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DISTRIBUIÇÃO GRATUITA
PINTO EDUARDO ELMANO MADAÍL FERNANDO RIBEIRO JOÃO PEREIRA COUT INHO JOSÉ LUÍS PEIXOTO PASTOR MÁRIO BRUNO NUNO CASIMIRO PEDRO SENA-LINO VALTER HUGO MÃE VASCO BARRETO
ON-OFF
fotografia
Rockie Nolan
EDITORIAL
De todas as mudanças por que a 365 passou ao longo da sua existência, a que o presente número protagoniza é, provavelmente, a mais extrema. E não falamos de conteúdos, desta vez, mas do caminho que a menina dos nossos olhos passará a tomar até ao leitor: debalde as silvas e os tojos corrompendo a alvura das suas castas pernas, irá agora pelo atalho mais curto; passará a ser de distribuição gratuita.
Sabemos que aquele macaco mecânico que fala castelhano e dá brindes, a máquina das latinhas de pistácios e de amendoins picantes e a geringonça dos peluches devem estar a dar vivas e a gritar vitória, pensando que, assim, a moeda de dois euros, por falta de préstimo, lhes acabará nas respectivas ranhuras, mas não nos importamos: o ressaibo não mora aqui. Tudo o que queremos é levar os autores que generosamente nos confiam os seus trabalhos ao público mais vasto que nos for possível.
Portanto, este número estará à disposição sobretudo em livrarias e alguns bares – sendo apenas necessário, para ficar com ele, pegar nele, sem senhas, abre-te-sésamos ou ósculos em código nas bochechas rosadas e expectantes de quem quer que seja.
E para comemorar a mudança, decidimos revisitar alguns números idos e recolher deles trabalhos que, de uma forma ou de outra, nos marcaram: eis-vos, pois, perante uma espécie de best of . E digo espécie e não best of sem rodeios porque esta é apenas uma das selecções possíveis, dada a quantidade e o interesse do material que fomos acumulando.
A acrescentar ao lote, um inédito – pelo menos nestas páginas –: o conto «Márcia Fúnebre», de Pedro Sena-Lino, publicado originalmente no volume «Museu de História Sobrenatural» (Autoria, 2007), mas revisto para a presente edição.
António Gregório 365
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DIRECTOR Fernando Alvim alvim@revista365.com EDITOR António Gregório a.gregorio@sapo.pt EDITOR ADJUNTO Carina Fonseca carinadafonseca@gmail.com EDITORES HONORÁRIOS Vasco Barreto José Luís Peixoto GRAFISMO Homem Invisível DEPARTAMENTO INTERNACIONAL Pedro Lourenço plourenco@revista365.com DEPARTAMENTO ASSINATURAS Rossana Patrícia rossanapatricia@revista365.com INTERNET Raio X — Publicidade e Marketing www.raiox-pub.pt CÚMPLICES Alex Gozblau, Ângela Berlinde, Aslisu Turkmen, Eduardo Pinto, Elmano Madaíl, Felicia Simion, Fernando Ribeiro, Joanna Kudzbalska, João Pereira Coutinho, José Luís Peixoto, Mário Bruno Pastor, Micael Póvoa, Nuno Casimiro, Pedro Sena-Lino, Rockie Nolan, Vasco Barreto ENDEREÇO Apartado 15154, 1074 - 004 Lisboa TELEFONES 91 625 79 29 93 359 70 06 96 312 88 41 CONTACTOS feedback@revista365.com direccao@revista365.com WWW www.revista365.com revista365.livejournal.com revista365.blogspot.com ASSINATURAS assinaturas@revista365.com PUBLICIDADE publicidade@revista365.com IMPRESSÃO Ginocar TIRAGEM 15 000 exemplares PERIOCIDADE Bimestral DEPÓSITO LEGAL 000 000/07 PROPRIEDADE Cego, surdo e mudo — produções multimedia MECENAS Robin Hood CAPA Rockie Nolan 365
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01 Editorial 04 Biografias 06 Eduardo Pinto Porque não gosto de maestros 10 Elmano Madaíl Ad aeternum... 14 João Pereira Coutinho As palavras propriamente ditas 22 Micael Póvoa The effects of indie music 24 Mário Bruno Pastor Os cães de Olenka 30 365 Serviço público 32 valter hugo mãe sexta carta 34 José Luís Peixoto O grande amor do mudo 38 Nuno Casimiro C.S.I. Coisas sem importância 45 365 Brinde 48 Vasco Barreto O Soldado, crónica de um colecionador 54 Fernando Ribeiro Visita sobre o bairro das pessoas 58 Pedro Sena-Lino [Márcia Fúnebre]
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Joanna Kudzbalska
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BIOGRAFIAS
FOTOGRAFIA FELICIA SIMION
Eduardo Pinto é o pseudónimo de um Eduardo cujo apelido real é parecidíssimo com Pinto. «Porque Não Gosto de Maestros» foi publicado no número 20, em Maio de 2005. Elmano Madail nasceu em Águeda há 38 anos. É jornalista do JN. O conto «Ad Aeternum...» foi publicado no número 26, em Maio de 2008. Fernando Pinto do Amaral nasceu em Lisboa, em 1960. É poeta, professor, crítico literário e ensaísta. O seu livro mais recente é um romance, chama-se «O Segredo de Leonardo Volpi» (Dom Quixote, 2009). O conto «Oceano Pacífico» foi publicado no número 23, em Abril de 2006. Fernando Ribeiro é músico dos Moonspell e poeta. O seu mais recente livro de poemas chama-se «Diálogo de Vultos» (Quasi, 2007). O conto «Visita Sobre o Bairro das Pessoas» foi publicado no número 19, em Fevereiro de 2005. João Pereira Coutinho nasceu no Porto, em 1976. É formado em História, na variante de História da Arte e pós-graduado em Ciência Política e Relações Internacionais. O seu livro mais recente, «Avenida Paulista» (Quasi, 2008), reúne algumas das crónicas que publicou na imprensa, nos últimos anos. É autor do sítio www.jpcoutinho.com. O conto «As Palavras Propriamente Ditas» saiu no número 7, no Outono de 2002. José Luís Peixoto nasceu em Galveias, distrito de Portalegre, em 1974. É poeta e romancista. A sua mais recente recolha de poemas chama-se «Gaveta de Papeis» (Quasi, 2008), e o seu mais recente romance «Cemitério de Pianos» (Bertrand, 2006) – estando anunciado um novo para o fim do ano. Mas é sobretudo por ter sido editor da 365 que José Luís Peixoto é conhecido. O conto «O Grande Amor do Mudo» foi publicado no número 14, em Abril de 2004. Mário Bruno Pastor nasceu no Porto em 1976. Padece de bissextismo e custa-lhe a aceitar que existam calendários para os anos vindouros. A par disso tem publicado poesia em edições literárias colectivas. O conto «Os Cães de Olenka» foi publicado no número 24, em Março de 2007. Nuno Casimiro nasceu em 1977, em Coimbra, viveu no Porto e agora vive em Santander. É autor de «Histórias de embalar» (Quasi, 2000). O conto «CSI – Coisas Sem Importância» foi publicado no número 24, em Março de 2007.
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Pedro Sena-Lino nasceu em Lisboa, em 1977. É poeta, crítico e formador de escrita criativa. O seu primeiro romance, «333», será publicado em Julho, pela Porto Editora. O conto «Márcia Fúnebre» é inédito nas páginas da 365. valter hugo mãe nasceu em Angola, em 1971. Com o romance «o remorso de baltazar serapião» (Quidnovi, 2006), venceu o Prémio José Saramago, tendo publicado, depois desse, «o apocalipse dos trabalhadores» (Quidnovi 2008). Como poeta, tem parte da sua obra reunida no volume «folclore íntimo» (Cosmorama, 2008). «sexta carta» foi publicado no número 14, em Abril de 2004. Vasco Barreto foi um dos editores que passou pela 365. O conto «O Soldado» foi publicado no número 22, em Novembro de 2005.
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empenham um Muitos são os ofícios que des nço da humanipapel fulcral no progresso e ava ximos a medicidade. Temos como exemplos má os, a biologia na, a afinação de carros quitad Contudo, outros molecular e o coleccionismo. ncia prática é almétiers existem cuja sua importâ pior do que isso tamente diminuta, senão nula. E em amplamente é o facto de tais profissões ser , considerada ade respeitadas em toda a socied os, obviamente, esta num eixo transversal. Falam os – porém, de um dos mais inúteis trabalh humanidade já dos mais prestigiantes – que a conheceu: ser maestro.
a oportunidade de me desNo passado mês de Dezembro, tive , ornos pouco claros, cujo conteúdo locar a Veneza, numa viagem de cont que sim, nto, Adia lar. não vou aqui reve por razões de segurança pessoal, s, italiana peripatetiquei-me por viela ro Avei na ia estad a minh a durante mbrei as Rele tras. sinis ias logg e rias judia ruas obscuras, cafés famosos, rech e o seu quase amor por Tadzio, passadas de Gustav von Aschenba inHem ese, Malt o Cort e Woody Allen lembrei Visconti e Dirk Bogarde, nder pree com não de te men ente pend gway e o bom leão. Tudo isto inde os bonita que Aveiro, onde, ao menos, em que é que esta cidade é mais ao Mio Sole O o ceiros não cantam proto-gondoleiros que guiam os moli berros. ntrava-me sentado na esNuma determinada terça-feira, enco do e do pelo Sirocco, a beber um traça planada do café Florian, hipnotiza cana velho um a San Marco, quando a observar a luminosidade da Piazz su iato, imed De . anni a ir ver Don Giov lha e amigo italiano me desafiou des virtu as e sobr stra pale uma erir prof pus que o conhecido allenatore iria prontamente fui instruído que o dito quase melódicas do catenaccio, mas que uma ópera do gigante Wolfgang Don Giovanni mais não se tratava undo admirador e conhecedor. Acei Amadeus Mozart, de quem sou prof fins s meu dos lica alcoó ia oton a mon tei o convite como forma de quebrar reconstruído La Fenice. de tarde venezianos e lá rumei ao escusados detalhes a minha chega Serve este intróito para descrever com ente ivam efus , ente tualm como habi da triunfal ao La Fenice, onde fui, ou três pessoas que devo conhecer duas mais por e eiro port pelo saudado uro. obsc de algum lado mais ou menos , ópera foi, como sempre, supina. Aliás Posto isto, cumpre-me dizer que a o visto tinha já que logo lembrei-me ao soarem os primeiros acordes, pedido, aos berros, para tocar o Papa até o-lhe tend , lade Alva em Mozart geno.
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verFalemos, então, do que me faz tergi stro. mae do ão funç a nto: assu e sar em redor dest mano convicto, Sinceramente, e sendo eu um meló a tão bem ebonunca a percebi. Ou melhor, perc no preséinho burr do e como a presença da vaca . Ora, sório aces exto cont mero pio, ou seja, num cumpre o se do quan e ltant revo de tem isto nada g in its right pladesígnio de Thom Yorke: everythin não se verifica tivo, intui é ce. E tal desígnio, como é o tipo que stro mae o que vez nestes casos uma ou nada fez o pouc do quan s, todo s louro colhe os para isso. Senão vejamos. ele, só A primeira ovação é sempre para a não Aind . cena em r entra de pelo simples facto palmas e com er com a está já e o dign de fez nada adeiro sentido mais palmas. A única coisa com verd idade – seja activ sua a que um maestro faz em toda – é aquele vivo ao ces rman perfo em ensaios ou em subida de brainspirar profundo, seguido de uma música comea ços, em um e dois e três e zás, que coordenação uma ão, ce. Aí sim, há alguma funç umentistas instr de nas deze que útil que permite nte ao mescomecem a tocar uma obra exactame como se que, o mo tempo, sem falsas partidas, ou o nista ussio perc o que sabe, é algo difícil. Claro s estra orqu nas que s ento elem – tipo dos pratos um de a a pont também não fazem praticamente r exactamente chavelho e são pagos – podiam faze com ar mais tipo o ser de o mesmo. Mas não. Tem certa soleniuma erir conf para o, velho e respeitad a mexer a batuta dade ao certame. Depois, anda ali r da melodia – de um lado para o outro, ao sabo mo de sentido míni o com coisa que qualquer tipo que passou dizer de ter sem r faze rítmico poderia School of Music pelo conservatório, pela Guildhall emia de MúAcad and Drama em Londres ou pela lhe muda as que ante ajud sica da PSP –, tem um 365
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páginas da partitura – o que indicia que até pode não saber ler uma pauta – e, por regra, usa um ar grave e sério para as partes pesadas da estrutura musical e um ar aborboletado para as partes mais aligeiradas. Durante a obra que rege, deve, provavelmente, ir pensando nas compras que tem que fazer, no fraque que veste e que lhe fica a matar, vai olhando lascivamente para a segunda violinista – um clássico – e tudo isto sob a veste disfarçante da mais absorvente compenetração. Algumas horas mais tarde arrisca-se a ser ovacionado de pé. Nada de mais, quando comparado com o que vem a seguir: flores, mais aplausos, calorosos amplexos acompanhados de frases do género “brilhante”, “magistral”, “dotou esta ópera de uma nova vida”, entre muitos outros elogios absolutamente imerecidos, quando o que o batutas fez é quase igual a zero. Honrosa excepção nesta absorção de méritos é apenas o reencaminhamento de parte das estrondosas ovações mencionadas há pouco para os verdadeiros executores que são os instrumentistas. Depois, chegam as regalias, os salários principescos, o nome que no disco se sobrepõe ao do próprio compositor e aquela aura quase mística que se traduz muito bem na frase que se diz a um próximo: “devias ir ver esta sinfonia, o maestro é fulano”. Como toda a gente sabe, isto é verdadeiramente revoltante e ultrajante: insulta os compositores e a sua memória, insulta os instrumentistas e o seu virtuosismo. Glorifica-se o intermediário, esquece-se o produtor da matéria prima e o comprador final. Jean Baptiste Say – que esteve para ser maestro – e Karl Marx, esse melómano, por certo que dão voltas na tumba com isto. Eu próprio não escondo o meu incómodo. Maestro, caros leitores, só há um: o Rui Costa. k
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ELMANO MADAIL
Ad Aeternum… ilustração ALEX GOZBLAU
Militar medíocre inflamado por sonhos imperiais nunca cumpridos, num fracasso atribuído a difusa conspiração judaico-maçónica ordenada pelo Kremlin, simpatizante professo da disciplina teutónica e tão obsessivo como Kant pela pontualidade, o pai de Arlequim tornara-se, com a viuvez súbita e a gota inclemente, obstinado no controlo do tempo.
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Austero, permitia-se um único prazer: coleccionar máquinas para aferir o tempo gasto. Com muito método e maior investimento, o cronófilo castrense acumulou centenas, senão milhares, de relógios. De toda a sorte e feitio, com origem e sofisticação diversas, no intuito do rigor absoluto na medição dos instantes. Adquiriu, até, como corolário da sua excentricidade, uma réplica do Astrário de Giovanni Dondi, mais perfeita ainda do que a exposta no relicário suíço de La Chaux-de-Fonds, empenhando no desvairado negócio todas as jóias legadas pela esposa suicida. A vetusta residência, partilhada com o filho único, Arlequim – suportado com menos complacência do que as dores nas articulações –, foi enchendo, até à saturação do espaço disponível, de cronómetros sem conta. Neles se dedicava o velho coronel, atirado para a reforma compulsiva na sequência do saneamento político que o tomara por fascista, a regular o compasso dos engenhos visando a sincronia total. Com o monóculo de ourives rente ao globo ocular e um funil cravado no ouvido, vigiava-lhes a rotação dos ponteiros, auscultava-lhes o evoluir das engrenagens, saltitando de um para outro relógio e percorrendo todos numa urgência de estafeta, até os declarar afinados. Depois, sentado na penumbra da sala, aguardava, imerso num tiquetaque colossal e tomado de expectativa febril, pela hora certa, que faria soar um escarcéu de badalos e campainhas, anunciando aos gritos o dobrar do derradeiro segundo. Nunca conseguiu, porém, dominar a rebeldia dos mecanismos. E, no meio da cacofonia que assolava a casa vinte e quatro vezes por dia, o duro coronel, que degolara pretos nas savanas ultramarinas, entregava-se ao choro convulso da suprema frustração, antes de volver à zelosa tarefa do acerto radical. Debalde. Tamanha obstinação acabou por lhe consumir as energias e roubar as atenções ao herdeiro que, de qualquer modo, já pouco as recebia. E sempre por via da reprimenda colérica ou do tabefe impositivo. De modo que, internado aos 12 anos num seminário recôndito, a cargo
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de cenobitas dados à contemplação, Arlequim preferia a cruel praxe dos noviços à indiferença do pai e à sinfonia atonal da sucessão dos minutos. E, quanto mais obsessivo se tornava o velho oficial pela miragem da pontualidade extrema, desgastando-se em fúrias vãs com a insolência arrítmica dos relógios, menos ensejo tinha Arlequim de tornar a casa. No seminário, as tarefas sucediam-se no suave silêncio de uma vivência serena, consoante a rotação do sol e não das rodas dentadas. Se as houvesse, jaziam no único relógio do maciço prédio conventual, cuja construção orçaria quatro centúrias, talvez mais. Fora congelado, porém, numa hora indiferente por uma tempestade de raios e trovões, que lhe desarranjou o mecanismo de escape de cilindro e roda. Demasiado antigo para ter conserto. Mudo e quedo, pregado no torreão da biblioteca monástica, na paralisia de tal relógio reconhecia Arlequim o símbolo da sua liberdade. Provisória, todavia. Até que, no dia segundo de Agosto, deixou de haver relógios e pai, varridos todos por uma deflagração poderosíssima. Embora chegado na véspera, para gozo das primeiras férias estivais, Arlequim não estava em casa. Saíra pouco antes, para um passeio solitário nas ruas vaporosas dissolvidas pela canícula, escapando ao horror das chamas, à fragmentação do corpo explodido. Eludindo o destino do pai. O coronel obtuso fora vítima de uma fuga de gás, conforme garantia o relatório dos bombeiros locais, algo surpreendidos pelos estragos de uma só bilha de propano. Extinta a última faúlha, Arlequim deitou fora os fósforos e adormeceu. Com um sorriso estranho, atribuído, pelo bando que o adoptou, ao desnorte da orfandade recentíssima e à privação das primeiras férias em família. Puro engano, pois semelhante sorrir só acomete os virtuosos, esses poucos que logram descobrir a felicidade plena nas coisas mais simples e fundamentais. Como o silêncio. E a doce alforria de um amor filial improvável.k
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JOテグ PEREIRA COUTINHO as palavras propriamente ditas
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– Quando reparo na forma como olhas para mim, quando olhas e sabes que não olho, quando vês e reparas o que faço, quando faço o que faço, e então dizes as palavras que só tu sabes, e são sempre palavras de amor, e eu penso: então eu penso que tens medo de um silêncio, um silêncio qualquer a alastrar, e que o preenches como deves, ou achas que deves. Só então tu falas. – Como agora? – Sim, como agora. E quando não falas, são os teus pensamentos. – Mas tu não ouves os meus pensamentos. – Talvez por isso. Ouço o que não ouço. É o silêncio que eles fazem. O silêncio das tuas palavras perturba-me mais do que as palavras ditas, as palavras propriamente ditas. E então peço-te que fales, o que é a mesma coisa, porque não consigo suportar a ausência das tuas palavras. Ou a presença delas. Não sei. – Então o que queres que faça? – Apenas que faças. Que nunca digas o que fazes ou não fazes. Não me interessa o que pensas de mim, o que dizes ou consentes. É-me indiferente. – Talvez não gostes da minha voz. Talvez seja só isso. – Talvez seja só isso. Mas já é muito, para ser alguma coisa, não é? – É. – Mas gosto das tuas mãos. Acho que gosto apenas das tuas mãos. Viveria com elas o resto dos meus dias, mesmo sabendo que «o resto dos meus dias» é a pior expressão que existe, para além de ser muito tempo para existir, ou muitos dias, o que é a mesma coisa. – Talvez as faça em gesso e então serão só tuas. – A cópia das tuas mãos não será nunca as tuas mãos. Gosto de as sentir quentes ou frias, normalmente frias, e gosto quando me tocas o rosto, o que é uma intromissão, mas é bom na mesma e eu não me importo. – E gostas dos meus pés? – Acho os teus pés horríveis. Mas sou capaz de simpatizar com a tua boca. Talvez nem seja a tua boca toda, apenas o teu lábio inferior, quando o sinto entre os meus lábios, quando te beijo, ou melhor, quando não te beijo, sinto apenas os meus lábios sobre os teus, muito quietos que não parece nunca um beijo. – Gostas da minha coninha? – Não se diz isso. É feio. 365
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– E a coninha: achas a minha coninha feia? – Já vi coninhas melhores, se queres que te diga. Mas não é uma coninha feia. – Parvo. – Já vi coninhas vaidosas, alegres, simpáticas, arrogantes, cerebrais, intuitivas, cordiais, virtuosas, prazenteiras, românticas, bondosas, medonhas, infantis, ciumentas, vulgares, incompreendidas, entusiastas. A tua coninha só tem pouca personalidade. Não é grave. – O que queres dizer com isso? Olha para ela com atenção. – Estou a olhar. – Achas que lhe falta assim tanta personalidade? Olha bem. – Acho. – O que queres dizer com isso? – Personalidade. Atitude. É uma coninha passiva. Parece-me lenta. Nunca ouviste a história da coninha adormecida? Não sei se me entendes. É uma coninha mandriona, é o que é. – Uma coninha mandriona? – Não te rias. Não é motivo para risos. – Não me estou a rir. – Então é ela. Olha para ela. Ri-se de quê, esta puta interesseirona? – Ri-se de ti e da tua pichota ridícula. – Qual é o mal da minha pichota? É uma pichota elegante, dir-se-ia até distinta, helénica, vigorosa, apessoada, tranquila, apolínea, marmórea e culta. – É uma pichota pequena, meu amor. Sempre disse que era muito pequena, parece meio atarracada. O teu pai é asiático? – Não. – A tua mãe? – Não. – A tua pichota? – Já lá esteve e não gostou. – Só dizes disparates. Além disso gosto dela. Não fiques assim. É uma pichota gorda, gosto de a sentir entre os dedos, dura e quente, apertá-la quando te beijo, quando te vens nas minhas mãos. – A tua conversa dá-me nojo. És uma nojenta. Uma putinha nojenta. Devias ter tento na língua. Afinal, sou teu tio. – Que mania tu tens de dizer isso. Que és meu tio. 365
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– Sou. O teu pai é meu irmão. É um segredo muito bem guardado, ninguém sabe de nada. Mas o meu pai fodeu a tua família inteira, incluindo a tua avó, que era um anjo muito belo e muito triste, mas levemente distante. Normalmente, estava sempre a dois ou três metros daqueles que lhe saltavam em cima. O que foi? Não me batas na cabeça, merda. – Quero que te cales imediatamente com isso. És um mentiroso. Claro que és um mentiroso. Excitas-te com isso, tarado? – Naturalmente que sim. É para compensar. – Para compensar o quê? – A frieza da sobrinha. – Quero-te fora desta cama. – Não se fala assim com um tio. Respeitinho. Já andei contigo ao colo muitas vezes. Mudei-te fraldas e limpei-te o cuzinho. Já na altura tinhas um cuzinho bonito. – Gostas do meu cuzinho? – Não é assim. É: gostas do meu cuzinho, tio? – Gostas do meu cuzinho, tio? – Gosto. E agora perguntas: é o cuzinho mais lindo que já viste, tio? – É o cuzinho mais lindo que já viste, tio? – É. É o cuzinho mais lindo que o tio já viu. – Posso perguntar mais coisas? – Não. – Estás a ser infantil. – Não perguntas nada. Para isso era preciso alguma inteligência, coisa que não tens e que dificilmente terás. Compreendeste? – Porque é que me bateste na cara? – Porque és estúpida como uma porta. – Pára de me bateres. – Paro se me contares uma anedota. Mas não pode ser uma anedota porca. Se vieres com porcarias, arreio-te com o cinto. – O quê? – Estás a rir, putinha? – Arreio-te com o quê? – Pára de rir. – Falas como um campónio. Se calhar és um. Onde é que nasceste? – Nasci na cidade. Mas falo como os homens do campo porque acredito que a proximidade com a terra nos faz melhores. Lê Thomas Wolfe e 365
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compreendes que é à terra que devemos a vida e a eternidade. Acabaremos todos por adormecer no frio onde repousam os corpos. – Eu não. Quero ser cremada, as cinzas sobre as ondas, e talvez o vento me leve em procissão pelo mar. – És tão ridícula e previsível. Agora toda a gente quer ser lançada ao mar. Não há respeito pelo corpo. Se Deus quisesse que fôssemos cremados, tinha-nos feito troncos de madeira. Mas não: somos feitos de pele, esta pequena variação da terra negra e escura que nos espera. Além disso, achas higiénico que se lancem pessoas ao mar? Se calhar até achas. Falar de higiene contigo é uma conversa de doidos. Conta lá como lavas a coninha, conta. É a melhor anedota que sabes. – Mas tu disseste que não querias coisas porcas. – É verdade. É melhor não contares nada. Agora só quero que me beijes. – Não me apetece. – Não é uma questão de vontade. A vontade tem pouco a ver com isto. – Podes beijar-me, se quiseres. Eu fico onde estou. – Quero. – Gostaste? – Gostei. – Mas eu não te beijei a ti. Os meus lábios estão parados. Parados. – Melhor assim. – Sou um corpo parado e é assim que devo ser? – Sim. Não gosto que me beijem. Gosto de te beijar prolongadamente. Mas só eu. Não é nada contigo. Mas é tudo para ti. A ideia de partilhar só se aplica a coisas visíveis e inúteis – um livro, uma laranja, um par de peúgas. Para tudo o resto, as partilhas são imperfeitas, para não dizer anedóticas. As pessoas não se beijam. Há sempre uma que beija mais do que a outra. Que ama mais do que outra. Que sente ou sofre mais do que a outra. – Posso dizer que te amo? – Não. Só eu posso dizer que te amo. E amo-te muito. Mais do que pensas. – Talvez queiras casar comigo. És doido o suficiente para isso. – Quero, quero muito casar contigo. Aceitas ser a minha legítima esposa, na saúde e na doença, até que a morte nos separe? É assim que se diz, não é? – Porque é que estás nessa figura, de joelhos? Ficas ridículo de joelhos, aí 365
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na alcatifa, a tua pequena pichota como um enfeite de Natal pendurado no teu corpo. Levanta-te e caminha. – Ainda não quero ir para a caminha. Isto agora é a sério. Não te rias. Ouve o que te digo: casa comigo e faz de mim um homem feliz. – Quero fazer amor outra vez. – Primeiro, casamos. Nunca concordei com sexo antes do casamento. Temos a minha pequena pichota como padrinho e a tua coninha mandriona como madrinha. E chega. Agora enfia isto no dedo e diz as palavras. – Um preservativo? – Enfia-o no dedo. Não é nesse dedo. É no anelar. Isso. Agora: aceitas ser minha esposa, na saúde e na doença, até que a morte nos separe? – Espera. Que espécie de doenças? Todas as doenças ou só algumas? – Todas. Mesmo as mais graves e as que dão mais trabalho a limpar. – Incluindo o tifo e a escarlatina? – Não te rias. Sim, incluindo o tifo e a escarlatina. As doenças medievais, as viroses, a cegueira, as embolias cerebrais, aguentas tudo. Mesmo que a fatalidade meta fraldas, e não pudermos foder mais, os nossos corpos definitivamente apagados, e que do nosso amor só reste a memória. Compreendes o que te peço? Chama-se sacrifício. E nunca saberás o que é amar alguém se não amares também o sacrifício. Porque é que estás a chorar? – Nunca pensei que quisesses casar comigo. É só isso. E é bonito o que dizes. – Não consigo ver-te chorar, meu amor. Partes-me o coração. – Não digas isso. São apenas frases feitas. – Precisamente. São frases feitas, porque feitas para momentos como este. Caso contrário, não saberíamos nunca o que dizer. Pára de chorar. Cobre o teu cabelo com o lençol para eu te poder beijar sob o véu. Limpa as lágrimas com os meus dedos. – Amo-te muito. Já to disse várias vezes, mas nunca numa cerimónia como esta. – Também te amo muito. – Diz: amo-te muito, querida. – Nunca te chamei «querida». – Mas gostava que o dissesses uma vez. Como nos romances do Hemingway. – Não gosto do Hemingway. Tu sabes disso. Além disso, detesto histórias 365
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de amor. Na vida nada acaba como se começa. Tudo permanece, permanece ao menos na memória, ou nas memórias de tantas outras memórias, mas nada termina em nada. Os escritores são os últimos resistentes de uma hipocrisia muito deles, que escrevem apenas o que não sentem, e se sentissem não escreviam como escreviam. Chorei quando li O Adeus às Armas, mas chorei pela tristeza de personagens tão condenadas ao fracasso, e tudo pela vontade mesquinha de um homem mesquinho que as fez viver, e sentir, e amar, e lhes roubou tanto e tudo a duas páginas do fim. Não havia alegria ou prazer no meu choro. Apenas ódio, e mágoa, e talvez mesmo desencanto, meu amor. – Compreendo. «Meu amor» serve. – Então diz apenas que «sim» para passarmos ao banquete. – Que banquete? – Aquecemos qualquer coisa, abrimos uma garrafa de vinho e dançamos o que restar da noite. Quero que sejas minha mulher. E que eu possa dizer que és a minha mulher, porque te sinto próxima, e minha, e sentir-te minha não só porque dormimos ou conversamos, mas porque prometemos amar tanto, e se calhar nem devíamos por não se poder jurar uma coisa dessas, e não se pode, de certeza que não se pode. Mas casa comigo e acaba comigo, por te amar muito e tanto mais que quero ficar contigo, não direi para sempre, para sempre é muito tempo, mas o tempo suficiente para envelhecer e morrer contigo, e não me importo com a tua coninha porque é tua, e minha, disse o que disse, e disse o que disse a brincar. São apenas palavras, palavras que nada valem e muito pouco te merecem. Aceitas casar comigo? – Caso. – Não é «caso». É aceito. – Aceito. – Aceitas o quê? – Aceito casar contigo. E aceito a tua pichota pequenina, meu amor. Estou a brincar. Não chores. Não gosto que chores. Os homens não deviam chorar. Olha para mim: aceito casar contigo e fazer-te o homem mais feliz. Não direi o mais feliz entre os homens, mas o mais feliz entre os homens de pichotas pequeninas. Agora ris? – Rio. – Estamos casados? – Estamos, meu amor. Aos olhos de Deus somos duas almas gémeas que 365
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se encontraram no firmamento. Pára de rir. – De Deus e do firmamento? Foi isso que disseste? – Putinha. Minha grande, adorada, e casada putinha. Nunca nos devemos rir de Deus. Só do firmamento, porque ele é grande e não se importa. Deus olha-nos, onde quer que esteja, e está sempre onde menos esperamos, que é em toda a parte. E aí estamos nós também. – Amas Deus? – Amo muito. Quero que O respeites. – Respeito-O por ti. – Não. Por ti. – Está bem. – Está mal. Se não abrires o coração para Deus, não o podes abrir para mim. – Mas eu abro o coração para Deus. Juro. É só isso que queres que eu abra? – Não me faças rir, merda. Isto é uma coisa solene. – Enfia a aliança. Deixa-me enfiar-ta onde eu quiser. – Pára com isso. Estou a ficar com tesão e Deus a ver. – Não está nada. Ele fecha os olhos nestas partes. – Está a ver. Pára. Pousa a aliança. Porta-te como uma mulher casada. – Amanhã vou ligar às minhas amigas a contar a novidade. – Diz só que me amas muito. – Vou dizer, não te preocupes. – Não é às tuas amigas. É a mim. Agora. Diz: tio, eu amo-o muito. – Eu amo-te muito. – Não te esqueças do tio. – Eu não me esqueço. – Então repete o que eu disse. – O que eu disse. – Isso. Isso mesmo, querida. k
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THE E IN BLAH BLAH BLAH BLAH BLA H
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EFFECTS OF NDIE MUSIC fotografia MICAEL Pテ天OA
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Os Cães deMárioOlenka Bruno Pastor Era quase noite, o pároco Ivanich regressava das caçadas, vinha um pouco tocado pela bebida, mas mantinha a postura ascética, a barba espessa, o hábito muito coçado e a espingarda a tiracolo a balouçar, juntamente com um crucifixo de madeira, onde o cristo ortodoxo, de olhar piedoso, vertia o sangue de um ganso bravo que o santo homem trazia pendurado à cintura. Olenka, a afilhada loira, tinha voltado à cabana mais cedo para prender a matilha, era muito nova, mas fizera sucesso nas caçadas, tinha sido ela a atiçar os cães contra as presas. Uma chacina! toda a aldeia celebrou. Até os mais conservadores, como o feitor Nicalai, que por princípio não gostava de ver mulheres na arte da caça, tinha ido felicitar e beijar a catraia. Ivanich atravessou o portão da quinta. Enquanto passava pelo celeiro ouviu um choro de criança, entrou, acendeu a candeia e viu um bebé largado em cima de um dos poucos fardos que armazenava, pegou na criança e levantou-a nos braços, era um rapaz. Doze anos depois de Olenka ter sido encontrada nas imediações da floresta, Ivanich encontrava outro órfão, um órfão ainda vivo. Os outros abandonados que foram aparecendo ao longo dos anos tinham sido encontrados mortos, os gelos do outono e do inverno não permitiam que as pequenas vidas resistissem. Foram tantos, que o pároco cavara um cemitério na sua propriedade.
