Cesariny

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MIL FOLHAS

ANTÓNIO POPPE

8 | DEZEMBRO | 2006 | PÚBLICO


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MÁRIO CESARINY

PÚBLICO 8 DEZEMBRO 2006

A UM RATO MORTO ENCONTRADO NUM PARQUE Este findou aqui

< António Poppe

Cartas inéditas CRUZEIRO SEIXAS E MÁRIO CESARINY NA CASA DE TEIXEIRA DE PASCOAES, EM AMARANTE

Cruzeiro Seixas | Uma chama, esse Mário Conheci o Mário Cesariny na escola António Arroio. Era um rapazinho lindo. Engatei-o! Nem tínhamos bem consciência do que era a homossexualidade, nessa altura era tida como uma doença. A mim interessava-me fazer amor, não vício, isso nunca fiz. Namorados, eu e o Mário, não, era coisa de garotos, que passou. Na António Arroio não aprendi nada com os professores, aprendi tudo com o Mário e o António Domingues, filho de um escritor daquela época. O Mário já nasceu tudo. Já grande artista, com todos os dons. Foi talvez ele que despertou em mim uma coisa adormecida. Estava sempre no palco, na ribalta, no sentido de ter ideias, de procurar, gostava de se exibir, não parava um momento de ter a cabeça a trabalhar. Nessa altura estava indigitado para ser o grande músico deste país, por ele próprio e por nós todos! Era a escolha que tinha feito. Falava muito menos de poesia e de arte. O que o apaixonava era a música. Era lindo chegar a casa dos pais, na Basílio Teles [em Lisboa], e no Verão aquela janela aberta e o Mário agarrado ao piano. Batia com muita força nas teclas. O Mário, as irmãs e a mãe tinham uma grande luta com o pai. As três filhas eram muito bonitas e gostavam de andar à moda, havia despesas. O pai queria que ele fosse ourives, que ganhasse a vida, que casasse. Desconfiava que ele não actuaria muito heterosexualmente, e um dia meteu-o num quarto com uma prostituta. Interesse pelas raparigas nunca houve. Uma pianista, Maria da Graça Amado da Cunha, amiga do Lopes-Graça, conhecia bem as irmãs, iam todos no Verão para Moledo. Ouviu o Mário tocar, entusiasmou-o e pô-lo em contacto com o Lopes-Graça. E ele, que tinha pouco dinheiro, dava lições ao Mário de graça, em casa. Um dia o Mário escreveu-me a dizer que se ia suicidar [ver carta]. Foi um dos dias mais trágicos da minha vida. Procurei o Fernando José Francisco

— éramos os três grandes amigos, com grandes caminhadas por Lisboa à noite — e percorremos os sítios onde achávamos que ele se podia suicidar, até uma falésia na Caparica. E ao fim do dia fomos bater ao Lopes-Graça a perguntar se sabia do Mário. Ele lá nos disse que o Mário nesse dia não tinha ido à lição. Em desespero fomos à Basílio Teles. E quem nos aparece? O Mário, risonho, a comer bombons! Eram as coisas metafísicas que o afligiam. Líamos muito o Régio. O Casais Monteiro menos, o António Botto depois. Estrangeiros, claro, havia o Oscar Wilde da “Balada do Cárcere de Reading”. Não tínhamos dinheiro e havia a PIDE. De repente começaram a aparecer os primeiros poemas ao Mário. Nós fazíamos duas vezes por dia o caminho Rossio-Campo Grande, se fosse preciso, e o Mário a tomar apontamentos de poemas nos livros, ou a emendar, ou a ler. Os poemas nasceram ao meu lado, nas ruas de Lisboa. A mãe do Mário subsidiava-o bastante e durante muitos anos ele pagava-me os cafés. Havia o Herminius, na Almirante Reis, onde íamos muito — hoje é uma agência funerária... ainda nos vejo lá... Íamos muito à Brasileira — na mesa ao lado estava o Almada [Negreiros], falava-se de mesa para mesa. O Mário gostava tanto do que eu fazia que um dia mostrou desenhos meus ao Almada, e o Almada folheou friamente e devolveu. Foi o meu primeiro fracasso. O Mário também desenhava e pintava, mas não era para aí que estava virado. Pela nossa idade, o surrealismo chegou atrasado — a PIDE não deixava. Foi o [Alexandre] O’Neill que trouxe de Paris um livro, primeiro contacto. E já nas noites de café fazíamos reinvenção de Dadá, sem saber. Cuspir nas montras e pôr papéis com poemas, coisas exorbitantes neste meio comezinho. Lisboa estava cheia de cafés e saltava-se de um para outro. Havia um no Cais do Sodré que pare-

cia um navio. Não havia dinheiro, mas o Mário ia arranjando, teve um trabalho no [jornal desportivo] “O Volante”, numa repartição do Estado. Foi nessa repartição que conheceu o Y. Encantaram-se absolutamente um com o outro. O Y era de [uma cidade de Norte]. Da parte do Mário foi uma paixão, da parte de Y uma paixão pela personagem que adivinhava tudo, que sabia tudo. Éramos muito amigos da família do [Teixeira de] Pascoaes. O Mário comparava o Pascoaes ao Velho da Montanha. Ele, Mário, era o Jovem da Montanha. Não estava bem aqui. O sonho é sempre maior que os nossos pés. O sonho do Mário era era muito extenso, estendia-se pelo mundo fora e além. Era um encantamento, esse Mário, uma chama. Ele tinha muito viva a costela espanhola da mãe e isso foi uma força para a poesia dele. E tinha a costela comercial do pai — não é vergonha nenhuma, as pessoas herdam coisas. Na poesia do Mário sinto uma força espanhola. Aquela mãe teve muito peso nele. Gritava-lhe: “Tu no te lavas!” O protuguês dela nunca foi correcto. Lá em casa dele falava-se aos berros, batiam-se as portas, havia uma vivacidade não-portuguesa, com as irmãs a falarem todas ao mesmo tempo. A exposição [surrealista] em 1949... tínhamos começado a trabalhar juntos, tomando sempre como princípio ser um anti-grupo. E fomos arrepanhando amigos dos cafés. Aí já o Mário se via como poeta. Ele era sempre a figura máxima onde chegava. Mexia todos os cordelinhos, enquanto eu andava por ali um bocadinho às cegas. Dizíamos o pior do regime. Não fazíamos outra coisa que não dizer mal do Salazar. O desaparecimento do Mário não é coisa fácil. Encontrávamo-nos pouco, mas saber que ele estava ali... [testemunho a partir de uma conversa ao telefone]


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sua vasta carreira / de rato vivo e escuro ante as constelações / a sua

de Mário Cesariny a Cruzeiro Seixas Lisboa, Março-53 Meu caro; muito e muito Querido Amigo; queridíssimo companheiro; etc; etc; etc. Estou um monumento de remorsos e já mordo no braço por ainda não ter conseguido fazer-te chegar notícias. Mas há lá explicação que se acredite para uma coisa destas! [...] Saberás que já perdi várias cartas para ti, perdidas pela razão que não há em não ter dez tostões, ou ter de repente vinte tão preciosos, os hediondos, que nunca sobeja nada para o que era preciso. Este negócio de urgências vai-se apertando tanto que tomba tudo num grande mar-morto — o mar com que nos brindam porque dissemos que não? Não há nem haverá, claro que sabes isso, algo que se pareça com falta de resposta. Para ti, então!!! Há é vida adiada — um negócio de bruxas! Saberás que subi, por adaptações múltiplas, à vagabundagem escolhida-forçada, e estou num ponto magno da magnífica curva. Um pouco mais adiante — e desapareço. [...]

Lisboa, Dez. 53 Querido amigo — Radiante por ter notícias tuas de tantas qualidades — o trabalho e as tristezas, a solidão e o sonho, a velocidade-louca-imobilidade-magnífica. Cada dente arrancado à boca deste planeta soma milhares de mortes próprias e alheias. E não esquecendo nunca os que estão na Indochina e nas vielas-monstro de todas as cidades chega-se — pode chegar-se — à constatação de certo número vário de compensações aliás não referidas ao problema: ser feliz, ser infeliz — questão bastante imunda, se me permitem. Eu vejo que o importante é arrancar-lhe o dente — actividade sobremodo divina. [...] Declaro uma afinal constatada inapetência para ser feliz. Perdão, perdão: eu não quero ser feliz. Entende-se? E tu como eu. [...] E como nós o [António Maria] Lisboa. Eis a pedra de toque. Os outros antigos companheiros não passavam outra fronteira senão essa. [...] Céus! — Meus Céus — Há coisas a fazer, tarefas misteriosas a cumprir, o vento ameaça partir sem um beijo na boca. E quanto à do planeta, quando houverem assaltado os trinta e dois que lhe cabem, podes estar bem certo: nós lhe daremos uma dentadura nova [...]

Num café em Esposende, ao pé de [Y], 8-4-50 Muito querido amigo meu [...] tanto ele como eu temos desejado muito a tua presença por sabermos que adorarias estar aqui levando connosco a vida grande que que por cá fazemos. Imagina (por exemplo): hoje, depois de um magno passeio no rio, de parceria com uns jovens vizinhos doidos que têm um barco a motor, regressamos ao lar, e depois do competente banho de sol no jardim da casa, almoçamos (no jardim...) de: sopa de [???], SALMÃO francês – um mimo – um mimoso vinho verde e salada, segue arroz (acepipado [???] e carne assada. Rojões, presença de molho branco. Segue fruta, café, queijos, biscoitos e bolinhos. A garrafeira. Segue uma caneca à sombra e ao sol enquanto não chega a hora de comer outra vez. Às cinco, surge a mulherzinha que trata da louça e faz sopas, apoveitando-se o dedo que dela serve para nos tirar fotografias. Após o que vinda a Esposende (paisagem lindíssima) os dois montados na bicicleta (única) que temos, legada pelo [Z], revesando-nos na pedalada. Medo da guarda. Chegada sem incidentes. Amanhã, porque o [Z] pediu que estivéssemos fora de casa o domingo pascoalino, afim de impedir habilmente a presença do padre lá na casa – manobra de uma habilidade que é já tradição por se repetir todos os anos – vamos para a Póvoa do Varzim, onde tenho os ramos mais loucos da minha já bastante louca família, e espero que nos dêm guarida – misto a caridade cristã e a alguma amizade. Se a caridade não pegar comeremos por fora... Bem. O [Y] apareceu com um poema magistral. Infelizmente, tem de ir para [uma cidade do norte] já na terçafeira! Tropa. Merda. Ele não quer ser “meu amante”. Pois é. Não encara tampouco, ao que bastante bem me parece, qualquer espécie de maior profundeza nas nossas relações. Óptimo. A vida continua. Eu também. [...]

[3 de Abril de 1942] Meu queridíssimo amigo Decidi acabar com tudo. Estou cansado de escrever porque acabo de escrever ao [X] a contar-lhe que vou matarme. Talvez não creias nisto. E melhor para ti, talvez. Desculpa-me o deixar-te mais sozinho mas agora já não posso recuar. Que coisa triste, a nossa vida. Agora acabou. Os meus versos são teus também. Não venhas a minha casa até acabarem as férias. Lá só nessa altura saberás. Se quiseres falar comigo numa outra vez vai a casa do [X] e pede-lhe a carta que lhe escrevi. Estou cansado. Adeus meu querido e infeliz amigo. Vê se consegues ser mais herói que eu que logo me deixei vencer. Que amargura a desta despedida definitiva. Não me resolvo a acabar, mas tem de ser. Abraço-vos a ambos, do fundo da minha alma.

Textos e imagens de: Agnieszka Kowalska António Barahona António Poppe António Ramos Rosa Bernardo Pinto de Almeida Carlos Calvet Claude Rouquet Cruzeiro Seixas Fátima Maldonado Francisco Tropa Ilda David’ Jaime Rocha João Pinharanda João Queiroz José Manuel dos Santos José Tolentino Mendonça Luis Manuel Gaspar Manuel António Pina Manuel Gusmão Manuel Rosa Mário Santos Miguel Ângelo Rocha Miguel Gonçalves Mendes Mumtaz Óscar Faria Pedro Mexia Pedro Sousa Vieira Perfecto E. Cuadrado Rui Baião Sylviane Sambor Vítor Silva Tavares O autor da capa, agradece a Sara, Mumtaz e Carlucci

Nota

Todos os textos e imagens são inéditos e, na sua maioria, foram feitos para esta homenagem a Mário Cesariny. O PÚBLICO agradece a generosidade imediata de todos os autores. Um reconhecimento especial a Cruzeiro Seixas pela oportunidade de publicar aqui, pela primeira vez, excertos de uma vasta e rica correspondência.

Investigadores - Doutorandos - Mestrandos

L IVROS

NOVOS - RAROS - ESGOTADOS simoes@livrariasimoes.com


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pequena medida não humilha / senão aqueles que tudo querem imenso / e só sabem

Luis Manuel Gaspar | Rui Baião

José Manuel dos Santos | O espelho vazio Dos lugares que os homens criaram para se abrigar, o café é o que mais rua tem. Por isso, Mário Cesariny gostava tanto de cafés. Aí, sentia-se onde a poesia estava, onde “sempre esteve”. Aí, lembrando Lautréamont, podia fazê-la em comum. Foi em cafés que escreveu os poemas. Foi em cafés que conversou com os amigos e até com os inimigos. Foi em cafés que fitou os corpos com um olhar que os tornava mais visíveis. Era nos cafés, e no que eles tinham de rua, que se sentia verdadeiramente em casa. Cafés cheios de fumo e de fadiga e de fuga e de fúria. Cafés onde se estava porque não havia sítio melhor para estar. Cafés que resumiam o seu entendimento da vida: café-manicómio, café-convés, café-asilo, café-escritório, café-quase salão e, pois claro!, café–de-engate. Viciado em cafés, nunca o vi

aí tomar um café. Pedia uma água mineral e, muitas vezes, usava-a para lavar as mãos, porque desconfiava que, depois de bebida, a garrafa era enchida pelo dono da casa. Ria e, enquanto a vertia nos dedos em ablução ritual, olhava à volta para a “malandragem” que habitava as mesas e exclamava: “A água é a única coisa que não é de confiança neste café.” Nos tempos gloriosos do grupo surrealista, era nos cafés (Herminius, Royal, Gelo) que se incendiavam a eles próprios e era a partir dos cafés que queriam incendiar o mundo. Depois, toda a sua vida foi vivida, nocturnamente, em cafés, até que os cafés acabaram e ele começou a acabar como eles. Passei, durante anos todas as noites, milhares de horas com Mário Cesariny, nos cafés e nas ruas à sua volta. Esse tempo foi o mais lúcido

e o mais bem aproveitado da minha vida. Estou a vê-lo chegar, alto, magro e direito, como um fidalgo que nunca perde o porte. Logo que entrava, punha-nos, com o que dizia, à altura do desconcerto do mundo. Se alguém estava a ler um jornal, perguntava: “Fala de nós?! Se não fala, deita fora.” E sentava-se, com o olhar aceso de inteligência, gravidade, assombro, malícia e imaginação, a qual, como escreveu, é o contrário da fantasia e, por isso, habita o real. A conversa começava e não mais parava, a não ser quando ele fazia um silêncio para nos dar a ver melhor, com uma mímica só dele (que, para mim, se tornou uma mnemónica), o que queria dizer. Fazia perguntas para fazer das nossas respostas o chão a partir do qual levantava voo até às alturas onde o ar era mais

puro e rarefeito; ou para descer aos abismos onde o fogo queimava mais. Costumava dizer, cingindo o rosto com as mãos, que tinha ardido num incêndio e aquele era o resultado. Esse incêndio era o Portugal da polícia de costumes, da censura, da PIDE, do “respeitinho é que é bonito” e “do trabalho é que educa “, onde viveu (não o esqueçamos nunca!) cinquenta anos da sua vida, uma parte deles perseguido por “suspeita de vagabundagem” (ele mostrava a perversidade do ataque, lembrando que, se a acusação fosse de “vagabundagem”, era fácil provar a sua verdade ou falsidade, mas que uma “ suspeita de vagabundagem” não tinha prova possível e assim podia ser eterna...), e que afrontou da maneira mais intensamente livre que se pode: fazendo do seu corpo um lugar


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pensar em termos de homem ou árvore / pois decerto este rato destinou como soube (e até MÁRIO CESARINY, ANTHERO II, 1999

serão, no grande solar e, todas as noites, a certa hora, aparecia, no salão, uma antiquíssima e idêntica caixa de bolos. Era o dono da casa quem apresentava a lata, abrindo-a e fechando-a, instantaneamente, em frente de cada pessoa presente, sem que alguém se atrevesse a tirar sequer uma migalha, porque sabia que isso o poria rubro de raiva. Certa vez, um convidado desprevenido tentou tirar um bolo e foi imediatamente entalado pela tampa que o poeta, num gesto automático, fechou sobre a sua mão. O conviva deu um grito de dor e o avarento exclamou: “Nunca queres! Nunca queres!” Cesariny contava estas historias e ria muito, muitíssimo. A sua ironia valia um ensaio literário. Ele gostava dos grandes poemas de Eugénio de Andrade (“Green god”, “Espera”) e sabia-os de cor. Mas gostava menos de alguns, como dizer?, mais “preciosos”. Assim, quando às vezes se despedia de nós, dizia, mordaz: “Boa noite. Eu vou com as aves”, usando o verso de um desses poemas... Durante anos, o Reimar, na rua das Pretas, foi um templo de visita quotidiana obrigatória. Chegava-se lá e a “coisa” já estava montada. Quero eu dizer: havia sempre “coisa”. Ao pé “daquilo”, Fellini era Cecil B. DeMille. As empregadas, a Mena e a Mina, tinham as vozes sempre no tom e na altura em que a Maria Callas brilhava. Quando chegava a hora do tiroteio, faziam do balcão uma trincheira, deitavam-se no chão e esperneavam como se estivessem ligadas à corrente eléctrica. E, se calhar, estavam! O senhor Manuel da Hortaliça, ou do Bairro Alto, que antes tinha descido o Chiado entre a mulher, dedicada enfermeira dos Hospitais Civis, e o amante, aprumado marujo do Alfeite, ameaçava (ou estaria a oferecer conteúdos?) a tropa especial, agitando a pochette. E dizia para as “amigas”: “Vai com este, que é muito limpinho e não mexe em nada”: Nesse magnificente antro, havia de tudo: putas e homens “coisa e tal”, chulos e travestis, artistas e ladrões, professores primários em crise de identidade e fadistas (com e sem voz), operários e vagabundos sem eira nem beira, filósofos ocultistas e jornalistas (proibidos, sob ameaça de morte, de falar do que ali se passava), funcionários públicos casados, mas com heterónimos sexuais, milionários em fuga para um Egipto qualquer, poetas e pintores, maiores e menores. E, se Cesariny era um enviado do fogo, havia também, apolíneos e dionisíacos, enviados (alguns fardados) dos outros três elementos, terra, mar e ar, a que se juntavam, em temível contraste, anões, gigantes coxos, zarolhos, corcundas, gagos e mudos. “Tudo boa gente”, dizia Cesariny. E acrescentava: “Comparado com isto, o que Ulisses viu na viagem de regresso a Ítaca era banal...” Por entre a ginjinha e as imperiais, de que a Mina e a Mena bebiam golinhos, antes de as entregarem aos clientes (“é para ver se estão fresquinhas”, diziam), falava-se de Nietzsche e do marujo da mesa ao lado. Ali, estávamos como se estivéssemos em plena Idade Média, o seu tempo histórico do Ocidente preferido (“Com tanta treva e tanta peste, deviam querer aproveitar bem o tempo, divertindo-se muito...”, explicava). Mário Cesariny gostava de anarquistas, videntes, usurpadores, blasfemos, xamãs, incendiários e revoltosos. E de reis destronados, deuses abolidos, bruxas ameaçadas, náufragos salvos no último minuto. Gostava de gostar e gostava que gostassem — até dele. Gostava de não gostar e não desgostava que alguns não

gostassem dele. Nunca conheci ninguém que, ao mesmo tempo, tivesse em tão alto grau, o sentimento trágico da vida e o sentimento cómico da vida. A sua palavra era grave e ameaçadora e alegre e ácida e inocente e ameaçada e leve e dura e genial, no juntar tudo isso na sua voz única, no seu olhar-clarão, na altivez com que se impunha aos medíocres de todas as vaidades, culturas, universidades, classes, terras, aptidões, idades e especialidades. Gostava de falar da “inteligência estúpida” e da “estupidez inteligente”, contra o “discurso discursivo” e a “arte artística”. Este Cavafis de uma LisboaAlexandria oculta no subsolo do salazarismo, era uma águia real de voo altíssimo, que, nas ruas, falava com malucos, tresnoitados, mulheres do trapo (havia uma de quem dizia: “é igual à Vieira”), visionários, apocalípticos e seres de outros planetas que vinham tomar a bica à Avenida da Liberdade. Nessas falas com eles, tinha o dom de os tornar o que eram: poetas. O seu atelier da Calçada do Monte, onde ouvíamos incessantemente os concertos para violino e orquestra de Beethoven e de Tchaikovsky, ficava num pátio com diferentes oficinas (de estofador, por exemplo) e também tinha muita rua. Raro era o dia em que não acontecesse qualquer coisa que dava uma história para contar: desde o que se passou no pátio, a seguir ao 25 de Abril, com motins, intentonas, escândalo sexual do senhorio, plenário de inquilinos na Voz do Operário e chapéu de palha comido por um ser humano, até ao vizinho que ele, uma tarde, descobriu, degolado e frio, atrás da porta, passando pelo estranho caso de um assaltante que lhe entrou no atelier, com as paredes cheias de quadros a que não atribuiu qualquer valor, e que não só não levou nada, como ainda esqueceu lá um guarda- chuva, deixado num canto, sem que Cesariny lhe quisesse tocar. Passado muito tempo, numa noite de súbita invernia, em que o único chapéu que havia era aquele, acabou por usá-lo e, debaixo dele, foi assaltado a caminho do Martim Moniz, onde ia apanhar táxi... Os vizinhos pressentiam-no célebre (até porque Mário Soares ia ao atelier), chamavamlhe “senhor Mário”, mas tratavam-no como ele gostava de ser tratado: com a franca cortesia medieval praticada entre a gente das várias artes e ofícios... “Tudo isto vive em mim para uma história / de sentido ainda oculto / magnífico irreal / como uma povoação abandonada aos lobos / lapidar e seca / como uma linha férrea ultrajada pelo tempo”, digo eu, agora, com versos dele. Houve uma época, já os cafés tinham acabado e ele estava muito em casa, andei ocupado e não o pude visitar com a assiduidade de que ele gostava e que era própria da nossa amizade. Uma tarde, o Al Berto tinha morrido e eu fui à Basílica da Estrela. Quando entrei na capela mortuária, plena de gente, Cesariny estava sentado junto do corpo do poeta morto. Ao ver-me, ergueu-se e gritou, no silêncio: “Vens visitar um morto e não me vais visitar a mim, que ainda estou vivo!” Quando agora o velei no Palácio das Galveias, lembrei-me destas palavras, mas, estranhamente, não senti que estivesse junto de um morto: vi apenas um espelho vazio. Mas a sua presença é tão forte em mim que nada, nem a morte, a consegue tocar. Por isso, tenho vivido estes primeiros dias da sua ausência como quem olha, de olhos muito abertos, o escuro, perscrutando-o e sabendo que Cesariny é como um desses astros mortos que continuam a iluminar a nossa noite.

Fátima Maldonado | O poeta evadido Caiu mais um degrau cerrou-se outra cortina Cesariny morreu isso que nos interessa? portugal não deita luto por poetas está de nojo por si e não sofre outros mortos o cadáver pesa-lhe no arrasto já lhe basta a sua cremação clamar por defuntos adicionando cestas de mirto coroas de ligaduras gordos pêsames de trampolim enumerar quem acorreu à urna do poeta evadido é coisa de jornais a portugal sobra o arrestado tempo a ínfima discórdia sôfrega quimera tentando corrigir artríticos verdetes ancorar o sem número de falhas o sem número de redes armar lázaros em jogadores de golfe enxofres visam nos cotos gangrenas incuráveis próteses ganham ferrugem nas repartições canis cerceiam rasgos desossam vocações gestores espezinham tão pobres armistícios azedando no copo tinge-se a nata vira-se a tina esgarra-se a toga suja-se a mão evade-se o poeta e portugal cá fica lambendo perras feridas encosta-se às fracturas e roça nas paredes onde escarraram ANGST enquanto espera vez na sopa do sidónio.

MÁRIO CESARINY, SEM TÍTULO, 1973

“tenebroso e cantante”, o sítio mais subversivo do universo. É, por isso, que a sua poesia nos ilumina e aquece e queima como a proximidade de um fogo alto e inextinguível. Para a conversa tudo servia: o que acontecia e não devia acontecer e o que não acontecia e devia acontecer, Portugal (que, segundo ele, acabou na Segunda Dinastia, e de que desconfiava como se desconfia de alguém que já nos “fez várias”) ou o estrangeiro (a sua viagem ao México, por exemplo) , a política ou o amor, a poesia, que, para ele era o contrário da literatura, ou a magia, a pintura ou a filosofia esotérica, os Aztecas, os OVNIS, Sade, ou o amor entre Rimbaud e Verlaine. E os Pré Rafaelitas, Swedenborg, Blake, Breton, Artaud, Genet, Paz. Ou os Cancioneiros Medievais, Gil Vicente, Bocage, Antero, Gomes Leal, Cesário, Sá Carneiro, Pessoa, Raul Brandão, Pascoaes, Botto. E Giotto, Bosch, os Painéis de Nuno Gonçalves, Picasso, Miró, Dali, Bacon, Vieira da Silva, Paula Rego E também (ora essa!) o senhor Manuel da Hortaliça, o Grande, a Galga, a Doble-Quina, Titânia, o Reinaldo ou o gato (quem quiser saber mais leia “Titânia história hermética em três religiões e um só Deus verdadeiro com vistas a mais luz como Goethe queria”: está lá tudo demonstrado). Dizia poemas de cor (sabia imensos e sabiaos dizer como ninguém), contava histórias do tempo em que “até os arrebentas tinham boca: queriam ser beijados”, falava de sonhos e de pesadelos, de coincidências e de acasos objectivos . E as troças que fazíamos eram esplêndidas. De repente, nele e em nós com ele, era como se comparecessem, todos juntos, os narradores do “Decameron”, das “Mil e Uma Noites” e dos “Contos de Cantuária”, com as sua vozes ora roucas ora agudas, os olhos ora astutos ora inocentes, as mãos ora lentas ora ágeis. Quando a noite atingia o zénite, no meio do barulho do café, erguia-se a voz de Cesariny a declamar a Salve Rainha, dramatizando com gestos lúgubres o que ia dizendo. Ao chegar à passagem “A vós bradamos os degredados filhos de Eva. A vós suspiramos, gemendo e chorando neste vale de lágrimas”, bradava mesmo, com voz lutuosa e suplicante. Esta oração, que sabia toda de cor, era para ele como que uma “vera efígie” de um cristianismo enlouquecido, contra o qual tinha erguido a sua magnífica liberdade de corpo, de alma e de espírito. É verdade: Cesariny adorava ouvir histórias e adorava contá-las. Para começar, as da infância, quando ia de férias para casa da família, na Póvoa de Varzim. Havia um tio, homem “importante dos regimes”, que não tinha aceite, para não deixar a terra nem a pacatez, um lugar no governo de Salazar. A mulher dele, espanhola efusiva e ambiciosa, insultava-o por isso, enquanto ele permanecia silencioso, a trabalhar no escritório. Toda a manhã, ela andava pela casa, atirando-lhe à cara um nome: estúpido!. E, ao mesmo tempo, dizia baixinho, contentíssima, para o jovem Mário: “Niño, já viste o que é chamar estúpido a um homem desta posição!” Beata, esperta e má, quando regressava da missa, inspeccionava minuciosamente a limpeza da cozinha e apertava o pescoço das criadas, gritando: “Este tacho não tem o brilho que devia ter. Há aqui uma mancha. Isto é um pecado. Deus está nos pormenores.” Outra história que o divertia e nos divertia era a do poeta-aristocrata do Tâmega, devotado imitador de Pascoaes, e roído por uma avareza ainda maior do que a sua fortuna. Recebia, ao


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como não soube) / o milagre das patas — tão junto ao focinho! — que afinal estavam

Bernardo Pinto de Almeida | MC2 Podias ser muito belo porque rias como um irmão que voltasse, inesperado. Tinhas o dom tranquilo da inocência e da nobreza que ao rosto desenhara. Partias os espelhos quando abrias subitamente os braços, regressado ao voo, ao sobressalto ou à evidência do gato que de sempre te encarnara.

Carlos Calvet | Uma carta Caro Mário, Lembras-te? Será que nessa viagem infi nita que empreendeste alguma memória deste mundo se consente? Recordemos. Foi naquele dia claro/escuro de Janeiro, no Terreiro do Paço. Tínhamos passado a manhã a filmar, eu empunhando a câmara e tu seguindo inteligentemente as minhas indicações com aquela certeira intuição para os jogos teatrais que te era natural. Já perto da hora do almoço e fatigados, perguntei-te: — Que achas se comessemos qualquer coisa? — Agrada-me a ideia — respondeste. — Eis ali a nossa salvação, o Martinho da Arcada. Se nos conseguirmos arrastar até lá, temos almoço farto. — Não tenho dinheiro para tanto — queixaste-te. — Nem penses! Mesmo que tivesses não te serviria de nada porque eu estou a convidar-te: tenho que tratar bem o meu actor. Vamos embora! Já instalados, encomendámos dois grandes bifes que foram devorados com o digno acompanhamento de um Dão de autoridade indiscutível. Depois, confortados de alma e corpo, voltámos ao trabalho pois havia ainda cenas para fazer e o clima mostrava-se favorável. Foi então que se intrometeu nas filmagens um comparsa absolutamente inesperado: o “Acaso Objectivo”, tão estimado pelos surrealistas.

