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Para aprofundar
O conto O Alienista foi publicado entre outubro de 1881 e março de 1882 na revista carioca A Estação, e depois integrado no livro Papeis avulsos, publicação esta que reúne o que para muitos são alguns dos mais geniais experimentos narrativos desta fase da trajetória artística do autor. Ao colocar-se como separadas duas fases da concepção da obra de Machado de Assis, está-se levando em conta a fundamental divisória representada pela publicação do romance pioneiro que representou Memórias póstumas de Brás Cubas, de 1880, redigido, portanto, apenas um ano antes do início do processo de escrita de O Alienista. É de fundamental importância a compreensão do que representou esta ruptura que dividiu as duas fases da escrita machadiana, pois a narrativa sobre Simão Bacamarte e sua teoria da loucura é uma das mais bem-acabadas obras deste projeto artístico em processo de consolidação.
Tida como de difícil qualificação, quase impossível restringir a uma única convenção ou escola literária para descrever ou enquadrar, a guinada de 1880 não seria possível sem as obras que antecederam as deste período aludido. Foi no período de fastio e desgaste da fase tardia do romantismo brasileiro que Machado realizou seus primeiros projetos e experimentos narrativos, tendo também se iniciado com a escrita dramatúrgica e a poesia. Será nos debates sobre realismo literário, no entanto, que a crítica encontra os melhores instrumentos para refletir e traçar apontamentos proveitosos sobre o alcance vertiginoso da prosa machadiana.
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Se tornará célebre nos meios letrados cariocas do século XIX, no entanto, através de um gênero literário europeu recente, incubado pela consolidação da ampla circulação da imprensa moderna: A crônica. Do sucesso formado pela produtiva carreira na escrita em
notas em pé de páginas de jornais, encontra espaço para iniciar-se em outro gênero também filho da imprensa moderna europeia: o folhetim. Tornou-se célebre ao ponto de desbancar José de Alencar – o primeiro folhetinista brasileiro – em termos de circulação e procura. A escrita de alguns de seus principais romances será concebida nesta forma, assim como alguns de seus principais contos – O Alienista incluso.
Na primeira fase da prosa machadiana integram-se os romances Ressurreição (1872), A mão e a luva (1874), Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878), e as reuniões de contos nas publicações Contos fluminenses (1870) e Histórias da meia-noite (1873). É de grande valia para a compreensão devida dos sentidos do projeto literário deste período a leitura de seu primeiro folhetim, de 10 de outubro de 1859, em que versa sobre os sentidos da forma folhetim como gênero literário, e surpreende o grau de consciência que o autor, nos seus 20 anos de idade, já demonstrava ter sobre os sentidos do uso do gênero de origem parisiense no Brasil. Já neste primeiro escrito folhetinesco se faz notar um tema que também se faz presente na composição de O Alienista: a facilidade do timbre paródico das formas culturais brasileiras ao primarem-se pelo esforço do mero arremedo sem mediações das formas europeias. Propõe em sua descrição sobre o papel do escritor folhetinista a comparação com o beija-flor, que circula por toda a floresta, observando a natureza por todos os ângulos, percorrendo a sociedade em todas suas paragens de diversos pontos de observação. Uma forma europeia, portanto, só ganharia sentido com a rigorosa, porém não especializada apuração do olhar sobre a vida local, sobre a sociedade brasileira tal como ela se manifesta diante dos olhos do folhetinista.
É às convenções do romantismo literário brasileiro, no entanto, que Machado colherá a inspiração para compor seus primeiros procedimentos literárias em sua obra de ficção deste primeiro período. O faz, no entanto, com clara ambição de romper com convencionalismos e formas dogmáticas de arremedos filosóficos e literários europeus. É desta fase o ensaio mais famoso de seus textos críticos, “Notícia da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade”, de 1873, em que propõe, neste ardil retórico que opõe instinto de nacionalidade a sentimento íntimo, um modo de recolher as imagens do mundo de tal maneira que não reproduza apenas uma imagem superficial da coloração local nos conteúdos literários, pois se deve encontrar o brilho de um sentimento íntimo da forma de pertencer a seu tempo e país. Uma imagem de universalidade ao lidar com questões amplamente humanas, mas sem abandonar a cor local da concretude do plano de representação do meio social brasileiro.