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O cemitério ficava ao lado do quinhão onde se cultivavam umas pobres hastes de centeio, as camponesas chamavam-lhe o cemitério dos anjos. Iam lá muito amiúde depositar uma ou outra flor silvestre, picada pelas suas consciências inquietas que procuravam alguma reconciliação com aqueles bocadinhos subterrados de carne. Ivanich observava-as da cabana, balouçando a cadeira, com as galochas no parapeito da janela, nem ele sabia a que túmulo correspondia cada mãe. Tendo resistido mais de três dias, o pároco preparou-se para baptizar o menino, seria Amadeo Ravesky, foi ungido conforme o rito e recebeu dos braços de Olenka o primeiro conforto da sua vida, seria ela a responsável maternal pelo seu crescimento. Alimentava-o com leite de vaca ou de égua, mas deixava-o mamar sempre que Ivanich estivesse por perto. O velho sentava-se, acendia o cachimbo e apreciava o quadro da afilhada loira amamentando o novo orfãozinho. Pouco antes do sétimo aniversário de Amadeo, Ivanich sofreu uma congestão torácica. Estava na cabana a preparar a arma para a caçada quando sentiu uma dor forte no coração e ajoelhou-se, tentou chamar por Olenka, mas não teve forças para gritar. O rapaz viu-o naquela posição, com as duas mãos agarradas ao peito, primeiro pensou que estivesse a rezar, depois percebeu que era algo de grave e correu a avisar Olenka, que alimentava os cães na jaula. Quando os dois chegaram à cabana já Ivanich tinha morrido. A cerimónia foi discreta, arranjou-se um monge qualquer de Vladivostok para viabilizar o funeral e o feitor disse umas palavras laudatórias sobre o exemplo que Ivanich dera a todos os camponeses. Depois a urna foi depositada debaixo do soalho da igreja, Nicalai beijou Olenka e Amadeo e disse-lhes que regressassem à quinta para continuarem a boa obra do pároco. Nunca chegou à aldeia um novo substituto de Ivanich, os invernos passavam e as dificuldades de Olenka e Amadeo agravavam-se. O rapazinho crescera pouco, era fraco e ia diariamente pedir maçãs e outras frutas às portas dos caseiros para se nutrir convenientemente, mas não havia muita comida em toda a aldeia. Valia por vezes a carne
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salgada que Olenka preparava depois das caçadas e guardava numa arca junto à porta da cabana. A rapariga desenvolveu-se, era fértil e continuava a tratar da quinta, mas tal como os molhos de centeio, os rendimentos eram escassos, faltavam-lhe os meios para criar apropriadamente o miúdo; o pouco dinheiro que entrava em casa provinha dos cães que criava na jaula e que vendia nas aldeias vizinhas. O feitor Nicalai oferecia-se às vezes para disponibilizar alguns kopecs, Olenka não gostava de ganhar essas moedas, mas serviam para conseguir uma alimentação um pouco melhor para o pequeno. À noite continuava a oferecer os seios ao rapaz, era uma forma de lenitivo para o frio e para a solidão. Os enjeitados também foram aparecendo menos, sem Ivanich não haveria ninguém para cuidar deles. Nos primeiros tempos logo após a morte do pároco, Olenka ainda encontrou dois cadaverzinhos na floresta, recolheu-os e sepultou-os no cemitério dos anjos, os raros que apareceram nos anos seguintes já não eram sepultados. A rapariga não achava que tivesse mais obrigações com os mortos do que as mães deles; essas também já não traziam flores silvestres para as campas, cada vez mais integradas no mundo natural e cobertas pelo centeio que, ainda assim, medrava. Um dia Amadeo viu Olenka trazer um dos corpos da floresta, embrulhado em burel, e atirá-lo aos cães. O rapaz sempre tivera medo deles, dos seus uivos e rosnares (nunca latiam), mas depois de ver os animais despedaçarem os membrozitos roxos e devorarem entre si o espólio, decidiu não se aproximar mais da jaula. Sempre que chegava a época das caçadas, Amadeo fugia, escondia-se no celeiro e esperava que Olenka regressasse. Ela ganhara fama de grande caçadora e acompanhava os camponeses pela floresta, continuava a atiçar os cães de forma exemplar, as outras mulheres da aldeia não gostavam dela. Chegava sempre exausta, precedida pela matilha silenciosa, mas trazia sempre carne e algum dinheiro. Era penoso dormir com Olenka nessas noites. Depois das caçadas vinha o tempo das colheitas. Amadeo re-
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vigorava, saía da cabana e deixava-se perder pela floresta. Passava os dias inteiros a explorar caminhos, a visitar as árvores. Às vezes descia até ao rio e nadava, brincava com as pedras, observava os pássaros. Nessa altura chegava sempre tarde, gostava da solidão da floresta, não havia camponeses nem caçadores, apenas o silêncio do arvoredo e o murmúrio do rio. Um dia encontrou alguém na floresta, era uma mulher, fitaram-se, mas não se reconheceram; quando já estava a chegar a casa encontrou um bebé morto. Não contou nada a Olenka. Outra vez, ainda na época das colheitas, Amadeo decidiu atravessar a floresta inteira. Antes de se deitar, preparou a sua jornada apenas com um pedaço de pão e um pouco de carne que guardou no casaco. Quando Olenka foi ter com ele não deu por nada, Amadeo estava tão entusiasmado com a viagem que nem se importou que as mãos da rapariga recomeçassem o outro percurso de todas as noites. Na manhã seguinte levantou-se muito cedo para se fazer ao caminho. Andou várias milhas até ao ponto em que a floresta ainda lhe era familiar, depois deixou de reconhecer o terreno, mas continuou. Horas mais tarde deparou-se com um imenso vale e viu pela primeira vez a linha férrea, muito longa e brilhante, cruzando o horizonte. Amadeo já sabia, através das gravuras dos jornais que o feitor Nicalai deixava na cabana, que era ali que passavam os comboios. Os olhos brilharam-lhe de contentamento, ia ver um comboio! Sentou-se junto à linha e esperou. O comboio não chegou, mas a noite foi descendo. Era tarde e estava muito longe de casa, para voltar teria que entrar de novo na floresta e atravessá-la ao relento, entre os lobos e as outras criaturas. Achou que seria mais seguro pernoitar no vale. Apanhou uns ramos do chão, improvisou um colchão sob um abeto e deitou-se para adormecer. A noite estava bonita, via-se todo o vale, a lua fazia com que os carris continuassem a brilhar, era a primeira vez que dormia sozinho, mas não teve medo. Tinha onze anos e estava tão feliz na sua autonomia que até se esqueceu da fome e dos cuidados de Olenka, a desesperarem do outro lado da floresta. Ainda não tinha amanhecido quando Amadeo acordou sur-
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preendido com o ritmo majestoso do transiberiano: era uma máquina magnífica, ejectando no céu baforadas densas de fumo negro, as janelas das carruagens vinham quase todas iluminadas e viam-se as sombras dos perfis dos viajantes. Ah! embarcar naquele monstro e cruzar o mundo inteiro, ver Moscovo, São Petersburgo, os portos de mar ou até os países longínquos que ficavam depois da Polónia! O comboio manteve a sua cadência afinada até se sumir totalmente na curva do horizonte, mas Amadeo não desviou mais olhos do caminho-de-ferro, deixou-se sonhar e viajar também, rememorizava as imagens dos jornais: os veleiros, as caleches, os palácios, uma fotografia do czar, até o poderia visitar e lanchar com ele, com o czar. Para isso precisaria de uma farda, então reconstruiu mentalmente um uniforme que também vira estampado algures, agora já nem precisava do comboio, via-se a cavalo a combater os inimigos... ia já a meio da batalha quando se lembrou de Olenka e voltou a deitar-se no seu leito improvisado. Aos bocadinhos o vale foi-se enchendo de uma luz rosada. Era altura de regressar a casa. O percurso de regresso foi menos emocionante, sabia o caminho bem, mas estava cansado e não tinha comido nada. Quando chegou à cabana, já quase no fim do dia, vinha cabisbaixo. Durante a caminhada percebeu que o mundo que o esperava era o de sempre, os mesmos cães a rosnar o dia todo, a mesma fome, os mesmos afagos do feitor Nicalai, a mesma janela para o que restava do cemitério dos anjos, a mesma opressão nocturna entre o corpo de Olenka. A rapariga viu-o chegar ao longe, estava a ceifar quando o miúdo atravessou o portão, limpou o suor da testa, desapertou o lenço da cabeça e foi abraçá-lo, levantou-o nos braços e beijou-lhe a boca, quis saber por onde tinha andado, o que acontecera. Disse-lhe que percorreu a floresta toda a noite com os cães à sua procura, mas não o repreendeu, levou-o para dentro de casa e preparou um prato de pão escuro com vegetais, depois amarrou-o à cama e no dia seguinte apenas o visitou ao quarto para lhe levar uma malga de leite. Foi só em dezembro que o miúdo conseguiu organizar os meios e a coragem para a fuga. Olenka deixava-o mais livre dentro da
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cabana, mas não o deixava sair por causa da neve, Amadeo planeou fugir durante a noite, escondeu o velho sobretudo, o gorro e as galochas de Ivanich dentro da arca da carne salgada e depois deitou-se. Olenka juntou-se a ele logo a seguir, acariciou-o, abriu o decote e acabou por adormecer. Lá fora a noite estava gelada, o frio fizera com que o fecho da cancela da jaula dos cães estalasse. Ainda na cama, Amadeo afastou o braço de Olenka e esgueirou-se, gatinhou até à porta do quarto e passou para a cozinha. Lentamente, tacteando o espaço, encontrou a arca e retirou os agasalhos e as galochas para se proteger, enfiou nos bolsos umas tiras de carne e saiu. Não estava muito vento, mas o ar frio não se podia respirar directamente, Amadeo enrolou o cachecol à volta da cara e caminhou em direcção à floresta, sabia o percurso de cor, era só atravessar o quintal, passar o cemitério e sairia para a rua, a lua quase árctica serviria de candeia, antes do amanhecer estaria no vale, seguiria a linha na direcção do poente. Acreditava que em alguns dias encontraria uma estação de comboio. Entretanto ouviu-se o uivo de um dos cães, era o Cossaco, o maior de todos, líder da matilha. Amadeo reconheceu o som de imediato, mas ficou com a impressão que não vinha das traseiras, onde estava a jaula, mas da direcção do cemitério dos anjos, ainda assim avançou, ao passar pela velha janela de Ivanich curvou-se, não quis arriscar ser visto do interior. Quando se ergueu estava já em frente ao cemitério, os cães de Olenka remexiam a terra das pequenas sepulturas. O Cossaco fitou-o, arreganhou os dentes, quase sem rosnar. Num segundo toda a matilha caiu sobre o pequeno, primeiro agarraram-se-lhe aos bolsos do sobretudo, depois às mãos, até o derrubarem. O medo, o frio e o cachecol em torno da cara impediram-no de gritar. Em poucos instantes desfizeram e devoraram Amadeo Ravesky. k
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FOTOGRAFIA MICAEL Pテ天OA
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tanto desamor te tenho, tão fora do meu coração ficaste, que em verdade nada te tenho. nunca foste meu e já não sou tua, já não me tens. pouco sei por que te dou conta deste resultado, que me importará a notícia de mim que recebas?, faço-o talvez por fidalguia ou superioridade de ser, que vontade minha nem é que sofras ao sabê-lo, ou que sintas alegria, mas tão só anunciar-te, como ao mundo, que nada mais se espera de ti no meu peito tão amadurecido agora. agora, posta entre as minhas amigas em sossego, só te lembro como matéria que em mim se deixou apodrecer. saberás tão bem como florescem belas rosas sobre matérias mortas, e as minhas matérias mortas, meu antigo e tolo amante, alimentaram uma sabedoria que me eleva. estou onde nem tu imaginas que se possa chegar. quanto nos rendemos aos prazeres sem interesse, fico entretanto a pensar. por que doce e fútil alegria corri iludida com teus sermões, suja de alma a vender-me corpo e cabeça enganada. sei que estarás ainda hoje nos braços de quantas te satisfaçam o mesmo capricho, usando a mesma crueldade para com elas, convicto talvez de que lhes pagas com a aventura o