Miguel Gonçalves Mendes | Caro Mário,

Como dizíamos: os abutres já andam à solta. Eles são os quadros, o património, a amizade que era enorme e até o filme. Era suposto A essa luz e a esse gesto e a essa voz escrever aquelas coisas que se esperam nestas que de repente a tudo transfigura, quem os não soube não viu o que era um rosto ocasiões: as tretas do costume do homem e da obra. Mas não consigo. Não consigo, nem queprecipitando o poder de dar leveza. ro. Por isso vou fazer algo bem mais patético que é escrever-lhe a si. Mágico ou príncipe, ou criança veloz Encontro-me na terra onde se festejam os ferindo o mundo apenas de brandura, mortos, de onde lhe iria escrever um postal ao mesmo tempo solar como um agosto para lhe contar como iam as coisas e amenizar e em cada coisa devolvendo a Natureza. as consequências da minha ausência. Peço-lhe desculpa por não ter estado consigo nos últimos dois meses da sua vida e por essa razão lhe ter falhado e o ter magoado. E garanto-lhe que isso é algo de que nunca, nunca, me irei perdoar. Mas apesar de tudo sei que vivemos uma das relações mais belas que duas pessoas podem atingir. Demos um ao outro tudo aquilo que na nossa incompetência sabíamos ou conseguíamos dar. Nunca lhe disse honestamente, porque nunca mo deixou, como foi doloroso durante o processo do filme lidar com uma pessoa como o Mário, que de alguma forma se estava a despedir porque tinha desistido de viver. E isso marcou-me e irá Vinha, decerto, sob a ardilosa influência de marcar-me para todo o sempre por ter medo e Baco, que actua pelo interior quando estamos não querer que o mesmo se passe comigo. eufóricos. E aconteceu a desgraça! Ao mudar a Há uns meses perguntava-lhe se alguma vez, bobina na câmara meti distraidamente uma que tal como eu, se tinha sentido totalmente perdido, já fora impressionada. Em perfeita ignorância respondeu-me num primeiro momento que não, do facto continuei a filmar. mas depois de uma pausa poética/teatral como Só dois dias depois, revelado o filme, vimos o só o Mário sabe fazer, corrigiu-se dizendo que no resultado e foi um choque. Lembras-te? Horas fundo, se calhar, andaremos todos eternamente de trabalho perdidas. Mas não tanto assim. Na perdidos. Palavra estranha, Eternamente. verdade, achei o engano uma maravilha e uma Quando eu o ouvia, sentia-me sempre como oportunidade. Eram cenas encavalitadas, umas se me encontrasse perante uma entidade divina, sobre as outras, fantasmagóricas, de um humor uma espécie de semideus, que da forma mais quase negro — a máquina de costura a tricotar simples me fazia compreender o que é reala estátua do D. José ou a tua mão a extrair da mente essencial e questionar se estaria ou se barriga do João Rodrigues um papel que talvez estou realmente a caminhar na direcção certa. fosse um poema! Muito nos divertimos. O Mário diz, no filme, que a graça dos deuses Achámos que era o primeiro “cadavre exquis” gregos é serem feitos à imagem humana, com da história do cinema! Presente dos deuses que todos os seus defeitos. E é esta figura mítica que gostam, por vezes, de meter a sua colherada nos o Mário representa para mim: um Deus de uma assuntos humanos. Pode recusar-se um presente humanidade e sabedoria profundas. dos Gregos mas nunca um vindo de tão alto. Pelos vistos a ideia de Olivença (o último Sem hesitação, integrei algumas dessas ce- gesto surreal) caiu por terra e sei que, por via nas bi-cinemáticas no discurso do filme onde se das dúvidas, não quis ser enterrado ou cremado. acomodam, satisfeitas, por direito próprio. Não Desejo ardentemente que sim, que a outra vida achei delicado recusar tal dádiva, embora ela exista, que encontre a paz que tanto ambicionos tenha custado ter de refazer pacientemente nava, que dê um beijinho à Henriette, e que os planos atingidos. Mas valeu a pena. se te tenha libertado desse corpo que tanto o limitava e que finalmente e de forma grandiosa Se me estás a ler, caro Mário, acho que te possa voltar a voar. vais rir um bom bocado na recordação desse Sinto uma dor tremenda por não o poder volmomento mágico quando de olhos arregalados tar a ver ou tocar mas, apesar de tudo, o Mário vimos projectadas no écran insólitas e atrevi- é e será sempre, um ser imortal. Por isso estará das combinações de imagens geradas fora de sempre comigo. toda a previsão. Desculpe não ter cumprido o prometido. Lisboa, 30 de Novembro de 2006

México, 30 de Novembro de 2006

[Autor do filme“Momentos na vida do poeta”, de 1964]

[Autor do filme “Autografia”, de 2004]


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MÁRIO CESARINY

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justas, servindo muito bem / para agatanhar, fugir, segurar o alimento, voltar atrás de

Mário Santos | Ele está no meio de nós (a homenagem em 2006)

Pedro Sousa Vieira SEM TÍTULO, 2006

Enquanto a classe merda passeava os cães e votava por Kim Il-Sócrates deu o tranglomanglo no poeta e ele morreu foi desta para melhor. Mas não faz mal só se perdem os que caem no céu. Cesariny deve estar no real absoluto a tomar uma cerveja (um cigarro? uma cereja?) com Rimbaud, o Esfinge Gorda, e os outros moços do complô. Posfácio podendo servir (também) de poema O céu a seu dono. A Cesariny o que é do poeta: o inferno real absoluto (revisitado), o vidro moído, a vassoura de giestas. Foda-se. Mai’ nada!

Perfecto E. Cuadrado | É preciso dizer Mário em vez de dizer poesia Aclamações dentro do edifício inexpugnável aclamações por já termos chapéu para a solidão aclamações por sabermos estar vivos na geleira aclamações por ardermos mansinho junto ao mar aclamações porque cessou enfim o ruído da noite a secreta alegria por escadas de caracol aclamações porque uma coisa é certa: ninguém nos ouve aclamações porque outra é indubitável: não se ouve ninguém

PERFECTO E. CUADRADO, MARIO CESARINY. CAPARICA

Mais do que nunca apetece gritar hoje em voz baixa: “You are welcome to Elsinore — hypocrite lecteur, mon semblable, mon frère!.” Porque no Reino da Dinamarca onde O’Neill profetizou que o medo ia ter tudo — embora o medo sempre tenha tido tudo e foi por ele e contra ele que o bicho humano inventou deuses e tormentos — as trevas são mais trevas (Pascoaes é que sabia disso) desde as cinco e meia da manhã do dia do senhor de vinte e seis de novembro de dois mil e seis. E porque não cabem nesta hora as festas e os circos

e os carnavais que Mário de Sá-Carneiro imaginou e pediu para a sua despedida final, mas sim o canto silencioso da “ortofrenia” cesarinyana que sai pelas janelas da solidão e do desespero duma realidade real cada dia mais longe dos nossos desejos e dos nossos sonhos, substituídos por simulacros de navegação e de aventura num imenso deserto sem cais, sem barcos e sem mar onde aquele canto ecoa — descrição implacável, denúncia sem piedade — entre a multidão imóvel mascarada de movimento e viagem:

Pouco depois o próprio Mário reconhecia que havia tempo que tinha deixado de gritar desde o território privilegiado do poema, ali onde de maneira especial no círculo da sua acção, todo o verbo cria o que afirma, e assim o formulava em entrevista a Fernando Vale no “Jornal de Letras, Artes e Ideias” nº 38 de 3-16/VIII/1982: “Escrevo desde 1942. A febre durou doze anos. [...] No fundo escreve-se sempre o mesmo verso. Escrever poesia é uma espécie de invocação. Mas não se pode estar toda a vida a invocar o mesmo santo, sobretudo se ele não aparece. Assim sendo, não rezo mais.” Claro que seguia e seguiu sempre invocando o santo de mais longe, desde a poesia plástica onde, dizia, se sentia mais à vontade, “menos directamente e imediatamente implicado”. Mas não só. Mário invocava e provocava e convocava o santo com a força da sua imaginação poderosa bem treinada nas sucessivas viagens no barco ébrio — Só a imaginação transforma. Só a imaginação transtorna

— e com a magia dos seus gestos, do seu olhar de gato irmão daquele que Risques Pereira viu partir à aventura, do seu sorriso de desvelar misérias e tirar do chapéu o orvalho da amizade e da alegria e da esperança, da sua estranha maneira de fazer natural e necessário e evidente o que a razão lia e entendia como maravilhoso e impossível. Na tradição dos mestres da “única real tradição viva” (saravá, Ernesto Sampaio, velho amigo, também definitivamente desembarcado!) Mário ensinou-nos a arte de navegar cantando ao leme contra o vento sabedores de que não há nem ítacas nem penélopes à nossa espera nem um caminho certo para esta nossa viagem sem sentido fora da própria viagem, e ensinou-nos também a arte de bem naufragar e fazer do naufrágio uma vitória porque é dele que partirão mais sábios os novos navegantes para novos naufrágios excitantes, patamares cada vez mais altos e mais próximos do paraíso perdido injustamente e lembrado à luz dos raros relámpagos que obliquamente rasgam o nevoeiro desde a memória dos mitos da tribo que dão forma e sentido á nossa memoria pessoal. Um dia Mário disse-me do seu secreto propósito e do seu sonho para a última etapa da sua viagem: “Sabe, ó Perfeito, o que eu tenho pensado é vender parte da minha obra, comprar um carro enorme, contratar um chauffeur e viajar até ao dia da viagem definitiva.” Afinal, não precisou de carro nem chauffeur: morreu-lhe a irmã Henriette e deixou-se morrer porque a viagem já não fazia sentido para ele. Morreu, morreu-nos; deixou-nos menos vida, menos vivos. Ficou a sua obra, ficou na sua obra para nela embarcarmos à procura do nosso próprio mar e do nosso naufrágio. Saravá, poetamigo Mário! E até breve!


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repente, quando necessário // Está pois tudo certo, ó “Deus dos cemitérios pequenos”? / Mas

Manuel Rosa

Jaime Rocha | Cesariny E o poeta deitou-se como se deitam as pedras, na sombra, sobre as escassas plantas que habitam o chão. Não porque fosse o momento da chuva ou as maçãs caíssem como novelos batidas por um pau. Mas porque havia ali um desígnio, uma vigília que lhe pertencia. Era uma coisa não pássaro, um vidro, um fantasma branco a nascer dos socalcos. Iluminado pelo fogo, o poeta seguiu por um caminho de ervas e nesse rasto encontrou vestidos e anéis, pequenos ossos e todos os pedaços de corpos que o tinham ajudado a moldar o seu próprio universo. Antonin, Lisboa, Blake, Pascoaes, Rossetti, e todas as ruas, todas as palavras, todos os nomes dos amantes dentro da água. O poeta desfez-se então num choro invulgar, dentro de uma gaveta, como um cigarro amarrotado para sempre.

Lisboa, Novembro, 2006

João Queiroz Pedro Mexia Chego a uma casa nova e trago os velhos fantasmas. Os visíveis, inexpugnáveis. Os que não descansam. Mudo a digamos vida repartida em móveis e estantes. Os meus solícitos avisam que estou a prazo. Que sempre que me habituo desvalorizo o património. Os caixotes são deles território como o céu e as paredes. Se não deixei a sombra não expulsei também esta companhia. Eles são inquilinos, vitalícios como o medo. Uma vita nuova exige novíssimos tormentos. E esta é apenas vida velha em divisões mais amplas. Quis que não viesse alguma carga desnecessária, memórias e bibelôs. Veio tudo, espectral e sem fadiga. Veio dividido em espelhos e duendes que nunca tive. Veio nos amuletos sem efeito, nas fotos onde já não apareço. Vidrinhos que cortam no escuro. Hologramas meus amigos faz décadas. Cada objecto que inauguro ganha o seu deus malévolo. Que reina na casa toda como os lares nos romanos. Eles sabem que me venceram. É altura mais que doméstica para me juntar a eles. (inédito, integrado em “Senhor Fantasma”, livro a editar em 2007 pela Oceanos)


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quem sabe quem sabe quando há engano / nos escritórios do inferno? Quem poderá dizer / que

Claude Rouquet

Sylviane Sambor

Dois tufos de cabelos brancos, uma camisa de colarinho cortado, a pulseira-relógio por baixo da manga da camisa, uma vitalidade de criança nos gestos, uma inocente fragilidade no olhar, assim permanece em mim Cesariny. Ele lia os seus poemas, uma tarde de Verão, em Bordéus, perante uma centena de pessoas subjugadas. Eu estava ao seu lado para ler as traduções do “Labirinto do Canto”, que acabava de publicar. Esses momentos fazem parte dos mais intensos da minha vida. Há a nossa festa de aniversários comuns, com Hermínio, os jogos, as canções. Há uma noite de partilha, em casa dele, entre os seus quadros. Há a amizade e a poesia. Para sempre, “há um sol esplendente nas coisas”, graças ao Mário...

Carrefour des Littératures em Bordéus, 1994, 1998, 2000, 2002… Para mim, o Mário habitará para sempre esse estado de infância absoluto, irredutível, e que não se extingue; funâmbulo em estado de graça sobre o fio sempre frágil do real; íntimo da maravilha… Na luz do meu reino interior ele segura a mão dos amigos idos e no entanto sempre tão vivos aqui ao meu lado: Al Berto, Hermínio e alguns outros…

[Editor de L’Escampette]

[Directora da Oficina do Livro em Poitou-Charentes]

AL BERTO, MÁRIO CESARINY, CLAUDE ROUQUET E MANUEL HERMÍNIO MONTEIRO EM BORDÉUS, 1994


Espero obviamente que o tal leitor vá a correr para casa “ler Cesário Verde” porque se não o fizer ou não tiver já lido e relido esse inacreditável (de quase inverosímil o ter-nos acontecido tal poeta e em tal tempo) poeta, de apelido Verde, não terá efectivamente lido, nem estará em condições ou nunca chegerá a ler o poema de Cesariny. Curiosamente é o poema de Cesariny quem faz isso e mostra que o faz. assim como diz – ou seja, faz e mostra – outras coisas. Todas elas ligadas umas às outras, por implicação e metamorfose. Vejamos: só lemos o poema quando respondemos, pela leitura: indo ler ou re-ler, à injunção que ele nos faz através do desenlace da ficção que conta — “foram todos para casa ler cesário verde”. Reparem, segue a banalidade do comentário: é a melhor homenagem que se pode fazer a um poeta. Mas a banalidade é a minha, ou a da minha frase, que não vem no poema que faz aquilo que eu disse sem o dizer como eu o disse, mas obrigando tanto quanto se pode obrigar um leitor. Obrigar um leitor a sê-lo. A ler. Obrigar um leitor a seguir injunções sob a forma de narrativas, descrições, etc. Levar um leitor a aprender essa forma de liberdade que é a da livre obediência a um poema. Mas há mais: onde é que está a força que obriga o leitor, como é que o texto pode sancionar a resposta ou a ausência de resposta do leitor? — É que se o leitor não cumpre o que dele se espera não poderá ler em vários sentidos de ler o poema e supõe-se que o leitor quer ler o poema de Cesariny. Ora este poema é ele próprio uma leitura, activa como toda a leitura efectiva, de Cesário Verde. De um poema de Cesário, de vários poemas de Verde e da obra de Cesário Verde. Ou seja o poeta não nos solicita aqui que façamos algo de que ele soberanamente se dispensa, antes pelo contrário, só nos pede que façamos algo que ele já fez. E, entretanto, ele não nos pode exigir que a nossa leitura coincida com a que ele nos propõe. Ele tem de nos deixar entregues à nossa liberdade.

Pouco depois cada qual procurou com cada um o poente que convinha. Chegou a noite e foram todos para casa ler Cesário Verde Que ainda há passeios ainda [há] poetas cá no país!

Aos pés do burro que olhava para o mar Depois do bolo-rei comeram-se sardinhas Com as sardinhas um pouco de goiabada e depois do pudim, para um último cigarro um feijão branco em sangue e rolas cozidas

Deixem-me imaginar um leitor a ler, descobrindo e, se necessário, inventando a poesia de Mário Cesariny. Será a minha maneira, hoje, aqui, de homenagear o poeta. Imagino, então, que qualquer leitor de Cesariny, mesmo que ocasionalmente distraído como qualqur leitor, mas enfim um leitor que leia, um leitor que seja um leitor, repara um dia no poema “homenagem a cesário verde”

Manuel Gusmão | Entre nós e as palavras

Voltemos então ao leitor que abandonámos alguns parágrafos atrás. Lendo os dois poemas, um com o outro, ele poderá perguntar-se: mas Mário Cesariny é só isto que se deixa surpreender neste tipo de relação com Cesário? Não, não é só a relação com Cesário (outras, para as quais já não teremos tempo, são no campo da poesia portuguesa, com Gomes Leal e Pessoa-Campos); nem

Se não comecei assim, foi por cálculo, talvez errado. No fim se verá. Com o espaço que me era generosamente concedido e no tempo de que dispunha, começar daquela maneira, certamente mais disciplinada e mais segura era arriscar-me a afogar aquilo que mais me importava e importa, esboçar um caminho, entre vários outros possíveis, de acesso à singularidade da poesia de Cesariny, enquanto tal, ou seja, enquanto maneira poética. O caminho que escolhi foi a minha forma de responder ao incómodo com o seu próprio nome manifestado por Cesariny e de eu próprio reagir à sua maneira de o escandir nos versos de um outro poema de homenagem, agora, “a antonin artaud”: “Haverá gente com nomes que lhe caiam bem./ Não assim eu./ De cada vez que alguém me chama Mário/ de cada vez que alguém me chama Cesariny/ de cada vez que alguém me chama de Vasconcelos/ sucede em mim uma contracção com os dentes/ há contra mim uma imposição violenta/ uma cutilada atroz porque atrozmente desleal.// Como assim Mário como assim Cesariny como assim ó meu deus de Vasconcelos?/”.

diferimento temporal tanto mais nítido quando comparado com a eclosão praticamente simultânea em Portugal e na Europa de outros movimentos que compõem o que hoje designamos como modernismo. 2.1. Esse carácter tardio e relativamente periférico pode ter facilitado o carácter específico e relativamente sui generis dos poetas surrealistas portugueses que, nos vários casos, lhe vem, em larga medida, das formas diferentes de se relacionarem com outras obras e tradições da poesia portuguesa do séc. XX e de antes. 2.2. Por outro lado, o afastamento do um certo angelismo bretoniano, por vários caminhos conseguido mesmo que não procurado — e a repetida convocação de Artaud que, diga-se de passagem, é na conselação de referênias electivas um nome mais intenso do que o de Breton (Artaud e Rimbaud são os nomes de poetas que mais magnetizam esta poesia ) — marca-se em Cesariny por uma maior visibilidade do corpo erótico, uma mais forte sexualização do Eros e uma mais nítida indignação com a a desfiguração humana implicada pela repressão da pulsão homo-erótica; por uma mais clara dimensão satírica do humor, mas também pela soberania da determinação silábica e, em geral, fonética do jogo de palavras; por formas de um estranho compromisso com aquilo que designarei como tradição do realismo (da qual Cesário é justamente o catalizador mais singular); o que dá a ler o papel do sonho e da transfiguração das formas mais como um modo de resistência e superação da imposição do “pouco de realidade”, do que como sublimação compensatória.

