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365 DIRECTOR Fernando Alvim alvim@revista365.com EDITOR António Gregório a.gregorio@sapo.pt EDITOR ADJUNTO Carina Fonseca carinadafonseca@gmail.com EDITORES HONORÁRIOS Vasco Barreto José Luís Peixoto GRAFISMO Homem Invisível DEPARTAMENTO INTERNACIONAL Pedro Lourenço plourenco@revista365.com DEPARTAMENTO ASSINATURAS Maria Pires mariapires@revista365.com Rossana Patrícia rossanapatricia@revista365.com INTERNET Raio X — Publicidade e Marketing www.raiox-pub.pt CÚMPLICES Aleksandra Korecka, Alexandre Andrade, Alex Gozblau, Ana Queiroz, Aneta Kowalczyk, Ângela Berlinde, Chelsea Pop, Daniel Galera, Elisabete Patrícia Andrade, Izet Sarajilic, Luís Graça, Marcelo Moutinho, Maria João Ribeiro, Mário Bruno Pastor, Micael Póvoa, Miguel Marques, Monika Stojak, Pedro Miguel, Pedro Santo, Rita Lino, Rui Manuel Amaral, Scott James Prebble ENDEREÇO Apartado 15154, 1074 - 004 Lisboa TELEFONES 91 625 79 29 93 359 70 06 96 312 88 41 CONTACTOS feedback@revista365.com direccao@revista365.com WWW www.revista365.com revista365.livejournal.com revista365.blogspot.com ASSINATURAS assinaturas@revista365.com PUBLICIDADE publicidade@revista365.com IMPRESSÃO Ginocar TIRAGEM 10 000 exemplares PERIOCIDADE Bimestral DEPÓSITO LEGAL 000 000/07 PROPRIEDADE Cego, surdo e mudo — produções multimedia MECENAS Robin Hood CAPA Micael Póvoa

fotografia Scott James Prebble tr3s65

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EDITORIAL Cá estamos de novo no sopé de mais um ano e este,

04 Biografias

avisam as autoridades, um bocadinho mais a subir que

06 Scents of Provence >> Alexandre Andrade

os outros, com seixos afiados amiúde, aqui e ali musgo escorregadio a promover gloriosos espalhanços. Porém, e para o caso de caírem sentados, que não vos falte a 365 para uns minutos de aprazível leitura antes da retoma da marcha. São mais de uma dezena de contos profusamente ilustrados (alguns, inclusive, a cores porque somos uns mãos-largas), dois deles vindos do outro lado do Atlântico, onde nesta altura é Primavera e faz calor: se a inveja provocasse diarreia aos invejados, entre cada saraivada de granizo luso, haveria uma multidão de brasileiros a correr para a casa de banho. Destaco, pois, o sotaque deste número: o conto de Marcelo Moutinho, autor de vários livros de contos e ainda inédito em Por-

14 Confissão à parede >> Miguel Marques 17 My life in a museum >> Monika Stojak 18 Tiroteio >> Daniel Galera 20 O meu rosto termina onde o teu começa >> Elisabete Patrícia Andrade 24 A minha estância em Istambul >> Izet Sarajlic

Cavalo» aconselho (a edição é de 2008, da Caminho).

26 Rosa noturna >> Marcelo Moutinho

Ainda um magnífico conto de Alexandre Andrade, outro

32 Cinco histórias nocturnas >> Rui Manuel Amaral

tugal; e o de Daniel Galera, cujo seu romance «Mãos de

de Luís Graça, cinco microficções de Rui Manuel Amaral, um poema de Izet Sarajlic traduzido por José Luís Peixoto, a estreia nas páginas da 365 de Ana Queiroz e Pedro Miguel, a continuidade de Pedro Santo, Elisabete Patrícia Andrade, Mário Bruno Pastor e Miguel Marques. Divirtam-se, que é a melhor maneira de lidar com a

34 A mulher que sofria muito com as recordações musicais >> Luís Graça 38 Jacinto >> Pedro Santo

crise.

40 Another one bites the dust >> Pedro Miguel

António Gregório.

42 Os dois caras de cavalo >> Ana Queiroz 46 O caminho para Weimar >> Mário Bruno Pastor

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fotografia Maria Jo達o Ribeiro


ESTRAnHOs CoMO NoS Alexandre Andrade nasceu em 1971 em Lisboa, onde reside. É professor na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Tem 2 romances e 2 livros de contos publicados. Ana Queiroz tem 21 anos, frequenta o último ano do curso de Cinema na Escola Superior de Teatro e Cinema. Foi seleccionada entre os Jovens Criadores de 2008 na categoria de Literatura e, no futuro, deseja trabalhar nessa área, bem como na de Cinema. António Gregório nasceu em Leiria, em 1970. É autor de «Uma história de desamor treze vezes» (Ambar, 2004) e «American Scientist» (Quasi, 2007). O conto «Rodolfo» que aqui publicamos, foi retirado da antologia «Vamos para onde temos a ventura» (CEPAE, 2008) Daniel Galera nasceu em São Paulo, em 1979. É escritor e tradutor. Tem publicado em Portugal o romance «Mãos de Cavalo» (Caminho, 2008). É também autor de «Até o dia em que o cão morreu» (Livros do Mal, 2003 e Companhia das Letras, 2007 – posteriormente adaptado ao cinema com o nome «Cão sem dono» e realizado por Beto Brant e Renato Ciasca) e «Cordilheira» (Companhia das Letras, 2008), além do volume de contos «Dentes Guardado» (Livros do Mal, 2001), de onde retirámos «Tiroteio», que publicamos neste número. Elisabete Patrícia Andrade estudou letras na Universidade Clássica de Lisboa. Reside presentemente no Reino Unido. Gosta de arte, de filosofia, de coleccionar livros e memórias. Elege o humor negro. Izet Sarajlic é um dos poetas bósnios mais traduzidos. Nasceu em Doboj, em 1930, e morreu em Sarajevo, em 2002. O poema que aqui publicamos, «A minha estância em Istambul», foi traduzido por José Luís Peixoto a partir do castelhano, segundo consta no volume «Una calle para mi nombre» (4 Estaciones, 2003). Luís Graça é jornalista e escritor. Tem publicado «15 Desatinónimos para Fernando Pessoa», «De Boas Erecções está o Inferno Cheio» e «A Mulher que Fazia Recados às Putas e mais contos perversos», de onde retirámos «A mulher que sofria muito com as recordações musicais», que publicamos neste número.

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úrbio do Rio de ceu em Madureira, sub Marcelo Moutinho nas alista e escritor. Tem Junho de 1972. É jorn Janeiro, no dia 22 de (7Letras, 2001) e «Memória dos barcos» publicados os volumes 6). É inédito em 200 nesta noite» (Rocco, «Somos todos iguais Portugal.

6. Padece de bisnasceu no Porto em 197 Mário Bruno Pastor ndários para os aceitar que existam cale sextismo e custa-lhe a em edições litesia poe disso tem publicado anos vindouros. A par rárias colectivas. 8, cursou Psicologia ceu em Lisboa em 197 Miguel Marques nas ressos e encontrapreenchimento dos imp derivado a um erro de num projecto de ário regado a título prec se, actualmente, emp política. Entreeira carr ante ou uma brilh intervenção social. Falh eiro na Amazónia, em Barrancos, seringu mentes, foi forcado na Rodésia e guia de, traficante de armas bate-chapas em Moscavi publicados nas tos con ger e Gilbraltar. Tem de excursões entre Tân oks, 2004) e olBo (Co s Ano s – Os Primeiro antologias Revista 365 Noites, 2005 e Jovens Escritores (101 em duas colectâneas 2006).

Escreve. Certas noiem Leiria, há 33 anos. Pedro Miguel nasceu ma-se no dj Schsfor tran lua, da da fase tes, independentemente meichael e mete música. i-biografias são que acha que estas min Pedro Santo é um gajo o precisava Com . ade bilid sua incomensura redutoras para com a ba por não aca , esto prot em e uma linha, de pelo menos mais Leiria, em 1980. a não ser que nasceu em adiantar nada sobre si, 1973, cidade onde nasceu no Porto, em Rui Manuel Amaral rtadas. É autor de asfu agu ário da revista vive. É coordenador liter us. Nov Angelus «Caravana», editado pela


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fotografia Rita Lino


Scents of Provence Alexandre Andrade

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A bola embateu na outra bola no ponto

estrada confere, em caso de acidente. Mas aque-

certo, mas com o efeito errado, ou no ponto er-

le sol glorioso, tão cruamente diferente do sol

rado com o efeito certo. Rachel não pôde evitar

que ela conhecia do Ohio!... Perturbada pela luz,

um suspiro de frustração. Cada colisão era acom-

Rachel chegou ao outro lado da rua incólume,

panhada por um som seco e previsível. Os tacos

mas prestes a perder contacto com o grupo de

passaram de uma brusca mão derrotada para

jovens que a precedia. Rachel estava certa de que

outra mão. Rachel não conhecia as regras do

um comentário que escutara, da boca de um de-

jogo, mas emitia opiniões com uma cadência

les, mas não de Malik, lhe era dirigido. Não o

quase feroz.

compreendera totalmente, mas a vontade de res-

Havia meia hora que entrara naquele

ponder aglutinou, por momentos, toda a sua

bar de Antibes, esforçando-se por aparentar a

energia e motivação. Eis porém que, ao dobrar

calma principesca de quem já conheceu tudo o

uma esquina, os viu mais do que nunca afasta-

que na vida existe que valha a pena conhecer.

dos, atravessando já a rua, mais uma vez na dia-

Interessara-se pela partida de bilhar, e agora,

gonal, apressando o passo. Rachel deixou-se fi-

com a mão esquerda fechada em torno do copo

car. Fingiu seguir com os olhos um spaniel

que continha o resto tépido do seu diabolo gre-

pachorrento, cuja dona, uma mulher de cerca de

nadine, esforçava-se por se integrar no grupo de

quarenta e cinco anos, retocava a pintura com a

jogadores, mas mantendo as distâncias; ou en-

ajuda de um minúsculo espelho circular. Segura-

tão, cultivar um módico de distanciamento sem

va o espelho e a trela com a mesma mão, e com

descurar o apetite pela socialização. Tanto uma

a direita aplicava rímel.

como a outra estratégia lhe pareciam boas. Um

rapaz muito moreno, dono de um fascinante par

viatura para “Kronenbourg”, apreciada marca de

de olhos verde-azeitona, perguntou a Rachel se

cerveja.

queria jogar. Não, Rachel não jogava. O seu refle-

xo no vidro que dava para a rua mostrou um ros-

to de hotel, escrevendo cartas, ou servindo-se de

to sufocado pela gratidão.

pratas de chocolate para marcar as páginas do

Era um fim de manhã de Julho, e oxalá

guia turístico. O dia seguinte a uma chegada a

que todos os dias fossem tão carregados de pos-

lugar estranho não era a altura ideal para se ex-

sibilidades como aquele. O olhar abarcava sem

por às agressões do mundo exterior. Tudo o que

esforço todos os segmentos do campo visual, e o

fosse sair à rua antes do terceiro dia era prematu-

tempo era meigo, benigno, tolerante para os ca-

ro. A saúde do pai de Rachel. Rachel, os seus de-

prichos. O grupo preparava-se para partir. O ra-

zasseis anos, pela primeira vez num novo conti-

paz moreno chamava-se Malik. Rachel vasculha-

nente. “As minhas certezas devassadas” pensou

va as profundezas da gramática e vocabulário

Rachel, “as minhas convicções sacudidas. Nada

franceses para responder à última pergunta que

mais peço do que isso.”