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preço da revelação que virá mais tarde. enganas-te. pousado o corpo, lavado o espírito, nem a volúpia nem o prazer, nada se impõe e a vida recompõe-se e até a vontade de recato e dignidade se reforça, tens de o saber. nada, mesmo nada do que pudeste destruir-me se deixou destruído. não existes, meu antigo e tolo amante, agora já não existes. esqueci tanto amor e tanto sofrimento. nem sei por que me terás levado à loucura, tão lúcida me encontro, nem por que ganhei afeição ao sofrimento, que era o único amor que me deixaste, apartado de mim eternamente nesta vida e na vida em frente. sofrimento nenhum se justifica por quem não o merece, aprendi-o bem. e se meus votos sentidos perante deus me obrigam a um amor universal, passarei meu coração por cima de teu nome como se de mais um pássaro, um seixo ou um curso de água mais vivo fosses. rezarei por ti entre estas coisas mais naturais, deixarei para os homens um coração maior, importada com eles acima do cão que temos no convento, do carvalho que nos dá sombra no verão e nos uiva no inverno, ou da água que nos mata a sede, e que deus me perdoe k
e maria joão seixas
para lisa santos silva
ilustração alex gozblau
sexta carta valter hugo mãe
O GRANDE AMOR DO MUDO
JOSÉ LUÍS PEIXOTO fotografia Aslisu Turkmen
A cadela não pôde fazer nada quando ele começou a espetar a navalha no mudo. Foi uma tragédia muito grande. A cadela estava longe e levantou as orelhas quando ele começou a espetar a navalha no corpo do mudo: acertava-lhe por onde o apanhava: no peito, nos ombros, no pescoço. A cadela correu depressa. As unhas das patas cravavam-se na terra. O instante das patas sobre a terra e, cada vez mais perto, ele a bater com a mão direita no mudo e, dentro da mão, a navalha. A cadela a correr e a lâmina da navalha, com raiva, a espetar-se entre as costelas, ou a bater nas costelas duras, ou espetar-se no pescoço de veias. E, cada vez mais perto, os gemidos que o mudo asfixiava e que eram sons da garganta. A cadela parou de correr. Aproximou-se devagar porque o mudo estava deitado no chão. Estava morto. Do seu corpo estendido, escorria sangue grosso, como uma garrafa entornada sobre a mesa, como uma nascente. As navalhadas atravessavam-lhe a camisa. Havia pedaços do tecido da camisa que entravam dentro desses buracos de sangue grosso. A cadela aproximou-se mais devagar quando já não podia fazer nada. 365
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O mudo estava morto. A cadela parou-se aos seus pés. Tinha os olhos pesados. Pousou o focinho sobre as botas do mudo. E levantou a cabeça quando quis olhar para o seu rosto morto. Ouvi tanto esta história que, de cada vez que a conto, tenho sempre a sensação de que repito cada uma das palavras que a velha Estrudes me contava. A velha Estrudes chamava-se Gertrudes. Vivia perto da minha casa e as pessoas diziam que já não tinha o juízo todo. Mas não fazia mal a ninguém. Lembro-me de quando ela ia à venda. Eu e os outros rapazes estávamos a jogar à bola e parávamos quando ela passava. Quando regressava, parávamos de novo. Não foram poucas as vezes em que ela, depois de passar por nós, pousou a alcofa que tilintava de garrafas sob um pano da loiça, abriu as pernas um bocado, subiu a saia até ao joelho e urinou na rua. Nesses fins de tarde, ficávamos com a bola debaixo do braço a ver a urina que descia pela regadeira. Esperávamos que passasse pela baliza do fundo, duas pedras, e continuávamos a jogar à bola. Lembro-me também de quando ia a casa dela. A porta estava sempre aberta. Eu entrava e ela não se assustava. Parecia que estava à minha espera. Começava a falar com conversas a meio, como se já estivesse a falar para mim antes de eu chegar. Eu tinha doze anos. Ela contava histórias. Uma que ela gostava de contar, enquanto fazia o comer, enquanto misturava feijões e couves na panela, era a história de como o mudo se transformou numa flor sobre o seu próprio caixão. Eu cheguei a conhecer o mudo. Ainda não andava na escola. Não sei se já tinha cinco anos. Subia e descia o muro do quintal. As minhas mãos cabiam nos buracos pequenos do muro. Os meus pés cabiam nas curvas ténues da cal. Quando o mudo passava, todo vestido de preto, com a barba muito comprida, seguido pela cadela, eu tinha medo e não trepava o muro de volta. Abria a porta e fugia para dentro de casa. Quando estava na rua com a minha mãe, escondia-me atrás das suas pernas. Tinha medo do mudo. Todas as crianças da minha idade tinham medo dele. Nessa altura, eu não sabia que a história do mudo começava aí. Quando subia a minha rua, vestido de preto, com a barba muito comprida, seguido pela cadela, o mudo ia para a casa de uma mulher casada. A velha Estrudes, na sombra da sua cozinha, contava-me que o mudo e a mulher eram felizes no seu segredo. Algumas semanas. Como todos os segredos que existiam na minha vila, também esse não durou muito tempo. Quando alguém suspeitou, quando alguém imaginou que podia ser 365
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possível, quando alguém se lembrou que podia ser algo que acontecia, as pessoas falaram disso durante dois dias seguidos. Depois, sem que nunca ninguém tivesse visto o mudo entrar na casa da mulher, sem que nunca ninguém os tivesse visto juntos, toda a gente deu por assente que o mudo e a mulher eram amigos. Quando o marido se aproximava, as pessoas mudavam de conversa. Depois de toda a gente saber, depois dos pastores que só tornavam à vila uma vez por semana saberem, também o marido soube. Ninguém lhe disse. Soube, porque alguém lhe falou que havia um homem que tinha uma mulher que tinha um amigo. Soube porque os outros homens olharam para ele e houve um que disse pois é, há por aí um homem que tem uma mulher que tem um amigo. Esse homem não sabia que a mulher tinha um amigo. Esse amigo era o mudo. Nessa noite, o marido estava a jogar às cartas e perdeu. Saiu da taberna e foi para casa devagar. Foi pelas ruas mais escuras. Não passaram muitos dias, mas passaram tranquilamente. O marido marcou um encontro com o mudo na herdade onde trabalhava. O mudo, seguido pela cadela, fez o caminho sempre convencido de que lhe queria oferecer trabalho. Foi disso que falaram, debaixo de uma azinheira fina e torta. A cadela estava longe porque, sob a voz calma e distante do marido, perseguia gafanhotos pequenos que saltavam entre as ervas e os cardos. Foi de repente que o homem tirou uma navalha aberta do bolso e começou a espetá-la no mudo. A cadela correu, correu e o mudo, morto, ficou deitado no chão. A cadela não pôde fazer nada. Ficou triste. O homem abriu uma cova no chão e enterrou o mudo. Era Novembro e, nessa tarde, choveu sobre a terra. Quando o mudo desapareceu, as pessoas da vila falaram sobre isso durante dois dias seguidos. Depois, tomou-se por assente que o mudo tinha desaparecido. A mulher encontrou uma angústia. O marido via-a sem ânimo e não dizia nada. Houve homens que procuraram o mudo. Mas ninguém o procurou com vontade, porque chovia muito e porque o mudo já não tinha família. A única pessoa que sentiu mesmo a sua falta, a mulher, não podia ir procurá-lo. Às vezes, à tarde, sentava-se ao lume e julgava ouvir a porta a abrir-se. Crescia dentro de si a esperança, voltava-se para ver, e era o vento ou era os barulhos que a madeira faz sozinha quando é velha. Houve homens que desconfiaram que podia ter sido o marido. Alguns perguntaram-lhe se tinha visto o mudo. Ele nunca respondia. 365
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Quando chegou Março, nasceram flores nos campos. Debaixo da azinheira nasceu uma única flor. Era uma flor bravia. As raízes dessa flor entravam dentro do corpo do mudo. Aquilo que tinha sido a vida do mudo entrava por essas raízes e corria dentro dessa flor. Ninguém sabia, mas o mudo era essa flor. Continuava mudo. As suas roupas pretas, apodrecidas debaixo da terra, eram pétalas brancas. Os fios da sua barba, misturados com a terra, eram pétalas brancas. A cadela, sem saber que ele era uma flor, continuava perdida pelas ruas da vila. Foi a cadela, num dos dias em que se deitou debaixo da azinheira, ao lado da flor, que fez com que um pastor descobrisse o corpo do mudo. Três homens revolveram a terra e descobriu-se o mistério do seu desaparecimento. Andaram duas mulheres a pedir de porta em porta para o enterro do mudo. Quando chegaram à porta da mulher, quando disseram andamos a pedir para o enterro do mudo, os olhos da mulher tornaram-se mais escuros. Era impossível distinguir o fundo na água daqueles poços negros. Na venda, houve três homens que perguntaram ao marido se sabia do mudo. Quando virou a cara, os homens agarraram-no e entregaram-no aos guardas. Foi preso no forte de uma cidade e nunca mais voltou à vila. Na madrugada do enterro, a mulher saiu de casa, vestida de preto. E fez o caminho até à herdade. Ficou em silêncio. As suas mãos, os seus dedos, aproximaram-se do monte de terra que estava ao lado da cova. As suas mãos, os seus dedos, agarraram o caule fino da flor e foi-se embora. As poucas pessoas que estavam no enterro do mudo, ficaram admiradas quando viram a mulher entrar no cemitério. As pessoas murmuraram palavras por cima dos ombros. A mulher, sozinha, estendeu a mão, os dedos, e pousou a flor sobre o caixão. Neste ponto, a velha Estrudes não contava mais. Ficava em silêncio e, com um garfo, esmagava as batatas cozidas dentro da panela. Era também neste ponto que eu, muitas vezes, saía para a rua e ia jogar à bola. Só muito mais tarde, passados muitos anos, soube que a mulher que amara tanto o mudo era a velha Estrudes, quando ainda não era tão velha, quando as pessoas não diziam ainda que tinha perdido o juízo. k
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CSI
Coisas Sem Importância
Nuno Casimiro fotografia Ă‚ngela Berlinde
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Choveu sempre. Choveu muito. Uma cortina riscada em permanente movimento: foi a primeira impressão que tive ao sair do avião e receber a chuva entre a escada e o autocarro no meio da pista. Durante dez dias um sereno dilúvio ocupou todo aquele bocado de geografia sem exaltações abruptas, sem vento nem aguaceiros fortes, mantendo um ritmo constante que regulava o langor dos relógios e escurecia ligeiramente os contornos da paisagem embaciada. O céu unido ao chão em permanência por uma faixa húmida e quente que, da janela aberta do quarto, parecia agradar tanto a autóctones como a turistas. Da poltrona voltada para o exterior, aquelas figuras apareciam como peixes esguios movendose satisfeitos na vertical, quase sem se agitarem. Foi ao décimo dia, horas antes de regressar, que matei Ingrid com o mesmo lentor do aquário que partilhámos por uns dias. Não me deu qualquer especial prazer nem me excitou. Apenas me senti mais relaxado, como se tivesse executado uma tarefa de forma competente e sem deixar trabalho para casa. Ela não gritou, comportou-se até com gentileza, como se tivéssemos ensaiado o momento nos mais ínfimos pormenores. Ofereceu-se ao sacrifício e deixou-se a olhar-me como se para sempre eu continuasse à sua frente, como se se preparasse para falar, com a boca entreaberta a meio caminho entre o sorriso e o grito. O panfleto que o Carlos me entregara e que eu provavelmente esqueci no avião falava das águas mornas de rara beleza e do ritmo quente sempre no ar. Exultavam as inesquecíveis dunas e um mar sem fim a encenarem as praias como pedaço de éden. Não recordo referências aos peixes verticais ou a pluviosidades de qualquer tipo mas suspeito que seria natural na época baixa, aquela em que me mandaram para lá. Para mim, aquela chuva persistente era apenas um elemento decorativo cuja teimosia me despertava algum interesse, uma certa curiosidade técnica, como quem levanta o capot de um carro ignorando por completo os enigmas da mecânica automóvel. Dois meses antes, tinha saído do quarto convencido de que ela continuaria estarrecida a olhar a janela defronte, com a realidade a chegar-lhe ligeiramente atrasada depois da minha partida. Imaginei-a a tentar perceber o desfasamento entre som, imagem e pensamentos, a procurar suprir os hiatos, sobrepondo os bocados que gradualmente apreendesse. Provavelmente só quando passei a entrada do prédio terá ouvido com precisão definitiva as minhas derradeiras palavras e percebido 365
