JORNAL LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO
Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes – PUC-SP
ANO 15
N0 99 Setembro 2015
E D I T O R I A L Chacina em horário nobre A periferia paulistana teve a noite mais sangrenta deste ano no começo de agosto. No dia 13, três grupos formados por pessoas armadas e encapuzadas atiraram em moradores de 10 pontos de Osasco e Barueri. O resultado foi uma chacina com 18 mortes, 15 em Osasco e três em Barueri, além de oito pessoas baleadas. Apesar de a Globo e outros veículos não acharem ligações entre as vítimas, a maioria faz parte da juventude negra da periferia. Especulam, e com razão, que o ataque foi uma retaliação por policiais por conta do assassinato de um de seus colegas, Admilson Pereira de Oliveira, em um posto de combustível em Osasco, uma semana antes dos grupos entrarem em ação. Temos ai violência combatendo violência. Não é de hoje que a polícia desrespeita os direitos humanos e persegue jovens da periferia. Muitos seguem a política de “atira primeiro e pergunta depois”, ou melhor, “atira, mata e alega perseguição e trocas de tiros”. De modo geral, o sistema que temos hoje reprime a juventude pobre. Se não por meio da polícia, é através da mídia. Os veículos de comunicação, sobretudo os televisivos, cobrem casos como o da chacina do dia 13 pelo compromisso jornalístico que eles têm de noticiar as novidades. Contudo, esse não é o único motivo, na verdade é o menor deles. Muitos programas ditos jornalísticos mais do que cobrem esses acontecimentos trágicos, criam toda uma espetacularização do caso. Todo o dia programas como o de Datena, Brasil Urgente, e o de Marcelo Rezende, Cidade Alerta, fazem de violências e agressões novelas sem fins. O público é bombardeado pela ideia de que a cidade é o duto da violência interminável. Violência é o que esses âncoras fazem com os espectadores. O público tem a falsa sensação de que esses programas são elucidativos da realidade. O que acontece mesmo é uma ludibriação com o espectador a partir da apresentação de uma realidade em partes. O pior é que acreditam que os discursos moralistas elaborados nesses veículos têm embasamento sem sequer questionar. Com isso ideias opressoras ficam na cabeça do povo e dá ibope a programas em que os apresentadores se colocam no lugar de justiceiros. Datena e Rezende são portas vozes de práticas neonazistas que atropelam os direitos humanos para, como acreditam, acabar com a violência. Esse tipo de programa dito jornalístico está no cenário brasileiro desde os anos 90 com o “Aqui Agora”, transmitido pela rede SBT de televisão. Lançado em 1991 no período pós-autoritário do Brasil, fez parte da grade da TV aberta e lançou uma “pedagogia do oprimido”, ou seja, o telespectador acreditava aprender com as notícias do programa tanto quanto qualquer outro jornal ou meio midiático. Isso garantiu ao jornal um status de veracidade e tudo o que ele reportasse seria levado a sério, não importando o modo como seria tratado. O programa percebeu que a população se comovia mais com casos polêmicos que continham violência em algum grau e investiu nisso. Ficou famoso pela notificação interminável do Massacre do Carandiru, por exemplo. Vários programas foram dedicados a esse caso e transformaram uma chacina numa penitenciaria em uma novela que a cada minuto era uma lição de conservadorismo. “Aqui e Agora” pode ter terminado, mas seu legado continua até hoje. A mídia aprendeu que o jornalismo vende mais quando é um show – de horror preferencialmente. Os “Datenas” da vida estão ai não só porque as emissoras lucram com eles, mas também porque fazem parte de todo um pensamento de formar opinião e fazer as pessoas verem (e gostar de ver) rios de sangue na TV. A chacina foi ao mesmo tempo uma tristeza para os espectadores, como também um entretenimento para uma cultura moralista.
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Reitor
Vice-Reitor
Pró-Reitora de Graduação Pró-Reitor Comunitário
Faculdade de FILOSOFIA, Comunicação, LETRAS e artes faficla
Diretor Márcio Alves da Fonseca Diretora Adjunta Regiane Miranda Nakagawa Chefe do Departamento de Jornalismo Valdir Mengardo Coordenador do Jornalismo Milton Pelegrini Vice-Coordenador do Jornalismo Francisco Chagas Camêlo
EXPEDIENTE C o n t r a ponto Conselho Editorial Hamilton Octavio de Souza, José Arbex Jr., Marcos Cripa e Pollyana Ferrari Comitê Laboratorial Luiz Carlos Ramos, Rachel Balsalobre, Salomon Cytrynowicz, Wladyr Nader Editor José Arbex Jr. Ombudsman Hamilton Octávio de Souza Secretárias de redação Mariana Castro e Maria Eduarda Gulman Secretária de produção Bia Avila Editor de fotografia Leonardo M. Macedo
Capa: Lara Castelo, Moscou
SUMÁRIO
PUC Pontifícia Universidade Católica DE SÃO PAULO PUC-SP
Mulher, lésbica e transexual Manda nudes (mas conscientemente) O camarote caiu Rodrigo Bueno abre o jogo Jogadoras lutam pela permanência no esporte O direito à cidade é um privilégio que poucos podem pagar Vermelho de perto Para não esquecer Auschwitz 100 anos de um genocídio não-reconhecido Conflitos do século XX ainda inspiram o cinema Veto a Foucault abre polêmica sobre a liberdade de cátedra Cresce o número de escolas públicas militarizadas Auri, um espectro de humanidade Delilah Manifestações ao redor do país Apesar de represálias, Creche Popular resiste
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PUC Simetria Design Gráfico – projeto/editoração Wladimir Senise – Fone: 2309.6321 CONTRAPONTO é o jornal-laboratório do curso de Jornalismo da PUC-SP. Rua Monte Alegre 984 – Perdizes CEP 05.014-901 – São Paulo – SP Fone: 3670.8205 Número 99 – Setembro de 2015
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Setembro 2015
CONTRAPONTO
Entrevista
Mulher, lésbica e transexual Por Evelyn Nogueira
A professora de filosofia Luiza Coppieters conta para o Contraponto como é ter uma postura revolucionária em um país conservador
Contraponto – Como foi o período de transição de gênero? Luiza Coppieters – Foi um período de descobertas para mim. Você não tem certeza, segurança... é um período de muito medo em relação à vida social (questão de emprego e violência), mas ao mesmo tempo é um período de descobertas, prazeres, incertezas. Minha sorte é que tinha uma namorada e ela me ajudou muito, deu muito apoio, foi fundamental. E para ela também foram muitas descobertas.
CP – O mercado de trabalho fechou algumas portas para você desde a sua mudança de gênero? LC – Não fecharam portas, bateram na cara mesmo. Eu perdi emprego – acredito que por transfobia – e isso que virou a tensão total, tensão que me acompanhou desde que os donos souberam, e como eu joguei isso publicamente acredito que nenhuma escola vai ter interesse em me contratar. E eu mesma sofri uma pressão psicológica, não “tô” recuperada ainda, não consegui resolver carteira de trabalho, não fiz homologação, não recebi dinheiro do Fundo de Garantia, me destruíram de tal forma que eu não tenho condições psicológicas de entrar na educação formal, e entrar no estado não vou; não quero servir de óleo da engrenagem perversa construída pelo PSDB na rede pública.
“Acredito que a minha figura seja uma mudança” LC - Não fui só para reivindicar gênero. Nossos vereadores são realmente uma coisa deplorável, são pessoas realmente desqualificadas, ignorantes e com interesses econômicos. Quando olho para idade média penso: “que tempos avançados eram aqueles, diante do que a gente vê hoje”. Jogar o gênero dessa forma é uma “cortina de fumaça”, como jogar a questão da maconha ou do aborto para irem tratorando em cima de outras questões. O pessoal é facilmente manipulado porque infelizmente esses temas são polêmicos, porque a sociedade é estupida o suficiente para não entender do que se trata. Tiraram os gêneros alimentícios, tiraram transversalidade porque tem “trans” na palavra... acho absurdo que vereadores venham legislar sobre isso. O que mais me deixou indignada é que eles diziam que eram médicos ou pais de família. Eles não estavam lá como médicos ou pais de família, estavam como vereadores, sujeitos políticos, públicos e não podem legislar a partir deste campo privado. No fundo isso prevê mais policiamento do professor... mas a questão mesmo é ficar jogando isso aí só pra ganhar voto de gente imbecil que é religiosa, ou gente religiosa que é imbecil, não sei qual é a ordem.
CP – Recentemente você se candidatou para a vaga de mulher trans no conselho municipal LGBT. O que sua candidatura propõe? LC – Peço para olhar na minha página as minhas propostas. A prefeitura já ta com cartas marcadas, já fez essa eleição para colocarem os próprios candidatos para não ter fiscalização e ter concordância com tudo que a prefeitura quer. O fundamental, do meu ponto de vista é fazer um censo da população que não é só no centro e não é só na prostituição. Tem que saber onde essas pessoas estão, e tem que ter atendimento médico para o processo transexualizador/hormonal. Tem que criar centros de acolhimento e de formação das pessoas, acolhimento de jovens que estão nessa questão. Precisa de lugares para as pessoas transexuais se reunirem, se organizarem e para isso precisa investir na educação. É “foda” lidar com o empresariado porque se criar uma lei que tem que contratar trans* vão contratá-las para funções de menor importância e que vai ficar em um lugar isolado para não falar com ninguém, aí já precisaria pensar em políticas adequadas. CP – Com uma possível vitória e mais visibilidade para mulheres trans é possível diminuir casos de violência (como os casos de Laura Vermont e Verônica Bolina), ou até mesmo extingui-los? LC – Acredito que a minha figura seja uma mudança, é bom, mostra para a sociedade que não sou ligada a prostituição, não sou ignorante e nem despolitizada. O fundamental para diminuir violência com minorias é democratizar a mídia; enquanto tiver a mídia na mão de meia dúzia de famílias vai continuar esse país violento, autoritário e hierárquico. Mas extinguir a violência não dá, tem que mexer na comunicação e na educação, mas é um problema.
CP – Recentemente você e algumas outras pessoas foram a Galeria da Câmara Municipal de São Paulo para reivindicar gênero no Plano Municipal de Ensino. O que isso prevê?
CP – Você tem ou já teve problemas com o uso do nome social? LC – Nome social é um engodo, vamos esclarecer isso. Porque eu tenho que esperar um médico ou juiz que normalmente é heterossexual, branco e cisgênero me definir? Mas especialmente constrangimento, ter que apresentar documento e tudo mais. Se for preencher um cadastro na internet com meu “nome social” eu posso ser
© Reprodução/catraca livre
CP – Além de a violência psicológica que a procura de emprego causa, é comum você sofrer outros tipos de violência no dia a dia? LC – Eu sofro vários tipos de violência, diárias, né? A maneira que as pessoas olham, o tratamento no masculino. O taxista por exemplo me chama de “chefe”.
© Reprodução/Facebook
CP – Como é ser mulher e transgênera em um país que tem a bancada mais conservadora desde o período ditatorial? LC – Ser mulher transexual no Brasil já é uma coisa complicada, acho que em qualquer lugar, mas no Brasil... é uma situação bem tensa. A gente não tem direito, a gente é vista como “sub-gente”, como uma aberração, como uma doença pelo o CID10, como pecadoras pela a religião. É um ato realizador, mas você fica com medo porque “tá” vivendo em um país onde os políticos e as empresas “tão” conseguindo desregular completamente a vida pública, e querendo regular a vida privada – como o uso do banheiro –, sem falar na questão de retificação de nome e sexo nos documentos. Passa por todo um processo perverso, humilhante e constrangedor. A questão da bancada não é só como transexual: sou mulher, lésbica, transexual, comunista, ateia, professora de filosofia e maconheira.
enquadrada como falsidade ideológica. Isso já é uma tortura psicológica pois tem que colocar o nome masculino.
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CONTRAPONTO
Redes sociais
Manda nudes (mas conscientemente) O problema não está no envio de fotos íntimas, mas na sua divulgação não consentida
Por Lara Castelo, Mariana Castro e Marilia Maaz rápida ascensão da internet expôs a população a novas dinâmicas sociais. As relações interpessoais, ao mesmo tempo em que se estreitam com a dinamicidade do contato, se diluem sutilmente, uma vez que acontecem cada vez mais por trás de telas, e não olho no olho. As crianças já nascem tendo como o principal “brinquedo” um tablet, a juventude fica impaciente frente a mensagens que demoram mais de uma hora para serem respondidas e a vida cotidiana é compartilhada detalhadamente através das diversas redes sociais do momento. Há algumas décadas atrás, a diferenciação entre o que deveria ser compartilhado com terceiros e o que era pessoal demais para isso era clara. Hoje em dia, cresce a divulgação voluntária de sentimentos, conquistas, grandes acontecimentos e momentos íntimos, normalizando uma exposição constante e narcisista. Muitas vezes, o compartilhamento destas informações tem uma finalidade, mesmo que inconsciente, de enaltecer o ego em meio às disputas por felicidade que se tornaram as timelines (“linhas do tempo” com as publicações no Facebook). Uma das novidades provindas desta nova era virtual é o chamado sexting, que consiste no compartilhamento consciente de conteúdos eróticos e sensuais com outra pessoa, via celular. A prática toma proporções graves, entretanto, quando estas informações são espalhadas pelo receptor sem o consentimento do mensageiro, saindo do espaço privado e se perdendo no vasto mundo da internet. Mal intencionados, diversos jovens se utilizam da confiança neles depositadas por suas vítimas para expor a intimidade alheia. Isto se tornou tão comum que o termo Revenge Porn (em tradução livre, pornografia de vingança) foi criado remetendo à divulgação de conteúdos produzidos de forma consentida, mas sem a intenção de serem divulgados. Após o término do relacionamento, o parceiro divulga estes conteúdos como forma de vingança – daí o nome. Segundo dados da savenet, em dois anos o número de casos cresceu 200%, sendo 81% das vítimas mulheres. O número de culpados que responderam por seus atos, entretanto, é quase mínimo, uma vez que, frente a toda humilhação gerada por situações como esta, a mulher (na maioria dos casos, adolescente) prefere não denunciar. Um dos mecanismos utilizados pelos divulgadores é o Snapsave, aplicativo que salva automaticamente fotos de outro popular aplicativo chamado Snapchat, que tem o objetivo oposto: o envio de fotos que durem no máximo dez segundos, não podendo ser acessadas depois disso. Este segundo é muito utilizado para o envio de fotos íntimas por ser considerado mais seguro e está em ameaça pelo primeiro, que viola gravemente o direito à privacidade. Este tipo de ação não é considerado crime no código penal, mas está sujeito ao pagamento de indenizações pelos danos causados à imagem
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© Marcela Ronconi
A
A antiga – mas nunca velha – mania de culpabilizar a vítima pode levar a danos ainda mais profundos
e à reputação da pessoa exposta. Além disso, segundo Renato Leite, advogado e professor de direito digital na Universidade Presbiteriana Mackenzie: “em uma situação em que a vítima é menor de idade, o responsável pela criação, divulgação, compartilhamento e consumo destas imagens será elencado no delito previsto no Estatudo da Criança e do Adolescente, que pode ensejar uma pena de reclusão de até 6 anos”. Se, no caso, quem comete o ilícito é menor de idade, ele também responde pela ação, mas em local e tempo distintos. Culpabilização da vítima – O mais preocupante diante de situações deste gênero é que, em uma assustadora quantidade de casos, a vítima é a rechaçada, sendo humilhada por comentários depravados ou moralistas. Como parece ser comum em nossa sociedade machista, uma mulher que é violada em qualquer grau é, muitas vezes, culpabilizada pela própria violência, seja porque “estava usando roupas curtas demais” ou porque se “desvirtuou” mandando fotos íntimas e confiando em quem não devia. Segundo o professor de teologia da PUC-SP, Jorge Claudio Ribeiro: “é uma fraqueza moral a pessoa deturbar desse modo a intimidade” pois, para ele, a jovem abre sua intimidade para um ambiente que não é seguro. Além disso, muitos acreditam que a mulher envia fotos em busca de atenção, de se provar e de ser aprovada. “É a ideia do
exibicionismo. Eu acho que a sociedade não pode condená-la. Tem que, primeiro, entender o que se passa e estabelecer critérios de crescimento humano. O cara também é vitima. Do que? Primeiro da sociedade, da cultura, que a gente ta tendo, que é uma cultura muito narcisista.’’, completa Jorge. O que é frequentemente deixado de lado é que, em incontáveis casos, o envio de fotos vem de ambas as partes. Além disso, quem violou a intimidade de uma terceira pessoa, ignorando a confiança depositada nele e causando danos psicológicos às vezes irreparáveis, foi quem espalhou as fotos. Ele é e sempre deve ser lembrado como o único culpado por ilícitos desta natureza. Para a psicóloga Denise Feliciano, a sociedade ainda coloca a culpa na vítima pois ‘’tende a buscar bodes expiatórios para suas fragilidades.’’ Segundo Denise, as motivações psicológicas para a divulgação não consentida deste tipo de foto estão, normalmente, vinculadas à autoafirmação masculina diante de seus pares, numa tentativa de provar sua masculinidade por troféus representados em quantidades de meninas que eles “ganham”. “O que agrava essa questão atual é que nem sempre eles medem a dimensão que tais atos adquirem pelo efeito multiplicador que tem a internet.”, explica Denise. N.R, de 18 anos, teve suas fotos espalhadas aos 14 por uma amiga que, após uma briga entre as duas, teve acesso ao conteúdo enviado por ela a um menino. “Jamais consegui confiar
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O que agrava essa questão
atual é que
nem sempre eles medem a dimensão que tais atos adquirem pelo efeito multiplicador que tem a internet.”
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(Denise Feliciano)
novamente, demorei muito para entrar em um relacionamento de novo, pra confiar em amizades e tudo mais”. Casos como esses abalam, muitas vezes permanentemente, a confiança em um terceiro. J.F, 19 anos, que teve suas fotos vazadas há dois anos por causa do aplicativo Snapsave, relata que “dói muito mais porque você confiou e você tava achando que tava tudo bem e a pessoa vai lá e faz isso com você”. Somada à frustração de ter sua intimidade exposta, a autoestima acaba sendo abalada. Estas meninas foram cercadas por comentários maldosos e críticos, recheados de ofensas e malícia. E como se não bastasse, as atitudes de repúdio não se limitam à colegas e desconhecidos. Muitas vezes, a própria família da vítima atira pedras, criticando sua atitude. “Meu irmão me xingou de puta na época”, conta J.F. Apoio – O apoio dos pais, apesar do sentimento de frustração comum que os ocorre, é fundamental para que os danos sejam amenizados o máximo possível. Também segundo a psicóloga Denise: “o desamparo nesses casos pode ser desastroso e levar a estados depressivos de vários graus.”. Neste sentido, N.R se diz sortuda por ter tido o apoio da família, que cuidou das questões legais e buscou um ambiente em que a filha se sentisse segura novamente. Ela conta que foi excluída dos grupos de amigos e precisou mudar de colégio em uma tentativa de “recomeçar”.
Outra entrevistada, que não quis se identificar, estava inconsciente quando foi fotografada nua e, aos 17 anos, teve tais fotos divulgadas. Ela, entretanto, esconde o ocorrido dos pais há um ano e não pretende contar, pois acha que eles não aceitariam bem. Por não ter o apoio dos pais, que ela confessa ter desejado em diversos momentos, também não conseguiu fazer nenhuma denuncia. Apesar de lidar bem com o assunto hoje em dia, segundo ela, “a marca fica pra sempre”. “Se eu falar que essa foi a pior semana da minha vida, não seria exagero. Saber que toda a sua série tem uma foto sua totalmente pelada é extremamente vergonhoso, constrangedor.”, desabafa. Este tipo de violação, originada da confusão atual entre o espaço público e privado, atinge não só jovens anônimas, mas também símbolos midiáticos de sensualidade. A atriz Carolina Dieckmann teve, em 2012, seu computador pessoal invadido e suas fotos íntimas divulgadas. Em virtude da midiatização provocada por esse caso e das atitudes que a atriz tomou legalmente, o processo de construção de uma legislação sobre tais ocorridos foi acelerado, levando ao surgimento da lei que leva o nome da própria atriz. A lei criminaliza a invasão de sistemas de computadores conectados ou não à Internet. Além disso, vale lembrar que outras famosas, como Demi Lovato e Jennifer Lawrence, também já tiveram fotos íntimas divulgadas na internet.
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Ainda segundo a psicóloga Denise Feliciano, em qualquer circunstância haverá um período em que algum tipo de sofrimento vai estar em cena e precisará ser vivido para que possa ser superado. Porém, algumas pessoas podem ter dificuldades em evoluir nesse quadro sozinhas. Para tais, se recomenda a procura de ajuda por um profissional de saúde mental. Neste contexto, também, se faz de suma importância a atuação das escolas frente a estes conflitos que, infelizmente, são comuns em praticamente qualquer ambiente escolar hoje em dia. Se omitir como instituição pode gerar danos ainda mais profundos à vítima e causar constrangimentos que não devem ser experimentados em nenhuma fase da vida. O trabalho de psicopedagogas, por exemplo, se mostra muito eficaz, na medida em que auxilia a vítima durante a turbulência dos períodos após o acontecimento. Além disso, se os jovens agem desta maneira em uma tentativa de alimentar seu ego, se faz urgente e necessária uma campanha para mudar o público que temos hoje. Ao ver e compartilhar estas fotos, quem as recebe está sendo cúmplice desta atividade. Não incentivar esta divulgação diminui consideravelmente o poder multiplicador que a internet já tem por natureza. Algumas escolas já oferecem palestras sobre os perigos da internet, mas é necessária uma educação pontual quanto ao desvio de caráter que é o compartilhamento não autorizado de conteúdos íntimos de um terceiro. O problema central nunca esteve no envio das fotos, mas sim em sua divulgação não consentida. Não é errado e não deveria ser condenável se sentir bem com seu próprio corpo, com sua autoimagem e usá-la de acordo com os seus interesses. Para J.F, a garota não pode se reprimir. ‘’Eu não vou falar para as meninas não mandarem. Uma coisa é você sair mandando, outra é você mandar conscientemente e saber dos riscos que você ta assumindo. ’’Segundo ela, a falta caráter é de quem divulga e hostiliza a intimidade alheia inconsequentemente, por motivos egoístas e injustificáveis. Mesmo com a selvageria da internet, a exposição da intimidade e a sede em compartilhar sua vida particular com outros, deturpar a intimidade de alguém sempre foi e sempre será um crime, mesmo que não por definição legal. Violar a confiança de seu parceiro, amigo ou até conhecido deve ser enxergado com a seriedade que merece. É importante que a sociedade passe, mais do que cuidar dos danos após estas situações, a criar uma consciência coletiva que evite que elas se repitam.
Informações Caso seja vítima, além de procurar as autoridades mais próximas, entre em contato com a hotline do site Safernet http://new. safernet.org.br. O mesmo site possui uma área de denuncia para vítimas de delitos desta natureza e de Cyberbullying. Segundo o artigo 21 do Marco Civil da Internet, que estabelece os direitos e os deveres para quem usa a rede, a vítima pode solicitar a remoção de conteúdos de nudez e sexo não autorizados diretamente aos provedores de aplicações na Internet.
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CONTRAPONTO
Discriminação
Por Maria Eduarda Gulman e Mariana Castro
O camarote caiu O boicote à casa noturna paulistana que escolhe a dedo quem fará parte de sua noite
ão Paulo é a cidade que nunca dorme. Uma das maiores metrópoles do mundo, ela oferece serviços e entretenimento aos seus cidadãos 24 horas por dia, contando com um extenso leque de diversão noturna para todas as idades e estilos. Historicamente conhecida por sua mistura de etnias e culturas, a selva de pedra também é berço de uma desigualdade social digna de novela. Segundo a empresa de consultoria Mercier, São Paulo é a décima cidade mais cara do mundo. Nos bairros nobres, uma noite na balada pode sair por até 50 mil reais. Enquanto isso, na Paraisópolis, o funk rola solto na rua e exalta a esquecida cultura da periferia. A noite paulistana pode ser considerada heterogênea por contar com todo estilo de música e ambiente. De um modo social, entretanto, ela é completamente homogênea, uma vez que sua “fama” é constituída majoritariamente pela elite. A casa noturna sertaneja Villa Mix é um dos destaques da Zona Sul, onde o valor para entrar varia de R$70,00 a R$140,00. Desta forma, o estabelecimento se torna invariavelmente excludente, já que uma parcela muito pequena da população tem a condição financeira necessária para pagar o valor de entrada. Como se não bastasse, os funcionários da balada tem instruções para não deixar entrar quem não se adeque ao público padrão, dando margem a inúmeros casos de discriminação. Incomodadas com o assustador número de casos de preconceito envolvendo a casa, 10 meninas se uniram para criar um movimento de boicote ao Villa Mix. A ideia surgiu a partir de uma discussão em um grupo fechado do Facebook, onde uma publicação relatava que duas meninas haviam sido humilhadas na entrada da balada. Após o ocorrido, o grupo se articulou para criar uma página na rede social que desse visibilidade a outros depoimentos como esse, visando denunciar a casa noturna. “Assim que o movimento ganhou força, nós reunimos cerca de 50 a 60 depoimentos e enviamos diretamente para o Ministério Público. Eles já haviam recebido diversas denúncias antes, então nosso documento só os ajudou a investigar melhor o caso”, explicou uma das administradoras da página, que pediu o anonimato. Não é de hoje que se ouve falar na seleção que o Villa Mix faz na entrada da casa, para que seja “um ponto de encontro entre celebridades, artistas e da alta sociedade paulistana, num espaço exclusivo e privilegiado para aqueles que priorizam excelente e eficiente atendimento, sendo a mais bem frequentada casa de shows da noite sertaneja de São Paulo”, como descrito no site do local. Os depoimentos apresentaram, em sua maioria, relatos de pessoas impedidas de entrar na casa tendo como justificativa sua cor, peso, vestimenta ou por não serem considerados(as) bonitos(as) na percepção dos seguranças e promoters. Estes últimos, responsáveis por garantir a entrada VIP de pessoas selecionadas, chegam a pedir foto das meninas antecipadamente, visando decidir se concederão o benefício ou
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© Reprodução
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Trecho de um dos relatos postados na página do boicote, no facebook
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Assim que o movimento ganhou força, nós reunimos cerca de 50 a 60 depoimentos e enviamos diretamente para o
Ministério Público. Eles já haviam recebido diversas denúncias antes, então nosso documento só os ajudou a investigar melhor o caso”
(anônimo)
não. É fácil notar o padrão: se você é rico(a), branco(a) e magro(a), você merece frequentar a casa e usufruir da luxuosa noite paulistana oferecida por ela. Este filtro garante um ambiente homogêneo, o que é visto por grande parte da elite como algo positivo. Os frequentadores do Villa Mix pertencem a um seleto grupo social e gostam de um mesmo tipo de público, gostam de ver e ser vistos por pessoas de seu meio. Não haveria problema algum, não fossem os crimes constitucionais que ocorrem na porta da balada para garantir isso. Surgiram, com o movimento, pessoas que defendessem ambos os lados. Outro grupo do Facebook, este chamado de “Boicote ao Boicote do Villa Mix”, defende – muitas vezes de forma assustadoramente fervorosa – a atuação da casa. Em uma entrevista ao Contraponto, uma frequentadora – que não quis se identificar – afirmou ser contra o boicote, pois acredita que cada casa noturna tem suas exigências e cada um deve ir onde se sentir bem. “Do mesmo jeito que Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP
para ir a um casamento é necessário usar um traje adequado, o Villa Mix exige pessoas bem vestidas para frequentar a casa, quem se incomoda com isso basta não ir”, afirmou. É desnecessário refletir sobre como estaria o mundo hoje caso os incomodados não fizessem nada para mudar o que os incomoda. Frente a isso, merece destaque aqueles que costumavam frequentar a casa, mas que aderiram ao boicote e esperam, longe do Villa Mix, mudanças efetivas que acabem com esta ordem. Laura Valério, estudante de administração na FGV, é uma delas. Para ela, “a probabilidade desse caso ‘acabar em pizza’ é altissíma. Os donos possuem bons contatos que podem safá-los do fechamento da casa.”. O propósito do boicote, em sua percepção, é de ensinar a sociedade em geral e de abrir os olhos da população para que esta não normalize um comportamento discriminatório. “Espero fortemente que a opinião das pessoas que ainda o frequentam mude e que a casa, caso não feche, se mobilize para aceitar pessoas de todos os tipos, sem nenhum tipo de descriminação.”, diz Laura. Investigados pelo Ministério Público, os donos do local negam qualquer tipo de prática discriminatória, alegando que os que não entram o fazem pois a casa atinge seu limite de lotação. O objetivo do boicote, segundo uma das organizadoras, é “incentivarmos as pessoas a denunciarem mais ainda, só que diretamente ao MP, para que possam também prestar depoimento. E isso está acontecendo. A investigação está sendo muito efetiva”. A balada em questão pode ser usada como uma analogia às diversas outras baladas que agem da mesma forma. Outros depoimentos citaram diferentes estabelecimentos da capital que atuam desta forma, sendo o Villa Mix o escolhido como ponto de partida para a luta por mudança, uma vez que conta com um número gritante de relatos. A iniciativa deste grupo de jovens – independentemente do grand finale que levará – é importante na medida em que promove reflexão e debate sobre o assunto. Elas incomodam. E não vão se retirar!
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Do
mesmo jeito que
para ir a um casamento
é necessário usar um traje
adequado , o
V illa M ix
exige
pessoas bem vestidas para frequentar a casa , quem se incomoda com isso basta não ir ”
(anônimo)
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CONTRAPONTO
Entrevista
Por João Abel
Rodrigo Bueno abre o jogo Ex-aluno da PUC, jornalista da Fox Sports fala de seu trabalho e da crise que assola o futebol e o jornalismo
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Contraponto – Recentemente completamos um ano do 7 a 1 para a Alemanha. Você acredita que a seleção brasileira vai conseguir se recuperar desse histórico resultado? Rodrigo Bueno – O 7 a 1 não se recupera, não se vinga. É a maior vergonha do futebol brasileiro e não consigo imaginar nada pior que isso em um milhão de anos para a seleção. Ver o Brasil perder desse jeito numa semifinal de Copa, em casa, foi algo surreal, inacreditável. O Maracanazo ficou pequenininho após 90 minutos no Mineirão. É o tipo de derrota que deveria mudar o curso da história do futebol brasileiro, pois ela marcou época, será tema de livros, filmes e todo tipo de coisa no futuro. O futebol brasileiro, no entanto, não deu nenhum sinal ainda de que vai se reinventar depois dessa tragédia épica, a estrutura de poder, a organização, o calendário, o atraso técnico, a crise de talentos, o discurso vazio de quase todo mundo que trabalha na área... tudo continua basicamente igual mais de um ano depois do 7 a 1. A depressão pode durar muito tempo. CP – E o que o futebol brasileiro precisa para melhorar dentro de campo? RB – O Brasil ainda pode voltar ao topo, mas terá que se redescobrir, com novas cabeças e com novos craques, cada vez mais raros por aqui. Uma tremenda reforma, começando pela base e passando pela CBF [Confederação Brasileira de Futebol] e por todos os clubes, precisa ser feita para o Brasil voltar a ser respeitado. E digo ser respeitado por nós brasileiros mesmo. Hoje o futebol brasileiro virou motivo de piada, o complexo de vira-lata voltou repaginado, talvez pior. Antes, o Brasil tinha talento e não tinha organização. Hoje, o Brasil não tem nenhuma das duas coisas. O cenário é muito preocupante. CP – Apesar da queda no número de casos, as brigas entre torcidas ainda são um problema no Brasil. Iniciativas de torcida mista ou única são soluções? RB – Torcida mista não é novidade no futebol brasileiro. Durante muitos anos, torcidas dividiram o mesmo espaço sem problemas nos estádios brasileiros, seja Maracanã, Pacaembu ou campos menos famosos. No caso do Grenal, por exemplo, os dois clubes se acostumaram nas últimas décadas a mandar de fato seus clássicos regionais, no Beira-Rio e no Olímpico (anteriormente). Por isso, creio que o Inter lançou o projeto da torcida mista, algo que já foi abraçado pelo Grêmio. Tomara que a moda se espalhe pelo Brasil, afinal na Copa as torcidas se misturam na boa, isso deveria ser mais um legado do Mundial. Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP
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onsiderado um dos principais comentaristas esportivos do país, Rodrigo Bueno começou sua carreira na Folha de S. Paulo passando pela ESPN, antes de chegar aos canais Fox Sports, onde trabalha atualmente. Quase vinte anos depois de se formar em jornalismo pela PUC, Bueno cedeu entrevista ao Contraponto e falou sobre carreira, crise do futebol e atuação da mídia esportiva no Brasil.
mios da imprensa mundial. E tem gente pouco preparada, que nem jornalista é. Mas isso não é bem uma exclusividade do Brasil, você vê coisas semelhantes mundo afora. O mercado está passando por grandes transformações faz algum tempo e esse se abriu muito, a cobertura do esporte em especial é cada vez maior com o avanço das TVs a cabo, da internet e até das mídias sociais. Ao mesmo tempo, o jornalismo vive séria crise, com empresas cortando vagas, reduzindo investimentos, fazendo um trabalho de menor qualidade: Vemos cada vez mais uma busca maluca por audiência e anunciantes, o que reflete muito em sensacionalismo, em especulações, fofocas, bate-bocas etc. Esse cenário preocupante para os jornalistas esportivos ocorre mesmo com uma Copa do Mundo e uma Olimpíada no nosso país num intervalo de apenas dois anos.
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CP – Existe jornalismo imparcial? Jornalistas esportivos devem dizer qual é seu time de coração? Antes, o Brasil tinha talento e não RB – É uma opção muito pessoal tinha organização. Hoje, não tem revelar ou não o time de coração. nenhuma das duas” Entendo quem revela e quem não revela seu time publicamente. E entendo que algumas empresas jornalísticas estimulem que não se assuma, isso pode gerar, sim, mais Quanto à torcida única, não creio que seja algo que resolva. Esse ano, o Boca Juniors até foi prejuízos do que benefícios no fim das contas. eliminado da Libertadores jogando em casa com Jornalistas que cobrem política não costumam torcida única. O que precisa mudar aqui é a forma revelar seus partidos e candidatos preferidos, por como são distribuídos os ingressos para a torcida exemplo. Nem sempre vemos também críticos visitante. Fica claro que as torcidas organizadas culturais revelarem suas bandas e seus artistas dominam quase que completamente os ingressos prediletos. quando o time é visitante. A relação promíscua Não que isso vá influenciar no trabalho, mas que existe entre clubes e organizadas precisa aca- normalmente um jornalista esportivo conhece bar. Estamos muito parecidos com a Argentina, muito mais o time dele ou os times da cidade onde a violência impera no futebol desde os anos e do Estado dele do que os outros clubes. Com 60, e ainda estamos distantes da Inglaterra, que a globalização, os jornalistas esportivos estão resolveu a questão da violência nos estádios com sendo cada vez mais obrigados a conhecer times, técnicos, jogadores e dirigentes do mundo todo, o Relatório Taylor e a Premier League. creio que os bons profissionais precisam cada vez CP – Você chegou a cursar Educação Física na mais abrir o leque e não olhar apenas para seu USP. Se não fosse jornalista, seria professor ou próprio umbigo, para sua própria cidade, para seu próprio time. Vemos na mídia uma preferêntreinador esportivo? RB – Se eu não fosse jornalista, trabalharia com cia por certos times, algo que é muito explicado esporte de alguma forma, sendo jogador, treina- pelo número de torcedores, de telespectadores, dor, professor, dirigente... O amor pelo esporte de ouvintes e de leitores. veio antes do amor pelo jornalismo. Consegui CP – Você acompanhou a carreira de diversos unir duas paixões no jornalismo esportivo. craques desde os anos 1980. Qual o maior joCP – Como você avalia a atuação da mídia es- gador que você viu atuar? RB – Maradona foi ainda o melhor que vi, mas portiva no Brasil? RB – É difícil colocar num mesmo saco a “mídia Messi está me fazendo repensar seriamente esportiva” do Brasil. Você encontra de tudo. isso. Van Basten foi o que mais curti, o que mais Tem jornalista com J maiúsculo, gente muito admirei. capacitada, digna de receber os melhores prê-
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Setembro 2015
CO N T R A P O N TO
CONTRAPONTO
Futebol feminino
Jogadoras lutam pela permanência no esporte Por Letícia Dauer, Mariana Presqueliare e Rafael Santos
Time do São Paulo corre risco de fechar devido ao desinteresse de patrocinadores
CO N T R A P O N TO
Torcedora comemora vitória do time feminino do SPFC
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© Mariana Presqueliare
O time feminino de futebol do SPFC chega à final e leva a torcida ao delírio
ninguém quer investir, o grupo é bom e não
estamos aqui por acaso”
(Ana Cristina, jogadora profissional)
© Leticia Dauer
time de futebol feminino do São Paulo Futebol Clube conseguiu seguir para a final do Campeonato Paulista após empate contra o time do Santos no dia 23 de agosto (domingo). Depois do Brasileirão e da Copa do Mundo, o Paulistão é a competição mais importante e de maior competitividade do país para o futebol feminino brasileiro, sendo que qualquer time que chegasse a final estaria suspirando de alegria. No caso do São Paulo, ela durou pouco, pois não há como se esquecer de que, apesar de possuir uma das melhores campanhas do campeonato, a seleção está prestes a acabar devido a escassez de patrocinadores. Afinal, o Brasil é o país do futebol para quem? Ao entrar no estádio Cícero Pompeu de Toledo para assistir a partida da semifinal do Campeonato Paulista de Futebol Feminino que foi disputada entre as jogadoras do São Paulo e Santos, a expectativa era de que o jogo acontecesse no monumental estádio do tricolor paulista, porém ocorreu em um campo de treinamento da escolinha de futebol do time. Um longo caminho foi percorrido dentro do complexo esportivo que compõe o estádio, passando pelo clube comunitário, pouco acessível aos deficientes físicos, até chegar ao local da partida. As jogadoras já estavam posicionadas para entrarem junto à torcida, que somava cerca de 200 pessoas. Sinalizadores, papéis picados e fumaça vermelha eram os objetos portados pelos torcedores que ali acompanhavam a partida. O que parecia ser um apoio à seleção feminina, mostrou-se mais como uma alternativa às restrições impostas àqueles que costumam assistir os jogos disputados no grande estádio, como é colocado pelo estudante são-paulino, Pelegrino Escobar. Segundo ele, o que atraiu o seu interesse pelo futebol feminino foi a liberdade de exporem suas bandeiras e acenderem os sinalizadores, “sinceramente é porque nós temos mais liberdade aqui no jogo das ‘minas’, do que no jogo dos caras. Estamos cheios de bandeiras aqui, com fumaça, sinalizador e tomando uma cerveja na arquibancada numa boa. Infelizmente no futebol masculino mataram isso, ‘tá’ ligado? Eu vou no estádio há 21 anos e dou o maior apoio para as ‘minas’, também”, disse. Na cobrança de escanteio, uma das jogadoras do time acerta o travessão e leva a torcida ao delírio, que gritava em protesto: “Ah, que bom seria, se o meu São Paulo pagasse as meninas!”. As atletas chegaram a ficar quatro meses sem receber o salário por falta de patrocínio. No entanto, apesar dos problemas enfrentados pelo grupo, elas demonstraram toda a sua força em campo e aos 19 minutos, a camisa 2, Giovana Santos marcou o primeiro gol da partida. Ainda no primeiro tempo, a camisa 9, Carla, abriu mais um gol de vantagem. Entretanto, a equipe do Santos empatou no segundo tempo, deixando assim o jogo ainda mais emocionante e equilibrado. Mesmo com o empate, o tricolor vai para a final do campeonato, já que fez uma melhor campanha que o time da baixada santista. O São Paulo enfrentará o São José na final.
© Leticia Dauer
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A má divulgação, o baixo investimento e o machismo, fator esse que muitas vezes começa em casa, são quesitos que reforçam a desvalorização do futebol feminino. “Eu dou aula de futebol em um colégio. Lá eu tenho mais de 200 alunos, e apenas quatro são meninas. As mães não deixam”, disse a torcedora Alessandra Melo, de 26 anos. A falta de incentivo das famílias, as escassas escolas de base para meninas e o reforço da hierarquia de gênero no mundo do futebol faz com que o machismo promova as desigualdades e force algumas jogadoras a abrirem mão de seus sonhos futebolísticos para arcar com as necessidades básicas. “Eu precisei parar de jogar para pagar meus estudos”, relatou a estudante Thainá Dias, de 18 anos.
Para a professora de educação física e jogadora da Liga Universitária de Futebol Feminino Charlene Angelim, 26, a mídia contribui na construção dos estereótipos machistas, além do processo histórico de desprivilegio da mulher em diversos aspectos. “Já sofri discriminação por ser mulher, em diversos aspectos e dentro do futebol não é diferente, nossa sociedade possui o costume de criar estereótipos baseados em puro preconceito, além do mais, o futebol é um meio extremamente machista, e a mídia, por sua vez, ao invés de desconstruir os paradigmas existentes em torno do futebol feminino acaba por reforçar essa conduta, porque não consegue enxergar a mulher praticante de qualquer esporte, sem objetificá-la sexualmente”, relatou.
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Enquanto, de acordo com um estudo da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), os jogadores de futebol de grandes clubes recebem em média 20 salários mínimos, sem contar as célebres estrelas esportistas como Neymar, que ganha 5 milhões por mês, as jogadoras ganham em média de dois a três salários mínimos. Isso quando sua remuneração não está atrasada, realidade que as jogadoras do tricolor enfrentaram ao longo do campeonato nesse ano. Giovana Crivelari, 22, jogadora do São Paulo e ex-jogadora do rival Santos, contou que consegue viver com o salário e que mesmo sendo baixo, algumas meninas sustentam até mesmo uma família inteira com o valor. Suas vidas estão longe de serem comparadas com a vida luxuosa de seus colegas homens de mesma profissão e de mesmo clube, porém conseguem sobreviver. “A gente vive futebol de manhã, tarde e noite. A gente vive pra isso.” disse Giovana. Para Ana Cristina da Silva, 29, jogadora do São Paulo, hoje o maior preconceito contra as mulheres é a falta de incentivo financeiro, sendo extremamente desestimulante saber que seus salários não chegam a 1% dos salários dos homens. Entretanto, a violência financeira é apenas uma entre as tantas opressões vividas por essas mulheres. Desde a primeira partida de futebol feminino no Brasil em 1921, segundo o jornalista Celso Unzelte, as mulheres sofrem resistências do Estado. Em 1941 por exemplo, o decreto-lei 3199 do Ministério da Educação no artigo 54 afirmava: “As mulheres não se permitiram à prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza.” A concepção de que a função social da mulher é procriar e cuidar do lar ainda não desapareceu, porém na década de 40 era mais viva. Por isso o decreto considerava as mulheres seres frágeis, cujos corpos não poderiam ser deteriorados por uma atividade física muito desgastante que a impedissem no futuro de serem mães. O sentimento de superioridade masculina enraizado no futebol é reafirmado quando times compostos por mulheres ainda apresentam uma grande maioria de homens em sua composição técnica. Em entrevista ao Contraponto, o atual técnico da seleção feminina do São Paulo Futebol Clube, Marcelo Maria Friguerio, afirmou que “se a mulher fizer estágio, algum curso com bons treinadores, ela pode ser treinadora, mas na minha comissão técnica eu não tenho mulher trabalhando, eu não gosto de mulher trabalhando comigo no futebol feminino, se eu fosse técnico do futebol masculino eu gostaria de ter
uma mulher trabalhando comigo”. De acordo com Marcelo, 44, elas misturam a relação com o trabalho, de maneira a criarem um sentimento de rivalidade e competitividade pessoal entre si. A respeito de coordenar o time feminino que está nas semifinais do campeonato estadual, ele diz “com a mulher você tem que ter esse jogo de cintura por conta da sensibilidade”. Para as meninas que sonham desde cedo em ser jogadoras profissionais, a garra vem do berço. Quando criança, Ana Cristina jogava bola com os amigos do bairro e com o apoio do seu tio, foi matriculada em uma escolinha de futebol. O time carioca no qual jogava fazia parte de torneios nas favelas do Rio de Janeiro e ali foi crescendo. Do Bangu, mudou-se para o Carioca e foi trocando de times até chegar em São Paulo, onde joga atualmente. Sobre a disparidade entre o futebol masculino e feminino, a jogadora diz: “é uma coisa em que a gente bate, mas não chega em lugar nenhum. O futebol feminino está a quantos anos lutando para ter uma porta, uma chance de viver melhor, de crescer melhor?”. A melhoria nas condições de trabalho e maior reconhecimento para as gerações que estão chegando é o que deseja Ana Cristina, que trabalhava como manicure em sua cidade natal e só tem mais três anos como jogadora profissional, “ninguém quer investir, o grupo é bom e não estamos aqui por acaso”, é o que diz quando questionada sobre o futuro do time. Em meio ao que vem acontecendo, dedicação é o que não falta: “com trabalho bem feito, porta não vai se fechar”. Internacional – A Copa do Mundo de futebol feminino, disputada no Canadá desde o dia seis de junho, foi um simulacro do que sofrem tantas jogadoras do futebol mundial. Com pouca divulgação e investimento, as partidas foram precariamente abordadas pela grande mídia e transmitidas por um baixo número de canais esportivos. Reflexo de uma sociedade que
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Já sofri discriminação por ser mulher, em
diversos aspectos e dentro
do futebol não é diferente”
(professora de educação física e jogadora Charlene Angelim)
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Giovana Crivelari e Ana Cristina da Silva são jogadoras do São Paulo
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ainda custa a aceitar o espaço das mulheres em uma modalidade majoritariamente praticada por homens, o futebol para elas ainda parece estar longe de se tornar a chance de uma mudança de vida. A baixa representatividade se dá, principalmente, pelo machismo presente em boa parte das seleções compostas por mulheres. A inferioridade no tratamento recebido pelos times femininos é marcante. Ao contrário do megaevento sediado pelo Brasil em 2014, cujos investimentos chegaram aos bilhões de reais, o campeonato feminino contou com gramados sintéticos de má qualidade e campos com sensação térmica de até 50 graus, fator que contribuiu para que as jogadoras, dentre elas a brasileira Marta, reivindicassem seus direitos por meio de um abaixo assinado. Não bastasse a falta de apoio e investidores, a maioria das jogadoras sofrem diretamente com o preconceito de gênero. No mesmo período da Copa feminina que ocorreu no Canadá, em entrevista ao jornal “The Globe and Mail” Marco Aurélio Cunha, coordenador de futebol feminino da CBF, soltou uma declaração dizendo que faltava o “espírito de elegância e feminilidade” por parte das jogadoras de antigamente, cujos uniformes aproximavam-se do traje masculino, fazendo com que parecessem garotos. Segundo ele, hoje “as mulheres estão ficando mais bonitas, passando maquiagem. Elas vão a campo de uma maneira mais elegante”. A realidade é que estas mulheres acabam sendo vítimas de um julgamento por sua aparência ou perfil feminino antes de serem encaradas como profissionais em campo. Quando não são apontadas como masculinas demais, são inferiorizadas por muitos parceiros da área ou até mesmo hipersexualizadas pela mídia, como ocorreu no caso da bandeirinha Fernanda Colombo no ano de 2014, em que mais uma vez os aspectos físicos foram colocados acima de suas habilidades técnicas. Nos Games – Ainda que pequena, a representatividade feminina nos esportes ganhou visibilidade no mundo virtual. Em maio de 2015 a EA Sports, mundialmente conhecida produtora de games voltados para o tema e criadora de um dos mais populares jogos de simulação de futebol anunciou que o FIFA 16, o mais rentável da empresa, apresentaria pela primeira vez uma seleção feminina composta por 12 times, incluindo Alemanha, Estados Unidos e Brasil. Por mais positiva que seja a presença das jogadoras mulheres nos videogames, é preciso que seu profissionalismo seja mais reconhecido na vida fora das telas e encarado com seriedade. Desde 2012 fãs da série faziam petições na tentativa de abrir os olhos da empresa e convencê-la de ampliar o jogo para o público feminino, que segundo a Associação de Software de Entretenimento dos Estados Unidos, representa 47% do total de jogadores no país. A justificativa para a demora no processo segundo o produtor executivo do jogo Nick Channon, é que os criadores gostariam de representar as mulheres “de maneira correta”. Muito além de uma simples tentativa de agradar as gamers, a presença de mulheres reais como é o caso das jogadoras de futebol, serve para ceder o espaço que lhes é de direito há tempos, mas ainda assim sua visibilidade é motivo de discursos machistas e misóginos por parte de muitos jogadores. Em geral, as mulheres são retratadas de maneira sexualizada e submissa em muitos jogos de ação, principalmente. Ainda que fictícia, a simulação é um reflexo do aspecto social vivido pelas mulheres no mundo real.
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CONTRAPONTO
Gestão democrática
O direito à cidade é um privilégio que poucos podem pagar Uma das prerrogativas mais preciosas e negligenciadas é o poder de fazer e refazer as tramas urbanas de nós mesmos
Por Pedro Prata
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Quem é rico mora na praia, mas quem trabalha não tem onde morar – O direito à moradia figura entre um dos principais pilares do direito à cidade. Isso quer dizer que políticas públicas concernentes a habitação popular se fazem necessárias em todas as regiões de um município, inclusive as centrais, a fim de garantir a igualdade e não discriminação de todos os setores da população, permitindo o acesso universal e igualitário do espaço urbano e de sua infraestrutura. Muito embora tais medidas estejam asseguradas no Estatuto das Cidades, desenvolvido em 2002, e na própria Constituição de 1988, não é o que acontece. Estes dois conjuntos jurídicos atentam para a função social da propriedade, que é servir de moradia. A nossa carta maior afirma que cabe aos poderes municipais, através da criação de leis, impor medidas contra a especulação imobiliária, que não contribui para o ordenamento urbano e só serve para a geração de um falso capital. Inclusive se dá a opção, por exemplo, de cobrar IPTU progressivo sobre terrenos não utilizados. O que acontece, de fato, é que empreiteiras constituem um fortíssimo lobby financiando campanhas de políticos. O resultado é que políticas efetivas para a construção de habitação popular não são aprovadas e as classes mais pobres acabam sendo segregadas nas regiões
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Prefeito da cidade de São Paulo, Fernando Haddad, durante debate no teatro Tucarena sobre o direito à cidade. Ao fundo, pessoas da platéia fazem protesto
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esde 2012, mais da metade da população mundial vive em áreas urbanas. De acordo com dados da ONU, a população urbana, que era 29% do total em 1950, hoje equivale a 52% de todos os habitantes do planeta. Essa é uma realidade inédita para a humanidade, que traz enormes implicações políticas, econômicas e sociais. Diante dessas, torna-se fundamental a discussão sobre o direito à cidade, o qual engloba questões essenciais para uma sociedade plenamente democrática. Assim sendo, existe mais de uma perspectiva do direito à cidade. Por um lado, pode ser visto como paradigma de governança urbana democrática, muito embora, na visão da professora Matilde Maria Almeida, do Departamento de Sociologia da PUC-SP, neste caso ele caminhe “muito mais no sentido do direito ao consumo da cidade – ou melhor, direito à cidade do consumo.” Essa é uma leitura jurídico-institucional, aplicada pioneiramente pelo Brasil em sua própria constituição de 1988 e discutida em âmbito internacional ao longo das décadas que se seguiram. Entretanto, esse processo de regulamentações jurídicas não tem garantido que os princípios constitucionais sejam efetivamente praticados. A segunda perspectiva assume uma outra dimensão do direito à cidade, entendendo-o como um ideal político. O direito não deve ser individual, mas sim coletivo, algo que não se restrinja simplesmente ao acesso do espaço como visitante, mas que também garanta a apropriação do mesmo como instrumento de transformação de acordo com os desejos dos cidadãos.
A instalação de ciclovias por parte da Prefeitura, como a da av. Paulista, é uma medida para devolver a cidade aos cidadãos
periféricas dos centros urbanos, onde carecem dos serviços mais básicos à dignidade humana. As únicas medidas tomadas com relação à reorganização do espaço urbano nas áreas centrais e, portanto, onde se encontra a maior parte da infraestrutura, se dão no sentido de promover a limpeza social da cidade, transformando-a em uma vitrine do dinamismo do capital e entregando-a de volta às elites, quer para a construção de moradias de diferentes segmentos da classe média, quer como espetáculo para ativar o turismo na cidade. Um forte e recente exemplo disso é a região do cais José Estelita, em Recife. Próximo à região central da capital pernambucana, o cais estava abandonado desde a década de 70. Em 2008, um consórcio comprou o local e agora pretende construir um complexo de 12 torres de 40 andares cada, sendo duas comerciais, dois hotéis e oito residenciais. Um empreendimento que criaria uma ilha de riqueza sem integração com os arredores. É importante ressaltar que o cais fica perto da favela do Coque, a mais antiga da cidade e que nunca teve sua regularização. Ativistas e arquitetos lutam, através do movimento Ocupe Estelita, para que o projeto não seja permitido e que no local se construam prédios voltados para habitação popular e comércio, iniciativa que
valoriza mais áreas de convívio e permite uma maior integração com os arredores.
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Saúde e educação apenas no papel – Os direitos à saúde e à educação são parte de um conjunto de direitos chamados direitos sociais. Reconhecidos na Constituição Federal de 1988, possuem como princípio o valor da igualdade entre as pessoas. É dever do Estado garantir e manter o direito à saúde para a população, pois sem saúde não há condições de vida digna. É seu compromisso a criação de atendimentos em postos de saúde, hospitais, realização de programas de prevenção e fornecimento de medicamentos. Em vista disso, foi desenvolvido o SUS, Sistema Único de Saúde, voltado para exercer os deveres do Estado com a saúde da população. Além de fornecer postos de saúde e hospitais, também possui o dever de visitar regularmente famílias e prevenir os problemas. No entanto, o Sistema Único de Saúde possui alguns impasses, entre eles a gestão de recursos e o financiamento. O Brasil é um dos países que menos investem em saúde. Dados de 2012 obtidos pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde mostram que menos de 490 dólares por habitantes são investidos. A
ausência de médicos qualificados e estrutura para atendimento é outro problema no setor de saúde do país. Faltam leitos e equipamentos médicos em grande parte dos hospitais brasileiros. A educação, além de ser garantida na Constituição Federal de 1988, também aparece na forma de duas leis: o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), que possuem em seus princípios a garantia da escola pública a todos os brasileiros. Elas defendem o direito da criança e do adolescente a ter acesso à escola pública, ser respeitado por seus educadores e ter igualdade de condições para o acesso e permanência na escola. Determinam, também, o dever do Estado em assegurar o ensino fundamental obrigatório e gratuito, a oferta de ensino médio, o atendimento em creches e pré-escolas, o acesso aos níveis mais elevados de ensino, e o transporte, a alimentação e a assistência à saúde. O Brasil é o 60º colocado entre 76 países listados no mais recente ranking de educação da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), uma péssima colocação em um requisito tão importante para qualquer sociedade, e que tem efeitos dramáticos na população: treze milhões de brasileiros não sabem ler e escrever, ao passo que os analfabetos funcionais (reconhecem letras e números, mas não escrevem, leem ou fazem contas) são 27% dos adultos brasileiros. O Plano Nacional de Educação, sancionado em 2014, apresenta 20 metas a serem cumpridas até 2024. Entre elas, erradicar o analfabetismo absoluto; reduzir em 50% a taxa de analfabetismo funcional; e alfabetizar todas as crianças, no máximo, até o fim do 3º ano do ensino fundamental. No entanto, no primeiro ano em vigência, o PNE não conseguiu atingir nenhuma das metas.
Gestão democrática da cidade – De acordo com o geógrafo britânico marxista David Harvey, o “direito à cidade é muito mais que a liberdade individual de ter acesso aos recursos urbanos. É um direito de mudarmos nós mesmos mudando a cidade. [...] A liberdade de fazer e refazer as nossas cidades nós mesmos é ao meu ver um dos direitos humanos mais preciosos e mais negligenciados”. Para que o direito à cidade se torne algo concreto na governança das cidades, é necessário que se amplie os canais de participação da população nas decisões políticas dos municípios. Uma maior aproximação do governo com os citadinos acaba por personalizar os serviços públicos, adaptando-os de acordo com as necessidades específicas de cada sociedade, que vêm se tornando cada vez mais complexas e heterogêneas. Em artigo publicado no jornal Folha de São Paulo, o secretário de Relações Governamentais do município de São Paulo, Alexandre Padilha, defende que a participação da população nas decisões sobre políticas públicas “possibilita sincronizar o tempo dos Poderes às urgências dos cidadãos”. Porém, essa não é uma tarefa fácil. Ela exige a criação de novos mecanismos de democracia participativa e inovação na democracia direta, metas que só serão conquistadas com a profusão de coletivos e tecnologias de informação, com o diálogo com movimentos sociais e a criação de horizontes de participação mais amplos do que a democracia representativa permite. A ação policial que cala a voz da população – Outra faceta do direito à cidade e que ultimamente tem estado em posição de destaque é o direito de se manifestar. A mobilização social em grupo não apenas confere força aos questionamentos e exigências da sociedade, como
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Para que as pessoas tenham direito à cidade, é preciso garntir os direitos mais básicos como, por exemplo, saúde e educação
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Não só a moradia digna é um direito garantido pela Constituição, como também ocupar as ruas e exigir a garantia de seus direitos
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também, os legitima. Na contrapartida da movimentação observada atualmente, fomentada pelos meios de comunicação e redes sociais cada vez difundidas, está a repressão policial. O professor Reginaldo Mattar Nasser, do departamento de Relações Internacionais da PUC-SP, em entrevista ao Contraponto, destacou o papel da polícia nas técnicas de controle e vigilância, que se tornaram uma medida simplista para solucionar os conflitos sociais urbanos e vêm criando uma situação de repressão da população, em que as decisões políticas acabam desvinculadas da participação popular. Nas palavras dele, percebe-se a “uniformização das técnicas de segurança entre cidades do mundo inteiro, ligando doutrinas de militarização em cidades do Norte e do Sul, no mesmo compasso em que se dá o aumento de investimentos das grandes corporações transnacionais. Não é de se estranhar que as ações de repressão em Baltimore, Gaza e São Paulo sejam cada vez mais semelhantes”. As manifestações tornaram-se verdadeiras válvulas de escape para uma sociedade que precisa criar novos mecanismos de reivindicação dos seus direitos. Nada mais adequado para reivindicar o direito à cidade do que se apropriando dela, ocupando as ruas e gritando palavras de ordem. Daí surge a repressão: quando as parcelas desprivilegiadas afônicas ganham voz, são prontamente caladas pelos próprios órgãos públicos. Tomando a cidade de volta para si – A cidade de São Paulo tem sido palco de intervenções, por parte da Prefeitura ou de maneira espontânea pela população, que proporcionam o lazer de forma inusitada. É o caso do Parque Augusta, do Elevado Presidente Costa e Silva (Minhocão) e da implantação de novas ciclovias pela cidade. O Parque Augusta é uma propriedade privada, porém com 80% da sua área registrada como pública, sem poder ser alterada. No entanto, ao longo dos anos, a sua área foi modificada. O terreno foi comprado pelas empresas Cyrella e Setin e fechado em 2013 ao acesso do público. No início de 2015 foi aprovado um projeto pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo em que 33% da área será ocupada por prédios residenciais e comerciais e o restante será o parque. O Parque Augusta foi reaberto no dia primeiro de julho ao público. Essa mudança só foi possível após a ocupação da área por cidadãos, que durante dias promoveram intervenções artísticas e lutaram para que a criação do parque se tornasse realidade. No dia 11 de julho foi aprovado o fechamento do Elevado Presidente Costa e Silva, mais conhecido como Minhocão, para a circulação de pedestres aos sábados a partir das 16h30min. Agora, o elevado fica aberto para o lazer do paulistano de sábado a tarde até segunda de manhã. O espaço aos finais de semana é destinado para caminhadas, ciclistas, shows, feiras gastronômicas, performances, etc. A ideia da criação de um parque em cima do minhocão é discutida pelos moradores da região e pela prefeitura. Outra política bem sucedida da Prefeitura foi a implantação das ciclovias por São Paulo, que ocorre desde o ano de 2013 com o objetivo de atingir 400 km de espaço destinado para as bicicletas até o final de 2015. Atualmente são 307,4 km de extensão. Na manhã do dia 28 de junho foi inaugurada a ciclovia da Avenida Paulista com 2,7km de extensão no canteiro central, um feito importante devido ao alto índice de acidentes com ciclistas na Avenida.
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CONTRAPONTO
ensaio fotográfico
Vermelho de perto
urante doze dias de julho, tive a oportunidade de saborear ao menos alguns aperitivos de como as “terras de Putin” são. E, mesmo que de uma forma diferente da tradicional europeia, tanto Moscou quanto São Petersburgo são cidades inacreditavelmente bem cuidadas e grandiosas, com construções majestosas e em estado impecável. Chegando a Moscou fui contemplar um dos lugares mais simbólicos da Rússia, a praça Krasnaia, que em russo quer tanto dizer “vermelha” como “bonita”. Lá, gastei um tempo admirando a catedral de São Basílio, que talvez seja a mais icônica do país, construída no estilo ortodoxo russo, ela ostenta diferentes cores em harmonia. Segui o roteiro e fui conhecer o famoso Kremlin, antiga residência dos czares e atual residência oficial do presidente Russo. Conheci três das lindíssimas igrejas que fazem parte de seu gigante interior, todas com grande quantidade de ouro em suas cúpulas douradas. Um dos meus lugares preferidos da viagem foi o Muzeon Art Park, um parque em São Petersburgo para onde, inicialmente, eram mandadas as esculturas comunistas que haviam sido retiradas da cidade, mas posteriormente acabou recebendo peças também de outros artistas. Nela existem vários bustos de Lênin e de Stalin, além de outras esculturas simbólicas do comunismo, como a foice e o martelo. Mas, uma obra em especial chamou minha atenção: a que retratava várias cabeças empilhadas, simbolizando as vítimas que Stalin fez durante seu período no poder. Já em São Petersburgo, pude visitar a fortaleza de São Pedro e São Paulo, local de fundação da cidade e onde estão enterrados os Romanov, dinastia que governou Rússia de 1613 a 1917. Uma de suas saídas passa por um canal, que atravessa grande parte da cidade, também conhecida como Veneza Russa. Devido às baixas temperaturas congela no inverno, e segundo relatos de uma guia russa com quem conversei, durante a invasão nazista na segunda guerra, caminhões transportaram alguns dos sobreviventes para fora da cidade através desse canal congelado. Além dos lugares, me interessei também pela população, que nutre uma cultura militar muito mais visível que a brasileira. Nas ruas, pode-se facilmente encontrar jovens com “fantasias” militares e nas vendas típicas não há só uma diversidade enorme de matrioskas, bonecas de madeiras típicas russas, mas também de artigos clássicos militares como réplicas de balas e de revólveres.
© Fotos: Lara Castelo
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Por Lara Bussab Castelo
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Memória
Para não esquecer Auschwitz
Por João Gabriel e Maria Eduarda Gulman
Como os reflexos de uma catástrofe ainda ecoam na memória da humanidade
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As atrocidades vindas de ações humanas – Ao entrar em contato com fotos, relatos ou textos sobre o Holocausto, o choque é grande a ponto de se fazer questionar como foi possível tal atrocidade. Antes, porém, deve-se entender o que é um genocídio. Conforme nos explica a professora de Ciências Sociais da PUC-SP, Marijane Lisboa, “o que distingue o genocídio de qualquer outro extermínio ou massacre é a intenção deliberada de exterminar” um grupo étnico, religioso, nacional ou racial. A professora ainda alerta para uma limitação desta definição, pois a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio da ONU, de 1948, de onde esta definição foi tirada, não considera genocídio atos do mesmo caráter praticado contra grupos políticos ou classes sociais. Reginaldo Nasser, professor do Departamento de Relações Internacionais da PUC-SP, não tem dúvidas ao classificar o Holocausto como um ato de terrorismo de Estado. Isso porque o terror de Estado, segundo Nasser, “vai enfatizar a fragilidade do outro em ações regulares, sistemáticas e planejadas.” Desta forma, continua, “não tenha dúvida de que Auschwitz e uma série de outros atos de campo de concentração, de intimidação, são atos de terror, terror de Estado”. No Brasil, obviamente não ocorreu o Holocausto e campos de concentração como os dos alemães não foram criados. Porém, o psicanalista Paulo Endo conta que um sobrevivente do holocausto afirmou que não precisa de muito para se ferir a dignidade humana, “basta colocá-la num vagão de trem, durante três dias, sem ela ter a possibilidade de fazer as necessidades básicas. Ela desce degradada, totalmente humilhada. Isso já vai ser o suficiente para que subjetivamente haja um deslocamento brutal de uma posição de uma pessoa se acreditava um ser humano para uma outra posição na qual ela vai ser tratada como objeto e como animal”. Para reforçar, Endo também cita a história de outro sobrevivente, preso na Bélgica, que conta que quando se está amarrado numa cadeira, imóvel, em
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assados 70 anos do final da Segunda Guerra Mundial, seu eco ainda pode ser ouvido. Pouco importa, de fato, quantificar com exatidão se foram 50 ou 70 milhões de seres humanos mortos durante a guerra. Qualquer que seja o número, ele é grande demais para ser esquecido. Memória esta que vai além dos mortos. Um desastre de tamanha magnitude não afeta apenas a geração que o vivenciou, nem acaba com a geração seguinte: será para sempre um desastre na História da humanidade. Foi na Segunda Guerra que o mundo traumatizou-se com o genocídio do povo judeu, que ficará para sempre simbolizado na figura do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau, o mais mortífero dos mais de 40 campos de concentração (sem contar sub-campos) construídos pelo regime nazista. Finalizado no ano de 1940, em Oswiecim, cidade polonesa anexada pelo Terceiro Reich, o campo era apenas mais um dos que vinham sendo encomendados desde 1930.
Judeus presos em campo de concentração durante a Segunda Guerra, em 1945
“
Basta colocá-la num vagão de trem, durante três dias, sem ela ter a possibilidade de fazer as necessidades básicas. Ela desce degradada, totalmente humilhada. Isso já vai ser o suficiente para que subjetivamente haja um deslocamento brutal de uma posição de uma pessoa se acreditava um ser humano para uma outra posição na qual ela vai ser tratada como objeto e como animal”
(Paulo Endo)
um lugar desconhecido, o pior momento é quando se leva o primeiro tapa na cara. Esta agressão, sem condições nenhumas de defesa por parte do preso, que sabe que não há ninguém no mundo que possa aparecer ali, naquele instante, para defendê-lo, “essa sensação é a sensação que põe em cheque a sua crença na humanidade”, conta o psicanalista, se colocando no lugar do amarrado. O papel do Estado – Por inconsequência do Estado, essa sensação de que nada pode proteger uma pessoa e o tratamento como um animal ao ser humano podem ser vistos nos presídios femininos no Brasil, por exemplo. “ Um dos maiores problemas dos direitos humanos, eu diria no mundo, são as penitenciárias brasileiras”, afirma Endo. Atualmente, segundo dados do Ministério da Justiça, de 2013, a capacidade do sistema é de apenas 22.666 e, no entanto, o país possui 36.135 mulheres presas.
A escritora e jornalista Nana Queiroz lançou recentemente o livro Presos que menstruam onde revela o dia a dia das mulheres e suas dificuldades em viver em situações tão precárias e degradantes nas celas brasileiras. “Percebi que o sistema carcerário brasileiro trata as mulheres exatamente como trata os homens. Isso significa que não lembra que elas precisam de papel higiênico para duas idas ao banheiro em vez de uma, de papanicolau, de exames pré-natais e de absorventes internos.” Essas mulheres têm de lutar diariamente para tentar conquistar dignidade e higiene. No livro, são apresentadas falas das mulheres que muitas vezes têm que limpar suas partes íntimas com jornal ou também usar miolo de pão como absorvente. A incompetência do Estado e a realidade do sistema carcerário no Brasil fazem com que a crença na humanidade seja perdida.
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O mundo após Auschwitz – É certo dizer, então, que não existe algo comparável a Auschwitz hoje no mundo. Entretanto, como se construir a ideia de paz após uma catástrofe como o Holocausto? Uma das heranças deste período, segundo Paulo Endo, é a ideia de “tudo menos a guerra”. Diz ele que hoje “se pode ter regimes ultra-autoritários, altamente corruptos, não democráticos, e ao mesmo tempo você tem um medo de que seja isso ou a guerra” e então, melhor isso. A Alemanha, por exemplo, apesar de seu comprometimento com a memória do holocausto, deixa campos intocados. Por exemplo: um dos maiores estupros coletivos da história se deu após o exército vermelho ocupar Berlim, mais de dois milhões de mulheres estupradas pelos aliados. Mas isso “os alemães não conseguem contar”. Aconteceu o mesmo também no Japão, mas é necessário que se mantenha a ideia de que os Aliados salvaram o mundo do nazismo. “Isso eu acho que ainda vai ser um segredo eterno, que nunca vai ser desvendado completamente”, conclui. O problema das histórias não contadas, do silêncio, é complexo, como nos explica Endo. O
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Terror no Brasil – Atos terroristas são frequentes no mundo atual. E na cidade de São Paulo, principalmente nas favelas e periferias, isso não é diferente. Conforme dados da Secretaria da Segurança Pública, a morte de cidadãos por policiais militares cresceu 97% em 2014, com os policiais alegando que na maioria das vezes o confronto era necessário. Além disso, em torno de 500 civis são mortos pela Polícia Militar por ano. Nas favelas acontecem atos de violência sistemáticos por parte de agentes do Estado, majoritariamente contra um grupo de pobres e negros, com o intuito de coagir a população e causar medo. “Isso que é o terror”, afirma sem dúvidas o professor Nasser. Todavia, a professora Marijane ressalta, “é errado dizer que haja genocídios em curso no Brasil ou em outras partes do mundo quando há uma situação em que certos grupos socialmente desfavorecidos sejam alvos preferenciais da violência policial como negros, crianças pobres ou povos indígenas.”. E conclui, “ao caracterizar toda a violência massiva como genocídio, deixamos de entender os contextos e quais são
Brasileiros presos em uma cela com superlotação em uma das cadeias do Brasil em 2012
os motivos pelos quais essas vítimas são escolhidas e, portanto, entender melhor os atores e suas motivações homicidas que necessitamos combater.” Em muitos dos conflitos que acontecem em todo o mundo há atos terroristas. “Conflito em Gaza, por exemplo, tem atos de terror do Estado de Israel. Diversos relatos de soldados que participaram da operação agora em Gaza dizendo como era a ordem, a sistematização: ‘atire em qualquer coisa, não importa quem seja, entre nas casas, derrubem casas. ‘”, explica Nasser. Porém, ao discutir se ato terrorista deve entrar ou não no código penal, Nasser acredita que isso seja um problema, “tem que se analisar o contexto, não se pode definir de antemão se o ato é terrorista. Precisam-se ver quem que ele está atingindo, quais as consequências dele etc.”, independente das circunstâncias, ao descrever um ato, ele será considerado terrorista.
testemunho é, provavelmente, a fonte mais rica de informações sobre o desconhecido. Diferente dos textos de história, que têm a visão de quem não esteve lá, o testemunho traz a tona a realidade de modo singular, único, “simplesmente, se não houvessem testemunhos, jamais saberíamos a gravidade dos danos subjetivos das atrocidades sociais e políticas”, diz. Mas por outro lado, o testemunho tem uma limitação grave: as pessoas morrem. Apesar dos imensos arquivos já existentes, muitas histórias não serão contadas, não só porque as pessoas morrem, “mas porque as pessoas não querem contar, tem gente que simplesmente viveu coisas que você nem imagina e elas não querem contar, decidiram silenciar, acham que há muito risco nisso”, nos explica o psicanalista. Não é algo fácil para quem viveu uma experiência traumática socializar seu testemunho. Existem aqueles que preferem, inclusive, contar pela primeira vez sua história num contexto de cena
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pública, pois desta forma seu testemunho ganha um caráter político. Nos conta a história de uma mãe que soube pela primeira vez historias sobre seu filho, ouvindo estas da plateia. Entretanto, silenciar não é encontrar a paz. Quando questionado se é possível esquecer uma catástrofe como esta, o psicanalista diz sem dúvidas de que não. Conta a história de seu encontro com Geoffrei Hartman, professor e pesquisador da Universidade de Yale, que lhe disse que “muita gente quis falar. E muita gente quis silenciar. O que eu posso dizer em termos superficiais sobre isso é que nenhum deles encontrou a paz” e continua explicando que “silenciar não é uma garantia de paz. Falar também não. Falar tem outras consequências, mas o fato de falar não vai te emancipar desta dor. Tem consequências de natureza política, mas não vai te emancipar individualmente disso.” Desta forma, o professor Reginaldo Nasser explica que a construção da paz é, de certa forma, relativa, “porque por vezes nós usamos a palavra paz como se fosse um sentido unívoco. E o mais clássico é: ausência de conflito. Mas será que basta para definir paz?” Existem situações nas quais as pessoas são coagidas psicológica e sistematicamente, sem a violência física, mas não se pode chamar isso de paz. “Paz é um processo, não é algo que se atinge por decreto”, explica, acrescentando que se precisa pensar em que tipo de paz se quer, quem serão os atores e os condutores deste processo. O professor cita o exemplo da Guerra do Iraque, que viu seu período mais violento acontecendo depois da declaração de paz de 2003. Ou no Brasil, que ocupa a 10ª posição no ranking de homicídios por arma de fogo no mundo. Não há guerra, mas não podemos dizer que há paz. O psicanalista Paulo Endo compara as descobertas sobre o período do Holocausto com um “buraco sem fundo”, porque toda semana se divulgam coisas novas, histórias, dados, segredos. E diz que acredita que “determinados padrões de comportamento político podem ser evitados com um regime de memória”, ou seja, a construção da memória é necessária para que episódios como este nunca venham a se repetir. Mas ele adverte que não é apenas isso que evitará novas tragédias no mundo. Não adianta realizar uma Comissão Nacional da Verdade sem que com ela seja feita justiça, como foi feito no Brasil. “É como se a verdade bastasse, mas a verdade não bastou em nenhum país da América Latina” alerta. É difícil compreender ou explicar Auschwitz. Os reflexos de uma catástrofe da magnitude do Holocausto são quase imensuráveis, seja no campo subjetivo ou na disputa geopolítica atual. Esconder as atrocidades cometidas pelos Aliados justifica-se? Como pode o povo judeu, vítima principal desta tragédia, fazer o que faz ao povo palestino? É possível que o mundo caminhe algum dia para um novo genocídio de tal magnitude? São questões quase impossíveis de se responder, mas que tampouco podem ser esquecidas. Dizer que há algo similar ao Holocausto hoje no mundo é mentira, mas não por isso a violência nas favelas ou o genocídio palestino é menos alarmante. Os seres humanos atualmente não são melhores que os dos séculos passados. Mas se tem algo de fundamental que a humanidade pode aprender com Auschwitz é que não esquecer é o primeiro passo para não repetir.
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Armênia
100 anos de um genocídio não-reconhecido Por Manoella Smith, João Abel e Pedro Prata
Turquia não assume responsabilidade pelo massacre de 1,5 milhão, em 1915
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Reconhecimento – Mesmo 100 anos após o marco do genocídio, o massacre turco sobre a população armênia ainda não é mundialmente reconhecido. Atualmente, apenas 23 países reconhecem o fato. Entre eles, estão nações como Alemanha, Canadá, França, Líbano e Vaticano. Com uma população de aproximadamente 40 mil armênios (nascidos ou descendentes), o Brasil ainda está fora da lista. Segundo Demercian, as implicações para o não-reconhecimento brasileiro do genocídio
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o genocídio não feriu somente pessoas, mas a própria identidade cultural daquele grupo
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Genocídio Armênio foi um dos primeiros massacres de grandes proporções do século XX e, no dia 24 de abril, completou cem anos. A data serve como memória a 1,5 milhão de armênios mortos pelo Império Otomano, como parte de uma política cruel de erradicação desse povo dentro do seu território. O genocídio ainda não é reconhecido por diversos países, como a própria Turquia e carrega, portanto, uma marca de impunidade em seu legado já manchado pelas mortes e atrocidades sofridas pelo povo armênio. A Primeira Guerra Mundial foi o palco do genocídio. Em novembro de 1914, o Império Otomano entrou no conflito em apoio à Tríplice Aliança (Itália e Alemanha) contra a Tríplice Entente (França, Rússia e Reino Unido). O Império saiu em uma fracassada campanha militar contra o exército russo no Cáucaso e culpou publicamente os armênios pela derrota, alegando que eles teriam lutado ao lado dos russos. “O que não é verdade. Isso era uma farsa, era um motivo para levar à frente o plano genocida”, afirma Pedro Henrique Demercian, professor da Graduação e Pós-Graduação em Direito Processual Penal. Desde 1914, o governo dos Jovens Turcos já havia começado a propaganda para descrever os armênios como uma ameaça à segurança do país. O governo, então, definiu uma série de medidas que daria início ao extermínio: desligamento dos armênios do exército, censura aos serviços postais e o confisco de sua propriedade como gado, casas e terras. Em 1915, o exército invadiu a cidade de Vane e massacrou seus 30 mil residentes e 15 mil refugiados. O professor comenta as ações Império Otomano: “ele [o genocídio] tem características de crueldade mesmo, ele foi bárbaro (...), existem noticias de mulheres grávidas tendo seus filhos arrancados do ventre e esfaqueados, estupros, mal tratos”. Uma enorme parcela dos armênios foi removida para o deserto sírio, sem nenhum suporte, onde milhares morreram de fome e esgotamento. Estima-se também que existiram 25 grandes campos de concentração perto das fronteiras da atual Turquia, Iraque e Síria que praticavam uma matança em massa. Após a derrota na Guerra, o Império Otomano começou a ter seu declínio. Apesar de muitos armênios começarem a retornar as suas cidades e os Jovens Turcos serem condenados a pena de morte, alguns líderes fugiram do país e a política de perseguição durou até 1923.
étnico
são principalmente econômicas. “O Brasil tem relações comerciais muito mais consistentes com a Turquia, do que com a Armênia, que é um país pobre, sem saída para o mar. Ou seja, é um país que pouco pode oferecer economicamente para a comunidade internacional. Já a Turquia teve um franco desenvolvimento e tem, inclusive, uma parte europeia”, argumenta o professor. Apenas 42 dos 50 estados norte-americanos atestam publicamente o acontecimento. O atual presidente democrata, Barack Obama, quando era senador, criticava George W. Bush por não reconhecer o passado armênio. Contudo, depois de ser eleito, seguiu os passos do antigo líder. Outra potência que surpreendentemente não reafirma a ocorrência do genocídio é Israel, afinal, o próprio povo judeu foi vítima de um holocausto anos depois. A luta dos armênios, em geral, tem como objetivo conquistar a admissão do fato para que a própria Turquia e seus governantes também tenham consciência de seu passado. Contudo, Demercian acredita que os turcos dificilmente devem reconhecer o genocídio, “parte daquilo que era o território armênio é dominado pela Turquia, então o reconhecimento do genocídio importa a apropriação de uma grande quantidade de terras, que pertenciam a armênios, que até hoje guardam os seus títulos de propriedade”. Além disso,
“
O maior problema do nãoreconhecimento do genocídio
armênio é permitir que fatos iguais ocorram”
(Pedro Demercian, Professor de Direito Processual Penal) Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP
traria consigo o dever de indenizar as famílias que sofreram com o fato, “a Alemanha até hoje, por exemplo, paga o massacre do holocausto judeu na Segunda Guerra”, ele complementa. Para o povo armênio, o reconhecimento do genocídio é fundamental para o processo de identificação de sua cultura. Porque o genocídio não feriu somente pessoas, mas a própria identidade cultural daquele grupo étnico. Uma das primeiras medidas tomadas pelo governo turco foi proibir a língua armênia nas escolas. A língua é um fator fundamental na constituição de uma cultura, e é a cultura que une um povo. Proibindo o uso do idioma nativo, os turcos pretendiam fragilizar os armênios através da fragilização de sua cultura. O governo armênio estima que o genocídio tenha tirado a vida de 1,5 milhão de pessoas, o que equivale a 80% de sua população na época. Porém, o número exato de mortes não deve ser analisado de forma isolada. É ainda mais importante ressaltar a real intenção dos seus executores: exterminar um povo inteiro naquela região. Intenção essa que se repetiu diversas vezes ao longo do século passado e que perdura até os dias de hoje como, por exemplo, os sucessivos ataques ao povo curdo. “Hitler, quando concebeu o holocausto judeu, foi questionado por um de seus assessores se ele não temia que o holocausto chegasse à imprensa e fosse divulgado e de alguma maneira o Reich fosse afetado por isso. Sabe o que ele respondeu? ‘Alguém se lembra do genocídio dos armênios?”, conta Demercian ao Contraponto. “O mundo tem que se voltar não é pela solidariedade ao povo armênio, o povo armênio não precisa de solidariedade nem de compaixão. O que se precisa é de reconhecimento, para que outros crimes contra a humanidade não voltem a acontecer”, ele conclui. Setembro 2015
CONTRAPONTO
Refugiados
Crise explicita os impasses no mundo globalizado Da Redação
Cenas terríveis de morte, destruição e desespero revelam a inviabilidade de um sistema que promove a extrema desigualdade
S
tranquilo da legislação humanitária da União Europeia ou da Convenção de 1951, da ONU, que impede a rejeição desses estrangeiros pelos países de asilo. A própria União Europeia não se entende internamente com o crescimento do problema. O Reino Unido recuou da intransigência e se disse disposto a acolher 15 mil sírios (só 15 mil?), enquanto o presidente da França e a chanceler da Alemanha retomam o hábito de desemperrar uma questão espinhosa, com propostas mais flexíveis que possam se espalhar como exemplo. Por paradoxal que pareça, em termos demográficos, o fluxo de refugiados é bem menos um problema e bem mais uma solução. A Europa experimenta um declínio acentuado de suas taxas de natalidade. As mulheres têm menos de dois filhos, e, com isso, não há reposição de população. Os imigrantes – e entre eles os refugiados – garantem que na próxima geração as economias não entrem em recuo e percam espaço global para a Ásia ou África, onde as populações continuam a crescer. Na EU a taxa de natalidade é de 1,55 (deveria ser 2 para repor a população), com casos dramáticos, como o da Espanha (1,17), Portugal (1,21), Polônia (1,29) ou Grécia (1,3). Nas economias mais dinâmicas do bloco europeu, Itália e Alemanha vão mal, com 1,39 bebês por mulher em idade fértil. No Reino Unido é de 1,83, enquanto a França quebrou a linha de 2 (estabilidade demográfica) só em 2012. Registra hoje 1,99, mas com uma taxa de fertilidade maior entre muçulmanas descendentes da imigração. No entanto, quanto aos atuais refugiados, a questão que se coloca de imediato é também outra: qual é a responsabilidade da Europa nessa maré humana que bate às suas portas? A maneira mais tosca de responder consiste em dizer que os refugiados partem de antigos territórios coloniais para escapar de problemas semeados no passado pelas antigas metrópoles.
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e alguma cena pode, por si só, explicitar toda a dor causada pela crise dos refugiados, a de Aylan Kurdi, o pequeno menino sírio de 3 anos morto na praia é, certamente, uma forte candidata. E se alguma cena pode explicitar a xenofobia, o racismo, a hostilidade com que setores das sociedades europeias demonstram seu ódio ao que qualificam como uma suposta “invasão islâmica”, a candidata será a de uma jornalista húngara que chuta violentamente uma criança síria. Toda a situação qualificada como a “crise dos refugiados”, em que não faltam cenas povoadas por milhares de seres humanos oriundos da África, da Ásia e do Oriente Médio morrendo por afogamento no Mediterrâneo, em busca de um destino melhor na Europa, é um completo absurdo. Mas não surgiu repentinamente, como um raio no céu azul. Ao contrário, a crise é o resultado de um sistema econômico global responsável pela existência de 1 bilhão de famintos e pela extrema desigualdade, em que 85 famílias acumulam uma riqueza equivalente à da metade do total mais pobre da humanidade. 85 = 3,5 bilhões. Um sistema que promove guerras pela posse e controle de recursos naturais, como o petróleo, e pela conquista de controle geopolítico de regiões inteiras do planeta. Um sistema que também produz e estimula o terrorismo. Como resultado, existem hoje, em todo o mundo, 19,5 milhões de refugiados, que escaparam de guerras civis, genocídios, colapso de Estados ou perseguições a segmentos políticos ou minorias religiosas. Não devem ser confundidos com os 40 milhões de imigrantes por razões econômicas. São dados do Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados). De janeiro a agosto deste ano, bem mais de 300 mil pessoas cruzaram algum pedaço de Mediterrâneo – 200 mil na direção da Grécia, 110 mil na da Itália. 2.500 deixaram seus países de origem às pressas, para morrerem com o naufrágio das embarcações precárias que os transportavam. Em 2014, lançaram-se ao mar 219 mil pessoas, dois terços das registradas no primeiro semestre de 2015. Podemos nos perguntar qual a reação mais típica dos europeus “invadidos” por essa massa de infelizes. Há de um lado grupos de cidadezinhas da Áustria e da Alemanha, que cercaram e aplaudem trens e ônibus para oferecer aos recém-chegados flores, alimentos, agasalhos e brinquedos. Mas há de outro lado a Hungria que ameaçou de fechamento a fronteira com a Sérvia, levantando um muro de 175 quilômetros, ou a Bulgária, que deslocou o Exército para tentar impedir a entrada de refugiados vindos da Grécia. E há sobretudo os partidos de extrema direita, assanhados na França, Reino Unido, Áustria ou Holanda, refletindo o temor de que os refugiados muçulmanos ameacem culturalmente suas nacionalidades basicamente brancas e cristãs. A verdade é que as duas reações convivem em planos paralelos, à falta de cumprimento
Refugiados numa situação de desespero tentam chegar na Europa A crise seria, assim, mais um subproduto tardio do colonialismo ocidental. Mas na outra ponta geográfica desse drama humanitário existem os conflitos espalhados pelo mundo muçulmano. É bem verdade que os Estados Unidos, a Turquia e a Arábia Saudita insuflaram a oposição armada da Síria quando da eclosão, há quatro anos, da sangrenta Guerra Civil. E é também verdade que os Estados Unidos desestruturaram um possível equilíbrio político no Iraque, ao imporem um modelo de “democracia” que permitiu à maioria xiita oprimir os muçulmanos sunitas. Pois são desses caldos de cultura que nasceu o Estado Islâmico, grupo sunita com vertente religiosa e militar, que traz no repertório todas as transgressões aos mais básicos direitos humanos: genocídio, sequestros de adolescentes vendidas à prostituição, destruição de regiões habitadas por grupos muçulmanos rivais. É dele que estão fugindo populações sírias e iraquianas. Da mesma forma com que procuram escapar da Nigéria refugiados de regiões controladas pelo Boko Haran, versão africana do EI, mais pobre em armamentos, mas igualmente confessando um sunismo de radicalismo hediondo. São grupos que se ramificam como se tivessem franquias comerciais pela África do Norte, inviabilizando a reconstrução política da Líbia pós-ditadura de Muamar Khadafi, que se transformou numa das vitrinas negativas dessa porcaria natimorta que os ocidentais chamavam de “primavera árabe”. Some-se a isso os conflitos internos do Afeganistão, a precariedade do cessar-fogo na Guerra Civil que dividiu o Sudão ou o crescimento político dos cemitérios na Eritreia, no Iêmen e na Somália. É nesse conjunto de conflitos que estão as causas primárias que geraram em magnitude a atual crise de refugiados.
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Cultura
Conflitos do século XX ainda inspiram o cinema Usada como máquina de propaganda, sétima arte explora guerras do passado
Por Leonardo Sanchez, Victoria Azevedo e Yoanna Dimitrios
Segunda Guerra Mundial – Além de dar espaço às táticas propagandistas nazistas, o cinema expressionista alemão da década de 1930 não abandonou a qualidade, muito pelo contrário: Adolf Hitler e Goebbels, seu ministro de propaganda, eram considerados grandes entusiastas da sétima arte, dando origem a uma indústria manipulativa - principalmente no que diz respeito ao anti-semitismo - e, ao mesmo tempo, de alto nível. Um dos exemplos mais notórios é Leni Riefenstahl, grande nome da cinematografia, mas cuja obra marchava ao lado dos interesses do Terceiro Reich, como em O Triunfo da Vontade, de 1935, considerado por muitos o maior filme de propaganda de todos os tempos. Até hoje, Riefenstahl permanece uma cineasta polêmica, tanto pela ideologia de seu trabalho, quanto pela qualidade. Do outro lado do campo de batalha, os cinemas americano e britânico se empenhavam em derrotar do ponto de vista ideológico os fascismos
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Cena do filme Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola, que acompanha uma missão estadunidense durante a Guera do Vietnã
“
[O cinema] apenas faz a sua parte: refletir, guardar a
memória e dar algum conforto frente à brutalidade da vida.”
(Vicente Ferraz, cineasta brasileiro) O Triunfo da Vontade, que exalta a Alemanha nazista, é até hoje considerado o representante máximo do gênero propaganda
europeus. Além disso, no Reino Unido, o cinema se comprometia em levantar a moral britânica e motivar a população a seguir em frente, mesmo com as dificuldades impostas pela Segunda Guerra Mundial. Fora preciso usar as câmeras de vídeo para conquistar a opinião pública e a aliança dos Estados Unidos, que só entrariam na guerra dois anos após seu início, em 1941. Além de produzir filmes conforme seus interesses ideológicos, o conflito também serviu de inspiração para ficções e dramatizações ambientadas no caos belicista. Já em 1942, Casablanca, um romance moldado pelo embate entre Eixo e Aliados, despontava como um dos principais lançamentos da década e, não à toa, permanece até hoje como um grande clássico cinematográfico. Setenta anos após seu fim, a Segunda Guerra continua inspirando a sétima arte. Do drama de A Lista de Schindler (1993) à biografia de O Discurso do Rei (2010), passando ainda pela musicalidade de Cabaret (1972) e pelo humor negro de Bastardos Inglórios (2009), o combate é retratado nos cinema todos os anos, religiosamente, e em seus mais diversos aspectos.
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ascida no fim do século XIX nas mãos dos irmãos Lumière, a sétima arte sempre gerou fascínio, desde a primeira sessão de cinema, em Paris, em 1895, até os dias de hoje, com filmes cada vez mais carregados de efeitos especiais. Além de entreter, a cinematografia foi identificada logo cedo como uma arte com enorme potencial de persuasão: diferente de outros produtos culturais, este era capaz de atingir um número muito maior de pessoas e ainda tinha ao seu lado a premissa de que as “lentes não mentem”. Essa característica não passou despercebida e, logo em seus primeiros anos de vida, o cinema começou a ser experimentado como instrumento político e ideológico. Surgiu então o gênero “propaganda”, definido pelo historiador e crítico britânico Ronald Bergan como aquele “produzido com a intenção de persuadir os espectadores em uma ideologia ou crença particulares.” O cinema de propaganda passou, então, a coexistir com outros gêneros que estão focados no entretenimento, mas ao mesmo tempo expressando as opiniões e ideologias daqueles que os desenvolvem. Ao longo das décadas que inauguraram o século XX, o método foi se aperfeiçoando, e os filmes de propaganda passaram a expressar ideologias durante a Grande Guerra, a Crise de 1929 ou durante o regime soviético. Até que, na década de 1930, quando os nazistas assumiram o poder na Alemanha, a indústria passou a fabricar propaganda de forma maciça. De 1933, quando Adolf Hitler assumiu o poder, até o fim da guerra encabeçada pelos alemães, em 1945, a indústria cinematográfica teve parte significativa de suas produções voltada para propósitos militares, políticos e ideológicos das nações envolvidas no conflito. Isto porque, além do esvaziamento dos estúdios devido à demanda de pessoas para o exército, verba e matéria prima também eram escassos, o que submeteu parcialmente o cinema aos objetivos da guerra.
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Guerra fria – Com o fim da Segunda Guerra, em 1945, outro conflito já batia na porta das grandes potências mundiais: aliados na
derrota do Eixo – formado por Alemanha, Itália e Japão – os Estados Unidos e a União Soviética não perderam tempo na busca pela supremacia. O capitalismo norte-americano tentava combater o comunismo soviético na chamada Guerra Fria, onde não houve enfrentamento direto entre as duas nações, mas sim apoio e pressão em escala global para a defesa de suas ideologias e busca de novas áreas de influência. Neste contexto, o cinema encontrou terreno fértil para desenvolver, mais uma vez, obras com viés político e também dramatizações dos horrores promovidos pela frieza deste novo combate. Se por um lado algumas importantes produções norte-americanas compartilhavam o “american way of life”, filmes como Apocalypse Now (1979) denunciavam os horrores do militarismo vigente. Até os dias de hoje, o período serve de inspiração para muitos longas. Alguns deles buscam ideias na Guerra da Coreia ou no movimento de contracultura, mas foi a Guerra do Vietnã que guiou - e continua guiando - algumas das produções de maior sucesso do gênero. Para compreender este conflito, primeiro é preciso entender a complexidade da região onde ele se desenvolveu. Dividido após a Segunda Guerra, o Vietnã era comandado, ao norte, por Ho Chi Minh, sob orientação comunista pró União Soviética e o sul, por sua vez, vivia
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sua narrativa mostra a violência de uma guerra e seus efeitos nas pessoas, que são arrebatadas pelo ódio, a loucura e o desprezo. Francis Ford Coppola, seu diretor, também evidenciou os atos extremamente desmedidos dos norte-americanos, além de criticar o envio sistemático de jovens estadunidenses aos campos de batalha da Ásia. Oliver Stone seguiu o mesmo viés de Coppola em seu filme Platoon (1986), assim como Stanley Kubrick em Nascido Para Matar (1987). Ambos demonstram os horrores da guerra e criticam a política bélica norte-americana, além do próprio capitalismo. Lavado o sangue derramado no Vietnã, algumas obras cinematográficas, no entanto, tomaram o caminho oposto: o objetivo passou a ser a reconstrução da ideologia capitalista estadunidense, que saiu da Guerra Fria fraquejada. É o
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sob uma ditadura militar aliado ao capitalismo estadunidense. A tensão entre as duas porções deu início ao combate, em 1959. Estava, então, armado o cenário perfeito para o retorno das pautas políticas e belicistas à Hollywood. Enquanto algumas produções buscavam exaltar o estilo de vida capitalista, artistas de grande renome se envolviam em projetos que refutavam a lógica armamentista adotada, gerando um conflito dentro da própria indústria, que ainda foi vítima da “caça aos comunistas” promovida pelo governo norte-americano. Na medida em que os pedidos pelo fim da guerra ganhavam força, mais análises críticas sobre o militarismo surgiram no cinema, algo que se manteve mesmo após o fim do sangrento Vietnã. O vencedor da Palma de Ouro Apocalypse Now retrata bem este movimento:
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Em Bastardos Inglórios, de Quentin Tarantino, uma judia francesa aproveita a premiére de um filme de propaganda nazista para vingar a morte de sua família durante a Segunda Guerra
Em Nascido Para Matar, Stanley Kubrick mostra as atrocidades cometidas na Guerra do Vietnã na visão do soldado Davis, que aparece em diversos momentos usando um símbolo da paz no uniforme
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caso de Rambo (1988), do diretor Ted Kotcheff, e suas sequências, que, diferentemente das obras de Stone e Coppola, exaltam o capitalismo e o poderio bélico norte-americanos. No filme, os vietcongues, representados como comunistas violentos e desumanos, são vencidos pelo ‘herói’ Rambo, símbolo da coragem, da salvação e da ética e moral do homem. Desta forma, é fácil compreender como a disputa ideológica é uma constante na sétima arte, em períodos de guerra ou até mesmo de paz. No caso do Vietnã, as produções cinematográficas que exaltaram a participação dos Estados Unidos no conflito acabaram rendendo muito mais destaque e dinheiro, alcançando um público mais abrangente, do que aquelas que a criticaram. Apesar dos prêmios colecionados, Apocalypse Now e Platoon dificilmente se fazem presentes na formação dos jovens atuais, enquanto o destemido Rambo protagoniza continuações e remakes até os dias de hoje. Especula-se, inclusive, que o ‘herói’ americano estará de volta para uma quinta sequência, que, se confirmada, não demorará muito para chegar aos cinemas do mundo todo, passando pelo Brasil e, claro, pelo próprio Vietnã. Herança – Mesmo com o fim dos grandes conflitos bélicos enfrentados no século XX, os filmes de guerras ainda são muito explorados pelos diretores de todas as partes do mundo. Para Vicente Ferraz, cineasta brasileiro, a guerra é o limite das relações humanas, causando destruição e cicatrizes permanentes na sociedade, e o cinema “apenas faz a sua parte: refletir, guardar a memória e dar algum conforto frente à brutalidade da vida”. Por isso, o fato de surgirem novos filmes sobre esses grandes conflitos pode ser explicado porque “os eventos e suas consequências continuam presentes nos países”. Ferraz, no entanto, questionou-se várias vezes porque a participação do exército brasileiro na Segunda Grande Guerra não havia sido abordada nos cinemas. Diretor do filme Estrada 47, lançado em maio deste ano, que acompanha a trajetória de um grupo de brasileiros enviados para lutar na Itália tenta achar uma justificativa para essa falta de destaque no fato de que “qualquer assunto ligado ao exército brasileiro era distante do pensamento da sociedade civil e porque o tema da FEB (Força Expedicionária Brasileira) foi apropriado pelos golpistas de 64”. Para ele, a guerra passou a ser vista dentro de “um prisma ufanista e de um patriotismo barato”, sendo deixada de lado no meio cinematográfico. O jornalista Sérgio Rizzo, no entanto, ressalta que, apesar de muitos filmes trazerem um conteúdo político e de reflexão, “o cinema é negócio em primeiro lugar, e não operação ideológica. A ideologia vem a reboque do ‘business’”. Para ele, o que aconteceu no mundo cinematográfico durante a Segunda Guerra foi algo muito específico e que não se repetiu. Ainda, acredita que os filmes de guerra, apesar de aparecerem em enxurrada nas salas de cinema, não alcançam grandes sucessos, porque têm um público restrito. Negócio ou propaganda, sucessos de bilheteria ou não, a verdade é que o cinema, assim como qualquer outra forma de arte, tem um grande poder de influência sobre o público. Cabe a ele fazer uma análise crítica não somente das tramas e suas ficções, mas da própria realidade que elas ecoam.
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CONTRAPONTO
Universidade
Veto a Foucault abre polêmica sobre a liberdade de cátedra Críticos afirmam que a ação da Igreja ameaça princípios fundamentais à existência da PUC-SP
Por Rogério Dias
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As luzes que descobriram as liberdades inventaram também as disciplinas”
(Michel Foucult)
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o início de maio, o Conselho Superior da Fundação São Paulo (Fundasp), órgão mantenedor da PUC-SP, vetou a proposta de abertura de uma cátedra que seria nomeada Foucault e a Filosofia do Presente. O veto, adotado por razões ainda não completamente esclarecidas (supõe-se que a maioria do conselho, formado por bispos, considere que a obra do filósofo é contra valores católicos), suscitou um grande debate, dentro e fora da PUC-SP, sobre a questão do exercício da liberdade de cátedra no âmbito universitário. Trata-se, portanto, de um tema que diz respeito ao funcionamento da PUC e de todas as instituições de ensino superior. O mérito da questão é bem ilustrado por uma polêmica discussão mantida nas páginas da Folha de S. Paulo, tendo de um lado o professor de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) Vladimir Safatle, em sua coluna, e de outro o sociólogo Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador do Núcleo de Fé e Cultura da PUC-SP, na página de “debate” do mesmo jornal. Em 12 de maio, Safatle fez uma crítica contundente ao veto, partindo do princípio de que a liberdade de cátedra é uma condição indispensável à existência da instituição universitária, “um instrumento academicamente importante de fortalecimento de pesquisa, visibilidade e intercâmbio”. Em resposta, no dia 2 de junho, Ribeiro Neto afirmou não ter sido ferida a liberdade de cátedra, pois Foucault continuaria a ser ensinado, debatido e tendo sua obra pesquisada no âmbito da PUC. “Não aprovar uma cátedra não interfere na liberdade de ensino, pesquisa ou extensão. