). Na segunda metade do século XVIII tinham decorrido obras na igreja, nomeadamente no retábulo-mor, pelo que foi necessário pedir nova licença para nele se celebrar em 1769/70: “Da licença para se dizer missa no altar-mor da igreja de Bodiosa – 2 400 [réis]” (ALVES, 1968: 45). Destas estruturas retabulares não subsiste qualquer vestígio. As três estruturas retabulares, da capela-mor e do arco-cruzeiro, seguem o mesmo esquema organizativo: colunas nos flancos ornadas com medalhões e grinaldas de flores e folhas, sobrepujadas por jarrões com ramos de flores. No retábulo-mor as colunas dispõem-se de forma escalonada, reforçando a orientação do olhar dos fiéis para o espaço central, onde se abre uma grande tribuna com o trono piramidal de cinco degraus, em cujo topo se posiciona a imagem de São Miguel Arcanjo. Na base do trono encontra-se o sacrário, com porta retangular lavrada com os símbolos da eucaristia: duas espigas cruzadas e o cálice encimado pela hóstia, circundada por raios de luz, na qual se inscreve uma cruz. A gramática decorativa, com baixa volumetria e disposta de forma comedida, é a característica do neoclassicismo: palmas, cordas de flores (predominado as rosas), fitas. As superfícies encontram-se marmoreadas, confinando-se o ouro às molduras e motivos decorativos. No entablamento perfilam-se florões, de formato distinto, que não são característicos deste período. O seu formato denuncia terem sido executados no período barroco para os ângulos das molduras de um teto de caixotões, pelo que se pode equacionar ter havido a reutilização de alguns ornatos da igreja anterior. Este aspeto é corroborado pela existência no tardoz do retábulo de algumas tábuas sem policromia, mas entalhadas com motivos característicos do rococó, e de outras com restos de policromia.

Retábulo-mor, igreja de São Miguel Arcanjo

Retábulos colaterais, igreja de São Miguel Arcanjo

O centro do remate ostenta um medalhão encimado por uma coroa, identificativa do estatuto da igreja enquanto padroado real. Os retábulos dos flancos do arco-cruzeiro assentam em mesas de altar com formato em urna, lavradas com composições de laços, palmas e enrolamentos, que circundam um medalhão de pérolas no qual se inserem três setas unidas por uma fita e uma flor. No friso que faz a separação da mesa de altar do arranque do retábulo perfila-se uma fita entrelaçada que ladeia uma inscrição alusiva à data da sua execução, revelando que não obstante serem gémeos foram concluídos em anos diferentes: 19 D.R.C. 03, no do lado da Epístola; ANNO de 1906, no retábulo do Evangelho. As colunas assentam em pedestais quadrangulares guarnecidos com albarradas. Na base do nicho central eleva-se o sacrário, cuja porta apresenta os símbolos da eucaristia

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com um coração chamejante atravessado por uma espada e rodeado por raios de luz. As estruturas retabulares laterais elevam-se nas paredes do corpo da igreja, muito próximos dos colaterais, numa articulação pouco comum nas igrejas congéneres. São mais baixos e planiformes, mas repetem a mesma estruturação, diferenciando-se essencialmente por não possuírem sacrário e colunas, que foram substituídas por pilastras ornadas com grinaldas de flores. No friso junto à mesa de altar também ostentam a data de execução: R.P.J.M. 1909, no do lado do Evangelho; D.R.M.A 1909, no do lado da Epístola. Esta colocação da data de execução num friso e de forma tão evidenciada não é usual na retabulística portuguesa. Paralelamente, assinalamos a invulgaridade de em três dos retábulos a

(cálice, hóstia radiante com a cruz, as uvas e a espiga), com um tratamento mais plástico que o correspondente do retábulo-mor. O remate do sacrário apresenta pináculos e a característica meia cúpula de escamas. Junto às colunas posicionam-se peanhas que sustentam as imagens de Santa Bárbara e Santo António no retábulo do lado do Evangelho; São José (em 2001 esta peanha sustentava a escultura de São Cristóvão) e São Pedro Apóstolo no do lado da Epístola. No nicho central figuram as esculturas de Nossa Senhora do Rosário e de Nossa Senhora de Fátima. Observamos, assim, que se mantém a invocação referida nas Memórias Paroquiais de 1758 num dos altares, enquanto a do outro, que era do Menino Jesus, foi alterada. O remate, em forma de frontão contracurvado, ostenta um medalhão

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Retábulos laterais, igreja de São Miguel Arcanjo

Sacrário, retábulo colateral, igreja de São Miguel Arcanjo

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nos remete para o neoclassicismo, uma análise mais detalhada indicia a junção de elementos de três períodos: - no núcleo central observamos a presença de elementos de linguagem maneirista, nomeadamente as colunas com o terço inferior lavrado com ornatos vegetalistas de baixa volumetria e cabeças de anjo; a moldura retangular dourada do nicho, que primitivamente deveria delimitar uma composição pictórica; o remate em edícula, preenchida com um relevo, encimada por um frontão curvo e flanqueada por aletas; - o friso que circunda a mesa de altar é composto por ornatos muito volumosos (folhas de acanto, enrolamentos e uma concha) característicos da talha barroca joanina; - o sacrário, os painéis e pedestais que o flanqueiam, as ilhargas e o remate em forma de frontão contracurvado inserem-se na sintaxe neoclássica.

data ser acompanhada por iniciais, que não conseguimos ligar a qualquer nome, podendo tratar-se do nome do entalhador ou de alguém que esteve associado à encomenda dos retábulos. Estes altares enquadram as imagens de Nossa Senhora do Carmo e de Nossa Senhora da Conceição. Antes da intervenção de restauro encontravam-se todos pintados de branco, evidenciando que a escassez de recursos determinou que não se procedesse à policromia e douramento. Estes retábulos patenteiam o abandono do aparato e da exuberância decorativa que era apanágio dos estilos anteriores, apresentando uma simplicidade e limpidez aos níveis estrutural e ornamental. A leitura do retábulo da capela de Nossa Senhora da Graça, a Velha, sita na povoação de Travanca, suscita-nos algumas dúvidas no que concerne à cronologia e estilo. Se no global 205


Relevo, capela de Nossa Senhora da Graça, a Velha

Retábulo, capela de Nossa Senhora da Graça, a Velha

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Sacrário, capela do Espírito Santo

Castiçais, igreja de São Miguel Arcanjo

de flores e na porta, retangular, um simbólico ramo de espigas e uvas (o Pão e o Vinho), cingido por um laço. No alinhamento das pilastras dispõem-se fogaréus. Nas capelas de Nossa Senhora da Piedade, em Oliveira de Baixo, e de Nossa Senhora da Luz, em Travanca, não obstante serem construções antigas, não existem estruturas retabulares de talha, foram substituídas por simples nichos de pedra, na primeira, e de madeira, na segunda. A atual capela de Santa Cristina, benzida em 1990, sita em Queirela, não apresenta qualquer componente de talha, mas na construção primitiva, já referida nas Memórias Paroquiais de 1758, deveria possuir o respetivo retábulo. Os retábulos eram complementados por banquetas, constituídas por castiçais de madeira entalhada, sempre em número par, e um crucifixo. Nas várias capelas desta freguesia encontram-se diversos exemplares de castiçais, na sua maioria executados no século XIX, cuja morfologia não apresenta cambiantes significativas: possuem bases circulares com molduras de anéis e alteadas ao centro, pés em forma de balaústres com nó, anéis de folhas e remate em forma de corola de folhas e arandela de latão.

Esta miscigenação de componentes sugere-nos que antes deste retábulo terão existido na capela estruturas de talha maneirista e barroca, que foram desmanteladas, reutilizando-se alguns dos elementos para a estruturação de um novo retábulo. Nos componentes neoclássicos deste retábulo observamos uma grande semelhança na linguagem e na forma com os retábulos colaterais da igreja Matriz, devendo ter sido executados pelo mesmo entalhador. O relevo da edícula representa a iconografia da Pregação de Santo António aos peixes: o santo franciscano, com o livro aberto na mão e o braço elevado, faz o sermão perante inúmeros peixes, com as cabeças erguidas, que ao contrário dos hereges, o ouviam com atenção. Ao fundo, alguns apontamentos paisagísticos como as árvores e a ponte complementam o episódio da vida de Santo António. Na capela do Espírito Santo de Bodiosa-a-Nova também se encontra uma peça de talha neoclássica, o sacrário. Em forma de pequeno templo, com o remate em cúpula, lateralmente possui finas pilastras decoradas com grinaldas 207


Imaginária

A

algumas das esculturas que encontramos na igreja e nas capelas da paróquia de Bodiosa. Assim, na constituição V, do Livro II (CONSTITUIÇÕES, 1684: 124), são especificados os carateres que as imagens destinadas às igrejas e capelas deviam apresentar, sendo sublinhado o seu valor catequético e decoro moral: “as que ouver sejam tam convenientes, que digam com os mysterios, vida, e milagres dos Santos, que representam; e assi na honestidade do rosto, proporçam do corpo, e no ornato dos vestidos sejam exculpidas, e pintadas com tanta honestidade, que movam a lhe ter a devaçam que convem. (…) e feyta, ou esculpida a dita Imagem, nam será posta na Igreja, nem em outro lugar publico, sob pena de dous mil reis, sem primeiro ser vista por nos ou por nosso Provisor, Visitador, ou Parocho”. O inventário do património móvel desta paróquia, que se encontra em fase de execução, permite-nos aferir a existência de um número significativo de esculturas, de diferentes períodos, com interesse artístico, ainda que algumas delas tenham sido objeto de intervenções de restauro pouco criteriosas. Para além da intervenção dos sacerdotes e comissões paroquiais no processo de encomenda de imagens, vários exemplares correspondem a iniciativas individuais. Na Diocese de Viseu é muito representativo o universo das esculturas de calcário, algumas das quais terão sido produzidas nas oficinas de Coimbra, enquanto para outras terão

ssociadas às estruturas retabulares estão as imagens dos santos que são objeto de particular devoção nas comunidades da paróquia de Bodiosa. Atualmente, muitas das esculturas encontram-se dispostas em peanhas suspensas nas paredes laterais dos espaços religiosos, ou nas sacristias e outras dependências. Nalguns casos, as imagens antigas foram substituídas por exemplares mais recentes da mesma invocação, em outros procedeu-se à introdução de novos eleitos, nomeadamente Nossa Senhora de Fátima. As esculturas constituem um testemunho do entendimento devocional e religioso das populações desta freguesia ao longo dos séculos e refletem a conformidade com a importância atribuída pela Igreja ao culto dos santos, de Nossa Senhora e de Cristo, recordando a sua ação mediadora entre os homens e Deus, particularmente a partir do Concílio de Trento (1545-63), como estabeleciam as Constituições Sinodais da Diocese de Viseu (CONSTITUIÇÕES, 1684: 4): “instruaõ aos Fieis Christãos, ensinando-lhes, que os Santos, que reynão com Christo em o Céo, podem, e devem invocar em suas necessidades na terra, e que he cousa proveitosa pedir-lhes, e toma-los por intercessores, no que desejão alcançar de Deos”. Não obstante a valorização do culto dos santos, a encomenda e colocação das imagens nas igrejas obedecia a regras muito exigentes, que justificam a qualidade e a beleza de

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N.ª Sr.ª das Candeias

São Lourenço

Santa Marinha

ostenta um manto, que cobre os ombros e desce em pregas frontais em V, assimétricas. Sobre a cabeça ostenta uma coroa aberta. Os rostos da Virgem e do Menino são serenos, mas sem a natural expressão de afetividade entre mãe e filho. Corporalmente há a sugestão de movimento através do ligeiro contraposto. A policromia e o decorativismo das vestes são posteriores. No conjunto evidencia-se o tratamento simplificado dos volumes e a desproporção do corpo. A escultura do mártir São Lourenço, pertencente à capela do Espírito Santo, remete-nos para uma cronologia dos finais do século XV, inícios do XVI. Com a cabeça tonsurada, tem alguma expressividade de medo reforçada pela assimetria dos olhos. Ostenta os elementos regulares nas suas representações: sobre a túnica a dalmática de diácono, o Livro dos Evangelhos, cuja guarda compete aos diáconos; e a grelha, de dimensões consideráveis, em que foi torturado. A rigidez das vestes e do rosto é reforçada pela frontalidade do corpo e da grelha.

vindo blocos de calcário, na maioria das pedreiras de Ançã e de Portunhos, que foram trabalhados por artistas locais. Na paróquia de Bodiosa encontramos três esculturas de pedra de calcário, dos séculos XV e XVI, ilustrativas da importância que a utilização deste material assumiu na região nesse período. São exemplares anónimos, que correspondem a processos de encomenda que se desenvolveram no quadro de oficinas que repetiram modelos, não só no que concerne aos aspetos formais, mas também no que refere à expressividade, aos gestos e atributos. A escultura de Nossa Senhora das Candeias (c. 1450-1475), da capela de Oliveira de Cima, repete um modelo iconográfico que foi recorrente nos séculos XV e XVI: a Virgem segura com o braço esquerdo o Menino, que tem nas mãos o livro aberto, o símbolo da Palavra de Deus que orientará a sua caminhada; na mão oposta ergue o fruto, eventualmente uma representação simplificada da romã, símbolo da fertilidade e da universalidade da Igreja. Sobre a túnica de decote redondo