lhe fora dirigida. Saiu quando os outros saíram,

em último lugar. Atravessou a rua fora da passa-

de estradas que trazia sempre consigo. Conver-

deira para peões, apreensiva por abdicar da su-

teu mentalmente distâncias quilométricas em mi-

perioridade moral que o respeito pelo código da

lhas e em horas. A proximidade da saída rodoviá-

Lembrou-se que “Kro” era uma abre-

Àquela hora, os pais estariam no quar-

Que fazer? Rachel desdobrou o mapa

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ria para Grasse era tentadora. Deixar para trás

mesma eficácia com que se alheava da hora do

Antibes, na qual Rachel adivinhava uma implacá-

dia e do bom senso. Entre Antibes e Grasse ca-

vel promessa de tédio e de opressão, fugir do

bem decerto mais do que dois ou três monossíla-

mar Mediterrâneo, no automóvel de um desco-

bos e um olhar furtivo, mas Rachel fez-se parca

nhecido cujas feições não perdurariam na sua

em palavras e gestos como se a parcimónia a de-

memória. Abandonar-se ao acaso. Forçá-lo a ser

fendesse de tudo aquilo que inquieta neste mun-

seu cúmplice. Grasse, a capital mundial do perfu-

do dos Homens. A dama que lhe dera boleia ti-

me.

nha uma cicatriz oblíqua na nuca, e o hábito de

Como fazer para chamar a atenção de

se debruçar para a frente sobre o volante. No

um motorista que reunisse as doses exactas de

banco traseiro via-se, semicoberta por uma man-

boa vontade e de urbanidade? Como ser mais do

ta de tecido barato, uma gaiola de plástico que

que uma manchinha colorida e fugidia na berma

continha um animal roedor, provavelmente um

da estrada, tão alheia ao furor mecânico dos au-

porquinho-da-Índia. Ah, os detalhes.

tomóveis que aceleravam na cobiçada direcção

de Grasse? Rachel guiou os seus passos pelo

subitamente para perguntar à condutora qual era

mapa de estradas. Talvez um capricho do destino

o local, em Grasse, onde as pessoas tinham o há-

fizesse as vezes de providência sob aquele sober-

bito de se encontrar, para conversar, etc. Devida-

bo céu mediterrânico. Talvez alguém reparasse

mente informada, seguiu caminho. Encontrou o

nela. Talvez não pensar no problema fosse a me-

local sem dificuldades. Assim que o primeiro rapaz

lhor maneira de o começar a resolver. Podia ser

lhe ofereceu uma bebida, Rachel orientou a con-

que a timidez dos seus pequeninos passos fosse

versa para o tema dos perfumes, das fragrâncias,

na medida inversa da vertiginosa deslocação físi-

dos aromas, das essências. Os sinónimos em ex-

ca que aquele dia reservava para o seu corpo.

cesso podem denotar insegurança. Rachel hume-

E, afinal, como tudo foi fácil! Prestando

decia os lábios com frequência, o que a irritava. O

atenção à estrada como se fosse sua a obrigação

gesto era dela, mas irritava-a. Deu-se conta de

de conduzir, Rachel alheou-se da conversa com a

que tinha perdido o mapa de estradas.

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Mal se tinha apeado, Rachel voltou-se


— Tenho de fazer uma chamada telefó-

com reputação planetária?

nica — disse Rachel.

É claro que não se enganava.

— Levas-me até lá? — Rachel já estava

— Empresto-te o meu cartão — disse o

rapaz, cujas feições eram melancólicas e breves.

de pé. Havia algo de nobre e de austero, naque-

las ruas cujo pitoresco não saltava com demasia-

Rachel afogou interiormente o desa-

pontamento. Habituada a uma pródiga dieta de

da violência aos olhos.

filmes franceses dos anos 50 e 60, em sessões

nocturnas de um obscuro canal por cabo, já se

oferecia como pontos altos a visita à fábrica e à

via ao balcão a comprar uma mão cheia de je-

estufa. No interior desta, Rachel deslocava-se de

tons, essas pequenas fichas de plástico para o

um lado para o outro, num alvoroço controlado,

telefone público que o progresso relegou para a

balbuciando o nome das essências sem precisar

categoria de objectos da nostalgia. O cartão que

de confirmação: jasmim, íris, pimenteiro, ben-

o rapaz lhe estendia fazia publicidade a uma

joim, bergamota, baunilha.

companhia de seguros mutualista. Pensando

bem, o telefonema aos pais não se impunha. A

é mesmo o teu nome?

tarde ainda mal começara.

— Arnaud.

— E o que há para fazer em Grasse?

— Tu sabias, Arnaud, que a bergamota

Existiam, ao que parecia, muitas coisas

é um citrino? Colhe-se entre Novembro e Maio.

para fazer em Grasse. O jovem discorreu vaga-

Apenas se utiliza a casca, e o rendimento do pro-

mente sobre um mercado ao ar livre, uma expo-

cesso não ultrapassa os 0,5 %. Também possui

sição e um local de animação nocturna, mas sem

propriedades antissépticas.

que a sua expressão denotasse algo parecido

Quanto à lavanda...

com o entusiasmo.

Arnaud tão pouco estava ao corrente

— Engano-me — perguntou Rachel,

de que a famosa casa de perfumaria Molinard

indo directa ao assunto — ao supor que existe na

permitia ao turista interessado a visita das suas

cidade um museu da indústria dos perfumes,

instalações. Arnaud e Rachel percorreram suces-

O Musée International de la Parfumerie

— Tu sabias que a bergamota... Como

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sivamente a fábrica de sabonetes, a destilaria e a

de, personagem menor e acessória, sem saber

sala dos cremes. As técnicas empregues eram es-

como lidar com aquele novelo de energia e deci-

tritamente artesanais, garantindo uma rara quali-

são dotado de sotaque.

dade e um requinte extremo. No final da visita,

era proposto ao visitante um curioso jogo em

nho, só me serve para cheirar escape de carros,

equipa. Numa primeira etapa, cada equipa deve-

reboco húmido e gelado de baunilha industrial.

ria esforçar-se por reconhecer as essências e as-

Como desejava visitar a Côte d’Azur! Se aqui es-

sociá-las à matéria-prima correspondente. Em

tou, devo-o sobretudo aos altos e baixos da saú-

seguida, a missão consistia em recriar um perfu-

de do meu pai. O clima. Mesmo que não lhe faça

me e eliminar o intruso presente numa dada pirâ-

bem, decerto que não lhe fará mal. Mas os meus

mide olfactiva. Rachel saiu-se na perfeição, e sem

pais também achavam que umas férias europeias

esforço aparente. De novo ao ar livre, num zigue-

me seriam benfazejas. Querem-me emancipada e

zagueante trote rápido de felicidade, Rachel enu-

de espírito aberto, querem que eu rasgue os

merava os nomes dos perfumes em cuja compo-

meus horizontes, querem que eu, longe de estio-

sição entra o cardamomo, que Arnaud apenas

lar, viceje.

conhecia como aromatizante de café: “Femme”,

de Marcel Rochas, “Jungle”, de Kenzo, “Envy”,

gos meus? — perguntou Arnaud, em cuja voz

de Emilio Gucci, “Dolce Vita”, de Christian Dior,

sumida Rachel, deleitada, debilmente lisonjeada,

“Stradivarius”, de Armani, “So”, de Oscar de la

julgou detectar o medo (absurdo) de uma recu-

Renta, “Déclaration”, de Cartier, “Sonia Rykiel”,

sa.

de Sonia Rykiel, e “Jako”, de Karl Lagerfeld. Mais

em tom de cantilena do que de elenco. Seguiu-se

mento de restauração rápida, Rachel fixava os

uma vénia, uma pequena vénia. Ninguém repa-

rostos e corpos que compunham a roda de ami-

rou na vénia.

gos, atenta aos rituais, às expressões, às postu-

— O teu olfacto é fenomenal — elo-

ras, à articulação da palavra com o gesto. A ne-

giou Arnaud, incrédulo. Arnaud, pouco à vonta-

cessidade de telefonar aos pais funcionou quase

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— Em Cleveland, que é de onde eu ve-

— Queres jantar com um grupo de ami-

Um pouco mais tarde, num estabeleci-


como um pretexto, como um argumento impro-

ortopédicos, pagava-lhe para procurar provas

visado para conceder alguns minutos de trégua à

que sustentassem o seu longínquo parentesco

sua excitação, para fugir à violenta forma de eu-

com a Beatriz do Dante. Marianne vivia num lu-

foria que dela se apoderava. Os pais não mostra-

gar isolado, numa cabana rústica desprovida dos

ram preocupação pela sua ausência. Rachel pro-

mais elementares confortos. Dispensava água

meteu tentar regressar a Antibes no dia seguinte,

corrente, telefone e Internet; possuía pomar pri-

e descreveu a situação geográfica de Grasse.

vativo, e fazia o seu próprio queijo. Viajava mui-

“Vem de certeza no guia” gritou ainda para o

to, sobretudo a Marselha, e daí para Florença e

aparelho, sem a certeza de ter sido ouvida.

outras cidades da Europa. Consultava assentos

De regresso à mesa, pejada de restos de

de baptismo em paróquias e passava dias inteiros

comida e de copos de plástico a cujo interior ade-

em bibliotecas. Chegava à hora de abertura e vi-

riam gotículas de Orangina, Rachel detectou uma

nha-se embora à hora de encerramento. Parla-

nota de solenidade que até aí estivera ausente

mentava com directores de registos civis. Rachel

das conversas e interpelações cruzadas daquela

não chegou a perceber o que trouxera à conversa

meia dúzia de camaradas, unidos por uma histó-

(de resto fugazmente, pois já se mudara de as-

ria comum, pela adolescência tardia e pela per-

sunto) aquela personagem, que alcançara estatu-

tença àquela nesga de terra provençal. Falava-se

to de lenda local. “Tal e qual uma personagem de

(pareceu-lhe) de uma pessoa ausente, de alguém

Pagnol” pensou Rachel, assombrada. Os ruídos e

que suscitava admiração, mas também o incómo-

os aromas do interior da Provença participavam

do próprio de quem faz coisas que mais ninguém

desse seu fascínio. Durante muito tempo, asso-

faz ou como mais ninguém faz. Viva perto de

ciaria Dante ao cheiro feroz da esteva, da toranja

Draguignan, e chamava-se Marianne. Marianne

e do alecrim.

interrompera estudos académicos para se entre-

gar, a tempo inteiro, a uma tarefa que fugia ao

opôs mais do que um simulacro de resistência à

corriqueiro. Um industrial e multimilionário nor-

ideia de um passeio nocturno a Cannes. Alguém

te-americano, Bruce Portinari, rei dos colchões

se deu ao trabalho de explicar a Rachel onde fica-

O que fazer daquela noite? Ninguém

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va Cannes, e como se ia de Grasse para lá. Aten-

ção supérflua, pois Rachel passara o trajecto de

nos. Segmentos de céu baço e claro espraiavam-

Quando rompeu a alvorada, chovia me-

avião a estudar guias turísticos e mapas da re-

se, morosos. Saíram dos carros, procuraram a

gião, com a atenção crispada de um neófito de-

praia. A Croisette estava quase deserta, àquela

masiado orgulhoso para se permitir passar por

hora. Entraram areal adentro com fatigada ligei-

ignorante. Distribuíram-se por três viaturas. Ao

reza. Formaram-se grupos. Odores fortes por

sentir o ar estagnado, alguém prognosticou uma

identificar cavalgavam a brisa. “É apenas a se-

trovoada. Rachel lamentou a hora adiantada, que

gunda vez na minha vida que vejo o mar”, pen-

a privava do contacto visual com as bermas da

sou Rachel, esquecendo-se do oceano avistado a

estrada nacional nº 85. Avançavam impantes

milhares de pés de altitude.

como galeões seiscentistas, ufanos e condescen-

Despontava o sol.

dentes, sem sequer se darem ao trabalho de ace-

No seu guia turístico, a distância que

lerar de forma excessiva. Dir-se-ia uma plácida

separava Cannes de Antibes equivalia a uma fa-

procissão onde aos celebrantes importasse es-

lange de seu dedo indicador. Rachel admirou a

sencialmente fruir do momento presente. Come-

forma simples e resoluta como os seus antebra-

çara a chover. O ribombar fez-se esperar até avis-

ços se projectavam para fora das mangas húmi-

tarem o Mediterrâneo, negro e líquido, tão

das da sweat-shirt.

imensamente superior à borrasca. Estacionaram

assim que puderam, num caminho secundário

louca se falar em espuma de rebentação e asfalto

em declive. Acenaram uns aos outros, de carro

num só bilhete-postal? A minha história aguen-

para carro, através dos vidros batidos pela água

ta-se? Será que se aguenta?”

que tombava em torrentes. Havia quem achasse

que os ocupantes de um automóvel estavam pro-

alguém cuja sombra se aproximava, e da ameaça

tegidos dos relâmpagos, e havia quem achasse o

de um brusco sorriso.

“Será que mereço isto? Chamar-me-ão

Mas estava na altura de se desviar de

contrário. Mais do que iluminar rostos, uma lanterna eléctrica encontrada no porta-luvas definiu os seus contornos. Cantaram-se canções de Michel Polnareff, com percussão de moedas, unhas,

Lisboa, Outubro-Novembro, 2006

chaves e palmas contra palmas. Não faltou quem,

com o avançar das horas, se entregasse a um sono necessariamente breve e incipiente. A sorri-

dente Rachel, essa, nunca abrandou a vigília.

“Olha para tudo. Vê tudo. Hás-de lem-

brar-te disto para sempre.”

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fotografia Rita Lino

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MIGUEL MARQUES

C ONFISSÃO

À

P AREDE

fotografia MICAEL PÓVOA

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Hoje está atrasada. Os malvados nunca

me o palhinhas na cabeça e besuntou-se toda de

vêm à tabela. Se calhar perdeu o das nove e teve

creme, de cima a baixo, braços e pernas. Tam-

de esperar pelo das dez menos um quarto. Quan-

bém ficou com as mamas ao léu, à torreira, e eu

do não vem, telefona a avisar. Hoje ainda não li-

só a avisava para ter cuidado, que é preciso cau-

gou, portanto deve vir. Deus queira que não te-

tela, porque faz um mal danado, aquele sol assim

nha acontecido nada. Já tinham dado nas

de chapa, mas ela gosta de se bronzear e ficar

notícias. Eles dão sempre. Ainda antes de ontem

chamuscada como uma cavaca. Nesse dia, ador-

caiu uma catenária e morreram não sei quantas

meceu deitada na toalha, e vi passar uma catraia

pessoas. O comboio descarrilou e apareceu o

com tranças mais a mãe, à beira da água. Nunca

chefe da estação a falar. Esse não morreu. Os

comia nada, ela, quando era pequena. Bolçava-

malvados vêm sempre com atraso. Acho que foi

se toda e era um martírio para comer, por isso

um rápido. A sorte foi que iam poucos passagei-

tive de obrigá-la

a engolir o vomitado para

ros, mas, mesmo assim, ainda morreram uns

se habituar a não

deitar tudo cá para fora,

quantos. Deve ter-se atrasado. Se calhar ligou e

senão tinha morrido

de fraqueza.

não dei por nada. O mais certo é ter-se atrasado.

Nunca se esquece. Nove e meia, o mais tardar,

mim há coisa de uma hora, a cirandar. Pôs-me os

telefona. No outro dia trouxe-me um aquecedor

braços num crivo, cheios de babas, pareço uma

eléctrico, daqueles que se ligam à corrente, por-

chaga. Fico numa pilha de nervos só de a ouvir,

que diz que faz mal acender a braseira em casa,

neste zunzum. Está ali no tecto, a magana. A ver

mas não me habituo a ele. Como não tenho as

se a apanho. Se não fossem as pernas, punha

brasas, ponho a manta nos joelhos ou aqueço os

uma rodilha na vassoura e matava-a. A ver se a

pés com o saco de água quente. Nesta altura, as

deixo pousar, malvada.

noites são tão frias que me enregelam as mãos e

a barriga das pernas. Uso meias de lã mas o frio

pre duas vezes. Combinámos assim. Também

perpassa a roupa. Perpassa tudo, este frio.

combinámos que, quando precisar de alguma

Anda uma puta duma melga de roda de

Parece que escuto baterem. Puxa sem-

O Verão passado levou-me à praia a ver

coisa, marco o número neste botão e o telefone

o mar. Nunca tinha visto o mar, antes. Mostrou-

marca o resto sozinho, por ele. É daqueles mo-

me as ondas e as pessoas a apanharem sol, es-

dernos. Espero que dê o sinal que ela depois liga-

tendidas na areia, com as mamas ao léu, e ficá-

me de volta. Trabalha nos telefones e não paga

mos ali as duas sentadas, a comer pão com

as chamadas que faz de lá. As campainhas estão

presunto e uns pastéis de bacalhau que salteei

a tocar. Deve ser algum, com certeza. E agora,

com um raminho de coentros. Bebemos chá dum

levantar-me? Vá a ver. Nunca vêm à tabela, os

termo que ela leva sempre para a praia, dentro

desgraçados. Raios os partam mais as greves,

duma cesta. Também vimos um homem que ven-

sempre a azucrinarem-me os cornos, almas dos

dia gelados, um que gritava por uma corneta,

infernos. A puta está ali naquele canto, a esprei-

como os malucos, e apitava uma buzina, e ela até

tar. Espera lá que já te conto uma estória, espera

comprou um gelado e comemo-lo a meias, por-

lá. Canto-te uma cantiga. Deixa-te poisar no ar-

que já não tenho dentes e o doce ataca-me o

mário que eu dou-te o arroz. Espera lá, espera.

estômago. Também já não tenho estômago. Pôs-

Que não me deixa ouvir o homem, esta pata cotr3s65

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nana. Parece que disseram que é o de Vila Fran-

secar a roupa. E fazem-me tanta falta, o resguar-

ca. Ainda aparece, com certeza. Nunca se esque-

do e os lençóis. Pode ser que cá durma, hoje.

ce. Deve vir esganada. O pior é se traz muita

Com este tempo, não há-de trazer na ideia voltar

fome e não fica cheia só com as costeletas. Frito

para trás. Parece que bateram. Deve ser ela. Não

batatas, também. É só debulhá-las. As costeletas

me dá descanso, esta magana. Vou buscar a vas-

são boas. É melhor tirá-las do congelador. Podia

soura, espera lá. Dou-te uma que te arranco as

ter feito uma açorda, mas só ali tenho dois papo-

asas. Deve ser ela. Nunca se esquece. Vá a ver.

secos. Espera. Ainda ali há um restinho de caldo

Tenho de me levantar para abrir o fecho, senão

verde. Não terá azedado? Fervo-o, de qualquer

molha-se toda. Anunciaram qualquer coisa. Não

das maneiras, e, assim, come uma colherzinha de

se ouve nada, com esta chuva. Ainda me demoro

sopa e já fica mais aconchegada. Depois estrelo

a descascar as batatas e a pôr a carne debaixo de

um ovo e cozo um bocado de toucinho para

água. A ver se amanhã não me esqueço de com-

acompanhar com a sopa. Gosta de comer o tou-

prar pão no lagar. Prefere saloio, ela, mas agora

cinho no pão, ela. Até se lambe toda, coitadinha.

tenho trazido daqueles da padaria que enrijecem

Para isso nunca se queixa de que fica gorda. E

num instante e só servem para fazer torradas, e

este maldito frio, que não há maneira de passar?

não tenho dentes para trincá-las. Marcou-me

O estupor do vento não me deixa ouvir nada. Pa-

consulta porque perdi a placa não sei aonde, mas

rece que chove. Se vem trovoada molha-se toda.

diz que não faz mal, que até é melhor assim, por-

E se não traz guarda-chuva? Costuma trazer um

que agora fazem umas que não se arrancam, fi-

dentro da mala. Ai, Nossa Senhora, como se pôs

cam agarradas à boca, e é da maneira que não

o tempo. Passou-se-me o noticiário. Devem ter

torno a perdê-la. Parece que ando maluca, since-

avisado, eles. Avisam sempre que dão chuva. E a

ramente. Doida de todo. Parou um. Deve vir nes-

roupa a secar, quem ma apanha, abrenúncio?

te. Vá a ver. O óleo é capaz é de já não estar em

Deus nos acuda. A ver se ganho alento e me le-

condições. Tenho impressão que guardei uma

vanto para ir à cozinha acender a lamparina, e

garrafa na despensa. Ainda aparece, com certe-

aproveito e trago a vassoura para matar esta puta

za. Daqui a nada está aí, ela. Deve trazer fome.

que não pára de me moer o juízo. Maldita. Vá a

Nunca se esquece. Terão batido? Parece que ouvi

ver. Parece que escuto baterem. Ou será da chu-

puxar. Se calhar azedou, a sopa. Espera lá, espe-

va? É com cada trovão que tudo estremece, cre-

ra, que já aí vou ter contigo. Eu conto-te uma

do. Chegou um, parece-me. Deve vir neste. Nun-

estória, espera lá. Dou-te uma que te estrafego.

ca se esquece. Há-de vir toda molhadinha. Ainda

Nem sabes de que terra és. Chegou um, parece-

se constipa, valha-me Deus. Apanha-me uma gri-

me. Anunciaram qualquer coisa. Se calhar ficam

pe ou uma broncopneumonia. Na semana passa-

melhor mexidos, os ovos. Ainda ali há carcaças.

da estava a chocar uma, sempre a fungar, com o

Os rápidos nunca param.

pingo no nariz. Tive de lhe emprestar um lenço. Anda sempre constipada, aquela rapariga. É melhor aquecer chá de limão e misturar-lhe uma colher de mel. O que chove lá fora, Jesus Senhor. Por este andar, nem depois de amanhã consigo 16

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Monika Stojak My Life in a Museum

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Eu tava no bar do Zé comendo uma co-

do balcão para encarar aquele pequeno ser nos

xinha de galinha e tomando uma cerveja, nada

olhos. O pai também encarava a criança, com

que eu já não tivesse feito antes. Havia, como de

uma expressão bobalhona. Então eu olhei pro su-

praxe, meia dúzia de pescadores bêbados atira-

jeito e falei uma coisa que eu nunca imaginaria a

dos pelas mesas, uns rindo da cara dos outros,

mim mesmo falando pra ninguém, muito menos

outros jogando dominó, um último cambaleando

prum pescador bêbado. “Que criança linda”. Ele

entre duas mesas de sinuca, coçando o rosto in-

sorriu e se inclinou pra cima de mim, soltando um

chado. E meio que do meu lado, a pouco mais de

bafo alcoolizado e morno no meio do qual conse-

um metro, um outro pescador, maior que todos

gui distinguir o nome da menina, que já esqueci.