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que o meu perfume se rarefazia já em pouco mais que um rasto ténue. Quando abri a porta do carro imaginei-a a repetir entre dentes “és um verme!” e a desatar num choro educado, num desespero contido, com medo que alguém a pudesse ouvir. Mesmo com mais de um avião de distância, os olhos pousados nos coqueiros a perder de vista que o panfleto do Carlos prometia, a Ingrid lânguida e ainda viva, eu não conseguia deixar de me convencer da justeza da violência verbal. Lá no íntimo tentava justificar-me perante uma putativa plateia de desconhecidos que visivelmente suspendia a reprovação sobre mim, o gajo que a deixou com um “és um verme!”. Foi uma batota inocente. Aliás, foi apenas uma forma de repor a justiça, ou melhor, de evitar a injustiça. O objectivo não foi puni-la mas sim provocar um sofrimento que se abeirasse do meu. Nestas coisas, a única preocupação é a repartição paritária das dores. É isso que determina que eu leve o candeeiro para minha casa: não porque goste mais dele do que tu, não porque me incomode particularmente deixar de o ter perto mas apenas porque, ao levá-lo, te deixo a ti mais vazia. Apesar de tudo, já fiz coisas bem piores, obras bem mais rasteiras. Se mesmo com um atlas inteiro a separar-nos me atormentava a frase e o gesto é porque a minha educação foi esmerada. Ou então, se calhar, é para justificar as outras falhas, ou talvez para as menosprezar. Quando o Carlos e a minha irmã se sentaram à minha frente e pousaram o envelope em cima da mesa do café, pensei que me iam convidar para padrinho de casamento e a ideia assustou-me. A minha irmã começou por dizer-me que tinha falado com a Teresa e que estava tudo bem, que ela também achava que era boa ideia eu arejar um bocado e de bom grado me concedia uns dias de férias. Fiquei baralhado mas tentei disfarçar. Certamente contribuí para alimentar a ideia generalizada de que me sentia abalado pela separação. A minha irmã a olhar-me com maternal doçura, o Carlos a afagar 365
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as próprias mãos, concentrado num ponto indefinido do tampo metálico da mesa, a sofrer solidário os horrores por que eu passava. Os outros acham sempre que é a separação enquanto ruptura o que nos agasta mas não é. O que incomoda são as circunstâncias: eu andava ensimesmado com aquele verme que me saíra desabrido. Não fora essa a palavra que eu queria dizer mas, ao mesmo tempo, consolava-me a convicção de a ter deixado desconcertada. Muito mais do que esperara conseguir. Ainda assim, moía-me esse desconforto do argumento, uma fífia incontornável, a pincelada suplementar que arruinou a pintura e nenhuma memória inventada supriria a falha. As despedidas e os rompimentos amorosos deviam ser ciclicamente ensaiados como os planos de emergência com os simulacros de incêndio e de atentados terroristas. De quando em vez lá disparavam as luzes vermelhas e ligava-se o alarme, soava a campainha e começávamos o exercício da separação. No fim, discutíamos as falhas, revia-se os planos e cimentava-se a segurança que valida os improvisos. Para rematar, tomava-se uma bela refeição, jantar romântico ou similar para premiar o esforço. Poupar-se-ia uma dose considerável de comiseração optandose pela educação para a catástrofe. Em todo o caso, não valia o esforço argumentar com eles. Não discuti, portanto. Disse que estava bem, iria de férias com certeza mas era um disparate estarem assim com essas coisas, que evidentemente pagaria a viagem e que, indo sozinho, até teria agora um invejável fundo de maneio para gastar no ócio. Isso depois vê-se, responderam, e lá me enfiaram no avião três dias passados, com a mala e dois comprimidos para superar a claustrofobia por uma dúzia de horas. Apregoava o desdobrável da agência que, aos atributos naturais se somavam a alegria, o calor e a hospitalidade do povo daquelas terras, a sua gastronomia, o seu artesanato e um folclore rico e variado. 365
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Eu via-os em manchas verticais, moles, movendo-se sem pressas por dentro da chuva, e quedava-me pelo quarto, entre a poltrona e o colchão, numa pacatez de eremitério de luxo. As interrupções na planura das horas ficavam-se por uma certa agitação nos corredores quando algum grupo de excursionistas entrava ou saía do hotel, rumores de recém-casados e a movimentação reptilária de um ou outro alcaiote de praia. Havia, como sempre há nestes depósitos de turistas, um bar e festas nocturnas para o engate mas eu nunca fui hábil nas estratégias de sedução de estrangeiras em férias e o meu feitio não é dado a grandes aventuras sexuais. Tenho a consciência de que as minhas veleidades de amante ficaram sempre pela literatura erótica e nem como gabarola de balneário alguma vez me destaquei. Quero com isto dizer que não foi premeditado, antes pelo contrário, fiquei até surpreso quando, a partir do segundo dia de hotel, passei a acordar com o sotaque escandinavo carregadíssimo de Ingrid. Ingrid era uma mulher bonita. Desembarcara a norte uns meses antes e estava por ali a desfazer-se do dinheiro do pai. Dinheiro sebento, disse ela e, durante os nove dias da nossa relação, as confidências biográficas praticamente se confinaram a esse comentário sobre a higiene do capital paternal da minha companheira. As conversas que tivemos eram muito mais fechadas em comidas e bebidas e traduções para português. Ingrid de tudo perguntava “como se diz na tua língua?” e, no universo limitado de um quarto de hotel acrescido das possibilidades oferecidas pela janela aberta, nada terá escapado à nomeação em português. De resto, entretivemo-nos partilhando citações de livros e modorras, num verter lento de álcool e algum sexo. O mundo era apenas aquele bocado de hotel, posto de vigia do aquário lá fora e tudo o mais existia apenas a espaços, quando entrava no nosso campo visual ou quando nos socavam a porta para entregar a comida.
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Ocorreu-me o verme umas quantas vezes enquanto ali estivemos mas não foi essa particular embirração a mover-me. Não foi sequer uma extemporânea manifestação de distúrbios mentais. Terá sido tão-só um alívio de muitas dores. Nunca antes perspectivara uma morte. Não imaginava a facilidade com que se podia subtrair a vida a alguém. Na moleza em que nos preservámos por aqueles dias, foi quase sem esforço que atravessei com a lâmina do cutelo a roupa e as camadas sucessivas de tecidos e órgãos de Ingrid. Nenhum de nós despendeu no gesto demasiada energia. Cada um cumpriu o seu papel de forma cordata, sem grandes estremecimentos nem rumores, deixando a vida escoar-se sem urgência. Não sei quanto tempo durou o processo. Diria que, mais do que lento foi indolente, como uma morna doce. O cabelo enleou-se-lhe num nimbo loiro sobre os lençóis de linho rosado e a túnica branca acabou por colar-se ao corpo com o sangue. Vendo-a da poltrona, com os braços abandonados sobre a cama e as pernas pendendo para o chão, pensava numa das mulheres do «Banho Turco» de Ingres. Tive vontade de fotografá-la naquele abandono de fim de cópula. Fiquei no quarto mais umas horas, entre cigarros e contemplação. Limpei as impressões digitais da faca e pousei-a na mesinha de cabeceira antes de sair. Fi-lo mais por alguma esconsa reminiscência cinematográfica do que por uma vontade deliberada de esconder algum indício. Até porque, e Ingrid concordara comigo nesse ponto, a realidade em si mesma é apenas um indício da visão que cada um tem dela. Depois, sobrou-me apenas o tempo de fazer a mala e entrar no autocarro de ligação para o aeroporto. Ainda hoje, não percebo como me deixaram entrar no avião de regresso. k
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O SOLDADO cr贸nica de um coleccionista
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Vasco Barreto fotografia Micael P贸voa
Chamam-me vadio. Mas julgo que estão longe de saber quanto se aproximam da verdade. Um homem que faz uma colecção é um terreno armadilhado. Pode tropeçar-se nele. Em noites como a de hoje, enquanto vou circulando pelos becos, por estes lugares escuros das adjacências da cidade, lembro-me de como era um tipo normal antes de ir à tropa. São poucas, mas felizes, as memórias dessa época.
Era um bom rapaz. Estudei até ao nono ano sem negativas, tinha uma namorada fixa e só chegava tarde a casa ao fim de semana. Ao contrário do meu primo, que se embebedava todas as noites desde os quinze anos e que eu sempre vira ser ameaçado de despejamento, eu nunca bebia. Muito novo, arranjei emprego num restaurante, e ia quase em chefe de cozinha quando fui chamado à inspecção. Os meus pais eram pessoas simples. Casaram novos e começaram a esgravatar. O seu único objectivo era ter uma família grande, cheia de filhos capazes de virem a olhar por eles na velhice. Depois de eu nascer, a minha mãe foi operada à barriga e não pôde voltar a engravidar. Quando soube disto, percebi que era eu o culpado da sua infelicidade. Decidi então ter um rancho de filhos o mais cedo possível. Quem me ensinou como isso se fazia foi a Tânia. Não sei porque me lembro disto agora. Ela já tinha ensinado o meu primo e outros rapazes lá do bairro. Um dia, foi a minha vez. Vínhamos juntos do liceu. Eu trazia fato de treino por causa de uma aula de ginástica. Tinha rasgado as cuecas a saltar o plinto. Era uma boa sensação, ter tudo à solta. Ela era maior do que eu. Usava saia rodada, soquetes de renda e tranças no cabelo, como se viesse de jogar ao elástico no recreio. Mas a verdade é que já tinha sido encontrada atrás do pavilhão uma meia dúzia de vezes, debruçada para a cerca, com a saia atirada para cima das costas e alguém encostado atrás. Nesse dia, era a primeira vez que estávamos sozinhos. Já então, eu não gostava de sexo. Ou da ideia de sexo. No entanto, pensar em tudo o que tinham contado acerca dela fez-me crescer um tumor dentro das calças. Quando dei por mim, estávamos atrás do milho a fornicar. 365
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É frequente perder-me nestas divagações. Às vezes um animal chia no escuro, atrás das árvores. É o suficiente para quebrar a cadeia dos pensamentos. Paro e viro a cabeça. Cruzo o olhar com um mocho, um cão. Sento-me num banco e quase adormeço. Fui para a inspecção convencido de que ia encontrar uma espécie de selecção nacional de atletismo mas de farda, uns tipos simpáticos a quererem saber se eu corria muito ou pouco, se eu sabia fazer contas e falar inglês, gritar alto, partir pedra, dar tiros aos pássaros. Fiquei surpreendido quando, ao chegar, me empurraram contra a parede, para uma fila de rapazes assustados, a praguejarem sem que nos conhecessem de lado nenhum. Passei um dia atarefado. Questionários para preencher, filas indianas para mostrar os testículos, tipos a porem letras para eu ler e desenhos esquisitos, berros para ir almoçar ou para outra coisa qualquer. No fim, fiquei apto. Ainda hoje não estou certo sobre a que se referiam. Apto para quê? Talvez tivessem razão, no fim de contas. Seis meses depois, nas vésperas de casar, recebi um postal que me mandava apresentar na Escola Prática de Artilharia, em Vendas Novas, a fim de ser incorporado. Despedi-me do restaurante, adiei o casamento e fui apanhar o comboio. Os primeiros dias deram-me a sensação de estar numa colónia de férias onde havia um grande jogo de estratégia. Eu e os outros vinte do meu pelotão. Os berros, as mariquices na parada, a graxa nas botas, a barba verificada à lupa, as camas passadas a ferro, os cinco minutos para tomar banho... enfim, só podiam estar a brincar. Mas quando começou a porrada e os castigos, e toda a gente continuava muito séria a dizer as mesmas coisas todos os dias, aí percebemos que estávamos fodidos. Tínhamos sido postos nas mãos de uma cambada de terroristas autorizados a fazerem o que fosse preciso para nós ficarmos iguaizinhos a eles. A recruta durou cinco semanas. Foi um pesadelo. Mas o pior ainda estava para vir. Ontem, ao sair do museu, tive uma tontura. Pareceu-me ouvir alguém atrás do frigorífico. Voltei-me. Não era nada. Apaguei a luz e saí. 365
