Sophia

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MIL FOLHAS 10 | JULHO | 2004 | PÚBLICO

ILUSTRADOR OU FOTÓGRAFO


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SOPHIA

PÚBLICO 10 JULHO 2004

Obrigado Este MIL FOLHAS dedicado a Sophia de Mello Breyner Andresen (Porto, 6 de Novembro de 1919 – Lisboa, 2 de Julho de 2004) abre com três inéditos da poeta: dois poemas, e um texto em fragmentos. Um dos poemas tem título e está datado de 1999. O outro, sem título, terá sido escrito na mesma altura. O texto em fragmentos (duas páginas manuscritas) refere-se à primeira viagem que Sophia fez à Grécia, em 1963. Tudo o mais são os tributos a Sophia – em forma de poema, testemunho, ensaio, tradução, desenho ou fotografia – de 38 autores portugueses. Artistas plásticos (além de Fernanda Fragateiro, que concebeu a capa, Graça Morais, Luísa Ferreira, Tiago Manuel, Xavier); cineastas (Margarida Gil, Teresa Villaverde); actoresencenadores (Jorge Silva Melo, Luís Miguel Cintra, Lúcia Sigalho); o arquitecto paisagista Gonçalo Ribeiro Telles (que criou o jardim da casa de Sophia, em Lisboa); a política Maria de Lourdes Pintasilgo; o compositor Eurico Carrapatoso; escritores (Adília Lopes, Ana Paula Inácio, Eduardo Lourenço, Eduardo Prado Coelho, Frederico Lourenço, Gastão Cruz, Hélia Correia, Herberto Helder, Jaime Rocha, João Barrento, Joaquim Félix de Carvalho, José Tolentino Mendonça, Mafalda Ivo Cruz, Manuel Alegre, Manuel Gusmão, Maria Velho da Costa, Mário Cesariny, Miguel Serras Pereira, Miguel Sousa Tavares, Osvaldo Manuel Silvestre, Pedro Mexia, Pedro Tamen, Richard Zenith, Silvina Rodrigues Lopes, Vasco Graça Moura). Todos os textos foram escritos para esta ocasião, ou são aqui publicados pela primeira vez, com excepção dos assinados por Herberto Helder, Maria Velho da Costa e Miguel Sousa Tavares (data e local originais em rodapé). Também as imagens de Fernanda Fragateiro, Graça Morais, Luísa Ferreira, Tiago Manuel e Xavier Sousa Tavares são inéditas. Agradecemos ainda à família de Sophia de Mello Breyner Andresen a generosa cedência dos textos inéditos e das fotografias da poeta que aparecem reproduzidas até à página 30. Um agradecimento especial a Isabel Sousa Tavares e Maria Andresen, filhas de Sophia. E outro a Luis Manuel Gaspar. A Sophia, tudo.

“A claridade frontal do lugar impõe-me a tua presença/ teu nome emerge como se aqui/ O negativo que foste

O pastor Está de pé em frente das coisas Calado e fito como um pastor A melodia que escuta foge para longe Como um rio E ele bebe a doce e amarga taça Da nostalgia O espírito que ilumina O cair da tarde e a curva da colina O doira 1999

Inéditos de Sophia O mar é liso como um chão e o seu azul é tão azul que parece aceso. E a luz é doirada levíssima e passa rasando as águas naquele Setembro de 1963 que foi o mais belo Outono da Europa É então que Leukas aparece. A coisa que vejo é tão extraordinária que pergunto a mim própria se não estarei divagando: pois em roda da ilha há um halo azul uma respiração azul um resplendor azul. A sua cor é mais intensa luminosa e mais radiosa do que a cor do céu e mais transparente do que a cor do mar. É como um arco íris todo azul, é como se a ilha projectasse uma sombra radiosa e celeste Mais tarde um amigo sábio conta-me que este fenómeno que resulta das condições naturais da atmosfera e da luz é um fenómeno típico da paisagem grega cuja singularidade já na antiguidade era motivo de nota e de espanto, pois não se vê em nenhum outro país, senão talvez na Sicília. Quando desembarco e vou pela estrada ao longo do golfo do Corinto há no ar um cheiro a resina a mel e a fruta. À minha direita loureiro oliveiras e ciprestes. À minha esquerda estreitas praias cujo solo é feito de pequenas pedras arredondadas e polidas. E do outro lado das águas lisas as montanhas erguem-se junto ao mar, enormes, altíssimas, penetradas duma solenidade que domina todas as coisas. E em roda dessas montanhas há o mesmo halo que rodeia Leukada e Ítaca. O mesmo resplendor intensamente azul, mais azul do que o céu e mais radioso do que o mar. ........

Quem embarca em Brindisi ao cair da tarde num velho barco chamado Atreus acorda na manhã seguinte em frente das ilhas gregas Aquilo que então vê excede tudo quanto imaginou e tudo quanto os escritores de viagens contaram No golfo de Corinto A respiração dos deuses é visível: E um halo azul, uma nuvem Em roda das montanhas e das ilhas Como um céu mais atento e concentrado E também o cheiro dos deuses invade as estradas É um cheiro a resina a mel e a fruta Onde se desenham grandes corpos lisos e brilhantes Sem suor, sem lágrimas, sem falha Sem a menor ruga de tempo Só em Homero, só no azul espalhado e na indizível felicidade da poesia homérica eu tinha encontrado uma notícia fiel daquilo que depois vi. Os golfinhos rodeiam o Atreus. Parecem-me mais pequenos que os golfinhos de Portugal e são muito mais mansos. Um deles acompanha-nos durante muito tempo nadando quasi à tona de água. (Fragmentos nunca publicados referentes à primeira viagem que Sophia fez à Grécia)


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de ti se revelasse// Viveste no avesso/ Viajante incessante do inverso/ Isento de ti próprio/ Viúvo de ti próprio/ Em Lisboa cenário da vida/ E eras

Textos e imagens de: Adília Lopes Ana Paula Inácio Eduardo Lourenço Eduardo Prado Coelho Eurico Carrapatoso Fernanda Fragateiro Frederico Lourenço Gastão Cruz Gonçalo Ribeiro Telles Graça Morais Hélia Correia Herberto Helder Jaime Rocha João Barrento Joaquim Félix de Carvalho Jorge Silva Melo José Tolentino Mendonça Lúcia Sigalho Luís Miguel Cintra Luísa Ferreira Mafalda Ivo Cruz Manuel Alegre Manuel Gusmão Margarida Gil Maria de Lourdes Pintasilgo Maria Velho da Costa Mário Cesariny Miguel Serras Pereira Miguel Sousa Tavares Osvaldo Manuel Silvestre Pedro Mexia Pedro Tamen Richard Zenith Silvina Rodrigues Lopes Teresa Villaverde Tiago Manuel Vasco Graça Moura Xavier

Sophia adolescente

Cidade imaginária e de meandros Precisos O rio a iriza O sol acende em quadrado o vidro Das janelas Nas ruelas antigas A cítara de súbito ressoa


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o inquilino de um quarto alugado por cima de uma leitaria/ O empregado competente de uma casa comercial/ O frequentador

Manuel Alegre | Comunhão Estar com Sophia foi sempre uma espécie de celebração. À volta de uma xícara de chá, nos muitos almoços e jantares em sua casa (que era uma casa de poesia), na minha, em Lagos, com o Francisco, com os filhos, com Mafalda, minha mulher, de quem ela gostava muito. Raramente se falava de literatura, porque ela detestava as palavras da literatura. Às vezes líamos versos ou dizíamos versos de cor (ela tinha uma memória prodigiosa), outras telefonava-me para me ler um poema acabado de lhe “acontecer”. Uma noite fez-se um jogo: cada um dizia o primeiro verso que lhe vinha à cabeça, tomava-se nota, fi zeram-se várias voltas, no fim foi-se a ver e para surpresa de alguns, mas não de Sophia, o que saiu mais vezes foi Antero. Falava-se de vinhos, de comidas, de pessoas, de jogos, às vezes de futebol, de sítios. Falava-se das coisas de que gostávamos, ela perguntava-me pela pesca e pela caça, evocava seu pai que morreu a caçar. Às vezes eu levava-lhe champanhe, de que ela gostava. Ou um robalo acabado de pescar e que ela cozinhava como ninguém. Recordo as últimas

perdizes que a Mafalda lhe preparou e que comemos em sua casa com o Miguel. Eu falava-lhe da Foz do Arelho, da Ria de Aveiro e do Alentejo. Às vezes da Argélia e do deserto. Um dos livros sobre que mais conversámos foi Os sete pilares da sabedoria, de T. E. Lawrence, que lhe ofereci. Partilhávamos o fascínio pelos grandes espaços, o deserto, o mar. Ela falava das suas praias, da Granja, de Lagos, de Sagres. E sempre da Grécia, onde minha mulher e eu tivemos o privilégio de estar com ela. Recordávamos muitas vezes os nossos jantares no “Dionysos”, bebendo “retsina” e olhando a Acrópole. Estivemos juntos nos momentos difíceis das nossas vidas. Só uma vez amuámos: vínhamos do Algarve, minha mulher guiava, andámos de cabo em cabo, Sophia queria vir até Lisboa por uma estrada junto ao mar que só existia na sua imaginação. Acabei por me irritar e dizer que fossem as duas à procura dela que eu ia à boleia para Lisboa. Estivemos um mês de candeias às avessas. Ainda hoje me arrependo de não ter seguido por essa estrada invisível que só havia no poema em que provavelmente

Pedro Tamen | Sempre certo Há muitos, muitos anos, fui, jovenzinho que era, pedir ao Ruy Cinatti (que nunca tinha visto) um poema para um jornal que eu então dirigia. No decurso da conversa que nessa tarde tivemos no Círculo Eça de Queiroz (foi a primeira das poucas vezes que lá entrei), o Cinatti, que para mim era “um senhor”, mas que logo revelou a afectuosa gaiatice que era a sua, fez peremptoriamente uma afirmação qualquer (de que não me lembro) e acrescentou esta frase inesquecível: – Olhe que quem diz isto é a Sophia, e o que a Sophia diz está sempre certo! O que tornou para mim esta frase inesquecível não foi o surpreendente que era, dita por quem a dizia e a propósito de quem a dizia. O que ma tornou inesquecível – e como mais a relembrei agora, nestes últimos dias! – foi a vida, foram os anos, foi o longo convívio com a poesia e com a pessoa de Sophia. Em cada momento desse convívio, na sua palavra lida e ouvida, ela confi rmou-ma. – O que a Sophia diz está sempre certo. Julho de 2004

Sophia já estava a viajar. É o único remorso que tenho quando penso na festa permanente da nossa amizade. Da última vez, já no hospital, sentada na cadeira, toda de branco e estranhamente bonita, ela abriu muito os olhos. Mafalda e sua filha Isabel disseram: A voz, fala-lhe. Eu sentei-me junto dela e falei. E então ela sorriu e disse o meu nome. Depois comecei a dizer um poema dela: “Ia e vinha / E a cada coisa perguntava...” E ela concluiu: “Que nome tinha.” Continuei com outros poemas, Isabel pediu-me para dizer “Erros meus”, de Camões. Assim fiz. E ela murmurou comigo todos os versos. Às vezes só o ritmo, poesia em estado puro, um milagre que nunca esquecerei. Com Sophia foi mais do que amizade, foi uma comunhão. Tenho um grande pudor em dizer mais. Fica isto, porque acho que ela gostaria de ouvir, bebendo uma xícara de chá e fumando um cigarro, com aquela distracção atenta que só ela tinha. Lisboa, 5 de Julho de 2004

Ana Paula Inácio | Juro Difícil é saber de frente a tua morte Difícil é ter quarenta anos. Difícil é saber que o teu amor representa a morte para o teu amado. Difícil é quereres partir e eu sem herança para te dar: faço-te a mala. Difícil vai ser fazer arroz e, no dia seguinte, comer a tua parte arrefecida. Difícil vai ser comprar menos pão, menos ovos, menos favas. Palavra que vai ser difícil e palavra dada é palavra jurada. (Poema feito a partir do primeiro verso de As Ilhas VII, do livro “Navegações”, um dos últimos da Sophia)


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irónico delicado e cortês dos cafés da Baixa/ O visionário discreto dos cafés virados para o Tejo// (Onde ainda no mármore das

Julho de 1936, com Ruy Cinatti

Miguel Sousa Tavares | E ela dança Às vezes, quando a casa estava adormecida à noite, ela dançava pela sala fora, tal qual como escreveu (“bailarina fui mas nunca bailei”). Às vezes, convencia-se que havia ladrões em casa e acordava-me do sono para espreitar debaixo da minha cama, e às vezes havia ladrões a sério, com cara de assassinos e crachá da PIDE, que chegavam pela alvorada do dia, mas verdadeiramente ela não tinha medo dos ladrões nem dos esbirros do “velho abutre”: só tinha medo de fantasmas. Naquela casa, aprendemos cedo duas coisas sobre a poesia. A primeira, era que os poetas eram todos uns personagens extraordinários, que apareciam a horas imprevistas e diziam coisas surpreendentes. De todos, o mais fantástico era o Ruy Cinatti, que nos convenceu que era o nosso irmão mais velho, regressado de outra vida em Timor e que esteve à beira de conseguir transformar-nos em guerrilheiros contra a precária disciplina familiar. Vinham e iam constantemente poetas tristes ou alegres, cerimoniosos ou tumultuosos e até um, o Ruy Belo, que me levava à Luz ver o Benfica e jogava futebol comigo no jardim.