Seus livros da dita “fase romântica”, portanto, afastam-se da coloração pitoresca de tom romanesco e patriótico que se transformou em fórmula de sucesso entre o público jovem de seu tempo. É neste sentido que se deve refletir sobre a influência de obras locais de períodos anteriores. Não há dúvidas de que soube ler todas as formas literárias de seu tempo, cumpriu com a faceta de grande erudito, são fundamentais as influências cosmopolitas da literatura europeia na prosa de Machado de Assis, sendo possível notar em sua prosa técnicas reproduzidas de Stendhal, Flaubert, Balzac, Maupassant, Jonathan Swift, Henry Fielding, Laurence Sterne, entre outros gigantes lidos em seu tempo. Mas não serão poucas as situações, reviravoltas e arroubos parodiados dos grandes autores nacionais que o precederam, tais como Manuel Antônio de Almeida, Joaquim Manuel de Macedo e o já mencionado José de Alencar. Os acertos em matéria de descrição de costumes e de fôlego analíti-
co eram reaproveitados pelo grande autor em sua oficina de trabalho, e este não é um dado menor, pois não é do nada que surge um grande autor e uma grande obra, assim como soube aproveitar os limites e as inconsistências de convenções literárias locais de então para pensar sua escrita. Em termos de reprodução do gênero romanesco, nesta primeira fase Machado concebia uma prosa realista de olhar arguto e de aspiração ilustrada, escrita destinada a um público “de boas famílias”. No plano do conteúdo, destrinchava relações sociais ao mesmo tempo complexas e características, sem abrir mão do esforço de lidar com relações herdadas da ordem colonial de tal forma que apontem para as aspirações de ordem e progresso de nações liberais.
A partir de 1880, o alcance artístico e de análise sobre a realidade social agiganta-se, passando até mesmo a desconsiderar convenções do realismo para exprimir-se, como a crítica qualificada aponta com tanta frequência. Em Brás Cubas, descobre um novo tipo de narrador, tanto arbitrário como despeitado, que transforma a insolência e impertinência em princípio formal e processo de configuração expressiva. O desrespeito às normas, no entanto, não as desqualifica, apenas as aponta como inoperantes, redundando numa impotência cínica que ri da própria superioridade retórica improcedente desta voz culta em província de ex-colônia. Machado abandona as aspirações românticas que buscavam um sentido original para a cor local e encontra uma voz que atinge as questões mais amplas e universais da vida letrada, mas atingindo-as pelo sentido negativo destas aspirações. Não há força social ou convenção que escape da lâmina retórica da ironia machadiana. Integram esta fase os romances Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891), Dom Casmurro (1899), Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908), bem como cinco livros de contos que reúnem mais de uma centena de narrativas breves.
Na narrativa de O Alienista, que até hoje se disputa se é conto ou novela, dada sua extensão, organização interna e unidade compositiva, é uma das realizações mais bem-acabadas no que diz respeito a esta guinada machadiana. Foi concebido no momento considerado como de maior controle e autoconsciência sobre seus processos narrativos. Nele se expõe a teoria da loucura de Simão Bacamarte, que também deve ser pensado como uma teoria da identificação do normal. Ambos impossíveis de serem atingidos, seja a loucura ou a normalidade, pois são de impossível definição sob o crivo científico apresentado. O golpe final dado pela ironia machadiana, quando o alienista se tranca por ser o único verdadeiro alienado, expõe o gesto de autodestruição como único gesto de coerência do positivista excepcional. É exposto o destino da coerção cruel da objetividade ingênua dita imparcial.