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Fui colocado em Évora. Trabalhava na cozinha do refeitório e dormia numa camarata pestilenta, onde apanhávamos pulgas duas vezes por semana. Felizmente, os oficiais, de quem tínhamos um medo de morte, iam comer à messe. À noite, ficávamos poucos. As praças, o graduado de dia e um certo civil. O civil jantava sozinho e era o primeiro a sair para o claustro. Era um tipo gordo, melífluo, sempre de camisa branca transpirada. Comportava-se como pessoa importante, e todos pareciam prestar-lhe reverência, mas nós não percebíamos de onde lhe vinha esse estatuto. O único com quem falava era o Marreiros, um soldado alto e voluptuoso como uma fêmea. A um sinal, o Marreiros apressava-se para a sua mesa e ficava um quarto de hora a ronronar frivolidades inaudíveis, intercaladas por gargalhadinhas. O civil mantinha-se sério e calado. Uma vez por outra, fazia uma pergunta entredentes e espraiava o olhar pela sala. No fim da noite, quando eu saía a fechar a cozinha, quase sempre o surpreendia numa sombra, encostado à parede, a fumar. Eu ainda não sabia quem ele era nem o que fazia no meio dos militares. A uma semana de sair da tropa, o comandante chamou-me. Em cinco meses, nunca se me dirigira. Entrei no gabinete em sentido. Com um sorriso solto, verdadeiro, mandou-me estar à vontade e sentar. Sabia que eu me ia embora, e por isso queria convidar-me, e aos outros rapazes, para uma festa de despedida na sua casa de campo em Marvão. A princípio, não soube o que dizer. Um tenente-coronel a convidarme fosse para o que fosse parecia de tal maneira insólito que não me saía nada. Fiquei de pensar. No entanto, mal saí do gabinete, soube que iria. Lembro-me com sórdida nitidez de todos os pormenores. A saída de Évora, o civil e o comandante no carro da frente, eu e um condutor no de trás (os outros iriam lá ter), as bermas da estrada a mudarem em direcção ao norte (mais pedra, mais relevo, mais ocre nas searas), as curvas de Marvão e a paisagem a perder de vista atrás de nós, o largo em que estacionámos e eu vomitei, a ruela estreita que subimos entre muros de granito até à portinha de madeira da casa, dentro da casa uma abundância de gatos, dez ou vinte, de todas as cores, lisos, 365
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elegantes, encostados a poltronas, com olhares snobes, altivos, indiferentes, lembro-me do cheiro de mijo de gato nos tapetes, nas almofadas, debaixo do sofá, dentro da sanita, na terra cá fora, nas calças do civil, nas do comandante, o cheiro de mijo de gato em todos os lugares onde me enfiaram a cabeça enquanto o comandante e o civil se revezavam a espancar-me as costas, a morder-me as nádegas, a sodomizar-me horas a fio até eu fazer um barulho oco, do fundo da garganta, ou da tripa, ou da alma, e cair desmaiado. Apanho-os pequenos. De noite. Há-os por todo o lado. Nas lixeiras, na orla do rio, debaixo dos carros, por trás de qualquer arbusto, nas soleiras das portas. Afago-lhes o pêlo. Pego-lhes por baixo, aos pares. Tomo a pressão dos ventres sedosos, entre o esterno e o púbis. Em casa, dou-lhes banho. Rapo-lhes o pêlo. Deito-os na lousa e ato as patinhas duas a duas. Arranco os bigodes um por um, com esta pinça. Miam, a resmungar. É insuportável. Rio-me para eles, estalo a língua, assobio. Dou-lhes cocaína a cheirar. Lambem-se e espirram como crianças. Baixo as luzes. Calço luvas de látex. Besunto as meninas com Betadine. Agitam-se, arreganham os dentes. Detestam. Então, pego no bisturi, faço uma incisão longitudinal e exponho as entranhas. A cocaína fá-las sangrar em esguichos imparáveis. Introduzo compressas no abdómen, para absorver o pequeno lago que se vai formando. As tripas rebolam como cobras. Afasto-as gentilmente para fora da cavidade. Furo a bexiga, que se esvazia como um balão, e afasto-a. Com a mão esquerda, apanho o útero. Com a mão direita, destaco-o do resto. Útero, o princípio da vida. Ai, mãe. Não te mereço. Mais tarde, catalogá-lo-ei. Terá o seu lugar no museu. Oh, os úteros brilhantes deste mundo, lado a lado na galeria. Inúteis e orgulhosos. Depois, a gatinha vai desistindo. Acelera e desacelera a respiração, cada vez mais superficial, com os olhinhos revirados e pingados de sangue. Viro-me então para o menino. O gatinho maroto. Esfrego-lhe o ânus com óleo de linhaça. Alguém imagina como é pequeno o ânus de um gatinho? k
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Visita Sobre o Bairro
das Pessoas Fernando Ribeiro fotografia
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Micael P贸voa
Pessoas velhas que descolam das paredes e que têm línguas nas mãos. Jovens em início de fim de vida, invisíveis, a escaparem rapidamente e a recolherem aos ninhos. Mãos que lambem e línguas que tocam. Perguntas sobre nós, para saber e esquecer no próprio momento. Jovens a aparecerem aos poucos. Varandas sem ninguém mesmo quando lá está alguém. A luz é fosca, amarela e branca, está morta pelo pior que há nestas duas cores. O sol que nos calhou é doente e cospe sangue. A noite nada nos traz porque os nossos olhos se habituaram à escuridão do dia. O suor dos velhos é um lago de veneno. O suor dos jovens é um copo de veneno. Contam-se os pedaços da mulher que saltou do quinto andar. Metemse as crianças na cama. O suor de uma família escorre para a roupa de outra. Os pedaços da mulher bóiam num copo de suor. No último andar, na cave ou no rés-dochão, não se percebe. Todos somos iguais. O homem que parou a dormir e não sabe que dorme. O vapor do álcool, cinzento e espesso, a sair porta sim, porta não. Fruta em árvores que não existem, tocadas. Árvores verdes como seringas gastas. Veias verdes. Veias vermelhas. Veias sujas. Baldios com carros estacionados. Vegetação da cor do nosso sol por baixo do negro dos pneus que nos ajudam a fugir daqui. Ruas nunca limpas porque são feitas de sujo. Um único azulejo azul morto, a tapar um buraco de calçada imunda. Amor nas ondas da calçada destroçada pelos passos apressados dos jovens. Princesas magras e lindas a copularem com sapos nascidos príncipes. O choro dos animais dia e noite, sem parar. A visita diária da ambulância a descolar os velhos das paredes. Não deixes os meus textos voarem com o vento. Amo-te. Compro isto ou compro aquilo. Não sei o que comprar, não sei o que fazer. Deixa-me estar
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escondido na cama. Sofro a andar por aqui com o sorriso do nosso sol. Uma fila gigantesca de madrugada. Foi lá que te vi a última vez que te vi. Pretos, brancos, cinzentos, matadores, e sem cores. Voltam a noite e ouvem música alta. Lixo que se acumula, depositado nos corações. Um homem de branco com uma pistola na mão. Aperto a mão forte e calejada de um assassino. Varandas com mantas e luzes e um megafone a amplificar a voz destruída de um cântico à padroeira do bairro. Passos lentos como batidas fúnebres nas têmporas. Casamentos ao Domingo. Nascimentos na parte nova. Passa um sapo nascido príncipe numa motorizada transformada em rápida, rente a uma carrinha para lhe fazer soar o grito, sónico, irritante, ensurdecedor na noite. Repete o círculo quatro, cinco vezes. A pausa entre os alarmes da carrinha, um silêncio que nos espera, opressor. Está dado o sinal. Os barulhos da noite acordam para o seu dia que é a noite. Alguém grita na televisão. No azulado do ecrã que sai pelas cortinas gastas e feias, alguém grita mais alto que a pessoa que lhe gritou primeiro. Alguém começa a limpar a casa com um aspirador potente quando a meia noite chega. O barulho das portas que batem com violência planeada tem algo de vítreo. Por dentro das próprias portas ouve-se um viver de um outro mundo sem resguardo. Uma circulação sanguínea e microscópica. Dois irmãos de doçura vivendo no espaço de um só. O rumor de fundo esconde rumores que entram e saem como líquidos das bocas das paredes. Circulação ao ritmo da nossa. Sobe, desce, sai, torna a entrar em gotas de suor e ar. A brisa regressa, expirada de volta para o círculo maior. Os candeeiros de sol, amarelos como os dedos nos copos e nas curtas luzes, abrigam os vultos e choram a chuva. Cada gota circula sanguínea, microscó-
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pica, largada na vida. Vultos desabrigados que pedem dinheiro para uma recusa, de dia e de noite desaparecidos. Olha-se a miséria que aqui é a vulgar pedra em que se pisa, em que se escorrega e se cospe, a que os animais enchem dos restos da sua vida. Os vultos saem da luz. E finalmente vemos quem eles são, projectados contra o negro da aura solar. Os seus passos marcados na rua. Vozes que se levantam da calçada, que saem da parede, que entram pela espessura falsa do vidro. Setas letais de direcção convicta: a nossa. Muitas vozes agora multiplicadas por cem em cada grito. Há crianças acordadas que fingem dormir ao colo do vapor do álcool. Existem pais que os abraçam numa mão. A outra leva o copo à boca. Os lábios descolam. Cheira a fruta de vidro. Um homem tenta sair sem pagar a conta. O dono do café toma-lhe a vida como garantia. O homem regateia e perde de propósito. A mulher chora cá fora com o filho a dormir a fingir aninhado na mão. A mulher diz-lhe para ele não a procurar mais. O homem é um copo que enche devagar de sangue e os seus olhos vermelhos respondem que nunca soube onde a encontrar. A camioneta do lixo é um monstro rodado de verde de dor e de cheiro. Descem dois homens das suas costas, prestáveis e simpáticos a recolher os despojos. Fica lixo espalhado na estrada como sementes. Como uma pista a seguir para nos encontrarmos naquilo que deitamos fora. O condutor faz brilhar a ponta do seu cigarro curto e pensa que um dia alguém escreverá as histórias que ele sabe de verdade. Dentro de casa alguém sente medo. Num quarto pequeno, os carinhos possíveis mais altos que os ruídos. Por cima de tudo um céu que desce cada vez mais e se cola aos tectos das casas fazendo de todos nós reféns. k
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PEDRO SENA LINO
[MÁRCIA FÚNEBRE]
para Josiane Guiraud
fotografia Ângela Berlinde como todas as manhãs, aí pelas onze horas, quando o sol era quase o meio do céu e a rua se perturbava com a inumeragem dos passageiros de diferentes origens e destinos, Horácio Ressurgita abria o longo, odoroso estojo de pele, afastava os protectores panos púrpura puídos do tempo, com as cabeças ansiosas dos dedos tocava saboreando o frio do metal, e com duas mãos ansiosas e másculas de posse, maritalmente agarrava a sua tuba. maritalmente, possessivamente, mas com um coração infante, quase virgem de excitação e entrega, assim o fazia, todos os dias. os dedos sonhavam com os botões metálicos (“os lábios, os lábios da tuba!”) sons que nenhuma pauta continha, e era branco de oiro e sonho metálico o espaço plano onde a sua alma caminhava – tudo isto, milissegundamente, antes sequer de aproximar a tuba da sua boca, e misturando os lábios no bocal, se envolverem ambos num beijo sonoro. todas as manhãs, pelas onze horas, Horácio Ressurgita, navegava em planícies de luz metálica, nova, rasgava solenes e crepusculares entradas, 365