não era para príncipe ou julgador de povos / o ímpeto primeiro desta criação / irrisória para o mundo — com mundo nela? /

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É concedida ao leitor a possibilidade e antes dela acapacidade de se espantar, mesmo que moderadamente, uma vez que suponho, por um lado, que ele está na infãncia da arte da leitura e, por outro, que não há aqui de facto grande matéria de espanto, a não ser que usemos as designações de escolas e movimentos ou categorias periodológicas como etiquetas satisfatórias para conhecer poetas. Aquele que, lendo, se espantou ou se moveu num pequeno sobressalto não tem outra coisa a fazer que não continuar a ler ou internar-se na leitura: (a) para perceber que a homenagem de Cesariny ao seu e nosso maior não se limita à recomendação de leitura, mas consiste no próprio facto de o seu poema ser uma leitura escrita que reescreve o poema de Cesário e (b) passar a ver as diferenças entre os dois poemas — a ler o que é que o poema de Cesariny faz ao (ou com o) poema de Cesário e em que é que isso nos mosrtra algo da maneira ou da mão de Cesariny. Julgo que o leitor reparará por esta ou outra ordem, soletrando o óbvio e arriscando descrições e interpretações. 1) O poema de Cesário é impresso no respeito por uma convenção tipográfica que consiste em começar os versos sempre por maiúscula. 2) Cesariny expõe o carácter de idílio do quadro que Cesário constrói, com humor e alguma ronia, reforçando justamente essa ironia ao isolar o burro como personagem “que olhava para o mar”. 3) Ao subtil efeito cromático e ao contraste dos sons aliterantes entre “GRanZUaL aZUL de Grão-de-bIco”e “Um Ramalhete RUBRo de PaPoulas” é substituído em Cesariny pela invenção de uma ementa discretamente delirante, na natureza das iguarias e dos acompanhamentos assim como na ordem da sua sucessão. Caro leitor imaginário, deixo-te a oportunidade de encontrares a formulação para a transformação sofrida pelas rolas. Aqui chegados, haverá um leitor destas minhas notas que exclamará: “Ora, que raio, você já gastou cerca de 5000 caracteres (incluindo espaços) e ainda nem sequer disse que o Cesariny era um poeta surrealista. E eu penso que poderia ter optado por começar por aí ou, mesmo, por ter seguido um plano deste tipo: 1. Diferentemente de outros que dizem que rigorosamente não houve surrealismo em Portugal, ou que o único que efectivamente terá sido surrealista seria o que morreu demasiado cedo, António Maria Lisboa, eu prefiro pensar historicamente o que aqui significa. 2. Pensar as razões do carácter tardio do surrealismo português,

Mas, todo púrpuro a sair da renda Dos teus dois seios como duas rolas, Era o supremo encanto da merenda O ramalhete rubro das papoulas!

Pouco depois, em cima duns penhascos, Nós acampámos, inda o sol se via; E houve talhadas de melão, damascos, E pão-de-ló molhado em malvasia.

Foi quando tu, descendo do burrico, Foste colher, sem imposturas tolas, A um granzoal azul de grão-de-bico Um ramalhete rubro de papoulas.

Naquele “pic-nic” de burguesas, Houve uma cousa simplesmente bela, E que, sem ter história nem grandezas, Em todo o caso dava uma aguarela.

O leitor tem agora nas suas mãos o volume da “Obra Completa” de Cesário Verde, na edição de Joel Serrão, ou o volume “Cânticos do Realismo e Outros Poemas”, no qual Teresa Sobral Cunha edita a mesma obra e vai começar ou já começou a ler o poema “De Tarde” que, em qualquer das edições mencionadas (respeitando assim a ordem dos poemas na edição de 1887, por Silva Pinto), vem a seguir a uma das versões editoriais de “O Sentimento dum Ocidental”:

[Versão da 2ª edição de “Pena Capital”, Assírio & Alvim, 1999]

Entre nós e as palavras, os emparedados e entre nós e as palavras, o nosso dever falar

Entre nós e as palavras, surdamente, as mãos e as paredes de Elsenore E há palavras e nocturnas palavras gemidos palavras que nos sobem ilegíveis à boca palavras diamantes palavras nunca escritas palavras impossíveis de escrever por não termos connosco cordas de violinos nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar e os braços dos amantes escrevem muito alto muito além do azul onde oxidados morrem palavras maternais só sombra só soluço só espasmos só amor só solidão desfeita

Ao longo da muralha que habitamos há palavras de vida há palavras de morte há palavras imensas, que esperam por nós e outras, frágeis, que deixaram de esperar há palavras acesas como barcos e há palavras homens, palavras que guardam o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras há metal fundente entre nós e as palavras há hélices que andam e podem dar-nos morte violar-nos tirar do mais fundo de nós o mais útil segredo entre nós e as palavras há perfis ardentes espaços cheios de gente de costas altas flores venenosas portas por abrir e escadas e ponteiros e crianças sentadas à espera do seu tempo e do seu precipício

you are welcome to elsinore

Francisco Tropa

4 e 5 de Dezembro de 2006

essa relação é só esta ou com este Cesário. A relação é mais fundamente produtiva e mais grave. Podemos dar conta dela como herança prosódica de que Cesariny se constitui activo depositário, em poemas como “corpo visível”, ou “Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos”, ou como aprendizagem da uma maneira de fazer cintilar as formas de um imaginário que transfigura e deixa para trás um simbólico que, entretanto parece constituir-se em garantia de uma ameaçada aparência de rigor ou de uma evidência terrível; aprendizagem e partida em voo, da imaginação verbal, tal como a podemos encontrar, nesse magnífico poema que é uma admirável “arte po-ética” explícita, “you are welcome to elsinore”. (Transcrevo-o segundo a versão que prefiro e que é a da sua edição em Mário Cesariny, “pena capital”, Lisboa, Assírio & Alvim,1999). A minha preferência explica-se em poucas palavras: (a) o dístico que em outras edições isola uma espécie de refrão entre a segunda e a terceira estrofe do poema — “Entre nós e as palavras, surdamente,/ as mãos e as paredes de Elsenor” — transforma-se nos dois primeiros versos da terceira estrofe, tornando assim mais clara e concentrada a estrutura composicional do poema: E1 – E2 – E3 – finda; sendo que as estrofes ímpares e a finda se iniciam repetindo e relançando o eixo sintáctico e semântico sobre o qual o poema se desenvolve, enquanto a estrofe par, envolvida pela 1ª e pela 3ª, opera uma localização imaginária precisa e articula-a com uma ampliação em glosa paralelística do tópico que vem ocupar de forma logicamente problemática o intervalo que o eixo sintáctico formula — “Entre nós e as palavras / [...] / há palavras de vida há palavras de morte/. (b) Esta edição mantém como outras, aliás, uma hesitação no que diz respeito à grafia da palavra Elsinore / Elsenor, consoante ela surge no título ou no interior do poema (no verso 18). Haverá quem se decida por uma marca da distracção do revisor ou do autor; haverá quem se decida por uma suposta diferença de grafia entre a palavra inglesa e a sua equivalente em poesia; eu ficar-me-ei pela determinação acolhedora de um efeito e não pela imputação de uma intenção ou da falta dela — o efeito indicaria uma dificuldade em nomear/grafar o lugar para o qual somos convidados — o impossível lugar da poesia.). Porque é que Cesário é p’ráqui chamado? — Porque há que dar conta de uma migração de uma imagem poética do dístico inicial da 7ª estrofe da IV sequência do “Sentimento dum Ocidental” — “Mas se vivemos, os emparedados,/ Sem árvores, no vale escuro das muralhas!...” — para o dístico final de “you are welcome to Elsinore”, que funciona como, numa finda da lírica trovadoresca, a concentração da lição de poética. Ao migrar a fortíssima imagem dos emparedados leva consigo e agora para o primeiro verso da 2ª estrofe de “you are welcome...”, a figuração do seu contexto topográfico em Cesário, — “no vale escuro das muralhas”, lugar onde vivem os emparedados, transforma-se em “Ao longo da muralha que habitamos”, em Cesariny. O poema de Cesariny implica um perturbante intervalo (perturbante sobretudo para algumas formas mais agressivas da logologia contemporânea) entre nós, os emparedados, aqueles que estão prisoneiros entre as paredes da cidade moderna ou entre o pouco de realidade que nos querem impor como todo o real acessível (ou impossível, aqui os termos deixaram de ser rigidamente antinómicos) e as palavras. Assim, a sua poesia encontra, na condição de emparedamento e nesse intervalo, a necessidade de um dever falar que a legitime enquanto poesia.


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Tantas preocupações às donas de casa — e aos médicos — ele dava ! / Como brincar ao bem e ao mal

PINTURA DA FAMÍLIA RUELLA RAMOS. FOTOGRAFIA DE MIGUEL MANSO

António Barahona | Memória Na morte do poeta não há morte: há candura, um braço dentro do azul e o perfil, recortado à tesoura. Na morte do poeta não há morte: há vida em excesso, as mãos no sexo e uma festa da vida. Na morte do poeta não há morte: há viveiros de versões do mesmo tema e um filosofema em ferida. Na morte do poeta não há morte: há vivências que ninguém adivinha, poemas pescados à linha debruçado na torre sanguínea. Na morte do poeta não há morte: há só desejo de morrer para poder viver cada vez mais forte. Lisboa, 27 de Novembro de 2006

Manuel António Pina | Carta a Mário Cesariny no dia da sua morte Um, que meu pai viu no hexágono do circuito quinze noventa e quatro, constava das letras MCV malevolamente repetidas da primeira linha até à última. Jorge Luís Borges, “A Biblioteca de Babel”

Hoje soube-se uma coisa extraordinária, que morreste; talvez já to tenham dito, embora o caso verdadeiramente não te diga respeito, e seja assunto nosso, vivo. Algo, de facto, deve ter acontecido, porque nada acontece, a não ser o costume, amor e estrume, quanto ao resto tudo prossegue de acordo com o Plano. Há apenas agora um Buraco aqui (não sei onde), uma espécie de falta de qualquer coisa insolente e amável, de qualquer modo, aliás, altamente improvável. Depois, de gato para baixo, mortos (lembrei-me disto de repente, agora que voltaste malevolamente a ti) estamos todos. A gente vê-se um dia destes por Aí.