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Cristo, marfim

com rosto masculino, veste um hábito, que foi desvirtuado pela policromia, cuja túnica se encontra cingida por um cordão franciscano, revelando que o escultor introduziu um elemento extemporâneo. O menino deitado aos pés identifica a criança que acolheu, não obstante saber ser impossível a paternidade que lhe era imputada. A palma, símbolo dos mártires, origina algumas dúvidas, mas pode evocar os sacrifícios que viveu para manter em segredo a verdadeira identidade e para aceitar a falsa acusação de que foi objeto. Formalmente trata-se de uma escultura sem expressividade, frontal, com rigidez na postura e vestes. Na cabeça tem um resplendor em meia-lua, com os raios assimétricos, na sua maioria cortados, que é posterior, do século XVIII. A estatuária de madeira, em quantidade significativa, constitui um núcleo muito representativo, sendo a maioria dos exemplares dos séculos XVII a XIX, testemunhando que as orientações de estímulo às devoções para com os “eleitos” de Deus se traduziram num aumento do número de imagens

A escultura de Santa Marinha é posterior, provavelmente terá sido executada nos inícios do século XVII. Trata-se de uma representação que suscita incertezas, tanto pelas características fisionómicas como pelos atributos e vestes. Contudo, estes aspetos têm de ser enquadrados nas informações relativas à vida de Santa Marinha da Bitínia (Ásia Menor), que viveu entre os séculos V e VI: uma jovem órfã que o pai disfarçou de rapaz para que pudesse entrar com ele num mosteiro masculino, onde ficou conhecida por Frei Marino; posteriormente, como monge, foi acusada de ter engravidado uma jovem da aldeia e, para não denunciar a sua verdadeira identidade, aceitou a acusação e submeteu-se à expulsão do mosteiro, acolheu a criança, de nome Fortunato, como seu verdadeiro filho, vivendo uma vida de penitência e a mortificação, alimentando-se das esmolas que lhe davam. Terá regressado ao mosteiro e só quando morreu foi descoberta a sua verdadeira identidade, obtendo o nome de Santa Marinha. Assim, esta escultura figura-nos a santa

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Crucifixos

N.ª S.ª do Leite

paços religiosos. Entre as esculturas de maiores dimensões destacamos o exemplar da igreja Matriz, que se enquadra na tipologia específica das imagens articuladas, neste caso concreto ao nível dos ombros, possibilitando a sua utilização como crucificado e como morto, em conformidade com as celebrações. Trata-se de uma obra do século XVII, onde no corpo nu de Cristo, que enverga apenas o cendal, se dispõem inúmeras chagas com escorrências de sangue, que colocam em evidência o sofrimento que lhe foi infligido. É sobretudo ao nível das cruzes de altar, algumas das quais formavam conjunto com castiçais, que encontramos os exemplares com maior interesse artístico. Entre eles tem especial relevância o Cristo em marfim da capela de São João Batista de Pereiras. A imagem, de pequenas dimensões, apresenta-nos Cristo agonizante, com a cabeça inclinada à direita, rosto alongado envolvido pelos cabelos compridos e escorridos; os pés sobrepostos e perfurados pelos cravos e os braços abertos e verticalizados; no tronco salientam-

colocadas no seio dos espaços religiosos da freguesia ao longo dos séculos, procurando os fiéis, capitalizar a proximidade em relação aos santos para uma eficaz intercessão destes nas respostas às necessidades concretas de cada um e da comunidade. No levantamento realizado em toda a paróquia constatamos um claro domínio do culto a três santos, para além de Cristo e da Virgem: Santa Bárbara, Santo António e São Sebastião. A madeira policromada e o crescente naturalismo que a partir do século XVI as esculturas assumiram, refletindo as novas propostas formais, favoreceram o impacto visual da imaginária e as suas potencialidades cénicas e de interação com os fiéis. A maioria dos exemplares com maior interesse artístico data dos séculos XVII e XVIII, muitos deles não se encontram no espaço de culto, mas sim em dependências complementares dos locais de culto. São numerosas as imagens de Cristo Crucificado, por se tratar de uma representação obrigatória para todos os es-

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N.ª Sr.ª do Rosário

N.ª Sr.ª com o Menino

Pietá

evocar a presença na Índia, como relíquia ou promessa, ou ainda para garantir a proteção divina durante a viagem de regresso (EUSÉBIO, 2010: 63). Este procedimento justifica as inúmeras imagens de Cristo esculpidas em marfim, que se encontram nas igrejas portuguesas, como este exemplar da paróquia de Bodiosa. Na capela do Espírito Santo de Bodiosa existem três crucifixos de altar, muito similares, cada um destinado ao respetivo retábulo em conformidade com o determinado nas Constituições Sinodais da Diocese. São peças da segunda metade do século XVIII, com as extremidades dos braços da cruz vazadas, e as bases ornadas com elementos rococó. Na igreja paroquial também subsistem três cruzes de altar, uma das quais sem base, do século XVIII. Os remates dos braços da cruz são os componentes mais elaborados, com decoração diferenciada entre as três, composta por folhas, concheados e flores. Ao contrário dos exemplares da igreja do Espírito Santo que referimos, nestas, na interseção dos

-se as costelas, dispostas em simetria. As pregas do cendal desenvolvem-se na horizontal de forma rígida, terminando no nó à direita. As pernas esguias encontram-se ligeiramente fletidas. A policromia circunscreve-se às chagas e à orla dourada do cendal. Trata-se de uma escultura que se filia em protótipos largamente repetidos entre os séculos XVI a XVIII, sem consideráveis cambiantes formais e iconográficos, que avocam a união da iconografia religiosa europeia com as formas e os esquemas compositivos característicos da arte do Oriente. No âmbito das navegações e da diáspora portuguesa nos territórios do Oriente, foi intensa a circulação de obras de arte, num intercâmbio que se materializou numa miscigenação entre a cultura e as formas artísticas europeias e as propostas e sensibilidade hindus. A escultura de marfim constitui um núcleo de absoluta relevância no quadro da arte indo-portuguesa, tanto pela quantidade de exemplares como pela diversidade de propostas. Foram muitos os exemplares que vieram para a Europa, trazidos para

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Pietá

N.ª Sr.ª da Graça

N.ª Sr.ª da Luz

N.ª Sr.ª das Maleitas

a amamentar o Menino – que foram usuais na estatuária dos fins do período medieval, tendo progressivamente desaparecido esta tipologia iconográfica a partir do Concílio de Trento, à semelhança do ocorrido com as representações de Nossa Senhora grávida. A imagem de Nossa Senhora do Rosário que ocupa o nicho central do retábulo colateral da igreja Matriz seria a referenciada nas Memórias Paroquiais de 1758. Não obstante tenha sido repolicromada nas mãos e no rosto, preserva ainda o estofado e puncionado das vestes, simulando tecidos nobres com ornatos vegetalistas. Trata-se de uma obra do século XVIII, mas esteticamente arcaizante, pois a forma como os panejamentos caem e a rigidez do conjunto enquadram-se nas propostas da estatuária seiscentista. A Virgem e o Menino ostentam imponentes coroas de prata na cabeça. Do século XVII é uma outra escultura da mesma igreja, que se encontra em avançado estado de degradação, que representa a Virgem com o Menino ao colo, segurando este um

braços da cruz saem raios solares, simbolizando que a morte de Cristo na cruz constitui o caminho para a luz, para a vida. A escultura mariana remete-nos para um universo alargado das titulações da Virgem, sem considerarmos as recentes como a de Nossa Senhora de Fátima: Nossa Senhora do Leite, Nossa Senhora do Rosário, Nossa Senhora da Piedade, Nossa Senhora da Graça, Nossa Senhora das Maleitas, Nossa Senhora da Luz, Nossa Senhora da Conceição e Nossa Senhora do Carmo. A diversificação das invocações da Virgem teve particular desenvolvimento a partir do século XVI e suscitou que as comunidades das paróquias fossem introduzindo várias imagens de Nossa Senhora no mesmo espaço religioso. A escultura de Nossa Senhora do Leite, que se encontra na igreja de São Miguel Arcanjo, é provável que seja uma cópia em madeira de uma imagem mais antiga, eventualmente de pedra. Apresenta uma postura e uma temática – a Virgem

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Santa Eufémia

Santa Bárbara

Santa Bárbara

São Sebastião

Senhora da Luz da mesma povoação, que segue a tipologia mais usual: Nossa Senhora com o Menino em pé e frontal. Ambas as esculturas ostentam olhos de vidro, que conferem aos rostos especial vivacidade. A invocação de Nossa Senhora das Maleitas, escultura da capela de Nossa Senhora da Luz de Travanca, tem paralelo em titulações marianas como Nossa Senhora dos Remédios. Neste exemplar a Virgem surge como que a ser elevada ao céu por dois meninos e com os braços abertos, sugerindo o acolhimento a todos os que a procuram para a cura das maleitas. São várias as esculturas mais recentes, feitas em madeira, que repetem formas características da estatuária do século XVIII, como por exemplo, entre outras, as imagens de Nossa Senhora do Carmo, datada de 1911, e de Nossa Senhora da Conceição, da oficina de Fanzeres, que se encontram nos retábulos laterais da igreja paroquial. O universo da imaginária dos mártires que encontramos

mundo na mão, num claro simbolismo de que o seu nascimento ocorreu para que salvasse a humanidade. As duas esculturas da Pietá da capela de Oliveira de Baixo encontram-se repintadas, impedindo uma correta análise. Remetem-nos para uma cronologia barroca, devendo a que se encontra no nicho do altar ser mais antiga. Seguem a tipologia iconográfica mais frequente: a Virgem sentada, chorosa, tem no regaço o Filho morto, após ter sido descido da cruz. A fé e o culto a Nossa Senhora da Graça tem particular importância na povoação de Travanca. Não obstante se tenha construído uma nova igreja com esta invocação, manteve-se a excelente escultura da Virgem com o Menino, com o título de Nossa Senhora da Graça. Estamos em presença de uma imagem barroca, que nos figura a Virgem sentada numa cadeira, com o Menino ao colo, apresentando o conjunto particular imponência. Ainda que devam ter sido esculpidas no mesmo período, é bastante distinta da escultura de Nossa

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São Sebastião

São Brás

Santa Catarina

Santa Luzia

torre onde foi fechada pelo pai para evitar que se convertesse ao cristianismo; nalgumas esculturas segura também a palma do martírio. Outro mártir com grande veneração na paróquia é São Sebastião. As várias esculturas que o representam são muito similares nos elementos e postura: o jovem, que foi centurião romano, encontra-se despido, preso a um tronco de árvore onde serviu de alvo aos arqueiros do exército, ficando crivado de flechas. Sendo o protetor contra as fomes, pestes e guerras o culto a este santo assumiu muita importância em toda a região, pois até ao século XIX eram recorrentes esses fenómenos, com consequências muito dolorosas para as comunidades. A imagem do mártir São Brás, da capela do Espírito Santo, é um exemplar do século XVII. O santo encontra-se figurado com as vestes episcopais – o pluvial, as luvas, os sapatos vermelhos e a mitra – e não obstante a posição frontal, o pé avançado, a posição dos braços elevados e o sinal da bênção que faz com

nos espaços religiosos da freguesia não é muito diversificado. A escultura de Santa Eufémia, padroeira da capela de Bodiosa-a-Velha, encontra-se integralmente repintada, o que dificulta a correta datação. Formalmente remete-nos para o século XVII. A mártir, que viveu nos séculos III-IV, é figurada apenas com os atributos essenciais, o livro do Evangelho, símbolo da Igreja que defendeu mesmo quando sofreu grandes torturas, e a palma do martírio, símbolo da vitória da sua fé. Como referimos, a forte devoção a Santa Bárbara em Bodiosa é testemunhada pelas várias esculturas existentes na freguesia com interesse artístico: na capela do Espírito Santo, na igreja paroquial (a imagem do século XVIII encontra-se actualmente retirada do culto), nas capelas de Oliveira de Baixo e da Senhora da Graça em Travanca. Ainda que sejam distintas variando nos aspetos formais, todas ostentam os elementos iconográficos identitários da sua vida e martírio: figurada como jovem, a Santa tem junto a si ou na mão a

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Santo António

Santo António

São Francisco Xavier

São Caetano

equacionamos que da mesma autoria seja a escultura de São Caetano, que figura o fundador dos Teatinos com as vestes sacerdotais. A devoção franciscana na freguesia incluiu também São Francisco de Assis, do qual existe uma interessante escultura em Oliveira da Baixo. Veste o hábito da ordem que criou, rasgado no peito para deixar a descoberto a chaga que lhe foi infligida na estigmatização e com o característico cordão de nós na cintura. O dinamismo de corpo e das vestes e a teatralidade dos gestos que são apanágio do barroco estão explanados em duas esculturas de pequenas dimensões: uma do Menino Jesus, pertencente à igreja Matriz, e outra de São João Batista, da capela de Pereiras. O primeiro é uma escultura muito teatral, com o Menino apoiado numa base de recorte triangular formada por enrolamentos e sobrepujada por três graciosas cabeças de anjos, tem os braços abertos e com a mão direita faz o sinal da bênção, numa atitude de acolhimento aos

a mão direita conferem-lhe dinamismo e algum naturalismo. Na igreja matriz encontram-se mais três esculturas que representam mártires, duas das quais muito repintadas: Santa Luzia, Santa Cristina e Santa Catarina. Entre os santos nacionais assume particular importância na paróquia o culto a Santo António, cuja imagem aparece em vários altares, seguindo o modelo mais recorrente: vestido com o hábito de franciscano, que tomou por ter ficado impressionado com o martírio dos Santos Mártires de Marrocos, segura no braço esquerdo o livro, sobre o qual se senta o Menino Jesus, que lhe apareceu diversas vezes. Na igreja paroquial encontra-se uma interessante escultura de São Francisco Xavier, muito degradada e quase sem policromia. As semelhanças, em termos do tratamento corporal, das vestes e do rosto, com uma escultura do Tesouro de Arte Sacra da Sé de Viseu, também datada do século XVII, permitem-nos aferir que as duas imagens foram realizadas pelo mesmo artista, cujo nome desconhecemos. Também

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São Francisco de Assis

São Macário

São João Batista

Menino Jesus

Santo ou da Santíssima Trindade da capela de Bodiosa-a-Nova. O Padre Eterno encontra-se sentado no trono, em posição frontal. Na cabeça ostenta a mitra ornada com flores de liz e tem o rosto com barba ondulada. Veste túnica branca e dourada, que deixa entrever os pés calçados, sobre a qual recai o manto, preso na frente por um firmal. As mãos dispostas em paralelo sustentam a cruz com o Filho crucificado. A encimar a cruz está a pomba do Espírito Santo. Constatamos, assim, que na paróquia de Bodiosa a dinâmica de encomendas de escultura em correlação com a fé e a devoção das comunidades para com determinados santos, a Virgem e Cristo, se traduziu no acompanhamento das formas, dos materiais e das técnicas que dominaram a produção artística religiosa entre os séculos XV e XX. Ainda que muitos exemplares se encontrem profundamente adulterados devido a repintes e outros estejam degradados, é possível aferir a existência de um universo de peças representativo da espiritualidade e do zelo das comunidades em relação à representação artística dos eleitos das suas devoções.

fiéis que entravam na primitiva igreja de São Miguel, onde no século XVIII lhe era dedicado um dos altares colaterais. A escultura do precursor de Cristo, São João Batista, deveria ter ocupado o espaço central do retábulo da capela de que é padroeiro, tendo sido substituída por outra mais recente e de maiores dimensões. Apresenta o corpo parcialmente tapado com a pele de camelo que vestia no deserto e ao lado, sobre um tronco, o livro e um manto vermelho, repousa o cordeiro de Deus, distintivo da sua iconografia, que segura carinhosamente. Do século XVIII são também duas imagens da igreja paroquial que se encontram bastante danificadas, que eram utilizadas nas cerimónias da Paixão de Cristo: Nossa Senhora das Dores ou da Saudade e Cristo morto. A escultura mais associada ao culto de um santo local é a de São Macário da capela do Espírito Santo. O eremita veste o hábito franciscano, tem o terço suspenso no cordão que lhe envolve a cintura e segura o livro dos Evangelhos. Uma das imagens de particular relevância é a do Espírito 218

Santíssima Trindade

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Pintura

N

das por grade de madeira e moldura de galão tecido, com franja na parte inferior e cruz de metal no remate. O programa iconográfico de uma das faces é característico das bandeiras pertencentes às irmandades do Santíssimo - a custódia com a exposição do Santíssimo, na outra face figura a imagem de Nossa Senhora da Conceição. Tratam-se de composições simples, de cariz popular. A custódia dourada reproduz as peças de ourivesaria desta tipologia executadas na segunda metade do século XVIII e ao longo do XIX: a base alteada, muito recortada, e a haste com volumes diferenciados, são decoradas com ornatos vegetalistas; o hostiário é envolvido pelos raios de luz e incorpora a hóstia com a cruz. O fundo, tratado com simplicidade, com tonalidades diferenciadas de azul que se abrem na envolvente do hostiário e duas cabeças aladas dispostas lateralmente, intensifica o sentido e a presença do Santíssimo. A imagem de Nossa Senhora da Conceição também se apresenta disposta sobre um fundo neutro com tonalidades de castanho trabalhadas de forma a reforçar a luz na envolvente do corpo da Virgem, contrastando com as cores rosa, azul e marfim das suas vestes. Eleva-se sobre a habitual esfera com o crescente lunar, tem as mãos elevadas em oração e o rosto circundado por auréola de luz. Trata-se de uma composição de fatura muito ingénua, com representação figurativa rígida, simplificada, com recorte duro das vestes e sem expressividade.

o que concerne às composições pictóricas assinalamos a presença de alguns exemplares incorporados em estruturas retabulares do maneirismo e do protobarroco, correspondendo a uma utilização retardatária, pois a inclusão de pinturas nos retábulos dominou essencialmente até à primeira metade do século XVII, desaparecendo progressivamente em face do crescente domínio da escultura e da talha. Na abordagem aos retábulos já referenciámos as pinturas do Espírito Santo, no retábulo-mor, de Nossa Senhora da Piedade e de Santo Antão nos retábulos colaterais da capela do Espírito Santo. O retábulo de Bodiosa-a-Velha também possui três composições pictóricas: São José e Nossa Senhora com o Menino nos flancos e Santa Luzia na edícula do remate, mas são obras manifestamente ingénuas e simples, realizadas no âmbito do restauro, que adulteraram profundamente as preexistentes. Nesta mesma capela existem dois tondos, também de execução recente (década de 80 do século XX), que representam, em traços muito simples, ingénuos e reveladores de dificuldades no desenho, o Sagrado Coração de Maria e Cristo com a coroa de espinhos. Na igreja paroquial merecem particular referência as duas bandeiras processionais, pertencentes às irmandades do Santíssimo e do Espírito Santo. A primeira, mais antiga, apresenta o regular formato retangular, com duas telas uni-

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Bandeira da Irmandade do Santíssimo

Bandeira da Irmandade do Espírito Santo

encontra-se direcionado para Cristo, que repousa sobre as suas pernas e segura com o braço direito. Nas mãos, pés e peito de Cristo são visíveis as feridas da crucificação. Trata-se de uma pintura com sugestão de modelação dos corpos, distribuição espacial das figuras condicionada e sugestão de dinamismo das vestes. As duas composições pictóricas que compõem esta bandeira terão sido executadas por artistas diferentes e, eventualmente, em períodos distintos. Na capela de Nossa Senhora da Luz de Travanca encontra-se a cópia de um ex-voto, que originalmente devia ser executado numa tábua, como era comum nesta tipologia de peças. A legenda – MILAGRE QUE FEZ N. S. DA LUZ A JOAQUIM R. D’ALMEDA – complementa a representação do devoto, de joelhos e junto às ovelhas, sugerindo tratar-se de um pastor, a rezar à Virgem, com o título da Luz, que se encontra figurada num plano superior, circundada por uma mandorla de nuvens.