A segunda coisa sobre poesia que aprendemos é que a poesia é para ser dita e para ser escutada: é oral, não cabe nos livros. Eu não sabia nada de aritmética, nem de botânica ou mineralogia mas, aos dez anos, já tinha aprendido, de ouvido, a recitar sonetos de Shakespeare em inglês do século XVI, ou o “Erl König”, do Goethe, em alemão. E quando ela trouxe para casa um disco com poemas do Lorca recitados em espanhol pela Germaine Montero, ouvi-o tantas, tantas vezes, que fiquei a saber de cor o imenso “Llanto por Ignácio Sanchez Mejia”. À mesa, entre a sopa e o prato principal, dentro de um automóvel a caminho do sul ou na missa das sete da tarde na Igreja da Graça, de repente ela começava a recitar poesia com a mesma naturalidade com que os outros falavam de coisas triviais ou respondiam em latim ao “orate, frates!” do padre. Às vezes, naquele terror que as crianças têm que os pais pareçam estranhos em público, apetecia enfiarmo-nos pelo chão abaixo quando, à mesa de um café no Chiado, ou numa loja, em plenas compras de Natal,

ou caminhando connosco pela rua de mãos dadas (por vezes, distraída, perdia-nos), ela começava a recitar poesia em voz alta, como se o mundo inteiro à sua volta lhe fosse de repente absolutamente alheio. Um dia, no eléctrico a caminho de casa, ela fixou-se num letreiro, por cima de uma janela, que rezava assim: “se alguma janela o incomoda, peça ao condutor que a feche.” E então, no meio daquele silêncio envergonhado dos passageiros, que fi ngem não ver e não se ouvir uns aos outros, ecoou a voz dela, clara e silabada, recitando um poema: “se alguma janela o incomoda, peça ao condutor que a feche e que nunca mais a abra.” A mim, todavia, ensinou-me o mais importante de tudo: ensinou-me a olhar. Ensinou-me a olhar para as coisas e para as pessoas, ensinou-me a olhar para o tempo, para a noite, para as manhãs. Ensinou-me a abrir os olhos no mar, debaixo de água, para perceber a consistência das rochas, das algas, da areia, de cada gota de água. Ensinou-me a olhar longamente, eternamente, cada pedra

da Piazza Navone, em Roma, sentados num café, escutando o silêncio da passagem do tempo. Fez-me mergulhador e viajante, ensinou-me que só o olhar não mente e que todo o real é verdadeiro. Quem ler com atenção, verá que esta é a moral que atravessa toda a sua escrita. A outra lição decisiva foi a da liberdade. Não só a liberdade física, não só a liberdade na luta pela justiça, “num sítio tão imperfeito como o mundo”, mas ainda a liberdade na busca de um caminho próprio onde as coisas tenham uma ética e façam sentido e, acima de tudo, a liberdade da nossa própria solidão. Prémios, condecorações, homenagens, são-lhe de tal forma alheios que ninguém mais o entende. Dêem-lhe, sim, silêncio e tempo, manhãs como a “manhã da praça de Lagos” e noites com “jardins invadidos de luar”. E ela dançará. Ao longo das sílabas dos poemas, como dançava na minha infância. (Texto publicado no PÚBLICO de 11/06/1999)


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mesas/ Buscamos o rastro frio das tuas mãos/ – O imperceptível dedilhar das tuas mãos)// Esquartejado pelas fúrias do não-

Eduardo Lourenço | Um retrato de Sophia Olhares famosos fi xaram deslumbrados a sua aparência, menos sedutora, em sentido vulgar, que também o era, do que silenciosamente irradiante na sua beleza. Outros não menos famosos, mas mais íntimos ou familiares da autora do Dia do Mar, deixaram-nos dela singulares retratos, não só da sua aparência mas da sua existência, desde cedo vivida com uma fulgurância que não passava despercebida. Assim a viram, diversamente fascinados pela sua incandescência ou assumida excepção, os seus amigos Torga, Agustina, o seu primo, testemunho da infância partilhada, Ruben A. Esses retratos só têm de comum o serem romanescamente retratos de alguém que uma vez conhecido se impunha como obsessão pessoal ou figura da utopia ficcional dos seus autores. É a este título, e não como meras “fotografias” de uma vida, que

eles são interessantes. À espera de quem os revisite ou até os descubra. A “Sophia” de Torga é um dos principais personagens do seu único romance Vindima, de clássica feitura, romance que não goza da celebridade dos seus Contos, mas onde toda a sua mitologia teatralizada encontrou uma versão menos linear do que aquela que é costume atribuir-lhe. Em Vindima e como romancista, Torga concede aos seus personagens uma “liberdade” mais convincente, digamos um grau de imprevisto, que aos dos seus contos, figuras exemplares, de função simbólica ou mítica. Precisamente “Sophia” é nesse romance a musa do imprevisível, do incompreensível, menos pelo seu “mistério” feminino que pela sua vocação poética. Não por ser autora de poemas que lhe criaram uma aura mas por ser a Poesia mesma, alguém que habita o mundo de maneira original, “cora-

ção oposto ao mundo” (Pessoa), não só o dos grosseiros senhores do Douro de quem é hóspede, mas de todos os doutores Brunos, realistas, audazes, de “pés fincados no chão” para quem “Sophia” é menos um desafio que um enigma. Na sua primeira aparição Catarina-Sophia é já aquela criatura à parte, etérea, alheada, a futura “nereide” por Pascoaes invocada que de nada mais parece viver que do sonho que escolheu como seu anjo. “O prato dele estava repleto, gorduroso e odorento. E pôs-se, absurdamente, a comparar a realidade das iguarias com a espiritualidade que irradiava do rosto da rapariga. – Vivo quase com chá – desculpou-se Catarina. – Como não faço nada não gasto energias. Falava, e toda ela parecia erguer-se do chão numa ascese laica espontânea e natural, como o ímpeto de

certas f lores que, no alongamento excessivo da haste, fogem à condição da raiz. – E porque é que não trabalha? – perguntou o Dr. Bruno, a olhá-la como se a violasse.” A visão de Torga é a mais naturalista, como se podia prever. Mas é também a mais idealizante, na verdade, a mais amorosa que o seu naturalismo erótico alcançou e sublimou: “Delgada e frágil, nascia-lhe da testa alta e aberta um cabelo tenro como uma relva. Os olhos, muito azuis e de uma pureza de água, tinham qualquer coisa da inocência dos bichos. Na pele fina do rosto, redondo e suave, havia uma transparência de cera. E ao mesmo tempo toda ela era mulher, feminina e atraente como uma leiva de jardim.” Foi exactamente esta Sophia ainda juvenil, a de que tive notícia, não nestas páginas de Vindima, mas nas palavras do próprio Torga,


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vivido/ À margem de ti dos outros e da vida/ Mantiveste em dia os teus cadernos todos/ Com meticulosa exactidão desenhaste os

Joaquim Félix de Carvalho e José Tolentino Mendonça| Hildegarda de Bingen, para Sophia I

O coruscans lux Antiphona O coruscans lux stellarum, o splendidissima specialis forma regalium nuptiarum, o fulgens gemma, tu es ornata in alta persona, quae non habet maculatam rugam. Tu es etiam socia Angelorum et civis sanctorum. Fuge, fuge sepeluncam antiqui perditoris, et veniens veni in palatium Regis. I

Ó coruscante luz Antífona Ó coruscante luz das estrelas, ó esplêndida especial beleza de núpcias reais, ó fúlgida gema, em excelsa pessoa és ornamento sem qualquer maculada ruga. És também sócia dos Anjos e concidadã dos santos. Foge, foge ao antro do inimigo antigo, e apressada vem ao palácio do Rei.

II

De Virginibus Antiphona

visivelmente fascinado e “enamorado” de tão ideal Musa, que até em versos foi mais do que comummente se imagina. Como ele o tinha sido ou era ainda dela. Em Vindima Torga ofereceu-lhe, sem pouca ficção, os sonhos que a realidade não comportava. Na vida, não sei em que momento, idealizou, para ela, na mais transmontana tradição casamenteira, uma espécie de enlace utópico com um dos mais belos poetas do seu tempo, as núpcias ideais do masculino e do feminino. Contou-me que favoreceu até onde pôde o idílio improvável de Eugénio e Sophia... Seria o casamento do século. Digo-o sem ironia. Mas os deuses são mais sábios que os humanos. Sem dúvida que ambos decidiram salvar do naufrágio sempre plausível da vida, a barca solar da Poesia. Aí se encontraram e se salvaram. • Vence, 7 de Julho de 2004

O pulchrae facies, Deum aspicientes et in aurora aedificantes, o beatae virgines, quam nobiles estis. In quibus Rex se consideravit, cum in vobis omnia caelestia ornamenta praesignavit, ubi etiam suavissimus hortus estis, in omnibus ornamentis redolentes. II

Das Virgens Antífona Ó tão belos rostos, absortos em Deus, industriosos na aurora, ó bem-aventuradas virgens, como sois nobres! Em vós o Rei se deleitou quando vos conferiu todos os ornamentos celestes e vos transformou em jardim de delícias, com todos os perfumes inebriantes.

Tradução de dois poemas de Hildegarda de Bingen (1098-1179)


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> Tiago Manuel

mapas/ Das múltiplas navegações da tua ausência –/ Aquilo que não foi nem foste fi cou dito/ Como ilha surgida a barlavento/ Com


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prumos sondas astrolábios bússolas/ Procedeste ao levantamento

Teresa Villaverde | Clara, Clara, Clara A poesia não se pode devolver, não se pode agradecer, não se pode pagar com nada que exista. “Os troncos das árvores doem-me como se fossem os meus ombros.” Sophia era diferente de uma mulher, diferente de um homem, diferente de uma fada. Era poeta e quando morre um poeta é sempre o dia mais triste e o silêncio mais duro. No meu entender, a violência mais perfeita. Aqui neste texto não cabe tudo o que Sophia escreveu, mas devia caber, e o país devia ter ficado calado, e as pessoas paradas e perdidas nas ruas à procura da voz de Sophia. “Porque eu trazia rios de frescura / E claros horizontes de pureza” “Porque eu era semelhante às paisagens esperando” “Eu nunca pedi nada porque era / completa a minha esperança” Chega até a ser estranho que Sophia tenha realmente existido, cheguei a vê-la, mas nunca ousei dirigir-lhe a palavra. Quando pensamos nos nossos antepassados, se este não tivesse conhecido aquele que depois conheceu aquele, que por sua vez conheceu aquele outro, nós não teríamos existido. Mas quem terá feito um dinamarquês desembarcar no Porto? E se ele não tivesse desembarcado, e não tivesse conhecido aquele que lhe apresentou aquela e por aí a fora. Sorte, tanta sorte. “Sacode as nuvens que te poisam nos cabelos, / Sacode as aves que te levam o olhar, / Sacode os sonhos mais pesados do que as pedras.// Porque eu cheguei e é tempo de me veres, / Mesmo que os meus gestos te trespassem / De solidão e tu caias em poeira, / Mesmo que a minha voz queime o ar que tu respiras / E os teus olhos nunca mais possam olhar.” “Branca./ Branca era a ninfa, /Branca e prisioneira / E impaciente.” Sorte. Tanta sorte. “Oriana atravessou o café, sem que ninguém a visse. Parou em frente do Poeta e tocou-lhe ao de leve na mão. Ele levantou a cabeça e viu-a. Viu as suas asas e a sua varinha de condão. E viu que ela estava em pé no ar, sem que os seus pés tocassem o chão.

– Sou eu – disse ela. – Agora vejo que és tu. Agora vejo que és uma fada. Obrigado, Oriana, porque tu voltaste. Oriana deu-lhe a mão, e sem que ninguém os visse, saíram do café. Atravessaram a cidade e as suas ruas cruzadas com anúncios luminosos. Atravessaram as praças, as avenidas e os cais. E saíram da cidade. Foram pelo caminho ao longo do abismo até à floresta. A lua cheia iluminava os montes e os campos. Quando chegaram à floresta, o poeta pediu: – Oriana, encanta tudo. E Oriana levantou a sua varinha de condão e tudo ficou encantado.” Acredito que na vida, Sophia tenha conseguido viver dias em que foi simultaneamente a fada que encanta tudo e o poeta que precisava ver tudo encantado. Noutros dias a fada não estava lá. “Dei-te a solidão do dia inteiro./ Na praia deserta, brincando com a areia, / No silêncio que apenas quebrava a maré cheia / A gritar o seu eterno insulto, / Longamente esperei que o teu vulto / Rompesse o nevoeiro.” Eu sinto a obra de Sophia como património fulcral da minha vida. Como o mar, como as ervas, o céu, as árvores, os príncipes, as minhas próprias lágrimas. Todo o todo. “Sei que passo em redor dos mortos mudos / E sei que trago em mim a minha morte. // Mas perdi o meu ser em tantos seres, / Tantas vezes morri a minha vida,/ Tantas vezes beijei os meus fantasmas, / Tantas vezes não soube dos meus actos, / Que a morte será simples como ir / Do interior da casa para a rua.” Que essa passagem lhe tenha custado pouco, imagino-a consciente, mas não sei se estava. Imagino que tivesse querido estar consciente, talvez para se poder lembrar depois. “Que nenhuma estrela queime o teu perfil / Que nenhum deus se lembre do teu nome / Que nem o vento passe onde tu passas. // Para ti eu criarei um dia puro / Livre como o vento e repetido / Como o florir das ondas ordenadas.” Sorte, poeta Sophia. Tanta sorte que nós tivemos. •

(Todos os versos pertencem à “Obra Poética” I e II da Editorial Caminho, tirando o que obviamente pertence à “Fada Oriana”)

Maria Velho da Costa | Visionária do visível Neste país, paraíso triste, de séculos em séculos acontecem milagres. A Sophia foi um dos milagres acontecidos à nossa alma. Visionária do visível, reinventou uma sonoridade límpida para os nomes que damos às coisas, o mar, a luz, o fogo, a cal dos quartos onde se cresceu só, a justiça, a liberdade. Durante anos levantou a cabeça das nossas crianças para o assombro. Fê-lo por uma conjunção muito difícil de encontrar no ser português: a paixão da claridade e a capacidade de confronto com o caos. Acho que foi essa a essência da sua vida e da sua obra: usar o gume da palavra clara e justa contra o horror e a espessura opaca do mundo que não cessaram nunca de a acossar. Perdemos também isso e a sua incitação a uma alegria por vezes feroz; in-

domável como a das grandes crianças. Perdemos a menina do mar alto. Mas acho que foi Sophia quem escreveu o seu próprio epitáfio nesta “Ode à maneira de Horácio”. Fiquemos com a sua voz, o claro sopro que é o seu legado: Feliz aquela que efabulou o romance Depois de o ter vivido A que lavrou a terra e construiu a casa Mas fiel ao canto estridente das sereias Amou a errância o caçador e a caçada E sob o fulgor da noite constelada À beira da tenda partilhou o vinho e a vida (Texto lido na missa para Sophia de Mello Breyner Andresen, na Igreja da Graça, em Lisboa, a 4 de Julho de 2004)