os outros, mais feio que todos os outros, sacudin-

Então ele começou a contar toda a história do

do graciosamente um carrinho de bebê dentro do

nascimento da criança, era a segunda filha dele, a

qual havia um bebê. O carrinho era novo, o bebê

outra tinha cinco anos de idade, nesse tempo

era branquinho, limpo, sorridente e silencioso. Eu

todo separando as duas a mulher dele tinha sofri-

já tinha visto muita coisa estranha no bar do Zé

do três abortos naturais, havia ficado doente, ele

pra me espantar com um carrinho de bebê com

trabalhou feito m cachorro pra conseguir pagar

um bebê dentro, no meio daquele boteco escuro,

todos os médicos e hospitais, mas que agora a

velho, ocupado exclusivamente por homens ru-

filha dele tinha finalmente nascido, e que era

des, grotescos, a maioria miseráveis, todos bêba-

muito esperta e muito linda e etc, e eu olhei pra

dos. Continuei mastigando minha coxinha. Mas a

ela no carrinho e notei que era mesmo uma das

presença do bebê começou, finalmente, a me

crianças mais lindas que eu já tinha visto. O cara

causar uma certa estranheza, e eu tirei os olhos

parecia fascinado em ter encontrado alguém pra

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escutar as coisas que ele tinha pra dizer, e depois

coloquei na mão da criatura, ela não ligou muito,

de todos os detalhes do nascimento da filha co-

ignorou o meu dedo, ficou rindo sozinha, eu já

meçou a falar do resto da família dele, a mãe dele

não tava achando graça, eu tava desesperado pra

tinha tido cinco filhos, duas gêmeas e três trigê-

sumir dali, engoli todo o resto da coxinha e come-

meos, ele era um dos três e mais um monte de

cei a beber a cerveja apressadamente, tirando uns

coisa, e eu comecei então a me sentir realmente

trocos da carteira ainda escutando o cara contar

desconfortável, a coxinha não terminava nunca, a

como a filha mais velha era inteligente, com cinco

garrafa de cerveja não tava nem na metade, re-

anos de idade sabia até atender telefone, sabia

solvi que eu queria sair dali mas não tinha como,

até tratar visita, assim que eu sequei a garrafa me

não tinha coragem de cortar o cara, pedir pra ele

virei e disse mais uma coisa que eu nunca imagi-

parar de falar, e a menina no carrinho olhando

nei a mim mesmo dizendo pra ninguém, muito

pra mim com olhos arregalados, tão bonita e per-

menos prum pescador bêbado, “Feliz Natal e um

feitinha quanto num comercial de sabonete Fofo,

bom ano novo pro senhor”, do alto da empolga-

o carrinho levemente embalado por aquele ser

ção ele me respondeu algo parecido, sorriu, eu

enorme, tão tosco que eu só compreendia uma

sorri de volta, nervoso, muito nervoso, sem saber

em cada três palavras que ele me dizia, mãos

o porquê daquele mal-estar, e saí de lá quase cor-

grossas com dedos rachados, a pele parecendo

rendo, depois corri, como se estivesse fugindo de

folgada por cima dos músculos vigorosos. “Quer

um tiroteio.

ver como ela é forte? Bota o dedo na mãozinha dela pra ver como ela aperta, quero ver tu soltar”, ele me disse, e eu fui lá estiquei o indicador e tr3s65

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O MEU ROSTO TERMINA ONDE O TEU COMEÇA Elisabete Patrícia Andrade fotografia Rita Lino

Tem 13 anos. Todas as noites se despe em frente do espelho. Executa este ritual sem procurar perceber que necessidade urge. Com a mão procura prazer, busca pontos no corpo que possam ser estimulados numa precipitação urgente para o orgasmo. Gosta de contemplar o rosto a abrir-se numa emoção de prazer enquanto uma luz lhe passa sobre os olhos. Masturba-se devagar, descobrindo o seu corpo milímetro a milímetro. Quando se vem nascem-lhe asas, os dedos lambuzados e felizes entre as pernas. Depois seca as lágrimas e imobiliza-se um instante diante do espelho, observa longamente o duplo rasgado pelo reflexo da lua. Fica fascinada com as transformações rápidas que o corpo sofre, aprecia particularmente a saliência dos seios. O corpo retoma o seu movimento natural, lentamente, e ela treme um pouco à contemplação do reflexo que o espelho devolve. Compreende cada vez menos a asfixia que oprime. 20

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Tem 22 anos. Corre as cortinas para de seguida encarar o espelho. É uma mulher bonita e triste. Por momentos esforça-se por destacar o volume do corpo da divisão, um peso de carne no qual deixou de se reconhecer e que agora ameaça dissolver-se nas sombras. No silêncio trémulo da casa procura palavras, a pulsação cheia de histórias sobrepostas, o nome do homem que ama. Procura tudo isso que a melancolia contagiou. Passa os dedos sobre o reflexo, algo a abandona com violência. Um rosto possuído pela melancolia é um rosto que está mais perto da morte, aos 22 anos sabe destas coisas que aos 13 anos pressentiu tão somente na asfixia que oprimia. De resto não sabe falar de outras emoções ou se sabe é porque tomou ansiolíticos. Para esquecer o nome do homem que ama submerge emoções com o consumo de ansiolíticos. É curioso que o possa somente aperceber em movimento no tempo em que procura uma aproximação com o passado. Ele vem até ela com cadastro, isto é, com palavras repetidas, frases agarradas, coisas violentas que lhe pertencem. Ela quer que ele chegue isolado, sem que seja preciso medir o perigo da aparição. Mas sabe de antemão o que irá encontrar. Foram demasiadas palavras envenenadas entre

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eles que ainda se encontram frescas. O mais provável é ceder mediante a contínua e crescente carga emocional, acabando por sentir pena dela mesma porque é assim, na verdade, que sucede com o amor. A tragédia patética do amor, isso é que não. É tomada por uma ligeira sensação de agonia. Não chora mais, ao invés habituou-se a substituir a náusea pela dormência. Deixou de haver razão para chorar, pois se tudo está predestinado à morte. As coisas mortas são pesos a que nos afeiçoamos por puro masoquismo. As dores mortas na trégua do prazer são golpes adiados. E depois há pessoas que morrem todos os dias, uns matam-se por amor, outros por falta dele. São coisas da vida como diz o outro. Tem 38 anos e chora quando se masturba. É bela, principalmente quando cede aos olhos expressões de prazer. Uma mão de encontro ao seio, a outra aflorando lentamente o sexo com acuidade. Aprendeu a qualidade do prazer no decorrer dos anos. Foi há tanto tempo, Sandra. A tua voz, os teus pulsos rasgados na juntura das veias. Vê como sofresteste a metamorfose, vê como tudo o que perdeste está mais que morto e ficou repisado na memória por inépcia. As madrugadas são longas e já não sa-


bes dizer se vocês aconteceram juntos, então, num misto de saudade e apatia, revolves gavetas à procura de fotografias em que aparecem juntos. És capaz de ficar a olhar para elas durante horas. Quando voltas a repô-las na gaveta provas a agonia de serem outros seres, dois seres misturados que perderam a identidade e que deixaste de reconhecer, duas pessoas demoradas nos seus defeitos, às quais, agora, te podes dar ao luxo de acrescentar mais este ou aquele defeito para te sentires melhor contigo própria. Numa das raras fotografias em que ele mostra os dentes num sorriso, cinge-a num abraço. Estavam felizes no dia em que a fotografia foi tirada ou, pelo menos, é essa a sensação que retira do tempo da fotografia. Na mesma fotografia ela exibe uma seriedade sombria, da qual não se apercebera na altura. Talvez as fotografias captem tão somente os momentos aos quais ainda não chegámos. Os momentos que ainda nos falta acontecer, os rostos que ainda não experimentámos e a que nos falta unir. Quando deixa de pressenti-lo nas fotografias faz para reencontrá-lo, escreve-o, rebusca-o na sua totalidade fragmentada. “A escrita é outra forma de desejar o teu corpo, é uma forma de pertencer algures onde decorrem todas as emo-

ções de uma só vez, onde tu sempre estiveste comigo. É uma forma violenta de morrer, é isso. A escrita trata-se, nada mais nada menos, de um antídoto contra a morte. Um antídoto que não ressalva ninguém da morte mas que em certos casos tem a vantagem de adiá-la”, escreveu no caderno aos 22 anos. “A culpa é daquilo que os olhos percebem e roubam às imagens. Felizes são os não praticantes deste ofício letal.” Pousa o caderno e alcança o casaco com a mão. Arrasta-se pela casa num passo automático, as mãos afogadas nos bolsos do casaco. Sandra ouve a chuva a bater contra as paredes, imagina jactos de luz. É a chuva que lhe traz a imutável sensação de falsa segurança, enganando-a. É a chuva que paralisa o medo e lhe permite recobrar uma nesga de coragem. A madrugada baixa sobre a cidade e acompanha-a na casa. Sandra apercebe no quarto o gira-discos coberto por uma fina camada de poeira, apetece-lhe ouvir seja o que for, salvo a sua própria voz. A música cresce no silêncio trémulo da casa, produzindo um som que arranha e que ela gostaria de compreender. Ela coloca-se diante do espelho, falta-lhe o ar. Abre a gaveta com mãos lentas, alcança um ansiolítico. Sem o nome dele, não suporta viver.

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Evidentemente que o facto de eu jamais ter posto os pés em Istambul não interessa a ninguém.

Na terceira versão chegou a falar-se de tráfico de drogas.

De acordo com a segunda, tratava-se de uma aventura romântica.

De acordo com a primeira, fui com o encargo de uma suspeita missão política.

Existem várias versões acerca da minha estância em Istambul.

ilustração ilustração Alex Alex Gozblau Gozblau

tradução tradução José José Luís Luís Peixoto Peixoto

A minha estância em Istambul

Izet Sarajlic


ROSA

NOTURNA MARCELO MOUTINHO ilustração

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ALEX GOZBLAU


Teresa tinha um pênis

de vinte e dois centímetros, contados na régua.

O atributo lhe rendia fama nos arredores da praça Paris, onde trabalhava de terça a domingo, das onze às cinco, quarenta reais por uma gozada, sem beijo na boca. “Beijar, nem por cem. É só para namorado.” tr3s65

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Os quarenta (e mais quarenta e mais quarenta e mais quarenta) ajudavam a pagar as despesas do apartamento da rua Cândido Mendes, dividido com duas amigas. Era ali que Teresa dormia, depilava as pernas, o sovaco e o rosto, tonificava os glúteos com os exercícios da revista de ginástica, aplicava em ampolas de hormônio as futuras curvas de mulher. Era ali que, enfim, abrigava-se durante o invisível do dia, nas horas de inexistência, antes de virar purpurina sublime e esparsa numa calçada de Glória. Nas dimensões apertadas do apartamento, ela se amontoava às próprias coisas, às amigas e aos objetos das amigas, espalhados pelos dois cômodos. A topografia das caixas de papelão, dos móveis atravancados, dos colchões no colchão, da geladeira no meio da sala, dos poucos armários para muitas roupas, era como um raio X invertido da própria Teresa: desordem. O dinheiro, contudo, não permitia mais espaço. “Só estico a mão até onde posso alcançar. Quem sabe quando encontrar um italiano rico...”, ela pegava emprestado o sonho das amigas, mas devolvia rápido. Pois sabia que ao menos naquele apartamento conseguia morar sem maiores entraves – em geral com três sessões arrecadava o básico das despesas. Responsável pela organização da contabilidade interna, fixou uma quantia mensal para cada moradora e, de sua parte, distribuiu os gastos do mês pelos 26 dias de trabalho (segunda era folga), estabelecendo um valor mínimo a garantir noite após noite. Caso ficasse doente e fosse obrigada a faltar, compensava nos dias seguintes. Problemas mais sérios mesmo só enfrentava nas épocas chuvosas, como aquele mês de outubro, que resolveu desafiar todos os prognósticos. Lá se iam mais de três semanas de temporal e ruas vazias. “Quando chove, os homens somem. Parece que são feitos de papel. A gente lá, com guarda-chuva na mão, passando frio, e 28

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ninguém dá as caras.” Teresa passou o mês inteiro de olho na previsão do tempo, adiando a apreensão. Mas já era dia 27, não havia como esperar mais. As dívidas gritavam em vermelho num bilhete na geladeira: “A pagar: dia 30 – aluguel, dia 5 – condomínio, luz e água, dia 8 – conta do restaurante.” Se no restaurante poderia até negociar, com algum juro, um prazo melhor, outros pagamentos tinham que ser na data, sem chororô. “Boneca que atrasa dorme na rua”, o proprietário do apartamento já avisara – e quando ele falava apertando a orelha direita (e ele falou), significava que o assunto requeria seriedade. Por isso naquela noite, a primeira cujo teto não se cobrira com o véu da chuva, ele decidiu colocar de uma só vez as contas em dia. Com cinco sessões, calculou, abateria boa parte da dívida. Bastavam disposição, preservativos e uma roupa sensual. Optou pelo vestido de paetês dourados, bainha pelo menos dois palmos acima do joelho, delineando as coxas e a bunda, e pelos sapatos plataforma que lhe impingiam ainda mais altura. Pintou o rosto em cores quentes, recolocou o piercing brilhante no nariz. Depois ajeitou o sutiã, compensando com enchimento o peito menor pela injeção de silicone mal aplicada, borrifou perfume, pegou a bolsa e ganhou a rua. - Quanto é o boquete? – Não eram nem onze e meia quando, direto no assunto, o rapaz no Chevette a abordou. Ele era jovem, bastante jovem, fazia o tipo namorado-certinho-que-resolveu-aprontar. - Boquete, vinte; completo, quarenta. Vale a pena, viu, gato? - Vinte? Não rola por quinze, não? – ele chorou. - Vinte, gato. É tabelado. - Mas onde a gente faz?


- Pode ser dentro do carro mesmo, tem uma rua bem discreta ali em cima... Teresa entrou no Chevette, sentando-se ao lado do rapaz, e subiram uma ladeira até chegar a um canto ermo do bairro, onde havia outros carros parados. Ele abriu as calças, ela pôs a boca, ele gozou, ela cuspiu, e em meia hora voltava ao mesmo ponto onde antes ela se achava, na calçada entre as lojas de portas cerradas e a praça Paris, no entrelugar, sempre no entrelugar. Por cerca de uma hora, Teresa permaneceu ali, à espera, observando carros a circundar a praça, desejos rondando sem coragem de estacionar. Até que um Fiat Uno piscou o farol em sua direção, diminuiu a velocidade e se aproximou. O homem de meia-idade, cavanhaque somando anos extras ao rosto, pareceu-lhe levemente bêbado. - Oi, tesão! – ele movia os músculos da boca de maneira esquisita, tentando desenhar no rosto uma excitação. - Oi, gato. Procurando diversão? Teresa encostou a bunda na janela do carro e puxou a mão dele até sua nádega esquerda. - Depende... - Depende de quê, gato? - Do preço dessa diversão. - Ah, não é caro, não. E garanto que você não vai se arrepender. – Com a bunda projetada ainda mais para o interior do veículo, ela pousou os dedos sobre o sexo dele e começou a massageá-lo. – Quarenta reais e você vai à lua comigo. - Mas está incluído o motel lá na lua? – ele fez graça. - Não, gato, mas o motel só custa quinze e aceita cartão. - Você também aceita? - Ainda não. Quem sabe um dia, no futuro. Nós somos as mulheres do futuro, você sabia?

- E você é ativa também, mulher do futuro? – ele desafiou. - Faço de tudo, amor. Menos beijar na boca. - Pode entrar. Vamos lá. – O homem abriu a porta do carona, engatou a primeira e entabulou uma conversa. - Sabe por que eu gosto de transar com vocês? Porque um homem conhece exatamente onde fica o prazer de outro homem. Mas não gosto de corpo de homem, e vocês já têm corpo de mulher... - Mulheres do futuro, já falei – Teresa sorriu. – É aqui. Pára ali, colado naquele poste – apontou o indicador. Andaram poucos metros até o motel, onde ela cumprimentou a recepcionista e pediu a chave do 206. Permaneceu no quarto com o homem do cavanhaque por mais de hora e meia. Duas gozadas, pagamento dobrado, menos oitenta do bilhete na geladeira. O homem levou-a de volta à praça Paris. Teresa precisava de um pequeno intervalo. Enquanto esperava pelo novo cliente, comprou uma lata de cerveja num bar próximo. Tomou lá mesmo, apoiada no balcão. Três e meia da manhã, três sessões: nada mal. Uns quinze minutos ficaram no bar. - Pendura, Zé – e rumou para a calçada. Então, o susto: um carro esportivo, não deu para ver direito a marca, voou repentinamente da faixa central para a pista colada à calçada, e Teresa só pode sentir o jato forte soprando um pó branco contra seu rosto. - Pirocuda! – alguém berrou de dentro do carro, que partia. Ela ainda enxergou o extintor de incêndio projetado para fora da janela. E com as mãos friccionando o vestido no meio das próprias pernas, rebateu: - Viados! Playboys filhos-da-puta! tr3s65

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Embora já estivesse acostumada, ainda perdia a pose com esses ataques. Mas a raiva não tardava a se esvair. Uma ajeitada no vestido, um pente rápido nos cabelos e a noite aquietava: pronta para outra. Para mim duas, aliás. A intenção era concluir o plano até cinco da manhã. Teresa retornou ao bar apenas para a última ajeitada no espelho e vamos lá: mais duas. Não precisou aguardar muito. Carro novo, casal com jeitão de recém-casado, tudo bem, claro, com os dois, sem problema, nesse caso é sessenta mais quinze do motel, eu ensino como faz para chegar lá, é aqui, quarto 202, não, não, sem beijo de língua, chupar a moça tudo bem, foder a moça tudo bem, com você tudo bem também, vai, vai, goza gostoso, vai, goza aqui na minha boca, isso, isso, mais sessenta reais na carteira, vocês podem dar carona até a praça? A noite estava promissora confirmava a vocação e apesar de cansada, Teresa sentia alívio: faltava somente a derradeira sessão e, depois, casa. Ainda era madrugada, mas a manhã já se insinuava e o movimento diminuía. Os funcionários das padarias começavam a aparecer, carregando os seus “bom-dia” nas mochilas, e quando as lojas abrissem os clientes de certo sumiriam de vez. “Mais um, só mais um e posso ir...” Teresa vertia o cansaço na maquiagem que esfriara, mas se ascendeu de novo ao notar que um Honda Civic, com cara de zero-quilômetro, desacelerou cerca de vinte metros à sua frente. O motorista pousou duas rodas sobre a calçada, trancou a porta e riscou o chão em linha reta para onde ela estava. - Boa noite, estou com pressa, programa rápido, quanto é? – ele, esbaforido, engolia as palavras. - Quarenta, o completo. - Tem local? 30

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- Motel. Soma mais quinze. - É perto? - É, mas indo de carro. - Não. Sem carro. Não tem outro? - Tem. Só que é mais caro. Custa cinqüenta por uma hora. - E quinze minutos? - Cinqüenta também. - Fechado – e tomou Teresa pelo antebraço, puxando-a com força, como se fosse ele o guia. Afobados, andaram no compasso ditado pelo homem até o motel mais luxuoso, vencendo vertiginosamente a portaria. Mal entrou no quarto, ele pediu a Teresa que tirasse a roupa, se lubrificasse e ficasse de quatro sobre a cama. Em seguida, arriou a calça de moleton e entrou nela com violência. Gozou em menos de três minutos. - Pronto. Pode se vestir. – Já recomposto, ele lavava as mãos. - Calma. E o pagamento? O homem se secou com a toalha de papel, apalpou o bolso de trás da calça e então percebeu: o dinheiro ficara no carro. - Olha só, esqueci a carteira no portaluvas. Vamos até lá que eu pago. - E o motel? - Você não tem algum aí? - Eu? Eu é que vou pagar? - Só até o carro. Pode deixar que eu compenso... Teresa não via outra saída se não confiar nele. Mesmo tensa com a possibilidade de um golpe, mais um, deixou cinqüenta reais na recepção do motel e o seguiu. - Olha só, você fica no mesmo lugar onde estava quando fui falar contigo. Por favor, não se aproxima do carro, OK? “Lá se vão meus cinqüenta”, e Teresa estancou no ponto combinado, ele se encaminhando ao seu Honda Civic. Para surpresa dela,


porém, o homem de fato resgatou a carteira e num passo retornava com os noventa reais, que lhe foram entregues com um seco “obrigado”. Em seguida, ele se virou de costas e fez o trajeto de volta, preciptando-se carro adentro. Ajeitou-se na posição do motorista e, com a porta entreaberta, pendeu para o banco de trás, de onde retirou algo que ela não definia bem e que ele manteve no colo. Teresa se aproximou um pouco e pôde ver com mais nitidez: era um buquê de rosas vermelhas. Passaram-se alguns instantes, ele fitando as rosas sobre seu ventre, e a cena se dispersou. Num ato repentino, o homem escancarou a porta do carro, atirou as flores no chão, engatou a chave e arrancou de forma brusca. Os pneus gritaram por ele. Teresa então notou que, com a rispidez da queda, uma rosa se desgarrara do buquê. Ela se abaixou, pegou a rosa e, ainda agachada, inflou o rosto num sorriso, imaginando quem seria enfim o destinatário que nunca receberia aquelas flores. Talvez alguém se foi, independente como um barco que se desamarra da margem; talvez uma mulher que, por um motivo qualquer ou sem motivo algum, não as merecesse; ou ainda o próprio homem, que as desprezou pela remissão a alguém que hoje só desperta ira. As possibilidades rebolavam em sua cabeça, alongavam-se as especulações, até que Teresa atinou: pouco importava. Aquela rosa, que brotara inesperadamente numa fenda invisível da madrugada, na mesma calçada entre as lojas e a praça Paris, agora era dela. Hora de ir para casa: a noite estava ganha.

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CINCO HISTÓR1AS NOCTURNAS RUI MANUEL AMARAL fotografia ANETA KOWALCZYK

HISTÓRIA DO DITO CUJO soSe eu quisesse, podia contar muitas histórias que bre o dito cujo. Mas basta esta, a primeira bela uma após dia, belo me vem à cabeça. Um noite de sono, o dito cujo abriu os olhos, levan ado tou-se da cama, dirigiu-se ainda meio enson oh!, ao quarto de banho, olhou para o espelho e, careel terrív a ba, Caram fez uma careta terrível! o ta que ele fez! E depois disse: “Xanto Deux, r gue agontexeu à minha gara? Parexo o Grego que Xamxa.” O que significa: “Santo Deus, o Samr Grego o o Pareç aconteceu à minha cara? por sa”, mas ele pronunciava mal as palavras, te causa daquilo que acontecera à sua cara duran a noite. E é tudo.

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QUANDO O SILÊNCIO CAIU EM VOLTA A noite era de um esplendor invulgar. A lua, embora não estivesse cheia, brilhava e envolvia toda a paisagem com uma beleza que desafiava qualquer tentativa de descrição. Os campos estavam cheios de sombras amenas. Não havia vento, nem o mais leve sopro. Os demais corpos celestes derramavam sobre o lago uma luz pura, estável, branca. As árvores estavam como que hipnotizadas numa espécie de encantamento misterioso. A senhora Ava Novak estava sentada na varanda, desfrutando das ternas e encantadoras sensações daquela noite maravilhosa, e sonhava, sonhava, sonhava, contemplando a lua resplandecente.

O TRASEIRO COMICHOSO Um fulano entra à noite furtivamente no gabinete de trabalho de um escritor famoso, esfrega as mãos e bebe um frasco inteiro de tinta. Depois pousa o frasco no lugar, coça o traseiro comichoso e volta furtivamente para casa. No dia seguinte, o fulano começa a cagar histórias e transforma-se num autor famoso. O outro, sem a tinta, pobrezinho, mergulha numa crise de criatividade e acaba por morrer de desgosto.

Depois, por um momento, todas as cigarras se calaram, o silêncio caiu em volta e a senhora Novak deu um pum.

CONSEQUÊNCIAS DE UMA NOITE DE FOLIA

Depois de uma longa e bem preenchida noite de bebedeira, Zavala Zabehlice acordou dentro de uma garrafa. Uma situação, como é fácil compreender, pouco ou nada brilhante. - Efectivamente a minha situação está longe de ser brilhante. Na verdade, é muito aborrecido uma pessoa acordar e concluir que está presa no interior de uma garrafa. Talvez para sempre. É sobretudo muito incómodo – diz o infeliz pândego, secundando a minha opinião. Pois muito bem. Aqui têm o que proporciona uma noite de folia como aquela que Zavala Zabehlice teve o ensejo de gozar.

SEZAY GORODECKY NÃO CONSEGUIA DORMIR Noite após noite, agitado, transtor nado, ofegante, barrigudo e com uma borbulha na ponta do nariz, Sezay Gorodecky não conseguia pregar olho. Ora, passar tantas noites sem dormir não é muito bom para a saúde. Ao fim de algum tempo uma pessoa começa a morrer de sono. E nem de propósito! Ao fim de algum tempo, Sezay começou a morrer de sono. E depois morreu*. * Esta nota de rodapé é pura garotice minha. Existe apenas para enganar o leitor. Sezay Gorodecky morreu efectivamente de sono. Fim da história.

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Tudo lhe doía.

Desde “There will never be another

quisito, o céu plúmbeo de indecisões micro-climá-

you” (Art Pepper, 6 minutos e 9 de sexo oral feito

ticas. Os passarinhos desconfiados dos reforma-

por um ex-namorado que emigrou para a China

dos que lhes atiravam com pão, os cães de dentes

comunista) até “The flight of the bumble-bee”,

arreganhados para as crianças que brincavam à

de Rimsky-Korsakov, pela voz do violino de Nigel

volta do coreto. A banda tocava a trilha sonora de

Kennedy (um antigo colega de Faculdade que a

“A golpada”, ela e Joaquim escondidos num re-

sodomizou numa noite de temporal, para depois

canto fétido, (mal) frequentado por ratazanas

se ir gabar do feito para o Cais do Sodré, no “Bri-

mafiosas que dominavam a zona. Não teve tempo

tish Bar”).

para pensar. Joaquim agarrou-lhe os ombros com

A sua vida era um vendaval de desilu-

manápulas férreas de erecção acumulada, atirou-

sões amorosas, sempre acompanhadas de recor-

a contra a parede do coreto e a natureza seguiu o

dações musicais que funcionavam como guarni-

seu curso. Não foi violação porque ela estava de-

ções indigestas para um “à la carte” do

masiado entontecida para manifestar de forma

sofrimento afectivo. Pobre coração ávido de me-

expressa a sua desilusão com Joaquim. Em vez de

lodia!

24 rosas, 20 centímetros. Ao invés de “amor,

A virgindade foi-se num fim de tarde es-

quero entrar em ti”, lá vai alho.

A partir daí, ouvir a “Golpada” só podia

doer.

Perdeu-se de amores por um contínuo

da Caixa-Geral de Depósitos. Apostou a sua felicidade num namoro de domingo com visitas entre-

A MULHER QUE SOFRIA MUITO COM AS RECORDAÇÕES MUSICAIS 34

tr3s65


meadas ao jardim zoológico e ao estádio de Alva-

da ópera. Especialmente da “Carmen”. Duas ou

lade. E quando tudo acabou nunca mais pôde

três vezes por semana era certo e sabido que Me-

ouvir Maria José Valério a entoar o hino do Spor-

nezes punha a tocar a Carmen. Uma verdadeira

ting.

tourada!

O engenheiro Bill Brown parecia ser um

Necessitada de uma revolução na sua

homem diferente. Trazia outros hábitos do Cana-

vida, deixou-se conduzir para um beco terrível. O

dá. Cortejou-a como deve ser, enquanto inspec-

seu coração foi cativado por Hermínio, um “punk”

cionava as mais variadas obras. Até ao dia em que

de terceira geração que era funcionário público

a obrigou a engolir os seus fluidos em plena ses-

na Câmara Municipal de Oeiras e só podia vestir à

são do Tivoli. E nunca mais os ouvidos dela tolera-

“punk” aos fins-de-semana. Durante a semana

ram a banda sonora de “Tora,Tora,Tora”.

Hermínio ainda era um namorado normal, com

Esteve casada três anos, com um homem bom e

sticadas em vãos de escada, telefonemas a horas

puro. Infelizmente, era tão puro que não tinha

próprias, um cinema, um jantar de marisco, essas

queda para a intimidade no sentido bíblico. E ela,

coisas banais e saborosas. O pior era aos fins-de-

não obstante todas as agruras da vida, ainda era

semana.

senhora de algum alimento.

“punk”, raptava o “tijolo” ao primo Ernesto e ala

Hermínio

envergava

a

fardamenta

que se faz tarde. Os fins-de-semana eram exclusi

A frustração sexual fermentou ao longo

vamente dedicados aos “Ases da Folia”, um gru-

dos anos, os dias e as noites iam passando e nada

po de amigos de infância, cerca de 15 parvalhões

de filmes de acção, somente carinho, companhei-

com cara de atrasados mentais, ávidos por lan-

rismo, cumplicidade. Menezes era um homem

ches no campo, Sagres de litro e discos dos Sex

culto, dado aos prazeres da música, mas abusava

Pistols, Plasmatics, AC/DC e Guns and Roses.

LUIS GRAÇA tr3s65

35


Durante 15 dias afogou o fracasso da

inteiros debruçada em varandins, em miradouros,

relação com garrafas de “Four Roses”. E desta

ansiosa pela cair da noite, invariavelmente passa-

feita ficou feliz por nunca mais ter de ouvir as

da num quarto mais escondido lá de casa, onde

marteladas musicais a massacrar-lhe o cérebro.

Arménio (que fôra trolha na Areosa antes de vir

Mas as recordações eram-lhe demasiado doloro-

para Lisboa) podia cavalgar a namorada sem a

sas.

avó dar conta do estardalhaço que fazia.

Ecléctica nos sofrimentos musicais. Tan-

to se lavava em lágrimas com um fado (“Povo que

lavas no rio”, um homem que lhe dera uma tarde

Sem preliminares, bem entendido, que no campe-

fabulosa de sado-masoquismo, numa pensão ba-

onato sexual de Arménio entrava-se logo na fase

rata) como se torcia de dores sentimentais com

final, sem apuramento. Arménio esvaziava as suas

uma balada de música ligeira (“20 anos”, José

bolsas testiculares por uma semana, puxava dos

Cid como anfitrião sonoro de umas férias em Pa-

cigarros mais rascas do mercado e dava umas pas-

ris, rematadas pelo roubo da sua mala).

sas que empestavam o quarto num ápice. E de-

Quim Barreiros acampanhou as suas dores duran-

pois uma cassette-pirata de Quim Barreiros, dois

te perto de um ano, na sequência de uma paixão

cálices de azia, somados ao Carvalho, Ribeiro e

mal resolvida por um ajudante de pedreiro que

Ferreira, bagaço para desinfectar corações muito

vivia em Alfama com a avó. O homem era bruto

atreitos a mazelas sentimentais. Foi um período

como as casas que ajudava a construir. Feio como

difícil. Dizem que não se deve misturar bebidas.

os trovões. Ordinário quanto baste. Desprovido

Então e os sentimentos? Demorou a enjoar o Ar-

de sentimentos subtis. Mesmo assim, o amor tem

ménio e o bagaço. Mas quando chegou a fase de

destas coisas, ela apaixonou-se. Eram domingos

saturação e do despertar para as realidades, des-

36

tr3s65

Durava aí uns dois minutos, se tanto.


marcou o Arménio para os tapumes mais próxi-

mas o facto é que as obras tinham nomes assim:

mos (“Ai não queres andar mais comigo? Olha,

“Céus de poesia”, “O voo de uma gaivota depri-

há mais quem queira, minha vaca”) e fez todos os

mida”, “Nuvens a toda a volta”, “A voar todos os

possíveis por se desviar da música de Quim Barrei-

santos ajudam”, “Mafalda e os pássaros do sul”,

ros.

“O pardal recalcitrante”, “Corvos de água doce”, Claro que de vez em quando toda a

“Tibúrcio, o rouxinol do horizonte próximo”, “O

gente acerta. Há fases boas. Albert Parkinson ti-

meu amor é uma arara”, “Um grãozinho na asa”,

nha 30 anos, enorme fortuna pessoal, uma edu-

“Pássaros, passarinhos, migrações e alguns pas-

cação esmerada (Cambridge, ao que foi possível

sarões”. Cada um é livre de titular como quer.

apurar) e um palacete em Cascais. Passava o Na-

tal e o Ano Novo em Londres. Logo regressava a

do amor, apesar do inconveniente de se esquecer

Portugal. Era escritor de poemas naturalistas.

do nome da namorada frequentes vezes e o tro-

Mais de 90 por cento dos seus poemas falavam

car pelos que lhe vinham à mente na altura.

de pássaros. O mais curioso é que ele detestava

“Querida, você sabe que eu não ligo muito a no-

filmes de Hitchcock. E era raro permitir-se ir ao

mes, mas estou a pensar em si”.

cinema. No espaço de cinco anos publicou 15 li-

vros de poesia, todos em edição de autor, após

ser um verdadeiro entrave para uma experiência

uma experiência mal sucedida na “Abutre Edito-

namoradeira plena. E Albert passou à História ain-

res”, uma aventura editorial pouco clara, que me-

da antes dela se entregar de alma e coração aos

teu capitais da droga galega e tráfico de armas na

vibradores.

Costa do Marfim.

afectiva desses bichinhos queridos e a partir daí a

Os títulos poderão não adiantar muito,

Albert era um ser muito terno na hora

Era um problema. O amor-próprio pode

Encontrou a felicidade na mecânica

única música que quis ouvir foi o zumbido suave do latex a entrar-lhe nas cavernosas margens do seu prazer pessoal e intransmissível.

fotografia ALEKSANDRA KORECKA tr3s65

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38

tr3s65


Consta que é da praxe, que todos os super-heróis em potência, em determinada altura de suas vidas, são expostos a situações que espoletam a sua faceta de semideus dos oprimidos. Os exemplos factuais comprovam-no: o Homem-Aranha foi mordido por uma aranha numa aula de ciências, ou lá o que foi, o Hulk também se embrulhou com uns tubos de ensaio ou raios gama, e, o próprio Batman, ainda que apartado do contexto laboratorial, alombou com os seus pais a serem vindimados à sua frente ou chatice afim. Tudo isto para dizer que, com Jacinto, o nosso super-herói, não sendo possível registar com exactidão o momento de transformação numa entidade protagonista na eterna luta do bem contra o mal, é possível determinar uma série de momentos que convergiram nesse sentido. Ora bem, Jacinto, quando era garoto, foi demonstrando especial apetência para se cruzar com pessoas que, assim que se lhes informava que o nome de Jacinto era, lá está, Jacinto, retorquiam com um “ah, como um dos reis magos”. Das primeiras vezes, Jacinto ainda sorria com o erro e corrigia as pessoas, “não, não, como um dos pastorinhos”, mas à medida que uma pessoa cresce, a raiva vai-se tornando no sentimento mais presente e orientador. E com Jacinto foi igual. Até porque, para além de se ter continuado a cruzar com canalha que confunde profundamente reis magos com pastorinhos, Jacinto começou a ter também interacções com entidades que corrigiam a sua clarificação, dizendo quase sempre “não, não, nos três pastorinhos havia é uma Jacinta”. Foi crescendo o sentimento de que a raça humana é, na sua esmagadora maioria, composta por pessoas cuja finalidade definidora é dar cabo dos nervos às pessoas que sobram. E eis que, a dada altura da sua vida, Jacinto se convenceu de que o mundo, tal como o conhecemos, urgia por um justiceiro que nos livrasse dessa canalha que só dá nervos. E, por livrar o mundo, Jacinto não se referia a terapia de grupo ou mariquices de índole homoerótica, mas sim a limpar literalmente o sebo a esses calhaus com olhos. Pessoas que enervam eram, então, e fazendo paralelo com as carreiras de Homem-Aranha, Hulk e Batman, o equivalente para Jacinto do inimigo do Homem-Aranha, o inimigo do Hulk e o Joker. Logo nos primeiros dias de acção super-heróica, Jacinto arrumou com um indivíduo que dizia que só se podia dizer que alguém havia morrido de velho quando essa pessoa tivesse ultrapassado a esperança média de vida vigente na altura do óbito. E que bem soube a Jacinto, esta prática inequívoca do bem. Tão bem que à segunda vítima, para ser aviada com uma meia cheia de tangerinas (era o M.O. de Jacinto, só mudava o conduto da meia – pilhas era utensílio bastante usado, também) bastou clamar ao mundo que jogava sempre com a mesma chave no totoloto porque, em termos estatísticos, era igual a qualquer outro conjunto de números. Jacinto ouviu, e, pouco tempo depois, sem testemunhas, actuou, bordoando com vigor. A terceira vítima fora alguém que, para além de se desviar sempre para a esquerda nos passeios [quando a norma social obedece ao código da estrada e ordena que se encoste à direita], ainda dizia que os Roxette eram casados um com o outro. Foram menos três vilões mete-nervos a chagar a população inocente com as suas posturas, teorias e et ceteras diversos. Ciente de que, para mentes mais obtusas, a sua acção justiceira poderia encaixar numa zona cinzenta da moral e humanismo, Jacinto fazia questão de deixar pequenas pistas que indicassem que o crime tivera um daqueles motivos que, apesar de tudo, merecem considerável aceitação alheia. É que, a ser apanhado, Jacinto não queria parecer um daqueles psicopatas que matam pessoas sem ser por dinheiro ou por motivos passionais. Jacinto não queria nada ser associado a essa canalha demente. tr3s65