A bandeira processional da Irmandade do Espírito Santo ostenta uma moldura recente, que lhe retirou o aspeto característico desta tipologia de peças. Numa representação figurativa mais pormenorizada, com uma paleta mais rica e diversificada, nela estão representadas duas cenas: de um lado o Pentecostes e do outro Nossa Senhora da Piedade. Na primeira, num ambiente de interior apenas sugerido por um arco e coluna à direita, figura a Virgem, ao centro, ladeada pelos apóstolos e Maria Madalena; os gestos e a expressão dos rostos sugerem a inquietação em face da luz que se abriu por cima do grupo e do aparecimento da pomba, o Espírito Santo, iluminada por raios de luz a lançar línguas de fogo sobre todos os presentes. Na face oposta Nossa Senhora encontra-se sentada junto aos pés da cruz, enverga vestido vermelho e manto azul, que lhe envolve a cabeça. O rosto, com expressão de dor, 222

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Alfaias e têxteis

Para além da componente arquitetónica, do retábulo com altar e das esculturas dos santos em correspondência com as devoções da comunidade, cada igreja e capela devia possuir todos os ornamentos e paramentos necessários, que eram estabelecidos pelas Constituições Sinodais. A título de exemplo, em 1684, na constituição VI, do livro II, estabelece-se que cada altar devia possuir: pedra de ara, retábulo com pintura ou escultura, cortinas para o retábulo e sobrecéu, pano preto ou azul com um Passo da Paixão para o tempo da Quaresma, frontais que não estivessem rotos, descosidos ou com nódoas, três toalhas para o altar, bentas pelo prelado, dois ou três corporais de olanda ou pano de linho muito fino, doze sanguíneos; duas palas, três ou quatro manustérgios, cálices sem amolgaduras nem fendas, cujas copas e as patenas deviam ser de ouro ou prata e ter o peso conveniente para maior segurança do sacramento, véu de cálice, castiçais limpos, cruz de pau dourada ou de prata, sacra de boa letra e legível, almofada de seda ou couro ou estante de madeira e missal. Assim, depois de edificada a igreja ou capela não se podia celebrar missa sem a respetiva licença de bênção, para a qual era necessária a revista para aferir se estava decente e possuía todos os ornamentos e paramentos necessários. A beleza e o simbolismo das celebrações nos espaços religiosos não podem ser dissociados das peças que são utili-

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zadas e dos paramentos que o sacerdote veste. Os objetos presentes na eucaristia assumem formas e ornatos, que para além de estarem em correspondência com as funções específicas que lhe são atribuídas, codificam as mensagens que se pretendiam associar a leituras e a gestos, cumprem também funções pedagógicas, catequéticas. As alfaias litúrgicas, algumas das quais executadas em metais nobres, e os paramentos eram objeto de particular cuidado por parte das comunidades da freguesia. No que concerne às alfaias litúrgicas, que têm uma função específica no âmbito das cerimónias religiosas, assinalamos a presença das que eram fundamentais nas celebrações: o cálice, a patena, as galhetas, a caldeirinha com o hissope, as sinetas, o turíbulo e a naveta. Observamos que na maioria das capelas da freguesia estes objetos são recentes, de fabrico industrial e em ligas metálicas diversas, tendo desaparecido as alfaias dos séculos anteriores. É na igreja paroquial que encontramos o melhor conjunto de ourivesaria barroca, executado em prata, em meados do século XVIII, por prateiros portugueses. A custódia de prata dourada tem base assente em quatro pés, de recorte ondulado e ornados com folhas, enrolamentos e cabeças aladas. No alteamento cónico da base tem dois simbólicos medalhões, nos quais figuram o cordeiro deitado sobre o livro dos sete selos e o pelicano que debica o próprio peito para

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Turíbulo

Turíbulo

Campainha

Campainha de altar

Custódia

Cruz processional

tos; a chaminé de perfil periforme desenvolve-se numa dinâmica de volumes côncavos e convexos, alguns vazados, revestidos por decoração fitomórfica. As correntes de suspensão têm elos circulares, a convergir no guarda-mão em forma de disco circular, alteado ao centro. No rebordo da base tem gravada a marca de contraste e de ourives portuense. A naveta em prata tem base circular, campaniforme e com folhas; o vaso naviforme, com a parte inferior decorada por folhas, enrolamentos e concheados; cobertura ondulada, com a secção central e as extremidades mais altas, uma das quais, fixa com dobradiça, funciona como tampa. Tem gravada a marca de contraste e de ourives portuense.

alimentar os filhos, tal como Cristo derramou o seu sangue para salvar os homens. Possui uma haste alta e com perfil recortado, rematada por três cabeças de anjo que marcam o arranque do hostiário, em forma de sol raiado, com raios setiformes assimétricos. A custódia envidraçada é de formato circular, com moldura lavrada com flores, cornucópias e cabeças aladas, em paralelo com o aro de pedrarias brancas e vermelhas. A lúnula repete a forma usual da cabecinha de anjo com asas muito compridas. Na base possui a marca de contraste e de ourives. O turíbulo de prata segue a regular forma de urna, tem a base pouco alteada e recortada em ondulações; a caldeira com perfil contracurvado, ornada com flores e enrolamen-

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Naveta

Caldeirinhas

Naveta

Em Bodiosa-a-Nova e em Travanca existem também dois conjuntos, formados por turíbulo e naveta, de metal amarelo, do século XIX, com formas similares, embora bastante distintos na gramática decorativa. Nos vários espaços religiosos desta freguesia encontram-se alguns exemplares de caldeirinhas de água benta, em metal amarelo, de acordo com um modelo que se repetiu ao longo dos séculos: com base circular alteada na maioria dos exemplares, corpo campaniforme e asa arredondada ou de perfil trilobado.