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do desterro// Nasceste depois/ E alguém gastara em si toda a verdade/ O caminho da Índia já fora descoberto/ Dos deuses só restava/

Sophia, Setembro 1948, Romeira

Eduardo Prado Coelho | A respiração azul das coisas A beleza nunca é beleza em si mesma. É uma beleza que tem a força de ser bela. E essa força é utopia, voo, abertura, respiração dos deuses. A presença do mar – imagem absoluta em Sophia – corresponde à respiração dos deuses, isto é, à respiração azul das coisas, ao círculo da beleza concentrada: “Como o rumor do mar dentro de um búzio / O divino sussurra no universo / Algo emerge: primordial projecto.” Costuma-se dizer que a obra de Sophia de Mello Breyner Andresen celebra a beleza das coisas elementares, e isso é verdade. Mas talvez seja importante sublinhar que ela é estruturalmente elementar, se tomarmos o termo no seu peso exacto: oscila entre o Um e o Dois, sendo o Um o absoluto, e o Dois o princípio da divisão, isto é, do Mal. Há no entanto outros aspectos que importa pôr em evidência. Em primeiro lugar, o Um inclina-se para o Dois pela necessidade de se manifestar, e a manifestação é um lugar de disseminação: “Quem poderá deter / O Instante que não pára de morrer?” Em segundo lugar, o Dois tem sempre no interior de si uma linha de resistência que lhe permite refluir em direcção ao Um. Por outro lado, o Um não se projecta em direcção a um pólo transcendente: para Sophia, “Deus é no dia”: “Deus é no dia uma palavra calma / Um sopro de amplidão e de lisura.” E é na imanência pura que a presença de Deus se inscreve. Ou ainda na claridade solar e vertical do dia: “De novo o dia será liso como a orla do mar.” Primeiro, como ausência: ausência do outro (do tu amado como um deus). E há graus (degraus?) na imanência: “Num deserto sem água / Numa noite sem lua / Num país sem nome / Ou numa terra nua // Por maior que seja o desespero / Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.” Segundo, como projecto. E este é um dos aspectos mais interessantes na obra de Sophia: o real começa por ser ideia, mas só é uma verdadeira ideia se for uma ideia que já é desde sempre concreta e real, que começa por ser água, fogo, casa, mesa. Donde o projecto poderá começar por ser “o longo muro alentejano

e branco”: “O longo muro alentejano e branco / O desejo de limpo e de lisura / Aqui na casa térrea a arquitectura / Tem a clareza nua de um projecto.” Anote-se: poucas poesias em língua portuguesa são de tal modo arquitectura sem falarem directamente sobre arquitectura. Anote-se ainda a adjectivação sempre subtil em Sophia: “O muro alentejano e branco.” Trata-se de misturar duas referências descoincidentes: por um lado, a questão geográfica (estamos perante um muro do Alentejo – lembre-se que a poesia de Sophia é geográfica e não histórica); por outro, a cor, isto é, o branco. Ao escrever “alentejano e branco”, Sophia está a dizer-nos que por essência um muro alentejano é branco – a dimensão é analítica, e não sintética: um muro alentejano não é alentejano e por acidente branco, mas ao ser alentejano é por essência branco. É nesta compactificação essencialista que Sophia estreita o Dois em Um, numa espécie de tenaz discursiva. Mas existe um outro poema intitulado “Projecto II”: “Esta foi sua empresa: reencontrar o limpo / Do dia primordial. Reencontrar a inteireza / Reencontrar o acordo livre e justo /E recomeçar cada coisa a partir do princípio // Em sua empresa falharam e o relato / De sua errância erros e derrotas / De seus desencontros e desencontradas lutas / É moroso e confuso // Porém restam / Do quebrado projecto de sua empresa em ruína / Canto e pranto clamor palavras harpas / Que de geração em geração ecoam / Em contínua memória de um projecto / Que sem cessar de novo tentaremos.” Aqui o projecto está mais perto do humano do que dos deuses: “No poema ficou o fogo mais secreto / O intenso fogo devorador das coisas / Que esteve sempre muito longe e muito perto.” Donde, o estar perto dos homens não significa que esteja longe dos deuses. Todo o projecto está longe e perto ao mesmo tempo (ou melhor: fora do tempo). Reencontramos aqui a constelação semântica de Sophia: “reencontrar” precisamente, “limpo”, “primordial”, “inteireza”, “tentar de novo”, “acordo livre e justo”. E na linguagem

da poesia o diferir do som em dois é sempre eco, espelho sonoro: “errâncias, erros e derrotas”; “canto e pranto clamor palavras harpas”. Projecto que é também promessa. Quando se passa da arquitectura para a pintura, a poesia de Sophia captura uma deslocação visual: o que se vê vê-se olhando para outro lugar, como se Picasso pintasse sobre a evidência de Mantegna. Deste modo: “Sua beleza é total / Tem a nítida esquadria de um Mantegna / Porém como um Picasso de repente / Desloca o visual / / Seu torso lembra o respirar da vela / Seu corpo é solar e frontal / Sua beleza à força de ser bela / Promete mais do que prazer / Promete um mundo mais inteiro e mais real / Como pátria do ser.” Como vemos, a beleza nunca é beleza em si mesma. É uma beleza que tem a força de ser bela. E essa força é utopia, voo, abertura, respiração dos deuses. A presença do mar – imagem absoluta em Sophia – corresponde à respiração dos deuses, isto é, à respiração azul das coisas, ao círculo da beleza concentrada: “Como o rumor do mar dentro de um búzio / O divino sussurra no universo / Algo emerge: primordial projecto.” Se nos lembrarmos que “emergir” corresponde a “sair do mar”, então estes versos ganham ainda mais sentido. Poucas poesias foram tão longe na positividade pura. De tal modo que o negativo, que existe, que ocupa grande espaço nestes poemas, até como fórmula de contraste em relação ao desejo de outra coisa, é uma espécie de transição inevitável num percurso: temos o Um sempre anterior a si mesmo (“Aquele que partiu / Precedendo os próprios passos como um jovem morto / Deixou-nos a esperança”), temos ainda a vitória do tempo contra a geometria primordial (a Ideia como vinco inapagável do real): “Ele não ficou para assistir / À morte da verdade e à vitória do tempo.” E há o que Sophia designa como “a lei do próprio pensamento”, que é ao mesmo tempo uma Lei e a sua perdição, uma ideia e matérias ténues de quase abstracção: “espuma sal e vento”.


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O incerto perpassar/ No murmúrio e no cheiro das paisagens/

Margarida Gil | Um dia, uma deusa... Um dia estava eu com o João* numa praia perto de Vale de Lobo, Algarve, ambos nus ao sol. Ao longe vimos uma figura que nos pareceu uma deusa ondulando à beira-mar. Trazia uma longa túnica que esvoaçava e uma ânfora na mão. Expulsos pela deusa daquele paraíso vestimo-nos à pressa. A deusa aproximou-se e nós dela. Dissemos: Não é possível, pois não? Era. Era mesmo a Sophia que tinha uma casa ali naquele tempo. Com a ânfora apanhava água do mar. Convidou-nos para jantar. Comemos um extraordinário spaghetti frio com amêijoas cozinhado na água que trouxera do mar, e coentros. E um magnífico vinho branco gelado. A Sophia adorava comer e adorava conversar e a adoração era mútua. Aquele jantar ficou na minha memória como uma imagem dos deuses gregos. Podem sempre descer à terra e ser terrivelmente humanos e na terra ser terrivelmente divinos, como a Sophia.

*João César Monteiro

Será que o tempo é o espaço consagrado do Dois? E a proliferação do Dois converte-se sempre numa pluralidade infectada? O Mal é para Sophia uma ocorrência inexplicável. Serão os anjos revoltados? Serão os homens que não chegaram sequer a ser anjos? Não sabemos. Vemos apenas os resultados, a multiplicação dos monstros. Como se passa sem quase saber que se passa da pureza para a impureza? “Senhor se da tua pura justiça / Nascem os monstros que em minha roda eu vejo / É porque alguém te venceu ou desviou / Em não sei que penumbra os teus caminhos // Foram talvez os anjos revoltados. / Muito tempo antes de eu ter vindo / Já se tinha a tua obra dividido // E em vão eu busco a tua face antiga / És sempre um deus que nunca tem um rosto // Por muito que eu te chame e te persiga.” Não haverá poesia do negativo? Há, claro. “Cantaremos o desencontro: / O limiar e o linear perdidos // Cantaremos o desencontro: / A vida errada num país errado / Novos ratos mostram a avidez antiga.” E, como em ensaio já antigo tentei dizer, Pessoa é o grande exemplo. Pessoa vem nitidamente depois do absoluto: “Nasceste depois / E alguém gastara em si toda a verdade / O caminho da Índia já fora descoberto / Dos deuses só restava / O incerto perpassar / No murmúrio e no cheiro das paisagens / e tinhas muitos rostos / Para que não sendo ninguém dissesses tudo / Viajavas no avesso no inverso no adverso.” Mas dizer tudo é da ordem da extensão, não da ordem da intensidade: é a enumeração (que em Sophia corresponde a uma figura insistente até que o salto se dê para a emergência do absoluto), mas não chega a ser a nomeação, o gesto essencial: é este o ofício do poeta. Até conseguir que o Dois seja Um, e isso será possível quando o Dois for o Dois dos espelhos: “Este é o país onde a carne das estátuas como choupos estremece / Atravessada pelo respirar leve da luz / Aqui brilha o azul-respiração das coisas / Nas praias onde há um espelho voltado para o mar.” •

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E tinhas muitos rostos/ Para que não sendo ninguém dissesses tudo/ Viajavas no avesso no inverso no adverso// Porém obstinada eu

Herberto Helder | Paradiso, um pouco. Um pouco de paradiso, gemia eu, um instante apenas, um parêntese paradisíaco. Dias, semanas, meses de existência infernal. Ininterruptamente, em todos os lados. Agora era Coimbra, inferninho de merda. E eu: uma cerveja no inferno! E lá ia até às putas, ao Terreiro da Erva. Ou até aos parques e jardins. E nos belos parques e jardins punha-me a devorar os grandes livros da poesia. Li ou reli todos os autores portugueses legíveis. Que grande poesia tinha para ler entre os vivos de então? Só me lembro de Nemésio. E entretanto cumpriase o ciclo das estações, os parques e jardins enchiam-se e esvaziavam-se de luxo botânico, o rio secava ou transbordava trazendo consigo laranjas gloriosamente redondas e amarelas. Nalguns poemas de Nemésio essa Coimbra cíclica aparece com todos os prestígios dos nomes e números. Até as putas aparecem. Quanto ao idioma pátrio, julgava eu que tudo estava dito. E o dito em pátrio, tinha de aquilatá-lo pelo que já lera de outras terras outras gentes, milagres como Le Spleen de Paris, Rimbaud, Michaux, um pouco de Artaud, o Hölderlin e o Rilke via Quintela, alguma língua inglesa de Pound e Eliot, e os não muito amados por outros mas por mim amadíssimos poemas de D. H. Lawrence, e Espanha 25, e Brasil de Drummond e da Invenção de Orfeu. Não vou ser modesto: a derradeira cedência seria compatibilizar-me com os sistemas de gosto democráticos. Lúcida paixão – a paixão não produz a lucidez, não a produz ao

menos na matéria da poesia? Confusões na cabeça? Nenhumas. Eu lera, criara os meus campos electromagnéticos, tinha o dom de ser percorrido por calafrios na espinha. Os poemas verdadeiros encontravam-me. E por isso Nemésio andava por ali. A regra em torno era a adolescente brotoeja presencista ou o neo-realejo compagnon de route. Universidades, nada. Fingi que entrara, mas só saía, saí dois ou três anos seguidos. E eis que de uma única vez arranjo tudo de Sophia. Vamos lá a ver como isto se entende com o abalo sísmico Pessanha, Sá-Carneiro, Pessoa. É da prateleira dos livros medonhos que fazem estremecer? A conversa era outra, nada sulfurosa, nada fáustica, conversa de soberana gravidade. Que tinha ela na altura, Sophia? Agora vê-se que foi ganhando nobreza, transparente memória, Sophia-a-clássica, um tanto como se vê nas melhores traduções de Akhmátova, nas estrangeiras, que nas portuguesas não há nada para ver. A Sophia desse tempo não dispõe ainda das V Artes poéticas, os volumes são Poesia, Dia do mar e Coral, onde subterraneamente se desenvolvem impulsos obscuros, monstruosos, o caos, cá-óss, silvaria o padre Manuel Antunes, S. J. Estava eu ainda à espera de Ponge, Melo Neto, ou mesmo do grecismo imagista de H. D., Hilda Doolittle, (do imagismo: tratamento directo da “coisa”, subjectiva ou objectiva, Pound, 1912). Era decerto a nostalgia grega, mais tarde foi visto as gentes atacadas pela nostalgia grega, queriam aportar à Grécia,

queriam-no todos, mesmo turisticamente, ilhas, cabeças de deuses, torsos arcaicos, luzes e linhas solares, enfi m a apoteose apolínea. A ciência e inteligência de Sophia foi praticar – como Akhmátova e Mandelstam, ditos acmeístas (o ponto mais alto, pureza, perfeição) – uma arte que fornecesse, contendo em si a intensidade e o tremor instintivos, mas elidido o sujeito, a referência literal. Em registo estrito e imediato exemplifica-se a dignidade do mundo. O poema existe por si, é uma forma impessoal que as mãos limpas arrancam à desordem para apresentar como ordem objectiva no meio das corrupções, inclusive as corrupções da nomeação. Fascina-me tamanho sonho, tão sobranceiramente natural, sonho irredutível, é a prova do próprio mundo. Forçoso aceitá-lo, trata-se do concreto absoluto da percepção. “Vê-se” o verso liso e homogéneo; o corpo do poema não apresenta nenhuma ferida ou cicatriz. É a excelência. E neste ponto confundem-se mundo e verdade, ambos traduzidos como ética. Sabe-se agora que ética significa o rigor de escrever estética. Não, não sucedia assim à época dos parques e terreiros, a época dos três primeiros livros, mas, um pouco afastadamente, via-se já para onde se dirigia aquela voz levantada no pequeno inferno onde eu circulava, apertado pela ruralidade das mentes estudantes, praxes, capas negras, la merdre. Com certeza, ah sim, era com certeza um poderoso poema à sombra daquele outro poderoso poema