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J’ai faim! Merde, j’ai faim! Era com esta

Enquanto se equipava devidamente,

lembrança de um filme francês, ou pelo menos a

pensava nas palavras da ex-mulher antes de sair

sentir uma convicção parecida com a de alguém

de casa. “Não te vais safar!”, disse ela com um

num cenário amarelo torrado, em mangas de ca-

sorriso triunfal antes de bater de vez com a por-

misa, perigosamente ao pé da salamandra, (o

ta. Com efeito, a despensa de Elliot estava vazia,

que não acontecia no filme, mas também não

não porque passava necessidades, mas porque

importava porque como já foi referido, era mais

era desleixado. Estava com uma fome do caraças

uma convicção parecida, que outra coisa) com a

e já só tinha no frigorífico um naco de pêssego

barba por fazer, com a devida consequência de

em calda, que misteriosamente ainda mantinha a

lhe causar comichão, que Elliot se debatia à uma

sua tonalidade artificialmente laranja choque. Já

da manhã numa noite de Inverno (Novembro…

na rua, o frio bateu-lhe como uma chapada da-

pode ser?) de segunda para terça. Deixar o con-

quelas de mão aberta e com balanço, encolheu-

forto do lar para ir buscar alimento era algo que

se por entre o néon vermelho do putedo da vizi-

o incomodava muito, mesmo fazendo o esforço

nhança e entrou no carro apressadamente. A

para se sentir pré-histórico e encarar aquilo como

viagem não seria muito longa até á roulote mais

uma aventura. Estava frio, mas quanto a isso não

próxima, mas mesmo assim preferiu esperar para

havia problema. A técnica estava apurada, fruto

que o aquecimento do carro fizesse efeito e de-

de um casamento há muito afundado, mas que

sembaciasse um pouco mais os vidros. O rádio

lhe deixou alguma sabedoria, como por exemplo

teimava em memorizar uma estação religiosa,

ir ás bombas de gasolina a meio da noite para ir

onde se faziam curas em directo e tudo! Por en-

comprar à sua mulher grávida uma bocata de

tre lombas claramente acima dos limites da lei na

atum. O truque era repetir um velho hábito de

zona escolar, fez duas rotundas, passou num via-

infância escolar, naquelas manhãs ainda de noi-

duto bordado de luzes brancas a acompanhar o

te, sem tirar o pijama em tons de um triste cinza.

desenho, e chegou ao destino sem encontrar um

Ir bem alcochoado, vestir uma camisola larga por

único carro na rua. O barulho do gerador da rou-

cima do pólo de algodão oferecido pela sogra,

lote devia chatear bastante as pessoas que mora-

entalar com as meias a parte de baixo, subita-

vam nos prédios em frente, mas numa atitude de

mente delegadas à constrangedora posição de

“antes eles que eu”, lá fez o pedido “super-espe-

umas ceroulas, para quando vestisse as calças

cial para embrulhar se faz favor”, comprou duas

por cima, as ditas, que com um pouco de boa

cervejas pelo triplo do preço do que num super-

vontade também se poderiam chamar de meias-

mercado e foi para casa.

calça, não subissem pelas pernas acima, como

naqueles sonhos em que uma centopeia nos tre-

pecial, lembrava-se das palavras da ex-mulher:

pa por aí adiante.

“Não te vais safar!” “Não te vais safar!” Amaldi-

Enquanto comia a bifana, nada de es-

çoou-a duas vezes entre cada dentada.

40

tr3s65


ANother One biTEs tHe duSt

v

pedRo MiguEl

tr3s65

41


Os Dois Caras de Cavalo por Ana Queiroz

OZZ RO IR I E E U U Q Q A NA AN A

OS DO IS

C ARAS

O L A V A DE C poopp lsseeaa p e l e h c h c o ã o ç trraaçã

iilluusst

As minhas pernas assemelhavam-se, fus-

tigadas e pesadas, quase em papa, às dos cavalos que corriam à minha frente. Eram os segundos invasores em pouco tempo, admitindo que me falaram de coisas reais e que estive longe de línguas fantasiosas, errantes, etc, etc, daquelas espalhadas pelos cantos escuros da Cidade, onde normalmente parava... Mas esta parte não me interessa assim tanto; ou melhor, tento perceber agora o que me interessa e o que vou pôr de parte (1- não me posso esquecer do nevoeiro)... Vou começar de novo. A tremura que sentia no corpo era parecida com a dos cavalos que chegavam mas só podia justapô-las com razão se os animais fossem mais velhos ou se estivessem tão cansados como eu. Por algum motivo, olhava mais para os cavalos que para as silhuetas que os montavam; e eram muitos, apesar de parecidos, e de um conjunto de massas muito juntas, eram às centenas. Todos envolvidos na mesma crença e disposição embora houvesse duas frentes distintas, separadas por natureza, vim eu a descobrir mais tarde, sem que me interessasse realmente sabê-lo, digo-o sem medo,

42

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Aliás, era dos únicos seres que não entrava numa

andava entre eles, mas disso falo-vos adiante para

igreja naqueles tempos, simplesmente porque me

não pensar muito no assunto e não me amargura-

esquecia de o fazer, mas torço a língua sentindo-

rem as escleróticas, amarelas da cirrose. Num cer-

os a reconhecer-me, com as mãos gulosas, os

to sentido, e para vos explicar melhor o que sentia

olhos enormes. E depois como se já não bastasse

por toda aquela devastação que avançava à minha

a presença dos tipos, A perseguição; digo-vos, In-

volta, fui um sortudo por não ter tido tempo para

justa e idiota, como vão perceber pelo meu discur-

me ligar a ninguém naquela cidade; era um mero

so raquítico e sem sentido. Mas na verdade, digo-

desconhecido com ar de louco a vagabundear

vos voltando atrás, Não me perseguiram porque

eternamente; provavelmente daquelas pessoas

passava despercebido, não sei se por me fazer de

que parecem abandonadas pelo mundo e que

mudo e acenar com a cabeça num tom de ámen,

chamam o nevoeiro a si (ponto 1 lembrado, de-

aleluia ou se pelo meu ar inofensivo e abandona-

pois torna-se mais concreto), e sei bem que o ce-

do, quase de um Cristo na Cruz à espera de não

nário era horrível, mas estava cego ainda na carni-

sei o quê com a boca aberta. Ou talvez vos esteja

ficina dos meus e nada me fazia arregalar os olhos.

a esconder informação!...mas corrijo-me imedia-

Mas adiante! Como vos tentava explicar no início

tamente, Começaram a perseguir-me quando me

ou talvez só o tenha pensado, acreditei sempre

apercebi do meu rosto e isso, prometo-vos, fica

que o meu ar desse nas vistas, pelo menos para

mais claro lá para a frente. Dizia a mim mesmo há

me matarem sem hesitação numa situação como

bocado, que se não fosse aquele abismo, ou infer-

esta, porque o líder dos tipos que tinham invadido

no labiríntico para ser mais preciso, num grau de

primeiro a cidade parecia-me tão louco e abando-

precisão idiota e enublado, a minha vida não tinha

nado como eu e tínhamos aliás, enormes parecen-

valido de nada, tinha acabado um tipo comum,

ças físicas, embora não vos consiga dizer precisa-

chato e informe com as mesmas varizes de agora,

mente quais. A verdade era que podíamos ser

mas chato e informe semelhante a uma pasta de

irmãos e talvez tivesse sido isso a urgir por um

arroz a cair num prato de família. Estes tempos

manto esfarrapado sobre os ombros e a cabeça

deram-me imagens que os meus olhos tentaram

quando os via chegar. Gostava de ter aproveitado

expelir e depois aceitaram tentando lembrar mais

a fuga de algumas famílias, se conhecesse algu-

com avidez! Posso considerar-me um vasto arqui-

mas delas. Os que conseguiram escapar meteram-

vo histórico, se estou vivo..., Embora saturado de

se em carroças pela noite fora já durante a caçada,

emoções e provavelmente adulterado até à última

e até me tentei meter num desses carros, confes-

casa por essas malditas, tão queridas e cuidadas

so! Mas depois reparei na fronte desvairada dos

por mim com especial aprumo, até ao dia de hoje.

cavalos que os levavam e detive-me cheio de

Sempre me perguntei por que não me mataram

medo; Antes levassem burros ou outros animais

no primeiro momento em que me cruzei com eles,

mais atarracados que me metessem menos medo,

eu que me passeava entre os invasores e os cadá-

mas logo tinha que me deparar com aquela famí-

veres; mas provavelmente era só um vulto, daque-

lia abonada (cambada de excêntricos!), levada por

les que perdem a capacidade de se manter na in-

dois horríveis cavalos. Acho que eles estranharam

visibilidade para sempre e de repente estão à vista,

a minha desistência porque lhes tinha pedido por

partindo do princípio que essa espécie de vultos

tudo que me levassem antes de encontrar os mal-

existe, mas insisto neste tema porque um dia apa-

ditos cavalos, e tinha caído no ridículo ao ponto

nharam-me e levei pelas semanas todas em que

de chorar, mas a verdade é que não tinham muito tr3s65

43


tempo para estranhar quaisquer atitudes. Lembra-

o tempo não era preciso na cabeça destas pessoas

va-me do rosto do líder e, como éramos parecidos,

que morriam ou esperavam pela morte...e que na

tremia só de pensar que me confundissem com

minha, não é preciso desde o único acontecimen-

ele. Sabia à partida qual era o meu destino; iça-

to tenebroso da minha vida, e digo-vos mais ainda

vam naqueles dias as primeiras jaulas na catedral

que o que não é dado com certezas e dito que não

de Mughler. E interrompo um bocadinho aqui para

é dado com certezas, não interessa realmente; e o

vos dizer que gostava de vos contar tudo isto de

que não é dado com certeza somente, interessa

uma forma pragmática, com uma lista de aconte-

mais que tudo, sobretudo quando é antecipado

cimentos ou qualquer outra coisa, mas a começar

por interrogações. De onde vinha antes de cair

com uma pequena introdução bela e cuidadosa-

neste molhos de cobras? Antes da invasão dos Ca-

mente orlada por adjectivos, dizendo: A cidade

ras de Cavalo?...Não sei se querem de facto saber,

chamava-se Mughler, era uma terra encantadora,

mas deixo aqui esclarecido que fui um homem de

cheia de luz e catedrais esmagadoras, se não fos-

bem, com família e que a minha vida se movia di-

se como digo, tinha ficado esquecida na história

reita como os ponteiros do relógio. Mas chega,

como qualquer outra cidade esquecida sem que-

não tenho tempo para recordar e passar tempos

rer; e depois as listagens dos acontecimentos e

infinitos a pensar na morte da bezerra, ou na mor-

por fim a dos mortos... Mas não vos quero maçar

te dos cavalos, porque me apetece falar de cavalos

com a materialidade da vida porque tenho mais de

para me distrair. Vamos falar dos meus cavalos, ou

530 anos, e isso da materialidade a mim não me

não, vamos falar dos meus achaques bem vindos,

interessa, quero dar-vos pistas para jogarmos, de

coisa que apesar do drama que se instalava na Ci-

forma a que se concentrem primeiro noutras coi-

dade, permanecia a despontar-me dos cabelos

sa, que na verdade não sei bem quais são. Digo-

como em qualquer outro tempo. Semanas depois

vos só que se concentrem nas pequenas histórias

de ver as jaulas erigidas na fachada da Catedral e

e que não se desviem delas por um segundo.