MÁRIO CESARINY, MEMENTO MORI, 2002

Há livros na nossa vida que determinam a direcção do nosso olhar. E quando tais livros se encontram na adolescência determinam não só a direcção do nosso olhar mas também o sentido da própria vida. Foi o que me aconteceu em 1958, perante “Pena Capital” de Mário Cesariny de Vasconcelos. Lembro-me perfeitamente de comprar o livro, por 25 escudos, na Lello. Comecei a ler os poemas na rua, logo que saí da livraria e choquei com várias pessoas, sem tirar os olhos do livro, até chegar a casa. Isto desenrolava-se ao princípio da tarde. Passei o resto do dia absorvido na leitura e, à noite, dei-me conta de que se operara, em mim, uma mudança decisiva: acabava de descobrir o caminho para a minha liberdade. Digo: a minha liberdade, não a dos políticos, que não sabem o que isso é. Eis a dádiva maior e primordial que agradeço ao poeta, recluso do amor, Mário Cesariny de Vasconcelos de que o verdadeiro nome se existe deve existir escrito nalgum lugar “tenebroso e cantante”.

26 de Novembro de 2006 29 de Novembro de 2006


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MÁRIO CESARINY

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se estes nos faltam? / Algum rapazola entendeu sua esta vida tão ímpar / e passou nela

Agnieszka Kowalska | Mumtaz

João Pinharanda | “A Morte não é só má” (1) PORTADA DAS JANELAS DO ATELIER DO PINTOR (FRENTE), 1972

António Poppe | Nobilíssima Visão Muito muito obrigado. A ave inventa o voo, ar de comunicante e ainda arde nascente da Fénix. O senhor Mário Cesariny de Vasconcelos inventa a ave que inventa o céu. Ele escreve tão alto. Muito obrigado pela existência extrema da sua luz KA na terra. Amenom Kapoppa Ardencarnado e lavrameditar — Ela alma-me Faz também da alma um verbo Um purifica relâmpago Coralmente Nenúfar e via láctea A criatura criadora O Deus in loco — trouxeram-lhe aquela que soma o nada Um corpo corpus Ver-de-vir KA versos Nobilíssima Visão A ave inventa o céu Ar de comunicante E ainda, arde nascente da Fénix Novembro 2006


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a roda com que se amam / olhos nos olhos

O funeral de Cesariny comprovou, pelo menos em parte, a razão do seu pessimismo para com o país. Não se trata nem de denunciar ausências nem de enunciar faltosos. Todos os circunstancialismos podem ser evocados como desculpa sincera ou política dessas faltas — não são eles que nos importam, ocupa-nos o fundo da questão. Trata-se de perceber as realidades objectivas e substantivas que, para além das circunstâncias e dos casos pessoais, puderam ter determinado as ausências. Concentremo-nos em realidades de ordem estritamente artística e analisemo-las do ponto de vista estético, histórico e também historiográfico e ainda do ponto de vista da massificação cultural dominante. O surrealismo já morreu — para todos menos para os que dele se reivindicam por razões históricas individuais (e que, por imperativo do tempo biológico, vão sendo cada vez menos) ou por razões de oportunismo cultural (que têm a ver com a aceitação, por facilidade de assimilação, do receituário formal do surrealismo junto de públicos de gosto massificado). Mas o surrealismo sobrevive como referência (estética e ética) incontornável que cada novo autor e conjuntura, cada nova obra e movimento pode usar para colher informações e sentidos ou para os rejeitar. O surrealismo, na cultura nacional, nunca foi maioritário em termos de produção directa. No entanto, mercê de forte intervenção polemista dos seus elementos, teve influente aceitação crítica, decisiva consagração historiográfica, prolongada influência no tempo (servindo de referência pontual mas permanente) e fácil identificação do público generalista. Assimilando ainda em si linhas de longa duração do discurso cultural português (simbolismo) o surrealismo garantiu presença necessária e dominante nos discursos interpretativos e valorativos, quer qualitativos quer mitificadores, da identidade cultural contemporânea. A cultura portuguesa é dominantemente pensada desde o ponto de vista da sua literatura e pensamento escrito — sempre renderam mais que a arte quando os ensaístas necessitaram de encontrar traves com que construir uma imagem para o país. Neste sentido, Cesariny foi necessariamente poeta reconhecido antes e depois de ser artista reconhecido. Personagem em feroz ruptura com elementos dominantes do Grupo Surrealista de Lisboa coube-lhe em (má) sorte que fossem eles quem se institucionalizou com o surrealistas… — a eles coube estabelecer a historiografia plástica do movimento (e até da arte portuguesa em geral), foram eles que ocuparam diferentes postos do poder político e social artístico (das associações profissionais às instituições mecenáticas). Cesariny e os seus “Surrealistas” mantêm-se à parte desta lauda consagrativa criando um mito de marginalidade que (lhes) serviu (e aos outros) para tudo. Para mais, o surrealismo plástico de Cesariny, sendo inclassificável dentro dos parâmetros da vulgata surrealista (ultrapassando-a sempre), colocou a sua “pintura” fora do discurso interpretativo da sua obra como poeta. A arte que sempre fez ficou por conta de curiosidade amadorística ou oportuno suplemento de sobreviência económica (após o boom galerístico de 1967/8 onde finalmente se revelou com êxito de mercado). Ora o que finalmente ficou provado desde 2004 (exposição Museu da Cidade, Lisboa e Fundação Cupertino de Miranda, Famalicão com catálogo actualizado na edição recente do Circulo de BellasArtes, Madrid, 2006), depois de um longo processo de intuições de Rui Mário Gonçalves, Bernardo Pinto de Almeida ou Alexandre Melo (mas não

explicitadas por factos e dados ou por processos de investigação e comparativos) foi, em primeiro lugar, que: o lugar de Cesariny não era apenas no panteão dos poetas; também não, apenas na galeria das personagens públicas que, por inconveniência do dito e do feito, ao dizerem o que não ousamos dizer, nos desculpabilizam perante os males do mundo. O que ficou provado em definitivo é que a Cesariny é, de igual modo, devido um lugar na história da arte. E mais: que esse lugar, sendo nacional não pode deixar de ser internacional, se para isso o associarmos às cronologias da arte parisiense posterior à segunda guerra mundial e aos caminhos que, do surrealismo, conduzem à abstracção nãogeométrica dos anos 50. Os seus exercícios técnicos surrealistas (livre-associação, acaso na escolha e comportamento dos materiais, soprofigura, sismofigura, aquamoto) conduzem-no ao “informe” e ao “informal” — numa genealogia que se liga a Bataille e a Wolls ou a Michaux (sem que ele a eles se ligue e sem que reivindique qualquer corte com Breton). Depois, ficou entendido também, que a sua invenção plástica (iniciada em 1945-46) foi a par da renovação da sua linguagem poética; e que o corte com o neo-realismo literário, ideológico e estético, se realizou em simultâneo e muitas vezes sob estímulo das soluções plásticas — através de ambos reinventou o real quotidiano transferindo-o para a sobre-realidade que lhe importava explorar. Podemos então voltar à constatação de que as presenças, entre os que passaram na câmara ardente e os que foram aos Prazeres, nunca foi superior a uma escassa centena de pessoas e, nelas, a notada ausência de figuras de Estado e de Governo, verdeiramente significativas a nível simbólico, e de artistas plásticos. Deixemos de parte o poder político, que não pode ser acusado de nada — porque apenas se acha na obrigação utilitária de reagir a estímulos da sociedade de eleitores e esta não os deve ter transmitido com intensidade considerada necessária para desencadear qualquer acção. Estando o mundo das letras suficientemente representado (de escritores e poetas a editores e livreiros) concentremo-nos pois no mundo das artes. Todos os galeristas actuais ou recentes de Cesariny estiveram presentes, alguns coleccionadores também (leis do mercado?), menos eram os críticos ou historiadores de arte mas os artistas, por junto, nem uma mão enchiam. As razões serão várias e antigas, fáceis de enunciar, evidentemente desculpabilizadoras: se o surrealismo morreu, se as ligações e continuidades da história não são consciencializadas ou não têm significado no desenvolvimento da produção nacional no campo das artes plásticas, se para mais a grandeza da obra de Cesariny entre finais de 40 e meados de 50 vem a ser reconhecida fora do tempo em que a sua intervenção poderia ter sido imediata, por que razão se haviam os artistas actuais (e menos actuais) de importar com a romaria de homenagem a Cesariny? É certo que os jornais, as televisões em peso (e muitas rádios) lá estiveram mas não reconheceriam aos artistas a autoridade de um depoimento — nisso a percepção de oportunidade dos artistas foi maior que a dos governantes a quem sempre se daria algum tempo de antena. A ligeireza de entendimento da história pelos artistas plásticos é a razão primeira da ausência que viemos anotando. Ela é também razão de algumas evidentes fragilidades formais e de conteúdo da arte nacional — para provar isso serviu, ao menos, a morte de Cesariny. (1) título do texto de Álvaro Lapa em homenagem a Joaquim Bravo inserido no catálogo Joaquim Bravo, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2000.