que Paulo Quintela trouxera de uma Grécia mais peremptória do que a Grécia a que chamam clássica, o poema diurno onde Hölderlin formulara a unidade – e não por acaso adopta Sophia mais tarde, como denúncia e lamentação, o título No tempo dividido para um seu livro despedaçado. Quando ela pôde escrever que “os poemas eram (...) o nome deste mundo dito por ele próprio”, chegou ao termo, ficou completa, e escutou-se então, e eu escutei já noutro sítio, noutro inferno qualquer, a voz clara: “A voz sobe os últimos degraus / Oiço a palavra alada impessoal / Que reconheço por não ser já minha.” Valère Novarina diria: Au plus profond de moi, la parole ne m’appartient pas. Fala-se de quê? Da visão religiosa, etymologico sensu, da “realidade” ou, se se quiser, e é indispensável que se queira, da mais urgente quimera que fundamenta a poesia. Em cada palavra salva-se a totalidade do espírito. Eu ouvi a voz aproximar-se do centro do teatro, em Epidauro. Sophia foi um dos exemplos maiores que me ajudaram a sobreviver no inferno da tóxica, da mortífera província cultural e humana, década 50, começos, 51, 52, à volta só parvoeira, impraticabilidade, prosa. Imagine-se: escapei intacto! Fica assente a quem o devo. Também a ela, sim, ela que, desde o princípio, mostrou que as coisas têm (...) uma alma virgem e que através de todas as presenças caminhava para a unidade. Selah. (Texto publicado no nº 9 da revista de poesia “Relâmpago”, dedicado a Sophia de Mello Breyner Andresen, em Outubro de 2001)

Mário Cesariny | A benção de Sophia

Gonçalo Ribeiro Telles | O jardim de Sophia

Tenho uma admiração muito grande por ela. Sophia, vida e obra, encarnam realmente a Sophia. Até o nome dela. E tenho um grande carinho. Vou contar uma coisa que o Pascoaes me contou. Uma vez, estava ele em São João de Catão, em Amarante, e ouve um cavalgar estrepitoso pelo solar, vê um belo cavalo e em cima uma bela rapariga, que se chamava Sophia de Mello Breyner. Ela percorreu quilómetros a cavalo para o ver. Isso é muito bonito. A Sophia é isso, na poesia e na vida. Estive lá em casa dela, há dois meses ou três. Eu tinha um quadro do filho, o Xavier, levei lá o quadro para ele assinar. E estive com ela. Já não falava, mas continuava a ser uma coisa admirável. Perguntei-lhe: “Ainda gosta de mim?” E ela disse-me que sim. Pedi-lhe a benção – e ela abençoou-me. Ela é a poesia.

Quando procurei inventar um jardim para a Sophia, deparei com um lugar onde a força telúrica das colinas e do estuário e a beleza da paisagem se interligavam de tal maneira que o Jardim não é mais do que o elo, no sítio próprio, onde se consubstancia tal aliança. O Jardim situa-se num socalco duma colina, tendo em frente a encosta verdejante e as muralhas escondidas do castelo, enquanto que para Sul se adivinha o nevoeiro e a luz do Tejo. É como que um quintal do velho arrabalde mourisco, donde se vislumbra uma paisagem recortada no azul luminoso do céu de Lisboa. Pelo lugar e pelo jardim corre o tempo: a alegria do dia, a que se sucede o segredo da noite, a metamorfose das estações e o suave silêncio da natureza, pontuado pelo cantar dos pássaros.

(depoimento recolhido ao telefone)

Sophia integrou-se naquele espaço que esperava pela poesia para se tornar humanamente compreensível e transcendente. Para mim a Sophia, o jardim e a paisagem do lugar são um todo, onde apenas surgem como referências simbólicas: Um prado humilde, um cipreste, apontando para as alturas, o abrigo dum pinheiro manso, uma alfarrobeira mediterrânica, um caramanchão, tão característicos das quintas românticas do Porto, e a mesa e cadeira de Sophia. O Jardim vai por certo permanecer – “Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta/ Continuará o jardim, o céu, o mar,/ E como hoje igualmente hãode bailar/ As quatro estações à minha porta” – mas temo pelo futuro do lugar e da paisagem, ante o avassalador avanço da obesidade do betão e do chão asfaltado, consequência da “morte” da poesia.


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> Graça Morais

invoco – ó dividido –/ O instante que te unisse/ E celebro a tua chegada às ilhas onde jamais vieste// Estes são os arquipélagos


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que derivam ao longo do teu rosto/ Estes são os rápidos golfinhos da tua alegria/ Que os deuses não te deram nem quiseste// Este

Silvina Rodrigues Lopes | Lugar do desejo inextinguível

Sophia com uma prima

Quem, como o poeta, mergulha de olhos abertos e desse gesto retira uma obra que entrega ao mundo, conduz-nos ao lugar essencial – aí onde se sente que cada coisa é única e que a singularidade insubstituível dos humanos lhes advém pela consciência da finitude, do seu ser mortal, condição que permite dizer “eu” e estar “aqui”, sendo “eu” e “aqui” nomes de uma ligação infinita, universalizante. A sabedoria do poema faz coincidir na sua letra a consciência da perecibilidade e da ruína e o desejo de uma relação com as coisas, com os outros, com o mundo, que seja construção de um lugar enquanto experiência do eterno. É poesia a nossa aceitação da morte, a dor sem o ressentimento nostálgico, a entrega à beleza prometida em palavras que vêm de longe, do imemorial. Nas formas que o poeta constrói, e onde cada coisa é exposta na sua fragilidade e no seu nome – aquele que a diviniza –, a celebração da vida faz-se inteira e responsavelmente testemunho da nossa condição: “Haverá longos poentes sobre o mar,/ Outros amarão as coisas que eu amei”. Deixar o mundo aos que vêm é cuidar para que verdade e beleza prevaleçam sobre o lixo, que cresce a todos os níveis. É essa a responsabilidade de cada um, também do poeta, que é criador a partir do seu meio, daquilo que o toca e lhe é dado em partilha. Quando lemos Sophia encontramos poemas com títulos como “No poema” ou “Aqui”, que assinalam claramente uma ideia da poesia como acontecimento. Não se trata de encontrar, de acordo com o que seria um certo ideal clássico, as representações que melhor dêem corpo a certas ideias e assim permitam o comércio com o imutável, o fora do tempo. Uma leitura atenta mostra-nos que aquilo que se pretende preservar no poema é experiência do eterno, o “instante real de aparição e de surpresa”, mas não de um fora do tempo, nem de uma permanência do idêntico: “Transferir o quadro o muro a brisa/A f lor o copo o brilho da madeira /E a fria e virgem liquidez da água /Para o mundo do poema limpo e rigoroso // Preservar de decadência morte e ruína /O instante real de aparição e de surpresa /Guardar num mundo claro /O gesto claro da mão tocando a mesa”. Guardar é entregar à guarda da claridade, do fazer sentido, aquilo que não se limitando nunca a uma forma a impregna pela dicção, pelo tom, pelo ritmo, e lhe confere uma necessidade indeterminável. O que se preserva é o testemunho de uma relação, de uma maneira de ser no mundo. Preserva-se um movimento, um impulso para o outro: o “aqui estou”, que diz que um poema não é apenas epitáfio, é fonte ou estrela ou fio de Ariadne. Não é de ideias ou de matérias que o poema é feito, mas das relações que um corpo e uma alma inscrevem em palavras que não são só suas. Por isso, o momento inicial de captação do real é relação com o desconhecido, instante da percepção em que “a veemência do visível”, “o brilho do visível”, é o ponto por onde este se interrompe, a sua aresta, cintilação, a luz que o atravessa de invisível, o divino imanente. Porque o visível é sempre já habitado, a sua evidência/construção não é autónoma da palavra que a diz. Captá-lo, transferi-lo para o poema, é af ir mar a dualidade instauradora do mundo, sensível-inteligível, e com ela o “sistema” de dualidades (que não de oposições excluintes) que constrói esta poesia: visível-audível, unidade-dispersão, ordem-caos, novo-antiquíssimo, vida-mor te. É pelo entrelaçado dual de forças, e pelo que isso implica de tensão permanente, como a do arco e a da lira segundo a expressão atribuída a Heráclito, que o testemunho do poema se faz “solenidade e risco” – atenção às destinações, recusa de qualquer subjugação a finalidades. No seu acontecer, o poema não inventa o real, isto é, não o apresenta como resultado de u ma operação subjectiva, como exercício de uma aptidão específ ica, ma s t a mbém não o descobre como aqu ilo que est á ali colocado diante de quem obser va. O poema dá-se como lugar de dispersão da subjectividade e caminho para a unidade, que é o tomar for ma de uma relação


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é o país onde a carne das estátuas como choupos estremece/ Atravessada pelo respirar leve da luz/ Aqui brilha o azul-respiração

Luís Miguel Cintra | Para que exista cidade com as coisas que se assinala como beleza e verdade – justeza daquilo que não poder ia ser de out ro modo e que encont ra assim a sua necessidade. Há nas ar tes poéticas que Sophia escreveu u ma explicação sobre a relação da poesia com a justiça, que a sit ua na sequência de u ma relação just a com as coisas, isto é, que a vê decor rer necessariamente desta. É cer tamente uma concepção da justiça de origem egeo-cretense, que se baseia na noção de equilí br io, na relação de igualdade, que não admite a imposição pela qual uma força nega a existência das forças que domina. A poesia de Sophia é uma manifestação, um testemunho, de amor ao real. E é precisamente assim que ela se afasta de qualquer processo que vise encontrar as representações mais adequadas, ou as melhores maneiras de reprodução de sentimentos em palavras. À fragmentação utilitarista da representação contrapõe-se o desejo do mundo na sua dimensão criadora, do encontro, acontecimento. Por isso, enquanto coisa do mundo que engendra sentido, o poema não é apenas testemunho desse mesmo engendrar (auto-ref lexividade), mas é sobretudo lugar do desejo inextinguível. Em Sophia o gesto poético não é o do entardecer, do vestígio ou da cinza – é o da manhã, do Sim eterno que se espalha pelo mundo e abrasa a terra sem nunca nela se perder, num jogo de compaixão e distância que se une a todas as forças que mantêm a distinção dos dias e das noites. Porque: “No poema ficou o fogo mais secreto / O intenso fogo devorador das coisas / Que esteve sempre muito longe e muito perto.” •

Quando em 98 Jorge Sampaio, Presidente da República, e João Bénard da Costa me pediram um espectáculo oficial sobre a poesia portuguesa para o dia de Portugal, depois de hesitar, que isto de actos públicos oficiais nunca foi do meu mundo, contrapropus um espectáculo apenas com poemas da Sophia. Ambos são gente de bem e aceitaram. Pelo menos João Bénard, eu sei, muito contente. Chamámos-lhe “Austeros Sinais”, roubando palavras a um verso seu. Não me arrependo e lembro com alegria o abraço que Sophia me deu, contente por nos ter ouvido dizer os seus poemas em plena cidade e em lugar de honra. Ela, pelo menos, terá percebido. Sophia pensou um país, os seus poemas desejam um país que não sabemos ser. A sua poesia é acto público. Ela viu e disse a alegria que não sabemos pensar. E no seu funeral na Igreja da Graça, no alto da cidade, diante do seu corpo presente, solenemente, durante a missa de Frei Bento Domingues, ergueu-se um castelo gigante contra a política pequena, contra o nojo e a mentira, ergueu-se a força tremenda da autoridade moral da sua voz. Temos nos seus versos para sempre um padrão. Muito a conheci e desde cedo. Em sua casa, em casa dos meus pais, em plena rua, como não?, em viagem para Bordéus. E no Teatro. Era a festa. Com ela partilhei as alegrias das suas traduções de Shakespeare. Não mais me esquecerá o prazer de a ouvir ler tantos trechos do seu Hamlet e das tardes em sua casa a vê-la rever a tradução do Much Ado, como sempre dizia, entre chávenas de chá, cigarros, livros, poemas que tinha escrito, tanta excitação, e mil divagações por todos os assuntos. Queria cenários da Menez. Nem me esquecerá a sua alegria de nos ter visto representar esse seu texto. Não mais me esquecerão os dias em que pouco a pouco me foi dando a ler as cenas do seu Colar

e o seu prazer de o ir escrevendo, pérola a pérola. Não mais me esquecerá o dia em que a vi pela última vez, ainda não há muito tempo, uma tarde no nosso teatro, para que lhe representássemos a sua peça e em que para ela disse a sua versão do poema de Byron: “Não iremos mais juntos divagando / Pela noite fora / Embora a lua brilhe tanto como outrora / Embora como outrora / Não cesse do amor a voz uivante / Que me devora”. De uma coisa me arrependo: nunca soube responder às dedicatórias que me escreveu nos seus livros: “Para o Luis Miguel – finalmente o Hamlet!” e daí para a frente, repetidamente, pelos anos fora, sempre “à espera de o ver representar o Hamlet”. Não ousei, Sophia. Agora é tarde. Perdão. Mas a sua tradução ficou. Para sempre. Outros saberão também amá-la. Pela mão de Gastão Cruz foi com a sua “Paisagem” que comecei a recitar (“Era a verdade e a força do mar largo, / Cuja voz, quando se quebra, sobe, / Era o regresso sem fim e a claridade / Das praias onde a direito o vento corre.”). Quantas vezes me não perguntei: que diria a Sophia? que faria a Sophia? Como por certo também a tanta gente, ela me ensinou a pensar, ela me educou. Ela era a elegância, a Cultura, a arte de estar vivo. Que a sua obra nos ensine a viver. Temos para o nosso país, para a vida de toda a gente, um projecto: as suas palavras, palavras da nossa língua para serem ditas em voz alta. Muitas vezes lhas ouvi dizer, muitas vezes as tenho dito, muitas vezes me pediu que as dissesse, muitas vezes as prometo dizer. São palavras que dizem a alegria, a luz do mundo, as cores das coisas, o prazer do real, a música, o movimento, a justiça, a liberdade, a generosidade essencial, a coragem, o tamanho do Homem. Para que não esqueça. Para que exista cidade.