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odores de palma e de vitória. da sua sala de quatro rectangularmente altas janelas para a Rua do Mundo, Horácio Ressurgita abraçava o instrumento que criava o espaço da sua interioridade. se Horácio Ressurgita era alguém, seria aquele som de luz e triunfo que escoava, caminho, pelo mundo. e todos os dias Horácio Ressurgita ensaiava escalas, suadamente, com os braços grossos como pernas de valquíria, até se preparar para o grande momento, a chegada, o clímax: a “Marcia Funebre” da Sinfonia “Eroica” de Beethoven. homem, mas a Eroica não precisa de tuba dizia-lhe o sargento Rodrigues, chefe de banda e ensaiador-mor. desde que tinha entrado para a banda – já lá iam uns bons vinte aninhos desde aquele dia da procissão do Senhor Morto em que o Paiva dos Charutos tinha tido o enfarte e Horácio Ressurgita tinha salvo a honra da banda, entrando como substituto – que Horácio tinha procurado fazer o esforço de não confidenciar a Rodrigues o prazer que teria em tocar a Eroica. triste dia, esse, em que com duas cervejas tomadas, não tinha resistido a contar-lhe… homem, mas a Eroica não precisa de tuba e ainda hoje ecoava na sua cabeça, sempre às onze horas, quando tomava a tuba nos braços e se atubava às suas curvas de ouro físico e sonhado, primeiro quase chorando, comovido da impossibilidade, e depois tocando convictamente, som a som, ar a ar, como se com isso conseguisse calar não só o eco da voz de Rodrigues, mas inserir, de pleno direito, uma tuba na partitura da Eroica... que bem que lhe soava toda aquela marcha, lenta, sepulcral, perdida, nos sons que eram a sua voz... e que pena se o mestre Beethoven se tinha esquecido daquilo... uma falta, uma falta. Horácio Ressurgita ouvia, na cabeça onde se cruzavam todos os sons, o início daquele tema a aparecer, nítido, límpido, na voz da sua tuba. estás louco, homem... não te posso pôr a tocar isso: não está na pauta... tinha sido a última resposta de Rodrigues. contrafeito, numa segundafeira fria de Inverno em que tinha folga no talho, Horácio Ressurgita tinha apanhado o comboio até à capital, onde à tarde havia um ensaio público da Eroica com maior orquestra do país. dois beijos à mulher, Firmina, que lhe pareceu mais calada e inchada que o costume, e ali estava ele a caminho pela cidade, com o estojo de pele a tiracolo. as botas cardadas escondiam dois pés imensos, largos, triunfais, e as calças de uma sarja suja pa365
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reciam rebentar a cada movimento vitorioso de pernas. caminhava com a barriga larga a descrever uma leve sensação de compasso binário, e depois os pés bem para cada lado, e uma agitação sincopada de cabeça. assim, feliz, cumprimentando tudo o que passava, com o leve batucar do estojo a apagar o esticar dos tecidos, Horácio tinha chegado à grande Gare, pedido dois lugares, claro está («um para mim e outro aqui para a minha loira», disse ao funcionário da bilheteira, apontando para o estojo da tuba), sentado os seus cento e dez quilos e os muito menos da tuba, e tinha feito todo o caminho com a Eroica na cabeça a estruturar-lhe o propósito «eu hei-de convencer o maestro a pôr-me na orquestra a tocar a Eroica». tinha sido rápido o caminho (quase três Marchas Fúnebres, pelas suas contas), rápida a chegada ao Auditório, onde uma orquestra em conversa e afinação esperava a chegada do Maestro. era novo por aquelas paragens: tinha vindo da Alemanha, de pais nórdicos. a mistura parecia prometer a Horácio a melhor das compreensões. foi directo e livre em direcção ao homem, assim que curvado e baixo chegava ao estrado de onde devia dirigir o ensaio, mas logo um funcionário se interpôs não pode interromper o ensaio... agora só no final, e Horácio bem pensou em disparar-lhe um balázio de punhos na cara de diarreico medieval, mas tentou o seu melhor sorriso ao funcionário e foi-se sentar. o maestro era muito, muito incómodo, e fazia mais pausas que o Rodrigues mesmo antes de resolver o problema da flatulência (aquilo eram pausas a toda a hora, da banda e dele); fazia uns gritinhos quando aquilo não ia como ele queria, e tinham passado bem trinta minutos e ainda não tinham saído do primeiro andamento. quando finalmente ele se deu por satisfeito, e passou para o segundo andamento – a Marcia -, Horácio Ressurgita sentiu o coração cavalgar, os dedos mover-se contra a sua vontade, os olhos dispararem faíscas de lágrimas incontroláveis pela emoção. grande, ele, e maior o sentimento, um relâmpago de pranto cruzou o espaço acústico, e foi aterrar directamente nos ouvidos cuidados e malhumorados do maestro. tudo acompanhou aquele seco mover de ombros, a música caiu no chão e só se ouviu o grito de Horácio a suplantar o anterior. com o fim da música e tantos olhos dispostos nele, Horácio Ressurgita viu chegada a sua oportunidade. encheu o peito de ar para acabar com os soluços, levantou-se (com a sua menina debaixo do braço) e caminhou directamente para o assunto, sem pausas nem hesitações, como um grande solo de 365
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tuba: - desculpe o senhor maestro... Horácio Ressurgita, tubista… eu não consigo aguentar a emoção que a Marcia Funebre da Eroica me provoca... eu toco tuba, sabe... e vim cá assistir para falar consigo. eu tenho uma grande dor... é que eu queria tocar tuba na Marcia Funebre, mas o Beethoven não quer... o senhor, que é uma autoridade, podia-me dizer se não há maneira de resolver isto... orquestra, funcionários, audiência, tudo franzia o sobrolho esperando uma das célebres reacções do maestro que fariam Horácio Ressurgita esconder-se para a eternidade e subsequentes debaixo das costuras do Universo. mas não. o homem levantou-se da cadeira, aproximou-se (quase se baixou!) do fim do palco e olhou para Horácio Ressurgita com simpatia, tranquilidade e muita, muita curiosidade: Horácio, é um prazer. suba ali por aquelas escadas e venha-me mostrar o que quer dizer... Horácio, com o coração a cavalgar o corpo e os sonhos impossíveis, sentase no meio da orquestra, e ao sinal do maestro, começa a tocar a Funebre onde considerava bem. e o maestro não mandou parar, mas fazia-lhe sinal para prosseguir. a orquestra acompanhava, com risos escondidos entre os arcos dos primeiros violinos. o coração de Horácio saía-lhe da boca directamente para a tuba, fundia-se na voz, dilatava os espaços e as modulações. Horácio tocava – planava, sangrava – e uma dor física nascia dos seus movimentos; parecia nascer dos sons, formar-se deles, e lançar-se sobre a terra toda. os sons levavam-no a sua casa, tingida de vermelho. nas paredes corriam grossas e fundas gotas de sangue, como pinceladas, enquanto as notas iniciais da Marcha Fúnebre se soltavam dos seus lábios e do coração. o tema começava nos clarinetes, e a sua tuba superava-o, mais alto e mais brilhante, pelo chão do som. a sua mulher deitada, com as pernas altas e abertas, suada, e uma cabeça de criança surgia, enquanto a tuba de Horácio dialogava com os violoncelos em zonas negras que a parede caía de sombra Márcia, e subia no som, enquanto a orquestra respondia numa voz só, num choro do Universo, enquanto ele, no som, via a filha nascer, nas paredes sonoras de vermelho Márcia Fúnebre. vou chamar-lhe Márcia Fúnebre, disse, quando agarrou a filha inesperada nos braços. não tinha voltado ao convívio com o maestro. a sua saída disparada do 365
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ensaio, até casa, tinha-o deixado envergonhado, e ao sonho ainda mais impossível porque possível. todos os dias, agora, às onze horas da manhã, Márcia sorria, andava, brincava, enquanto o pai enchia a sala com os sons metálicos e suspensos da Marcha. passaram assim muitos dias, e um destes, estando assim os dois, tocaram à porta. Firmina foi abrir mora aqui o senhor Horácio Ressurgita, tocador de tuba? Horácio desceu as íngremes escadas com Márcia num braço e a tuba noutro. ter visitas era mais estranho do que ter quem o ouvisse tocar. com o mesmo espanto reconheceu o maestro. demorei a encontrá-lo... quero que venha tocar a sua improvisação em público e passou o tempo previsto para os ensaios, o tempo de preparação, todo o tempo necessário ao sonho, que é sempre demasiado e pouco. Márcia crescia aos sons da Marcia. no dia do concerto, num engalanado Auditório, Horácio Ressurgita sentou a mulher e a filha no melhor lugar, enquanto olhava triunfante para o Rodrigues, metido dentro do fato na última fila, entre a vergonha e a vergonha. foi, binário triunfante, para a entrada de artistas. com palmas e estrépito – a que a voz profunda de Márcia se juntou – Horácio entrou com o experimental maestro, sentou-se diante dele e da orquestra, e começou a tocar a sua improvisação sobre a Marcia Funebre. via o espaço do seu coração alargar-se, enquanto beijava os lábios da tuba, e a sua mão entrava na concavidade enorme. tocava como se o seu o próprio coração comandasse o sopro, e o sopro todo se abandonasse dele para cair dentro da substância da música. via o seu ser inteiro cair para dentro da pauta, enchê-la de um som de tuba incendiado e luminoso, e o seu próprio sangue encher de comoção e luz o universo inteiro. viu luzes aquáticas, imersas, caírem dentro do coração da sua filha, enquanto o seu coração se dilatava pelo sopro. Horácio tocava – planava, sangrava – e uma dor física nascia dos seus movimentos; parecia nascer dos sons, formar-se deles, e lançar-se sobre a terra toda. quando as cordas e os tímbales preparavam o final, Horácio respondeu com todo o seu coração àquele último convocar do tema, chamando todas as forças e todos os sons e todas as manhãs às onze horas onde sonhava contra o mundo, e ao pousar dos braços do maestro, caiu.
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Márcia não deixou que tocassem a Marcia Fúnebre no funeral do pai foi essa música que o matou dizia nos seus cinco anos roucos. a morte do pai parecia tê-la estranhamente envelhecido. uma madeixa de cabelo branco dividia-lhe a cabeça, e os olhos pareciam molhados em duas pequenas poças de sangue. ninguém parecia estranhar a autoridade daquela criança, e só o silêncio levou o cadáver pesado e feliz de Horácio Ressurgita para a terra. foi de fato de gala, a barba de uma luz metálica e definitiva, bonito como nunca, agarrado à tuba que ninguém conseguiu desprender dele. Márcia cresceu encostada ao silêncio. como a mãe punha um luto pesado, Márcia cresceu envolvida em panos pretos. silêncio escuro, andava pela cidade, na escola, cosida com a morte. as outras crianças evitavam o preto das vestes e da voz rouca. pouco depois de entrar para a escola, começou o pior na vida de Márcia Fúnebre: os gritos, altos e assustadores, 365
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que lançava sem controlar do coração para as ruas, pouco antes de alguém morrer. mais que os sinos da Igreja, as pessoas benziam-se, e encaminhavam-se para o adro, até a família do morto o vir chorar publicamente. os anos passavam, e Márcia anunciava mortes fora da aldeia, na província, no país. os anos cresciam e o coração alargava-se. distendia-se, como um som que viesse das profundezas do mundo. mesmo vidente, Márcia Fúnebre e a mãe eram estranhas, vistas de lado, mal queridas pelo povo. dez invernos depois do pai, Márcia perdeu a mãe. mas desta vez não gritou. ela anda feita com a morte , dizia dela a aldeia, calada na morte da mãe, quando os gritos de Márcia aumentavam de morte para morte, e o povo deixava lentamente de os ouvir como anúncio, mas como convocação da morte ela anda feita com a morte para nos levar a todos numa noite de Agosto, quando o povo todo se preparava e ensaiava para a festa do Senhor Morto, com o sacristão em frente, um bando de mulheres avançou para a “bruxa” com dois archotes na mão. deitando o fogo e rezas e água benta sobre a casa de paredes altas que dava para a frente da Rua do Mundo, quiseram matar Márcia. o fogo apanhou-a a dormir, colou-se aos cabelos quase todos brancos ao descer a escada, misturou-se com as longas saias do vestido negro. Márcia Fúnebre corria pela povoação, corria, aos gritos, os cabelos de fogo, a morte ardendo. correu até ao largo. ao fundo, perto do coreto, Rodrigues e a banda ensaiavam a Marcia Funebre para tocar na festa, «em honra do Horácio». assim que ela se aproximou da música, o fogo suspendeu-se, e num som metálico e luminoso, Márcia Fúnebre voou, os cabelos em fogo, o corpo rubro, a voz silêncio gritante, e desapareceu inteira para dentro da música k
este conto foi originalmente publicado em Museu de História Sobrenatural (Autoria, 2007) e aqui republicado revisto em Abril de 2009, em Paris, ao som da mesma “Marcia Funebre” da Terceira Sinfonia de Beethoven, interpretada pela Orquestra da Rádio de Berlim dirigida por Ferenc Fricsay
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Seja responsável. Beba com moderação.