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— vítima e carrasco // Não tinha amigos? Enganava os pais? / Ia por ali fora, minúsculo corpo

Óscar Faria | Pintura desobediente “Suponho que a única coisa que efectivamente diferencia as minhas pinturas de um tal ou qual vanguardismo português actual é o facto de nunca as ter enviado aos salões-colectivos, anuais, semestrais ou ocasionais, onde se mostram quadros e se convida a crítica e o público”. Foi em 1969 que Mário Cesariny publicou estas palavras no jornal “A Capital”. O texto, intitulado “Gripe, mau-olhado, grupo, etc.”, incluído na colectânea “As mãos na água a cabeça no mar” (Assírio & Alvim Lisboa, 1985), constituía uma diatribe contra as antologias de pintura, esses certames “sobretudo úteis aos pintores tentados pela profissionalização” e que “ajudam ao juízo-média dentro do qual afirmam, crítica e pintores”. Se há algo que se pode afirmar acerca de Mário Cesariny é que ele nunca foi um profissional da escrita ou da pintura, escapando a essa tentação pela única saída possível: a permanente subversão, à qual não escapou o próprio surrealismo, tantas vezes voltado de baixo para cima, de modo a manter-se vivo. A obra plástica de Cesariny surge assim, hoje, como possuindo um alcance mais amplo relativamente ao movimento que a originou. Surrealista em muitos dos seus parâmetros, ela escapa à ortodoxia de André Breton pela via do informalismo, do informe, e da desobediência face às tendências epocais. É nas aguarelas e aguadas de um outro poeta, Teixeira de Pascoaes, que se devem procurar alguns dos antecedentes das visões mais tarde fixadas por Cesariny em diversos suportes. Os revoltados anjos, espectros e paisagens que habitam as obras do amarantino ecoam em trabalhos como “Maldoror” (1947), “O Operário” (1947), “Naniôra – uma e duas” (1960), “Ao Poeta dos Astros... António Maria Lisboa” (1960), “Oberon e Titânia II” (1968), “O Mago” (1969), e muitos outros não datados. Há, portanto, uma linhagem que passa pela obra de ambos os artistas, uma comunidade sem destino, aberta, plena de comunismo, não o partidário, mas o da partilha de intensidades. A essa tradição pertencem todos aqueles que procuraram unir a escrita e a obra plástica num infinito rizoma, que surge, a cada instante, entre as fissuras da ordem estabelecida. Há um primeiro nome que pode ser convocado para situar esta linhagem, o de William Blake, que criou uma série de iluminados livros, como “The Mariage of Heaven and Hell” (1790-1793) e “The First Book of Urizen” (1794), obras onde o texto se confronta com desenhos de grande fulgor imaginativo, onde o cosmos se une ao caos para produzir sensações tocadas pela magia. Ao poeta inglês, Cesariny dedica a colagem “Everything to learn” (1968) e é desse tempo, no qual se abrem as portas da percepção, que vêm os princípios básicos da trilogia surrealista: amor, liberdade e poesia. Outros são os autores que pertencem a essa constelação, muitos foram home-

André Breton

William Blake

Isidore Isou


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divertido / e agora parado, aquoso, cheira mal.

Teixeira de Pascoaes

Henri Michaux

Brion Gysin

nageados por Cesariny, como Erik Satie, numa colagem sobre pauta musical datada de 1968; Dante Gabriel Rosseti, um dos nomes centrais da Irmandade Pré-rafaelita; Pascoaes — um aquamoto e têmpera sobre papel colado em platex, criado em 1972, no qual inscreve a frase “a luz é cada vez mais clara e a treva cada vez mais negra” —, Henri Michaux, podendo acrescentar-se os nomes de Antonin Artuad, Pedro Oom, Antero de Quental, e outros suicidados da sociedade. William Burroughs explica o universo nagual a partir de uma definição de Carlos Castañeda, que o descreve como “o desconhecido, o imprevisível, o incontrolável”. Autor de muitas obras de “arte nagual”, o autor de “Naked Lunch” nota ainda que deve existir “um factor de acaso, gotas de pintura sobre a tela, que ateiem fogo à pintura”. Criador de universos paralelos, muitas vezes participados por Brion Gysin, reactivador do “cut-up” e inventor da “dreamachine”, Burroughs afirmava que a “escrita estava cinquenta anos atrasada relativamente à pintura”. A dança das letras, a poesia visual, a permanente recusa de condicionalismos morais e artísticos, no caso dos artistas “beat” inspirada nas últimas palavras do líder da Ordem dos Assassinos, Hassan-i-Sabbah — “Nada é verdade, tudo é permitido” —, são também a matéria a partir da qual Cesariny criou os seus fogos pessoais. A colagem-poema “ama como a estrada começa” (1955) indica todo um programa de vida. Tudo é permitido desde que seja uma forma de abrir caminho, ir em frente e conquistar o presente. Um dos grandes inventores do nosso tempo — recordem-se, por exemplo, as “soprofiguras”, os “aquamotos”, ou as “sismofiguras” —, Cesariny pertence a um corpo comum onde confluem os “sorts”, esses talismãs mediúnicos que Artaud realizava com o objectivo de romper “com a arte, o estilo e o talento”; os desenhos criados por Michaux sob o efeito da mescalina; os retratos “metagráficos” de Isidore Isou, ou as “obras-com-palavras”, de Álvaro Lapa. A obra de Cesariny é acima de tudo definida por si própria: “este é o segredo / para todos os usos / rapto desobediência / exaltação / e morte”. Por ela passam gatos, marinheiros, linhas de águas e muitas outras geografias que atravessam qualquer tempo.

Procuram-se jovens pintores A Fidelidade Mundial criou em 1990 o Prémio Jovens Pintores, com o objectivo de estimular a produção portuguesa na área da pintura e contribuir para o reconhecimento dos jovens talentos. O Prémio está vocacionado para artistas que já atingiram alguma visibilidade ou estão em vias de iniciar a sua inserção no contexto artístico português, contribuindo para incentivar a consolidação do seu percurso artístico. O Prémio Fidelidade Mundial Jovens Pintores, para residentes em Portugal com idades entre os 23 e os 30 anos e formação numa escola de arte, prevê a distinção de um máximo de 4 artistas com um 1º Prémio de 7.500 Euros e três Menções Honrosas de 3.750 Euros. Regulamento em: www.fidelidademundial.pt

MÁRIO CESARINY, ESPELHO DO BELICHE DO 1.º IMEDIATO STARBUCK, 1988

e agências da Fidelidade Mundial

PRÉMIO FIDELIDADE MUNDIAL JOVENS PINTORES 2007


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// Sem abuso / que final há-de dar-se a este poema? / Romântico? Clássico? Regionalista?

António Ramos Rosa

Ilda David’

No país infinito do silêncio as pedras amadurecem no teu sangue elas perderam o peso dos séculos e dançam no interior com os seus múrmurios na água da sua sombra são irmãs das folhas das ruínas do dia da vaga fugacidade das nuvens da infinidade da noite elas não se amontoam na sua fidelidade à terra murmuram um inviolável apelo o seu espaço de sombra a identidade do seu olhar mudo um outro poeta diria que elas sorriem eu direi como qualquer outro que murmuram numa boca sem lábios uma poesia antiga que se apagou numa página do Universo

Miguel Ângelo Rocha | Cesariny 2006


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MÁRIO CESARINY

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// Como acabar com um corpo corajoso humílimo / morto em pleno exercício da sua lira?

José Tolentino Mendonça | Relatório de bens deixado por Mário Cesariny de Vasconcelos à hora da sua morte

Esta é a oferta: Prata, e cobre, e linho fino e peles de carneiro tingidas de vermelho e peles de texugo, um cordão de trinta côvados e madeira preciosa Na dobra escondida do mar uma campainha de ouro JOÃO CUTILEIRO

Vítor Silva Tavares | Foi ali mas volta Não tendo nascido por geração espontânea, Mário Cesariny “descobre” as dianteiras vanguardistas do século vinte aquém e além Badajoz, furta-se o que se deixa ao fascínio serpentino de Almada Negreiros, salta arriba dos presencistas por causa do umbigo, evita — pare, escute e olhe — as línguas de madeira neorealejas, louva e simplifica Álvaro de Campos, bebe na lírica e nas cantigas de escarnho e maldizer e depois, ou antes, ou ao mesmo tempo de combustão, ouve de Alexandre O’ Neill as novas do surrealismo francês, visita, diz que sim àquele absoluto de liberdade, traduz para nativo, mergulha, voa. Envolto no peludo, morde o país literário (e o outro, o político, aí em manhas de gato)

com os dentes que os tinha todos antes do postiço, que foi para disfarçar. Não cabe em tal território, não pertence, foi ali atrás de um marujo. Não leu o livro obrigatório, não gostou, meteu a mãozinha no fundo do vício, gostou. Estava-se mesmo a ver que a rabiação haveria de acabar em solitário, onde é que já ia o surrealismo que só se queria grupal por cafés tristes de muito riso negro para esconjurar fantasmas, agriculturas, fascismos. Não é ter-se uma ideia de grandeza, é fazer da vida que se vive, sem ai nem ui, uma grandeza inteira. Não é proclamar a trindade do amor, da liberdade e da poesia, é arder nela, que dói e queima, Como ainda não se “reconquistou” Olivença e o Império das Colónias se

dissipou nas brumas do Bandarra, de Vieira e de Pessoa, Portugal é um sarcófago onde se torna difícil respirar. Vai daí, Mário Cesariny exportou-se. Quem por cá anda, ciranda, mesmo que o visse não via: ele, na rua Basílio Teles à Palhavã ou arredores riberinhos, morava noutras terras altas, com os pés no chão de Bocage (sim, Bocage!), de Gomes Leal-o-Apedrejado, de Pascoaes — sopros incandescentes. Nunca ninguém o encontrou à mão de semear, quanto mais à babugem do fazer-pela-vida doméstico, domesticado, funcionário. Profissão: vagabundo celeste. Paga imposto de vida — o mais alto. Hão-de os doutores, em seus saberes, engavetá-lo: não sei quê surrealista (estou

a ouvi-lo: “só à lista?”). E pintor, upa pioneiro, do “informalismo abstracto”. Lupas a catar caganitas. Palavrões de alto raciocínio e pouca luz. “Não está morto, está é mal enterrado.” Puna-se de novo, agora com ditirambos, que muito ilustram quem os profere. Cheira mal, cheira a Lisboa. A lápis, com água, com caca, cuspo e ramela, com lixo, com sangue, esperma, sonho, paixão, delírio, soberba, Mário Cesariny contribuiu, contribui, para dar ao real uma escala inconformada com o real quotidiano. Frequentem-no, anda por aqui. Sejam maiorzinhos.


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