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> Luísa Ferreira

Atlântico Mar//Metade da

Pedro Mexia | O mar. Era Frederico Lourenço | Luz cor de amora um medo O mar. Era um medo, cenário de náufragos, rumor nocturno contra o sono infantil. Vagas em vez da placidez amniótica, sorvedouro salgado com duras reincidentes mitologias. Mas nessa manhã saíste do mar, Botticelli subitamente em movimento, os versos um mar límpido como a quase inocência que então trazia, extasiado e de novo com quinze anos. Era o mesmo mar. O mesmo sul. Coisa patriótica, de repente feito o sublime natural da praia, em época de sublime ainda natural. Palavras, conchas impudicas, extemporâneas, um ardor vocabular na minha carne. E os versos se faziam com a tua figura uma só matéria, como as rochas ricas pelo depósito da maré vazante. O teu corpo e esses versos quase me curaram do medo do mar.

Ainda tenho o postal. Raparigas sorridentes de mão dada, trajando vestes tradicionais gregas, no acto de executar uma dança. Podiam ser as Musas. Na verdade, são bailarinas do grupo folclórico de uma famosa ilha grega. O reverso do postal tem uma mensagem escrita a esferográfica azul naquela inconfundível caligrafia esguia e diz: “peço-lhe que me telefone para falarmos das suas traduções. Sophia M.B.A.” Era Abril de 1984, eu tinha vinte anos. A minha grande paixão era a obra poética de Sophia de Mello Breyner Andresen, sobretudo Geografia e Dual. A releitura compulsiva dos poemas gregos desses livros metera-me duas ideias na cabeça: estudar Filologia Clássica na Faculdade de Letras (tal como a própria Sophia fizera) e ser poeta. A primeira ideia acabou por se revelar mais exequível do que a segunda. O problema manifestava-se já em 1984: todos os versos que me saíam da caneta não passavam de confrangedoras imitações dos poemas que eu tanto amava da Sophia. Até que veio de repente uma inspiração: em vez de escrever poemas imitados da Sophia, porque não escrever os próprios poemas da Sophia, mas noutra língua? Traduzi para inglês os poemas gregos e, com ingenuidade talvez demasiado infantil para a idade que eu já tinha, enviei-os à autora. Uma semana depois chegou o postal. Telefonei-lhe, a tremer dos pés à cabeça. A voz, muito calma, sugeriu que eu fosse ter com ela, daí a dois ou três dias, ao Grémio Literário. Quando lá cheguei, ela pareceu-me preocupada. Falou do regresso a casa e da dificuldade de arranjar táxi àquela hora. Deduzi

que já não estivesse interessada em falar das traduções, o que até me fez sentir algum alívio. E face ao receio por ela reiterado de não arranjar táxi, ofereci-me para a levar a casa, ocultando-lhe a informação de que acabara de tirar a carta de condução. Bom, aquele trajecto da Baixa à Graça ficou e ficará para sempre gravado na minha memória: as travagens bruscas, os pontos de embraiagem falhados, o motor sempre a ir abaixo, as tentativas malogradas de ultrapassar o eléctrico. Eu num estado de nervos absurdo, consciente de que estava a fazer figura de perfeito anormal. Ela sempre calma, sempre adorável, sempre com uma palavra simpática. Ao passarmos o miradouro de Santa Luzia, atrevi-me a confessar-lhe que para o ano iria para a Faculdade estudar Filologia Clássica. “Espero que não se arrependa”, foi o que ela respondeu. Chegámos a casa dela. “Venha tomar um chá, depois falamos das suas traduções”. Ao entrar em casa, Sophia virou-se para a empregada e disse com voz de actriz trágica “traga-me um chá, ou desfaleço…” Apareceu de seguida um cocker spaniel já idoso, ao qual me pus a fazer festas para disfarçar os nervos. Sophia disse “os romanos tinham razão quando escolhiam não viver uma velhice decrépita”. Tentei fazer cara de adulto inteligente. Depois do chá e de vários cigarros, Sophia pegou nas folhas que eu lhe mandara com as tais traduções e fez uma série de comentários que ainda hoje me fazem corar. Sempre com charme inexcedível, sempre com o maior cuidado para não me ofender. A colocação das

palavras, o desdobramento de alguns sintagmas, as rasteiras inestéticas de certas construções. Foi uma lição inesquecível de como traduzir poesia. O meu erro mais chocante era num poema de Dual, onde a ambiguidade do contexto me levara a traduzir a palavra “vinha” como se fosse o imperfeito do verbo vir, e não a planta que dá as uvas. Acho que foi o momento mais humilhante da minha vida. Mas depois falámos de coisas gregas. Perguntei-lhe pela tradução da Medeia de Eurípides, até hoje inédita (pelo que lanço daqui um apelo à Maria Andresen e ao Miguel Sousa Tavares para que providenciem a sua publicação). Falámos de Homero. Ela contou-me um pouco da experiência que foi estudar Filologia Clássica na Faculdade: uma desilusão. A poesia grega, disse-me ela, não devia servir de pretexto para estudar fonética e morfologia: devia servir para sacudirmos dos nossos passos “a poeira do desencontro”. Palavras que me acompanhariam ao longo do meu próprio percurso como classicista. Por fi m, um encontro que começara de forma tão constrangedora acabou de modo maravilhoso. Nesse verão de 1984, fui pela primeira vez à Grécia. Levava muitos poemas de Sophia na cabeça. Ainda cá estão. Compreendo agora que durante essa viagem foram lançados os alicerces sobre os quais construí tudo o que sou. Guiado pelas palavras de Sophia, percebi o sentido da “imanência sem mácula”, do “sorriso de espanto” que brota no Egeu. Mas o ideal que graças a ela ainda hoje persigo é a “luz cor de amora que no poente se espalha”, tão próxima do roxo que “Homero fez florir sobre o mar”.


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minha alma // é feita de maresia Sophia de Mello Breyner Andresen

Hélia Correia | Tocada pelas palavras Murmurei-lhe uma vez que partilhávamos duas paixões: a Grécia e Isadora. Por pudor, não falei na terceira: ela própria. Em Mafra, onde cresci, havia um espaço verde para onde as crianças iam brincar sozinhas. Tinha, para quem entrava, estilo de jardim francês. Mas depois transformava-se num bosque penumbroso. Por muito que corrêssemos entre musgo e arbustos, acabávamos sempre por ir dar a uma encruzilhada onde se erguia uma estátua de pedra. Na minha vida, aconteceu o mesmo: de vez em quando, as névoas afastavam-se e sobre o chão dourado que surgia, estava o seu vulto luminoso e grego. Foi nessa mesma vila, a que se achava literalmente ligada por laços de nobreza, que ela passou os primeiros dias de casada. Sentavam-se na relva do largo, aqueles noivos, num tempo em que isso dava que falar. Eu, que nasci depois, herdei a relva onde por vezes germinavam f lores absolutamente inesperadas, e ouvi aquela história que, a seu modo, a enchia também de aparições. Imaginei uma mulher de claro, com a saia rodada e um chapéu de palha muito fina e de aba larga, cuja fita lilás esvoaçava com a brisa soprada pelo mar. Uma neta de condes, diziam. Porém, isso não cativava muito uma menina cujos tios maternos ainda eram gente do campo, analfabeta e sábia. Mas a sua passagem por ali chegava aos meus ouvidos misturada com uma qualidade maior, a de escritora, a de poeta. E era então que se tornava numa visão capaz de deixar marcas porque estava

tocada pelas palavras e eu já as amava mais que tudo. Já não sei em que livros as achei, mas ainda hoje, quando folheio os álbuns de botânica, saboreio o prazer de ter um dia lido “nardos” e “f lores da baunilha” pela primeira vez, por sua mão. Fiquei sempre a pensar que a sua vida foi um projecto estético cumprido. O seu ideal, o seu carácter e o seu dom formavam um só corpo, harmonioso, e duro, dessa dureza que há na luz. Com ela e com Natália, o horizonte de que dispus na minha adolescência não precisava de nenhum outro perfil. Não lhe devo o amor que tenho à Grécia. Veio de outros caminhos, de maneira que a sua escrita me fascina ainda mais, pois o seu vício de olhos sobre os gregos não é exactamente igual ao meu, e a sua voz me é sempre nova e estranha. Há ali um enigma, que é o de conseguir trabalhar a beleza e trazê-la para casa, branca e limpa, quando o mais natural seria endoidecer. Recordo-me de, em Creta, ter olhado para o mar e tê-la visto nadar nele, tal como a vira nadar, em filme, nas águas do Algarve. E, pela Grécia fora, penso: “Ela esteve aqui”, como penso nas grandes heroínas. Porém, Sophia regressou, trazendo palavras para poemas e para a cidadania. E o mito curvou-se ao seu serviço. Estive uma vez uma semana em Delfos com a Doutora Maria Helena da Rocha Pereira e, embora não interesse para aqui, devo dizer que se tratou de uma experiência absolutamente crucial na minha vida. Achava-se presente no encontro a maior

actriz grega de que há memória, Aspassia Papathanassiou. Ela representara em Lisboa uma Electra que inspirara um poema a Sophia. O poema refere-se especificamente ao grito da Atrida quando recebe a falsa informação de que o irmão morreu. A interpretação de Aspassia foi, ao que ouço dizer, arrepiante. Conta aliás Aulus Gelius que o famoso actor Polos de Egina levou, como adereço, para aquela passagem, a urna com os restos mortais do próprio filho para que a dor sentida contaminasse a fala. Aspassia estava já idosa e entristecida. A Doutora Maria Helena lembrou-se, então, daquele poema e lamentou: “Não sei se ela conhece o poema de Sophia. Que pena não o ter aqui comigo”. “Eu tenho”, disse-lhe eu. “Tem?” “Que livro havia de trazer para Delfos?”. Era, evidentemente, a “Geografia”. Fiz o que pude, traduzindo-o para inglês, e oferecemos-lhe ambas as versões. O belo olhar de Aspassia enevoou-se, recordando essa noite portuguesa. “Para que a justiça dos deuses seja convocada”, escreveu Sophia. E o poema fechou o seu circuito naquela tarde em Delfos. Continuo a levar os seus livros para a Grécia.

Jaime Rocha | Poema de Julho na morte de Sophia A sua voz irrompe das palavras como uma cortina branca. Uma voz que se prolonga nos riscos da areia e mostra a boca oculta da água, a mesma água que corre sobre as mãos contra o rochedo da morte. O sol de Julho bate na superfície do mar como uma dança. Uma estátua renasce num jardim de relva ao cimo dos ciprestes. Como se estivesse num altar, na Castália, nas montanhas douradas onde os poetas param para beber nos pequenos sulcos. A poesia espalha-se pelos cantos do deserto como um pássaro de fogo fugindo das cidades. A sua voz solta-se dos degraus como num teatro construído para um deus. Tapada pelas ervas, na sombra das árvores queimadas, sob o templo de Delfos, as palavras cobrem o brilho da luz, vestem a paisagem com os lábios, choram, caminham para o mar. Ítaca, o instante de um barco, o silêncio e a cor do vinho. Tudo se passa no olhar incendiado da Grécia. A morte do seu corpo, a claridade.


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das coisas/ Nas praias onde há um espelho voltado para o mar// Aqui o enigma que me interroga desde sempre/ É mais nu e

Maria de Lourdes Pintasilgo | Sophia Hoje Não soubéssemos nós que a busca se interrompeu, e diríamos que Sophia continua a sonhar o que sempre desejou: Um país liberto/ Uma vida limpa/ Um tempo justo A voz suave, as palavras quase sussurradas, as imagens que dizem a casa e o mar, tudo é simples nela: É então que se vê o passar do silêncio/ Navegação antiquíssima e solene Não é só o mundo grego que exprimem estas palavras. É também, e talvez até, anterior a tudo mais, a consciência da navegação do eu: Eu me busquei no vento e me encontrei no mar/ E nunca/ Um navio da costa se afastou/ Sem me levar Mas, de repente, a sua palavra faz-se denúncia e a menina do mar torna-se violenta nas palavras: Com fúria e raiva acuso o demagogo/ E o seu capitalismo das palavras Em Sophia, a palavra faz a pessoa, molda o povo, trás com ela história e sonho. Não hesita em dizer que: De longe muito longe/ O homem soube de si pelas palavras/ E nomeou a pedra, a flor, a água/ E tudo emergiu porque ele disse A criação aqui não é só uma metáfora mas a própria maneira de ver o mundo. Por isso, a denúncia se torna mais instante: Com fúria e raiva acuso o demagogo/ Que se promove à sombra da palavra/ E da palavra faz poder e jogo/ E transforma as palavras em moeda/ Como se fez com o trigo e com a terra A palavra que faz o homem, desfaz também a sua própria criação. Por isso, Sophia retoma a esperança que a habita, mesmo nos momentos em que tudo parece soçobrar. Por isso, o seu acto de fé: E os poemas serão o seu próprio ar/ Canto do ser inteiro e reunido/ Tudo será tão próximo do mar/ Como o primeiro dia conhecido O ser inteiro e reunido contém em si uma convicção filosófica que vai depois enriquecer toda a experiência. Por isso, no caminho da interrogação e da busca, Sophia pode afirmar: Apenas sei que caminho como quem/ É olhado amado e conhecido/ E por isso em cada gesto ponho/ Solenidade e risco Poeta rara do século XX, (comparável talvez a Marguerite Youcenar e a Nathalie Sarraute), Sophia é ao mesmo tempo o dom e a beleza absoluta.