A cruz processional tem o suporte montado sobre esqueleto de madeira. O nó, em forma de urna, é decorado com festões de flores, cabeças aladas e enrolamentos. A haste e os braços da cruz, de secção retangular, ostentam nas extremidades uma exuberante decoração vegetalista, segmentos volutados, concheados e plumas. Na interseção dos braços sucedem-se raios. A capela de Silgueiros também possui um interessante conjunto de naveta e turíbulo, em prata, posterior aos exemplares da Matriz. Ostentam um formato muito similar, diferenciando-se essencialmente na gramática decorativa, dominada essencialmente por folhas com extremidades muito recortadas, flores e enrolamentos.

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Tendo a igreja de São Miguel sido abadia do padroado real,

Casulas

tem enquadramento a existência de um dos exemplares dos pratos de “oferendas” que D. Manuel importou para oferecer a todas as igrejas do seu padroado, enviando também alguns exemplares para os arquipélagos da Madeira e dos Açores e para África. O prato da igreja Matriz de Bodiosa, com formato circular, ostenta uma iconografia singular: São Jorge a dominar o dragão e a liberta a donzela que iria ser sacrificada. Este conjunto figurativo é delimitado por moldura de meia-cana lisa e por dois círculos preenchidos com caracteres góticos.

cio de obras de arte que começavam a despontar. Os esquemas

O bordo é ornamentado por duas cercaduras concêntricas de

compositivos adoptados em muitos dos exemplares remetem-

gravados fitomórficos estilizados.

-nos para as xilogravuras difundidas pela Crónica de Nurember-

Trata-se de um dos muitos pratos de oferendas produzidos nas

ga, datada de 1493. A utilização concreta destas peças, que na

oficinas do Norte da Europa, entre as quais se destacou a de

documentação aparecem com a identificação de “bacias de ofe-

Nuremberga, que desenvolveram uma produção oficinal em sé-

rendas”, não se deveria circunscrever a usos religiosos, podendo

rie para corresponder às encomendas e aos circuitos de comér-

ser equacionadas utilizações em ambientes profanos.

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algumas peças para ornamentação do espaço sacro, ainda que em número pouco significativo, como algumas portas de sacrário em material têxtil e mantos de imagens. Denotamos que a maioria dos paramentos foram executados nos séculos XIX e XX, são de tecido de damasco, com galões dourados ou amarelos, com as diversas cores litúrgicas: o branco (na generalidade dos exemplares com tom marfim), o verde, o vermelho, o roxo e o preto. Peça única na freguesia é o pálio da igreja de São Miguel Arcanjo, do século XVII-XVIII, executado em veludo carmim: os pendentes, em número de seis, são delimitados por galão de franja e ligados por passamarias; o centro do céu é marcado por uma composição em bordado direto e com tecido aplicado colorido, figurando a sagrada custódia, com a mesma morfologia de uma peça de ourivesaria, inscrita numa cartela oval.

No que concerne à paramentaria aferimos a existência de uma quantidade significativa de exemplares, mas que se encontram, na sua maioria, bastante degradados. Muitos dos conjuntos, que deveriam incluir pelo menos a casula, a estola, a bolsa de corporais e a dalmática, encontram-se desagregados. Na igreja matriz e em algumas capelas identificamos um universo de paramentos diversificado quanto às tipologias e aos materiais. São numerosas as casulas, as dalmáticas, as estolas, os manípulos (retirados do culto desde o Concílio do Vaticano II), as bolsas de corporais e os véus de cálice, sendo mais raras as capas de asperges e a umbela. No que concerne ao enxoval eucarístico, como alvas, toalhas de altar, sanguíneos, corporais, manustérgios, são muito diversificados os exemplares, muitos dos quais são fruto de ofertas individuais e do cumprimento de promessas. Há também

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Estola

Umbela Pรกlio

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1 Daniel 12: 1 2 Apocalipse 12: 7-9 3 (NASCIMENTO, 2002:43). 4 (PMH/Inq: 886). 5 (PMH/Inq: 886). 6 (PMH/Inq: 887). 7 (PMH/Inq: 887). 8 (PMH/Inq: 887). 9 (SARAIVA, 2010: 34). 10 (ALMEIDA, 1971: 90). 11 (ALMEIDA, 1971: 119-121). 12 Concílio ecuménico convocado pelo Papa Paulo III na sequência das reformas protestantes e posterior divisão religiosa da Europa. Prolongando-se entre os anos de 1545 e 1563, nele se promoveu a reorganização interna da Igreja Católica, foi reafirmada a autoridade suprema do Papa em matérias de dogma e disciplina, e estabeleceram-se normas de conduta e formação mais exigentes para o clero. 13 ADV, cx4, nº1, pp. 269. Nota: durante a transcrição houve o cuidado de respeitar a ortografia original do texto. Apenas se desenvolveram as abreviaturas, estando assinaladas a itálico as letras restituídas. 14 ADV, cx4, nº1, pp. 158. 15 (ALVES, 1998: 54-55). 16 Os restantes volumes não chegaram a ser impressos, uma vez que foram destruídos pelo Terramoto de 1755. 17 (CARDOSO, 1751: 195). 18 (CARDOSO, 1751: 195). 19 (CARDOSO, 1751: 195). 20 (CAPELA, 2010: 146). 21 (CAPELA, 2010: 647). 22 (CAPELA, 2010: 647). 23 (CAPELA, 2010: 647). 24 (CAPELA, 2010: 647). 25 (CAPELA, 2010: 648). 26 Segundo o Código de Direito Canónico atualmente em vigor, a tradicional distinção entre igrejas e capelas deve ser suprimida, recaindo a primazia no primeiro desses nomes. Nesse sentido, o termo igreja passou a designar de forma genérica todo “o edifício sagrado destinado ao culto divino, ao qual os fiéis têm o direito de acesso para exercerem, sobretudo publicamente, o culto” (cânone 1214). Contudo, por uma questão de método e simplicidade, uma vez que a generalidade das pessoas ainda recorre às duas expressões, mantê-las-emos também aqui ao longo das próximas páginas. 27 Excerto retirado de um comunicado feito pela Comissão responsável pelo início e acompanhamento das obras de construção. Atualmente, o comunicado encontra-se exposto na capela antiga de Nossa Senhora da Graça. 28 Constitvições Synodaes do Bispado do Porto novamente feitas, e ordenadas pelo Illustrissimo e Reverendissimo Dom Joam de Sovsa Bispo do dito Bispado (…) propostas e aceitas em o Synodo Diocesano que o dito Senhor celebrou em 18 de Mayo do anno de 1687. Joseph Ferreira, Imprensa da Universidade de Coimbra, pp. 370-371.

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29 (EUSÉBIO, 2008: 60-61). 30 Documento assinado por “José Marques de Figueiredo, empregado d’ obras publicas” no dia 8 de Julho de 1911. Encontra-se guardado nos arquivos da casa paroquial. 31 Esta singela mensagem engloba duas citações bíblicas distintas. A primeira parte foi retirada de Génesis 3:19, correspondendo à afirmação: “Pois tu és pó e ao pó voltarás”. A segunda parte foi transcrita de Jó 3:19, sendo a frase completa a seguinte: “O pequeno e o grande ali estão, e o escravo liberto do seu amo”. 32 Recorde-se que a primeira aparição aconteceu no dia 13 de Maio de 1917. Estavam presentes três crianças: Lúcia de Jesus, Francisco Marto e Jacinta Marto. 33 Processo guardado no Arquivo Histórico da Câmara Eclesiástica da Diocese de Viseu. 34 Relatam os evangelhos que a prisão de João Baptista não foi suficiente para aplacar o ódio de Herodíade, esposa de Herodes Antipas, o governador da Galileia. Por esse motivo, ela engendrou um plano e esperou pacientemente pelo dia de aniversário de Herodes para o colocar em ação. Durante o banquete festivo, ela convenceu a sua filha Salomé a dançar de forma sensual diante de todos os convidados, deixando Herodes tão encantado que prontamente lhe ofereceu a recompensa que mais desejasse. Depois de questionar a mãe sobre a retribuição que haveria de pedir, a resposta foi perentória: “A cabeça de João Baptista” (Marcos 6:24). 35 A técnica tradicional do vitral implica a conjugação de pequenos pedaços de vidro colorido, unidos através de chumbo, de modo a representar as mais diversas figuras. 36 MÁRTIRES, Bartolomeu dos (1564) - Catecismo ou Doutrina Christã e Práticas Espirituais. Braga. 37 Com a queda da monarquia, o novo regime republicano pôde colocar em ação os princípios de um Estado Laico, desenvolvendo uma vasta legislação de teor anticlerical. A famosa Lei da Separação de 20 de Abril de 1911 retirou à Igreja Católica o estatuto de religião oficial que até aqui possuía. Ao mesmo tempo, dava-se início à expropriação do património eclesiástico. Como é natural, as relações diplomáticas entre a Primeira República e a Santa Sé haveriam de se degradar rapidamente, permanecendo um clima de crispação até ao advento do Estado Novo, que se mostrou mais interessado na estabilidade social do que em continuar a alimentar conflitos religiosos. O passo decisivo aconteceu em 1940, com a assinatura da Concordata. No artigo VI, “é reconhecida à Igreja Católica em Portugal a propriedade dos bens que anteriormente lhe pertenciam e estão ainda na posse do Estado, como templos, paços episcopais e residências paroquiais com seus passais, seminários com suas cercas, casas de institutos religiosos, paramentos, alfaias e outros objectos afectos ao culto e religião católica…” 38 Certidão respeitante à entrega dos bens à Corporação Fabriqueira Paroquial. Arquivo Histórico da Câmara Eclesiástica da Diocese de Viseu. 39 Registo dos termos de visitas pastorais feitas às Egrejas do Bispado de Vizeu pelo Ex.mo Rev.mo Señ Bispo D Joze Dias Correia de Carvalho, 1887. Arquivo Histórico da Câmara Eclesiástica da Diocese de Viseu. 40 Resposta à circular de 02 de Maio de 1916. Arquivo Histórico da Câmara Eclesiástica da Diocese de Viseu.

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Bibliografia

41 VIEIRA, Pe. António - Sermão do Nascimento da Mãe de Deus. 42 Documentos avulsos encontrados na capela nova de Nossa Senhora da Graça. 43 Comunicado elaborado pela Comissão, com data de 23 de Maio de 1980. 44 Após o Concílio Vaticano II, decorrido entre 1962 e 1965, o latim foi gradualmente substituído pelas línguas vernaculares durante as celebrações litúrgicas, ao mesmo tempo que os sacerdotes passaram a realizar a eucaristia voltados para os fiéis, ou seja, “versus populum”. 45 (CAPELA, 2010: 647). 46 Expressão latina que significa: por este sinal vencerás. Segundo rezam as lendas, esta frase terá sido milagrosamente proferida por Cristo ao imperador romano Costantino “o Grande”, na véspera da Batalha da Ponte Mílvio (ano 312). De imediato, ele ordenou aos seus soldados que pintassem um monograma cristão nos escudos, acabando por sair vitorioso no confronto militar. Muito séculos depois, a estória parece repetir-se com D. Afonso Henriques que, nos campos de Ourique (1139), liderou um pequeno exército português contra cinco reis muçulmanos, conseguindo um inesperado triunfo. Embora quase sempre passem despercebidos, os sinos de muitas igrejas ainda hoje se encontram ornamentados com um lema igual a este. Dois casos concretos podem ser observados nos campanários das capelas de Nossa Senhora das Candeias e Nossa Senhora da Piedade. Em ambos os sinos, a frase foi colocada na extremidade superior da campânula. 47 Mateus 27:38 48 VICENTE, Manuel Fernandes - “Alminhas estão mais abandonadas”. Jornal Público, 2/11/2009. 49 Conjunto de ações levadas a cabo pela Igreja Católica, como reacção ao avanço das doutrinas protestantes. 50 In http://www.agencia.ecclesia.pt/. 51 (CARDOSO, 1751: 195). 52 Documento avulso guardado no Arquivo Histórico da Câmara Eclesiástica da Diocese de Viseu. 53 Documento avulso guardado no Arquivo Histórico da Câmara Eclesiástica da Diocese de Viseu. 54 (VALE, 2009: 211-220). 55 Embora em algumas localidades as mulheres também pudessem participar, na maioria dos casos este ritual estava confinado ao sexo masculino. 56 “Apontamentos Folkloricos”. Revista de Guimarães, Publicação da Sociedade Martins Sarmento, vol. VIII, 1891, pp. 48. 57 (LOUROSA, 2007) 58 Expressão de origem francesa que significa “meio da Quaresma”. Corresponde à quarta-feira da terceira semana da Quaresma, ou seja, o dia em que era celebrada a Serração da Velha. 59 Mateus 28:7 60 (BRAGA, 1997: 49). 61 Aparelho com que se ligam duas juntas de bois ao mesmo carro. Pode também significar a vara de madeira que se pendura ao pescoço de um animal, para que não se afaste demasiado nem entre em campos cultivados. 62 “Francisco Lopes de Matos “era filho de Domingos Francisco, do lugar de Queirela, e de Maria Lopes, do lugar de Bodiosa, no termo de Viseu; neto paterno de Domingos Gonçalves e de Maria Francisca, naturais e moradores do lugar de Queirela, freguesia da Bodiosa, e materno de Manuel Luís e de Maria Lopes, naturais e moradores na Bodiosa”. (ALVES, 2001: 199).

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