os Caras de Cavalo a olharem para cima satisfei-

Digo-vos também que me custa dar-vos matéria

tos, percebi que tinham pessoas lá dentro. Não

tão vaga, mas de outra maneira concentravam-se

eram aquelas tipas que usavam lenços na cabeça e

em contextos e datas e digo-vos, com certeza, que

que andavam muito encolhidas pela cidade antes dos invasores chegarem, mas o séquito do líder. Uma das jaulas continuava vazia com o nevoeiro que se alongava pela cidade a entranhar-se nas grades, e a mim parecia-me óbvio o que me aguardava; não tinha remédio senão deixar-me levar pelos homens das duas frentes, cheios de forças para recuperar a liberdade daquela cidade, ou o que entendiam por liberdade nos seus próprios padrões. Só pensava em arranhar-me até deixar de ser parecido com aquele reizinho, o tal líder maluco que andava fugido. Se soubesse por onde andava, se tivesse uma única pista, tinha-o denunciado, ingloriamente, mas com um ar solene, como ladrão da minha identidade; e nas primeiras

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tr3s65


noites parecia-me vê-lo passar do cimo da cate-

rei ver, Só eu poderei dar luz, Eu, a fonte de toda

dral, mas quando começava aos berros, ameaça-

a cor e de todas as formas; e continuei noite fora

vam-me com mais uma tareia valente e aí calava-

até que o nevoeiro cerrasse ao ponto de não se ver

me; ao mesmo tempo era uma ideia estúpida a de

nada. A multidão de Caras de Cavalo ajuntava-se

me irem buscar e devia ter-me lembrado disso já

perto da catedral gritando para que me libertas-

que tocava nas nuvens, mas só cheguei a essa

sem e ouviam-se homens a chorar, parecia-me que

conclusão depois e a algum custo. O líder, o tal

o corpo dos moribundos enjaulados, um de cada

tipo que odiei até à morte durante os quatro dias

lado, tinha cessado de lutar pela vida. Na verdade,

em que estive enjaulado, tinha levado para ali

há já umas horas que tinha ouvido parar os sussur-

aqueles tipos fanáticos e digo-vos sem problemas

ros, as orações, as perguntas desesperadas que-

que mais me pareciam aborígenes limpinhos sem-

rendo saber se eu era mesmo a reencarnação de

pre em ritos, pela noite e dia fora. Tinham costu-

Cristo. Penso até ter ouvido, aquelas vozes soltas

mes bizarros, podiam-se casar várias vezes e ou-

no nevoeiro perguntarem-me onde estava o líder;

tras coisas do género que não se viam em qualquer

diziam que não me conheciam a voz, e pergunta-

paragem. Talvez fosse por isso que tinham levan-

vam por que não os tirava dali. Resta-me contar-

tado tanta polémica, mas não, na verdade era

vos que os Caras de Cavalo se juntaram para des-

tudo uma questão de poder, que na altura tinha

cer a minha jaula com um gancho pesado e que

que estar numa das duas frentes principais. Como

quando senti a jaula bater no chão, só tacteei cor-

consegui sair daquela jaula? Mais uma vez me per-

pos a fugir aos gritos, atarantados naquele espaço

guntam vocês coisas inúteis que não vos interes-

encoberto. Também eu corri sem saber por onde

sam em nada para as vossas parcas vidas. Tinha

ia, mas quando senti erva seca a estalar-me debai-

ainda umas ideias anteriores ao enjaulamento,

xo dos pés, quedei o corpo e permaneci enrolado

que apesar de não conseguir produzir naquele ins-

no chão como um animal, durante muito tempo.

tante, podia recordar por uma questão de confor-

Lembrei-me que me tinha esquecido de contar os

to e aparência, como de resto tinha planeado se

cadáveres para ser um arquivo útil de informação,

alguma vez me encontrasse naquela situação. Não

mas para mim eram apenas seis já contados há

usei nenhuma delas; mesmo com a cabeça atarra-

algum tempo.

cada de medo, consegui olhar para o nevoeiro e abraçá-lo, abraçá-lo, como se nunca tivesse visto nevoeiro. À altura dos céus, de onde via os outros prisioneiros famintos e desgraçados, quis falarlhes do que amavam cegamente, do que os poderia vir a reavivar, e comecei dizendo: Eu sou Cristo, e nesse instante senti-me cheio de sorte, como se tivesse que ser recompensado pelo acaso depois de tanta coragem. Reafirmei a voz no meu corpo desgastado e voltei a repetir-me olhando para o nevoeiro que ficava denso, Eu sou Cristo, Avizinha-se uma grande praga onde todos os que me perseguiram vão cegar e a cegueira será também para todos os que não me libertaram, Só eu podetr3s65

45


Tínhamos perdido. Ao fundo, roncando

nhos erguidos, mas de nada valeu a afronta, os

aos solavancos, afastava-se o comboio lento. Es-

homens passaram por ele silenciosos, como se

tava macerado pela exposição solar de quase

Eric fosse invisível, um fantasma indiferente pros-

quatro anos sem restauro. Dentro dos vagões,

trado no caminho daqueles que não pensavam

amontoados uns sobre os outros, ombros caídos,

em nada mais do que o regresso. E a verdade era

os últimos camaradas sobreviventes que tinham

essa: já não havia motivo para confrontos. As

conseguido embarcar em Sedan fitavam o cais de

balas e os murros tinham cessado e cada um só

embarque. Ninguém nos acenava, não havia sor-

desejava regressar a casa, como se de repente

risos e Eric, a meu lado, ressentido pelo atraso e

todos os milhares de homens ensandecidos tives-

pela indiferença dos que partiam, dizia-se trans-

sem ficado cordatos e vissem as ofensas e a guer-

parente.

ra como coisas de um mundo ao qual já não queEra inútil esperar por um novo trans-

riam pertencer. Para eles, não sei se também para

porte. Aquele tinha sido o último comboio a par-

nós, aquilo não era o sossego, mas era a paz, e

tir para leste, daqui em diante as fronteiras se-

ao fim de quatro anos de contenda, nada haveria

riam reentregues às autoridades francesas, e

com mais valor do que a paz.

estas iriam fechá-las para sempre. O melhor seria

caminhar. Mesmo tendo que percorrer os quase

dias, já não víamos a terra incendiada das fron-

500 quilómetros que nos separavam de Weimar,

teiras das Ardenas, as árvores outonais quase

ainda havia tempo para chegar a casa antes do

que geravam esperança e as fileiras de refugia-

Natal.

dos tinham desaparecido. Tudo isso fez com que

Arrastámo-nos durante muitos outros

Não havia muito que motivasse o re-

sentisse algo aceso no coração, estávamos na

gresso; Eric já não tinha família, perdera a mãe

nossa terra, a casa em Weimar cada vez mais

bem antes do início da guerra, o pai, ausente

próxima e as duras memórias pareciam-me re-

praticamente desde o seu nascimento, nunca

motas. Apesar de tudo, preocupava-me a ima-

existira na realidade e o seu único irmão, com

gem de Eric, logo à minha frente: marchava des-

quem tinha sido criado, morrera logo nos primei-

compassado, os braços deambulavam a cada

ros meses da guerra.

passada trôpega, o uniforme em fio desagrega-

va-se aos bocados. Lia-lhe no olhar baço que as

Olhando em redor, via que tudo muda-

ra nestes últimos anos, a terra deixara de ser cas-

suas

tanha e viçosa; caminhávamos sobre cinzas, as

àqueles que perderam as causas e depois de tan-

poucas árvores que ainda se mantinham de pé

tos anos a destruir e a matar, parecia que já não

estavam carbonizadas. De vez em quando, cruzá-

sabia o que construir, ou até como fazê-lo. No

vamo-nos com as filas esfarrapadas dos prisionei-

seu silêncio letal, nos gestos cada vez mais des-

ros desarmados que regressavam a França. Eles

coordenados, percebi que Eric ainda estava na

não olhavam para nós. Num desses recontros,

terra de ninguém e talvez não quisesse verdadei-

Eric decidiu enfrentar alguns deles, despiu o dól-

ramente sair de lá.

man e plantou-se em frente à coluna com os pu46

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memórias contiuavam vivas. Pertencia


“A morte é silenciosa. Não tenho nada a dizer sobre a morte.” João César Monteiro

O CAMINHO PARA WEIMAR Mário Bruno Pastor fotografia Ângela Berlinde

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Se fosse mais perspicaz, perceberia en-

a situação, inverter o rumo do tempo e regressar

tão que Eric deveria ser como um espelho, a ima-

ao passado, onde as possibilidades estariam ain-

gem da minha própria condição, mas acreditava

da todas em aberto.

que era diferente, que poderia reencontrar o ca-

minho normal até ao passado, refazer as coisas

como nós, tinha outro destino, mas era igual. Ele

todas como se a guerra e a morte nunca tivessem

queria ir para França, nós faziamos a viagem para

existido, como se fosse igual, ou até melhor, do

Weimar, mas todos nos movíamos no tempo e

que os camaradas calados que partiram nos com-

não no espaço. Não procuravamos salvar nada,

boios. Era como se tivesse deixado no lugar vazio

nem regressar às trincheiras, desejávamos encon-

da alma a grande ilusão de ter sobrevivido.

trar a idade anterior ao início da guerra, regressar

Não tínhamos caminhado muito para além de

à família, ao lar e à vida de 1914, reorganizar

Kriesfeld quando nos deparámos com o que res-

tudo sem ter em conta a desordem que se se-

tava de um regimento deslocado. Eram austría-

guiu, sem aceitar a mudança. Por fim deixámos

cos e estavam mais ou menos dispersos pelo ca-

os austríacos para trás, e prosseguimos caminho,

minho. Eric passou por eles, não queria conversas

rumo a Weimar. Chegaríamos no Natal.

com velhos aliados de derrota, eu, no entanto,

precisava de parar. Não pelo cansaço, que em

começarmos a avistar, primeiro ao longe, depois

bom rigor – pesado rigor, relembro agora – me

bem mais perto, os negros telhados íngremes e

entorpecia o corpo, mas porque na verdade achei

as torres góticas da Stadtkirche. Entrámos na ci-

pouco comum ver aqueles soldados tão longe de

dade ao anoitecer, exactamente no dia do con-

casa, tão fora do seu lugar. Sentei-me junto a um

certo de Natal, concerto triste, com o mesmo

deles, era um jovem tenente e, pela primeira vez

Bach de todos os outros concertos anteriores à

desde Sedan, julgo que se calhar até antes disso,

guerra, mas desta vez, as palavras cantadas - wa-

falei com alguém que não fosse Eric. Explicou-me

chet auf, ruft uns die Stimme - soaram-me mais

que se tinham mobilizado para norte depois de

fundas: acordemos, a voz chama-nos.

terem sido dizimados em Veneto pelos italianos.

E um a um, pelas ruas iluminadas, surgiram ou-

Como não se permitiram assinar a rendição, pro-

tros soldados imundos, olhares vazios e gestos

curaram o caminho para se juntarem às forças

morosos. Juntávamo-nos e caminhávamos em si-

alemãs e prosseguir o esforço na Frente Ociden-

lêncio na direcção da música magnética. Como

tal. Agora estavam a reagrupar e marchariam

sonâmbulos, reconhecíamos mecanicamente os

para França. Não sei como, mas não me foi pos-

rostos uns dos outros, Eric, saudou o próprio ir-

sível explicar-lhe que já não havia guerra. O te-

mão, mas muitos mais iam chegando. Quando

nente, cristalizado noutro tempo, não aceitava a

percebi a verdade da nossa situação, vi que já

derrota. Preferia fantasiar sobre a urgência do

éramos centenas, batalhões, regimentos inteiros,

seu pelotão, os salvadores da germanidade, da

e nenhum de nós, afinal, tinha um espaço para

civilização, dizia ele. Acreditava e fazia os seus

onde realmente regressar.

homens acreditarem que ainda era possível salvar 48

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Senti que o tenente austríaco era afinal

Não foram necessários muitos dias para




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