Eurico Carrapatoso | Espanta que seja real Sophia, a nossa harpa eólica plena de fragrância a Outono, a maçã e a alecrim, não morreu. Partiu ao sabor do vento. Mas permanece. E a sua presença vertida em poesia tem a agilidade volátil dos corpos celestes. Com Sophia aprendemos desde pequenos a ter um segundo registo no olhar: o olhar errante pelas horas claras. Sophia não morreu: “Tem qualquer coisa de mastro / Tem qualquer coisa de sol / Saber que existe sossega / Como no mar o farol/ (...) / Espanta que seja real” Espanta que seja real.

Sophia com Francisco Sousa Tavares na Grécia


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veemente e por isso te invoco:/ “Porque foram quebrados os teus gestos?/ Quem te cercou de muros e de abismos?/ Quem derramou

João Barrento | Sophia substantiva Um dia depois da partida de Sophia – que amava partidas, ilhas, mares e praias, viagens e geografias, mesmo que fossem apenas as da casa – dei por mim a pensar como não há poesia mais “idealista” e cheia de utopias do que esta. E no entanto, um olhar que nem precisa de ser muito atento, mas apenas receptivo e aberto, constata facilmente que ela não vive no plano do ideal, mas se limita a nomear coisas concretas – como na pintura de Mantegna, onde, diz o poema, “cada coisa mostra a nítida atenção / Do olhar soletrando a eternidade.” O paradoxo explica-se: estamos perante uma poesia “de combate”, escrita desde o primeiro livro (por alguma razão chamado simplesmente Poesia) contra um tempo que perdeu pé no mundo e no Ser. A poesia de Sophia sonha com o Ser inteiro num tempo e numa civilização que não sabem o que isso é, porque vivem de estratégias, de conveniências e de contingências (“A civilização em que estamos”, lemos em O Nome das Coisas, “é tão errada que / Nela o pensamento se desligou da mão”). Aqui, esse ser inteiro tem uma tal inteireza que nem sequer se esgota na ontologia, é também uma ética, e mesmo uma política, no sentido mais amplo e autêntico que o termo pode ter. Pela sua transparência e pela sua concretude, é fácil, até apetecível, comentar a poesia de Sophia. Mas não me sinto voltado para discorrer sobre ela, particularmente neste momento em que o corpo que a escreveu empreendeu a grande viagem – certamente por mar. Gostaria de dizer apenas substantivamente o que me ficou da sua leitura. Quero dizer: prefiro falar dela como ela fala dos seres do Ser, apenas com substantivos. Lançando mão do nome das coisas, nomeando o que está aí, tudo sem excepção, mesmo aquelas coisas que, parecendo respirar o ar da abstracção, são da ordem do sensível – como as cores, a liberdade, as palavras, o Ser. E por que não substantivar apenas esta poesia substantiva, se nela “cada coisa surge nomeada / Clara e nítida / Como se a mão do instante a recortasse”? Digamos então, com toda a poesia de Sophia MAR e onda, forma, beleza, búzio, praia, coral, Atlântico, ilhas, luas, brisa, maré, arquipélago, sul, quilha, cabo, azul, velas, alíseos, costas, palmares, navegação _____________ CASA e cal, campo, paredes, quarto, o branco, luz, espelho, cipreste, videira, dia, noite, tempo, reino, fuso, faca, novelos, mãos, joelhos, muro, jardim, fundamento, lugar ____________ POEMA e origem, ar, canto, pranto, clamor, palavras-harpas, musa, música, aliança, palavra-coisa, terra-sol-vento-mar, rumor, fio-de-linho-da-palavra, esplendorfruto-promessa, o emergir _____________ EXÍLIO e deuses, Grécia, morte, dor, tempo, sorte, deserto, oásis, país-sem-flores, vazio, sombras, abismo, o opaco _____________ LIBERDADE e juventude, raparigas-espigas, amor, verdade, inteireza, o mar-o Abril-a rua, projecto, o estar-ser-inteiro, Caxias-Che-Catarina, madrugada, Revolução ______ ________

Cerimónia de entrega do Grande Prémio de Poesia 1963


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no chão os teus segredos?”// Invoco-te como se chegasses neste barco/ E poisasses os teus pés nas ilhas/ E a sua excessiva

Osvaldo Manuel Silvestre | Escrever a Fala do Poema Como é típico nos poetas cuja dicção é também uma reserva territorial (bem poucos, como sabemos), Sophia sufragou entre os seus leitores, desde muito cedo, uma poética delimitada por uma meia dúzia de “senhas” de acesso: transparência, imanência, impessoalidade, pureza, ética, soberania... Este sufrágio unânime foi sendo ratificado ao longo da sua obra por um investimento em formas várias de auto-ref lexão, todas concorrendo para o carácter incontroverso de uma poética muito sábia de si mesma, e que podemos resumir em palavras, aliás renitentes, de Herberto Helder: “O poema existe por si, é uma forma impessoal que as mãos limpas arrancam à desordem para apresentar como ordem objectiva no meio das corrupções, inclusive as corrupções da nomeação” (“Relâmpago”, nº 9, 2001). O livro Dual, de 1972, um dos pontos-charneira da sua obra, é um dos momentos em que esta dinâmica autoref lexiva mais notoriamente coalesce em textos cujo estatuto oscila entre o poético e o poeticista, não parecendo porém oscilar a forma como todos eles invocam a lição da musa grega. Esses textos são sobretudo “Musa” e “Arte Poética IV”. Ao longo deste último, Sophia insiste nas figuras da “escuta” como tropo mais fiel da composição poética, perguntando: “Como, onde e por quem é feito esse poema que acontece, que aparece já feito? A esse ‘como, onde e quem’ os antigos chamavam Musa”. As coisas de facto interessantes ocorrem em seguida, quando a poeta nos descreve a fenomenologia desta escuta em que “algumas vezes o poema aparece desarrumado, desordenado, num sucessão incoerente de versos e imagens. Então faço uma espécie de montagem”. Uma das ocorrências mais sugestivas deste processo é aquela em que, nas suas palavras, “de textos que eu escrevera em prosa surgiram poemas”. Logo após, a autora revelará que “enquanto escrevi este texto [“Arte Poética IV”] para a ‘Crítica’ apareceu um poema que cito por ser a forma mais concreta de dar a resposta que me é pedida”. O poema é o antes referido “Musa”, que transcrevo: “Aqui me sentei quieta / Com as mãos sobre os joelhos / Quieta muda secreta / Passiva como os espelhos // Musa ensina-me o canto / Imanente e latente / Eu quero ouvir devagar / O teu súbito falar / Que me foge de repente”. Digamos então que o poema “Musa” parece funcionar como peça decisiva de uma retórica do exemplo, ao servi-

ço de “Arte Poética IV”. Um exemplo de passividade e escuta de um “súbito falar / Que me foge de repente”. Todas as várias encenações deste Íon extático na obra de Sophia se esforçam por subtrair da nossa vista de leitores participantes do sufrágio universal desta poética, proposta (e não-negociada) nos seus próprios termos, aquele momento em que aquilo que foge de repente – o “súbito falar” da musa – não foge assim tanto que não fique, de algum modo, registado a negro sobre o espaço branco da página. Este é talvez o nó cego da fenomenologia da criação em Sophia: o facto dessa plenitude de um “súbito falar” só vir até nós sob o perfil de uma “fenomenologia dos restos”, que é, necessariamente, uma fenomenologia da escrita. Não se trata tanto de acentuar aqui o inevitável cunho laborioso de uma epifania bem mais moderna do que grega, na medida em que a excelência da sua dicção sem mácula é o resultado mais ilusório (ou “feliz”) da sua poderosa retórica de uma anulação da retórica. Anulando a retórica, Sophia dar-nos-ia a sua anterioridade pura e plena: não apenas o súbito falar da musa mas o encantamento da fala enquanto objecto contemplável e, por isso mesmo, não (d)escrevível. Será excessivo notar que aquilo que contudo nos é oferecido é, não essa fala aquém de toda a nomeação, mas a transcrição fenomenal do seu resíduo, isto é, a descrição minuciosa da sua “fuga repentina”? Eis-nos pois na aporia mais produtiva na poética de Sophia: a que, como no poema “Musa”, faz da “escuta poética” uma “cena” (d)escrita por um verbo que nada nos diz sobre aquilo que é escutado (por isso não estar ao seu, e ao nosso, alcance), dando-nos antes “a ver” o poema na página e, nele, a cena mítica, e mágica, da oralidade epifânica. Por outras palavras, e um tanto ao invés do que se pretenderia sufragar, em Sophia a voz da musa não é um lugar e um tropo da plenitude, mas do seu falhanço necessário e metódico: é algo desde sempre em “fuga repentina” e de que nos fica “apenas” (mas este “apenas” é toda a poesia ela mesma, sem remissão) o suplemento de uma escrita que nos diz obsessivamente da fala como lugar primacial, mas mudo, da poesia. Ou seja, que escreve e descreve a fala como metáfora cega daquilo que é o verdadeiro motor, ou consciência, da poesia moderna (ou, se se preferir outra periodização, da poesia pós-oral), como a de Sophia tão f lagrantemente é: a escrita.

Vasco Graça Moura | alba em memória de sophia é quando a luz safira e cor de rosa a humedecer as nuvens, matinal, alastra pelas praias, vagarosa, e nas dunas rendilha o seu metal, é quando algas e mar, corais, espuma e sombras transparentes vêm na brisa, é quando em nós a lira desarruma a angústia e o silêncio e a imprecisa densidade do tempo e se combina do ouvido à alma na medida certa uma geometria cristalina, é quando um crespo deus pagão desperta a dar o alento próprio à maresia e canta ao encontrar-se com sophia.


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proximidade te invadisse/ Como um rosto amado debruçado sobre ti// No estio deste lugar chamo por ti/ Que hibernaste a

Sophia com Vinicius de Moraes e dois irmãos Vaz da Silva

Richard Zenith | O Catecismo de Sophia Conheci-a num congresso literário, em 1988, poucos meses depois de fixar residência em Lisboa. Mas antes de a conhecer, antes mesmo de a ler, conheci o seu nome, através de um poema de João Cabral de Melo Neto: “Elogio da Usina e de Sofia de Melo Breiner Andresen” (sic). Eu tinha vivido no Brasil e João Cabral foi o primeiro poeta que traduzi com empenho. Sophia disse-me que o admirava muito, mas não revelou que escrevera dois poemas em homenagem a ele (“A Palavra Faca” e “Dedicatória da Segunda Edição do ‘Cristo Cigano’ a João Cabral de Melo Neto”). Reencontrámo-nos não me lembro bem onde, nem quando, falámos novamente de João Cabral e convidou-me para tomar chá em sua casa. Fui. Sofia era amigável sem ser efusiva. Luminosa e ao mesmo tempo grave. Mudei-me para o seu bairro, a Graça, em finais de 1989, e passámos a encontrar-nos na rua. Entrevistei-a para uma revista literária americana em 1991. “A poesia”, disse então, “é uma coisa inesgotável, uma coisa vital. Começa com a nossa relação com os objectos, com a vida quotidiana, e essa relação é mítica. Sem o pensamento mítico, o homem não consegue habitar o mundo”. Curiosa definição essa, que começa com “A poesia é” e termina com “habitar o mundo”. Foi a Sophia que, na altura da entrevista, me sugeriu que traduzisse alguns poemas

do seu livro mais recente, “Ilhas”, e foi ela que orientou a minha escolha. Ou melhor, chumbou a minha escolha e “mandou-me” traduzir, em primeiro lugar, “Escrita II”: Escreve numa sala grande e quase Vazia Não precisa de livro nem de arquivos A sua arte é filha da memória Diz o que viu E o sol do que olhou para sempre o aclara Eu já tinha reparado na quase ausência de livros em sua casa. Claro que haveria uma ou duas salas cheias de livros ao fundo do longo corredor, mas não era de livros que a sua poesia se alimentava. E a “sala grande” onde escrevia, tanto podia ser uma verdadeira sala como uma praia, uma praça ou uma esquina da rua. Nem precisava de caneta, pois “escrever”, para ela, equivalia a “dizer”, “testemunhar”, “professar”, “crer”. Por vezes, tive a sensação de que a Sophia estava subtilmente a doutrinar-me – na sua poesia e na sua fé religiosa, perfeitamente católica e perfeitamente pagã. Sugeriu-me que traduzisse “Ressurgiremos”, que termina assim: Ressurgiremos ali onde pedra estrela e tempo São o reino do homem

Ressurgiremos para olhar para a terra de frente Na luz limpa de Creta Pois convém tornar claro o coração do homem E erguer a negra exactidão da cruz Na luz branca de Creta Mas então onde (perguntei-me) estava o reino? Não acreditava ela no Céu? E que fazia a cruz em Creta? A fé da Sophia, como a sua própria poesia, era simples como a luz. Não era fácil. “O reino agora é só aquele que cada um por si mesmo encontra e conquista, a aliança que cada um tece.” O reino está dividido e nós “procuramos reuni-lo, procuramos a sua unidade, vamos de coisa em coisa”. Estas frases são retiradas de “Arte Poética I”, em que Sophia conta a sua visita a uma loja de cerâmica em Lagos, em Agosto, loja essa que ela diz ser “como uma loja de Creta”. Ali compra uma ânfora de barro, “igual a todas as outras ânforas(...) mas que nenhuma repetição pode aviltar porque nela existe um princípio incorruptível”. Põe a ânfora de barro sobre o muro em frente ao mar. Observa: “Ela é ali a nova imagem da minha aliança com as coisas. Aliança ameaçada. Reino que com paixão encontro, reúno, edifico. Reino vulnerável. Companheiro mortal da eternidade.”

Traduzi “Arte Poética I”. E “Arte Poética II”. Acabei por traduzir toda uma antologia de poemas de Sophia, que colaborou comigo. Assim passámos inúmeras tardes e noites em sua casa, ou no jardim, a trabalhar. Ou a conviver? Não havia uma clara distinção entre as duas actividades. Como também não havia, para ela, muita distinção entre a Grécia e Portugal, Creta e o Algarve, os deuses e Deus, a poesia e a vida. Ia “de coisa em coisa”, unindo, ou reunindo, tudo que podia com o seu vasto olhar. Depois da tal antologia ter sido publicada, continuei a visitá-la em sua casa, que eu sentia como um espaço vagamente sagrado, pois todos os objectos que a habitavam – os desenhos do Almada, as pinturas de Vieira da Silva, os azulejos do Xavier, as peças da faiança indo-portuguesas, os móveis, as fotografias, as plantas – me pareciam ter alma, graças à relação mítica que a Sophia cultivava com elas e com a vida. Numa dessas visitas, deu-me – num gesto espontâneo – um jarro de barro preto, “igual a todos os outros”, uma cópia de um certo jarro que se fazia em Portugal no séc. XIV. Levei-o para casa e coloquei-o sobre o piano, em frente da janela. A minha imagem da Sophia. A minha aliança com a sua memória e com a sua fé. A fé que não sei se tenho, mas não será culpa sua se não tiver. A Sophia ensinou bem a sua lição. •


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própria vida como o animal na estação adversa/ Que te quiseste distante como quem ante o quadro pra melhor ver recua/

Elogio da usina e de Sofia de Melo Breiner Andresen O engenho bangüê (o rolo compressor, mais o monjolo, a moela da galinha, e muitas moelas e moendas de poetas) vai unicamente numa direcção: na ida. Ele faz quando na ida, ou ao desfazer em bagaço e caldo; ele faz o informe; faz-desfaz na direção de moer a cana, que aí deixa; e que de mel nos moldes madura só, faz-se: no cristal que sabe, o do mascavo, cego (de luz e corte). Sofia vai de ida e volta (e a usina); ela desfaz-faz e faz-refaz mais acima, e usando apenas (sem turbinas, vácuos) algarves de sol e mar por serpentinas. Sofia faz-refaz, e subindo ao cristal, em cristais (os dela, de luz marinha). João Cabral de Melo Neto

Dedicatória da Segunda Edição do “Cristo Cigano” a João Cabral de Melo Neto I João Cabral de Melo Neto Essa história me contou Venho agora recontá-la Tentando representar Não apenas o contado E sua grande estranheza Mas tentando ver melhor A peculiar disciplina De rente e justa agudeza Que a arte deste poeta Verdadeira mestra ensina

Gastão Cruz | O real de Sophia, o real da poesia Tanto quanto consigo recordar-me, creio que vi, pela primeira vez, o nome de Sophia de Mello Breyner Andresen na História da Literatura Portuguesa de António José Saraiva e Óscar Lopes, que adquiri no meu sexto ano do liceu, ou seja, por volta de 1956 ou 1957. Penso que se tratava da primeira edição da obra, onde Sophia era referida, ao lado de Jorge de Sena, Ruy Cinatti, Eugénio de Andrade “e, mais recentemente, António Ramos Rosa”, segundo lá se lia, como uma das últimas revelações poéticas. Mas só quando, em 1958, foi publicado Mar Novo tive o primeiro contacto com a sua poesia, ao mesmo tempo que António Ramos Rosa, então vivendo em Faro, me dava a conhecer Fidelidade de Jorge de Sena, também de 58, e eu descobria o pequeno caderno O Grito Claro, do próprio Ramos Rosa, saído no mesmo ano. Estas obras desempenharam um papel importante na minha formação, mostrando-me o caminho da modernidade poética, em três modos, tão diversos entre si, da sua possível concretização. Eram livros onde a poesia se expunha, no esplendor e na densidade do seu discurso tenso, essencial, sem sobras. Mar Novo exibia, em cada página, essa capacidade enorme de concisão, de rigor, aliada à mestria com que cada palavra era colocada num contexto que a fazia irradiar sentido, ganhar relevo e força. Logo o primeiro poema do livro era surpreendente: quatro versos, em que, como sucederia com frequência ao longo da sua obra, Sophia fazia coincidir uma arte poética com um programa ético de vida – “Perfeito é não quebrar/A imaginária linha//Exacta é a recusa/E puro é o nojo.” O gosto pelo poema curto marca também a sua poesia, harmonizando-se, por um lado, com o pendor às vezes fragmentário e, por outro, com o desejo de concentração, já referido, que a levou a criar, nomeadamente, alguns dos mais extraordinários dísticos da poesia portuguesa, como o justamente celebrado “Inscrição”, de Livro Sexto – “Quando eu morrer voltarei para buscar/Os instantes que não vivi junto do mar” –, há poucos dias admiravelmente interpretado por Eduardo Prado Coelho, numa das suas crónicas diárias. Outro exemplo, um poema intitulado “Passagem”: “O êxtase do ar e a palavra do vento/Povoaram de ti meu pensamento.” Este

II Pois é poeta que traz À tona o que era latente Poeta que desoculta A voz do poema imanente Nunca erra a direcção De sua exacta insistência Não diz senão o que quer Não se inebria em fluência Mas sua arte não é só Olhar certo e oficina E nele como em Cesário Algo às vezes se alucina Pois há nessa tão exacta Fidelidade à imanência Secretas luas ferozes Quebrando sóis de evidência Sophia de Mello Breyner Andresen

O nome do poeta Tal o gesto e o sopro que enformam o vago vidro, assim o dia se fazendo sobre cada grão de areia. Os barcos, recém-nascidos, respiram lentamente. Como quem quisesse tocar o pulmão do sol ali, escrevo teu nome — martelo no vento — Sophia de Mello Breyner Andresen. Eucanaã Ferraz, “Martelo” (1997)

modelo epigramático alarga-se, algumas vezes, a três versos, caso do famoso “O velho abutre”, que Sophia gostava de recitar de cor, como aconteceu durante a visita que, em 2001, lhe fiz com o poeta brasileiro Eucanaã Ferraz (“um poema que eu escrevi sobre o Salazar”, dizia): “O velho abutre é sábio e alisa as suas penas/A podridão lhe agrada e seus discursos/Têm o dom de tornar as almas mais pequenas.” Aquela poderosa irradiação de sentido, aquela espécie de isolamento de cada palavra num contexto, em que está, todavia, firmemente inserida, assumem especial evidência num dos mais emblemáticos poemas de Sophia: “Meditação do Duque de Gandia sobre a morte de Isabel de Portugal”. Em versos como “(...) Em breve a podridão/Beberá os teus olhos e os teus ossos” (note-se o efeito magnífico da assonância) ou “Porque eu amei como se fossem eternos/A glória, a luz e o brilho do teu ser,/Amei-te em verdade e transparência/E nem sequer me resta a tua ausência,/És um rosto de nojo e negação” (neste último verso, há que sublinhar o reforço da negatividade, obtido através da aliteração), cada palavra tem um “peso”, como diria Carlos de Oliveira (“Rudes e breves as palavras pesam/mais do que as lajes ou a vida”), que é o da própria vida, ou maior que o da vida. Também Sophia disso falou, em “Arte Poética II”: “O verso é denso, tenso como um arco, exactamente dito, porque os dias foram densos, tensos como arcos, exactamente vividos. O equilíbrio das palavras entre si é o equilíbrio dos momentos entre si.” Ou, definido de outra maneira: “Sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real.” Estão errados os que supõem que, em certo momento, a poesia teve de “voltar ao real”. Nunca a poesia o abandonou. Quanto mais profunda a sua relação com ele, tanto maior a sua afirmação absoluta como poesia (“o autêntico real absoluto” de Novalis, epígrafe de uma colecção em que Sophia publicou alguns dos seus livros). Essa relação existe tanto em Sophia como em Herberto, tanto em Eugénio e Cesariny como em Fiama, Ruy Belo ou Luiza Neto Jorge. Só não existe certamente naqueles que se consideram realistas por caderno de encargos e supõem que a realidade é apenas o que está à curta distância que o seu olhar abarca. É bem diversa a lição que a obra de Sophia de Mello Breyner nos deixa. •


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20 Junho- Antoni Gaudí

27 Junho - JMW Turner

4 Julho - Fernando Botero

11 Julho - Paul Klee

18 Julho - Georges Seurat

25 Julho - Gustav Klimt

1 Agosto - Pieter Bruegel

8 Agosto - Marc Chagall

15 Agosto - Georgia O’Keeffe

22 Agosto - Frida Kahlo

complete a sua colecção Para completar a sua colecção TASCHEN pode fazê-lo nas lojas PÚBLICO de Lisboa – Rua Viriato, 13 ou no Centro Comercial Colombo e/ou nas lojas PÚBLICO do Porto, Rua João de Barros, 265, ou no Centro Comercial Norteshopping 29 Agosto - Albrecht Dürer

5 Setembro - Egon Schiele

1 - Picasso

2 - Van Gogh

3 - Rembrandt

4 - Dali

5 - Hopper

6 - Caravaggio

7 - Warhol

8 - Renoir

9 - Bosch

10 - Lichtenstein

11 -Toulouse-Lautrec

12 - Miguel Ângelo

13 - Miró

14 - Gauguin

15 - Botticelli

16 - Manet

17 - Cézanne

18 - Leonardo

19 - Degas

20 - Monet

21 - Rothko

22 - Modigliani

23 - Matisse

24 - Velázquez

25 - Goya

26 - Rivera

27 - Vermeer

28 - Kandinsky

29 - Klein

30 - Basquiat

31 - Delacroix

32 - Malevitch

33 - Rodin

34 - Munch

35 - Magritte

36 - Kirchner


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E quiseste a distância que sofreste// Chamo por ti – reúno os destroços as ruínas os pedaços –/ Porque o mundo estalou como pedreira/ E no chão

Jorge Silva Melo | Quase nada, sempre Para quem sempre desconfiou daqueles que, em Portugal e na cultura, anunciam ter razão ética antes de qualquer prática moral (e foram tantos e são tantos os fidalgotes do preceito), Sophia, a que sempre teve razão, a que afi rmou, a que reafi rmou, a que inventou, a que clarificou, a que disse tão poucas coisas sempre e as mesmas, a que criou uma maneira veemente de afi rmar o mesmo, a sua imparável música, um único andante, Sophia foi meu porto de abrigo e aquela a quem sempre me recolhi e recolho, desde aquele Livro Sexto com que, adolescente, a descobri, límpida, sagaz, impertinente, afi rmativa, tantos versos que sei de cor e devagar me voltam. E nunca a sua imensa sabedoria, a línguamãe tão simples, tão escassa, tão vibrante e tão nua, essa sua prática inconfundível das vogais, nunca a sua dignidade afi rmada me ofuscou, me torceu: o seu saber é demorado sobre o verso e a caligrafia, a sua voz é demorada como a pose ática que tomou na sua varanda da Graça para as fotografias de Fernando Lemos, ou no seu sofá vermelho para o tão lindo filme do João César. Sophia prolonga as vogais no tempo imparável. Volto a ela quando é preciso voltar ao princípio de tudo, virtudes teologais, declarações dos direitos do homem, mandamentos, preâmbulo da Constituição Portuguesa, magna carta ou a liberdade, igualdade e fraternidade que sempre me empolgam. E volto a ela, sempre, entusiasmado e sereno, feroz e intensamente, que ela sempre me tornou digno dos princípios elementares do viver, inteiro, adulto e fi rme. Procuro a sua letra, recordo a voz soberana, paro perante a síntese, decoro o verso que tantas vezes em Sophia se solta do livro. Já tantos e tão bem falaram da sua luz, da sua escrita lapidar, desta poesia ditada à pedra (foi Pedro Mexia quem o inventou e que bem, em artigo do DN um dia depois da morte de Sophia), da escassez vocabular, da nitidez do verso, da surpresa, do elementar. E é sempre o espanto, o eco desta poesia em que as vogais descrevem um arco no tempo, suspendem o vento, em que o mesmo andante parece ter sido outro, em que sentimos que a nossa voz ganha a forma mais breve, a alegria plena de um encontro. Mas os elementos em Sophia não são apenas os naturais, são os do viver entre os outros e com os outros, erguendo-se na terra, nesta terra com a surpresa da descoberta, terra de homens e luz. É aí que a sua exigência ética se coloca: a sua poesia, inconfundivelmente sua, é impessoal, é colectiva, é saber de todos, vinda de tantos tempos, descendo a brisa, é voz que procura a síntese da comunidade, é sabedoria no fazer-se, tão clara como

Sophia com os irmãos

versículos de Bíblia, ou fragmentos de antes de Sócrates, tão intemporal, tão eterna, tão próxima dos dias em que nasceu, tão feita de tanta letra oculta e revelada (Lorca, diz ela; Baudelaire, disse-me um dia e nunca mais voltei a ler o “Albatroz” sem lhe escutar a imparável voz), tão feita dos seus permanentes diálogos com os outros (o tão distante Sena mas tão perto, Murillo, João Cabral, mas também o Torga da ficção para quem

ela, um dia, repreendendo-me, me chamou a descuidada, juvenil atenção). Segredo único desta linha clara: Sophia cristalizou o saber em versos impolutos, inteiros e dignos. A sua poesia, estranhamente única, é poesia de tanta gente, é poesia estranhamente popular, misturando-se na espuma tumultuosa dos dias. Havíamos de a esculpir nas ar ribas destas costas que ela amou, da

Granja a Cacela, na porta do mercado de Lagos as suas frases límpidas. Um fi m de tarde, no seu jardim da Graça, Sophia apontou-me um enorme bando de pássaros que voavam para o sul, e, com aquele seu ar distraído, espantado, amável e irónico disse: “Vão para tão longe e não levam nada!” Também Sophia nesta sua atenção sempre inventada nos leva para longe dos dias turvos, com duas linhas, três linhas, um fi m de página, um coral, uma síntese, epigramática, serena, por sobre as ondas, vinda de muito longe, de tão longe e com quase nada, quase nada, sempre. Jamais esquecerei as tardes, as noites naquele salão da Graça a que amigos e mestres (o professor Cintra, pela primeira vez, mas também o Gastão, a Fiama, a minha amiga Maria distraída e tão alegre naquela faculdade chatíssima) me levaram em atribulações, quando a PIDE proibia reuniões no seu Centro Nacional da Cultura, quando os estudantes se levantavam, às vezes para passarmos o serão a ouvir Nara Leão e o seu Opinião: foram os dias claros, foram as noites serenas do saber, ouvi-la ler um acto inacabado da sua tradução do Hamlet, a sua tradução do Much Ado, ouvila ainda lamentar a peça de teatro (eram os “Gracos”?) que perdera entre viagens, ouvi-la louvar o Indesejado de Sena (acho que um dia se pôs a ler umas páginas), ouvi-la chamar o marido Francisco (eu gosto tanto dele, da sua bravata e do seu calor), o fi lho Miguel tão vivo e atento, o Xavier, vê-la aguardar a hora em que na TV passava a Família Bellamy com que se entretinha, ouvir-lhe o espanto quando defendi O Passado e O Presente de Manoel de Oliveira (ainda aqui está na dedicatória de Dual: “Apesar de ‘O Passado e O Presente’”) que linda era aquela vida leve, desatenta e inquebrável e como me lembro do dia em que ela me entregou, sorridente, atrasada e levemente envergonhada (“é isto o que querem?”) a sua extraordinária “Arte Poética IV” para publicarmos na Crítica (que, em 1972, fazíamos quase à mão, a Eduarda Dionísio, o Luís Filipe Salgado de Matos e o Luís Miguel ainda em Bristol): “Deixar que o poema se diga por si, sem intervenção minha (ou sem intervenção que eu veja), como quem segue um ditado (que ora é mais nítido, ora mais confuso), é a minha maneira de escrever.” E olho para este sofá que, na minha sala, mandei forrar de vermelho escuro: não terá sido por tantas vezes ter estado sentado em frente a Sophia no seu sofá de veludo, à sua esquerda aquela lindíssima, pequenina Biblioteca de Vieira da Silva, uns poucos livros, quase nada?


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rolam capitéis e braços/ Colunas divididas estilhaços/ E da ânfora resta o espalhamento de cacos/ Perante os quais os deuses se tornam estrangeiros//

Adília Lopes | Paradoxo

Com os filhos: Maria, Isabel, Miguel e Sophia, Inverno de 1954, Travessa das Mónicas, Lisboa

Lúcia Sigalho | Sem título Fui secretária da Sophia durante muito pouco tempo, breves meses. Tive sempre muita pena de ter deixado de trabalhar para ela. Mas a Sophia, naquela altura, tinha uns horários tão nocturnos ou mais do que qualquer Teatro. Acho que ela era como escrevia: corajosa, boa, aérea, limpa, límpida, nítida, audaz, cheia de majestade. Depois de ter trabalhado com ela nunca mais vou poder ignorar algumas coisas. A nossa arte temos de a perseguir com a nossa vida toda. As coisas estão unidas não estão separadas. O poeta trabalha o poema como o boi puxa o arado que lavra a terra. As chávenas levantam voo atrás do fumo dos cigarros, as folhas com poemas escritos perdem-se pelos quatro cantos da casa. Neste sistema, alguns poemas perdem-se, alguns poemas encontram-se, outros ainda se transformam. Frenesim. Alvoroço. Impaciência. O poeta pode ser completamente bombardeado por solicitações que não são as da poesia. É nesta altura que o poeta mostra que lutou, lutou, conquistou milímetro a milímetro o espaço da sua arte. O poeta defende esse espaço. Ferozmente. Tenazes. Ostinato Rigore. A mentira existe. A maldade existe. A intriga existe. E não sabemos bem o que querem. Talvez a perdição da nossa alma. E temos de manter a nossa alma livre. Eu sou

o solitário e nunca minto. Os poemas antes de ser escritos são ditos e repetidos e emendados e escutados em voz alta muitas vezes. Como uma antena. A política serve afinal para servir a poesia. Para nos dar a possibilidade de ser poetas. Ser e estar. Inteira. Noli me Tangere. Livrai-nos senhor do activista cultural. Uma poeta. Uma poetisa, não. O Luís Miguel tem uma voz muito bonita. Dansa e nunca Dança. O C, ainda por cima de cedilha, é “uma letra sentada”. Dansa é com S. Há amigos que chegam amigos que partem. Outros... As pessoas sensíveis não são capazes de matar galinhas mas são capazes de tudo o resto e pior. As Fúrias existem nos telefones que tocam, nas pessoas que nos interrompem com coisas, nas coisas que deixam de funcionar. O ócio é o trabalho do poeta. Oregãos. Vinho verde. Dansar de manhã na praia com os pés no mar. Odiar o fácil. Nascemos para a alegria. A alegria una, sem falha, o vestido sem costura da alegria, a substância imortal da alegria. Andar na vida de alma lavada. O poema mais bonito é o Magnificat. Gesto. Majestade. Beleza. Inteligência. Silêncio. Luz. Tudo junto. Tudo junto. Tudo ser muito prático, completamente prático. Um segredo para ficar com as mãos bonitas. Outro segredo ainda para ser magra. Não só podemos

como devemos viver de acordo com aquilo em que acreditamos, aquilo que amamos. Trincar rosas. Amar o seu país profundamente. Os gregos da Grécia. Espantando meu olhar... Aqueles em que acreditamos, aqueles que amamos... o meu filho chama-se Francisco. Também viver e dizer o que se abomina e se despreza. O tempo em que os homens renunciam. Não perder o fio de linho da palavra, a linha musical do encantamento. Deus está em toda a parte. Perfeito é não quebrar a imaginária linha. Exacta é a recusa. E puro é o nojo. Lembrar-me sempre. Não me perder de mim por descuido. Não me esquecer nunca. As Musas são fi lhas da Memória. Ser frugal, austero generoso. Ser bom. Na medida certa. Ser puro e inteiro como uma criança. Como fomos todos, no princípio de tudo... Através do teu coração passou um barco que não pára de seguir, sem ti, o seu caminho. Porque é que não sou mais estas coisas todas que fiquei a saber? O génio de Sophia é que vivia assim todos os dias. Não tinha medo nenhum. Lúcida e implacável. Exemplar. Mergulhar na vida como no mar: de olhos abertos. Nascemos para ser livres, para a felicidade. O céu é todo meu. O mar é todo meu. Deus é todo meu.

Barbie (não é Barbie, é Midge) está grávida e o bebé recém-nascido já nasceu, está à vista na caixa, com Barbie, e Barbie está de barriga grande. Imagino que isto faça confusão às crianças. A boneca está grávida, tem o bebé dentro da barriga, e o bebé já está, simultaneamente, cá fora. Imagino que Midge e o marido são um casal extremamente generoso: vão ter um bebé deles, feito por eles, e adoptaram um recém-nascido. Numa igreja católica de Lisboa, num altar lateral, está Cristo crucificado, pendurado na cruz, e está, no mesmo altar, outra escultura: uma Pietà, isto é, Maria, mãe de Cristo, com Cristo, já morto, nos braços e no colo. Cristo está a morrer na cruz e já está morto ao colo de Maria. Mas ter no mesmo altar católico um Cristo na cruz e uma Pietà não faz confusão. Ou faz? A caixa da boneca e o altar criam simultaneidade entre dois momentos da narrativa, isto é, da vida das personagens, que não podem ser simultâneos. O presente, o meu presente, é paradoxal e já não se dá por isso. Esta não é a era da suspeita. É a era da indiferença ao paradoxo. Não sei se isto é bom ou mau. Sei que, para mim, é estranho e excitante. Mas faz medo. É como se os paradoxos da Mecânica Quântica andassem à solta pelo supermercado. E andam. Sem alarmar ninguém. (Devo tudo o que sei de literatura à Sophia. No caso dela, a descoberta foi Homero. No meu caso, a descoberta foi ela.)


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Porém aqui as deusas cor de trigo/ Erguem a longa harpa dos seus dedos/ E encantam o sol azul onde te invoco/ Onde invoco a palavra

Com o filho Xavier em Veneza

Miguel Serras Pereira | ‘O fio de linho da palavra’ É bem certo que aqueles que, em tudo o que melhor quisemos, e em tudo o que quisemos de melhor, à nossa volta e de nós próprios, pudemos recorrer, para evocarmos a voz dela, ao fio de linho da palavra de Sophia, Nunca choraremos bastante/ Nem com pranto assaz amargo e forte o seu desaparecimento. Mas talvez a maneira de luto ao nosso alcance que menos desmereça da sua grandeza seja, enfrentando o caos mais antigo do que os deuses que na morte se repete, tentarmos fazer com que persista e se renove na história e na paisagem que nos rodeia a verdade dessa palavra alada, impessoal – que reconheço por não ser já minha – que a sua poesia nos propõe. A dívida que temos para com ela, o que exige de nós é apenas, mas não menos, que tornemos mais vivas e mais presentes, depois da sua partida, as nascentes onde bebeu e que rasgou. Uma das linhas de força distintivas, no seu impulso de manancial primeiro, de toda

a obra de Sophia é um dar conta e razão do poema, inseparável do fazer que acompanha o acontecimento deste, e que, assim, na atenta invenção do que foi dado, o legitima, como diria Silvina Rodrigues Lopes, enquanto apelo à criação responsável, pessoalmente assumida e anonimamente partilhada, que, só ela, abrirá à cidade a busca dessa vida limpa e desse tempo justo, em que a instauração da justiça é a busca da justiça [que] continua. Evidentemente, a mesma linha de força, ou manancial de ímpeto primeiro, deste dar conta e razão da poesia, interno ao seu fazer-se, implica também, circularmente, que a busca da justiça e a ordem da cidade que nela assenta tenham por critério fundamental um máximo de criação de liberdade de criação. E, dentro e fora parte do poema, nos usos e costumes de cada dia, que alimentam o espírito das leis que devemos dar-nos, ousando saber que no-las damos – como afi nal sempre demos temendo embora sabê-

lo as mais das vezes e como afi nal daremos sempre e façamos o que fi zermos – essa mesma recriação deliberada pela cidade das suas próprias condições de existência é, ao mesmo tempo que reconhecimento em acto da imaginação poética que se confunde com a acção enquanto começo do que não estava escrito, a condição por excelência de qualquer exercício de cidadania. Por outras palavras, a poesia e, mais geralmente, a poiésis da criação do sentido são condição de uma polis transformada pela busca da autonomia e da justiça, e de uma praxis política, que cria as suas próprias condições de existência enquanto actividade autónoma interpelando e solicitando a autonomia potencial daqueles a quem se endereça, ao mesmo tempo que, circularmente, essa polis e essa praxis política são condição do acesso da poesia à mais plena potência de si própria. E é por isso que, sendo assim, no momento da morte de Sophia, importa

sobretudo salvaguardar e continuar a criação das condições da sua poesia, no duplo sentido que indiquei acima: as condições que a palavra alada, impessoal da poesia reclama na cidade, e as condições que na cidade possibilitam e potenciam a verdade da criação da criação poética enquanto criação de liberdade. Se nunca a choraremos bastante, é justo que pelo menos a celebremos o melhor que soubermos – quer dizer abrindo caminho, na atenta invenção do que foi dado, a essa cidade da realidade encontrada e amada, cuja porta é feita de dois barcos, e onde o já sabido, que os homens sábios tinham decretado ser tudo o que se podia saber, deixará um dia, se o soubermos querer, de desfigurar o brilho do visível, ou de sacralizar os mapas do já sido. Pois é aí – quer dizer: aqui – que o tempo apaixonadamente/ Encontra a própria liberdade. 6 de Julho de 2004


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impessoal da tua ausência// Pudesse o instante da festa romper o teu luto/ Ó viúvo de ti mesmo/ E que ser e estar coincidissem/ No um da boda//

Xavier | Homenagem à mãe

Mafalda Ivo Cruz | Viva a rainha Há seres, homens e mulheres, de uma matriz outra, que possuem uma voz outra e são detentores de um saber, que, querendo-se simples por disciplina, permanece infinitamente distante por fidelidade. E é um bem. Talvez o único possível. “Viverei segundo a lei da liberdade”, disse Sophia.

Sophia chegou e partiu intimamente misturada com a natureza, lutando contra a morte com a força e a minúcia com que a natureza o faz, recomeçando sempre, e sempre. Não, não quero a morte, não concordo. Levanto-me cedo, mantenho um olho vigilante sobre o mar, sobre o amor, sobre a fogueira, e falo, falo, escrevo… “Coração atento em frente à linha lisa do horizonte”.

Mantenho olhos vigilantes sobre a claridade e sobre a alteza, sobre a alegria como alteza. “Que no largo mar azul se perca o vento”. Sophia defende o sol e manipula a sombra com uma espécie de doçura imperiosa. Que a sua vontade se faça, então. E a sua vontade fez-se. Nesse dia em que desceu à terra num cemitério cheio de sol alguém devia ter gritado “Viva a Rainha”!

Ninguém ousou. Não ousar era, de resto, uma coisa natural com Sophia Andresen. … “As ondas desenrolam os seus braços/ E brancas tombam de bruços.” “(…) tombam de bruços.” “(…) tombam de bruços.” Voltarás? “Segundo a lei da exacta eternidade.”


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ComoseoteunavioteesperasseemThasos/ComosePenélope/Nosseusquartosaltos/Entreseuscabelostefiasse.”//“Cíclades(evocandoFernandoPessoa)”1972

ADRIANO MIRANDA

No seu jardim, na Travessa das Mónicas, em 1999

Manuel Gusmão | Dois quase poemas para Sophia Para uma voz que continuará connosco *

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– E o que te diz ela a ti essa canção que só pode ser ouvida por quem na sua própria voz cantando a escuta? – Nada lhe peço que me diga Apenas que venha que continue a chegar até mim com a sua morte a viver oferecida viva e sem remédio. E há então uma tal soturna idade uma tão violenta doçura agora que para sempre / por momentos adia o meu morrer.

Aquele que em comum falávamos comíamos e praticávamos, o velho que já de tudo mesmo do amor se exilara, o escriba da fúria rigorosa escrevia ainda, continua escriturando: Quem pode ser no mundo tão quieto Que o não movem nem o clamor do dia Nem a cólera dos homens desabitados Nem o diamante da noite que se estilhaça e voa Nem a ira, o grito ininterrupto e suspenso Que golpeia aqueles a quem a voz cegaram Quem pode ser no mundo tão quieto que o não mova o próprio mundo nele


FERNANDA FRAGATEIRO


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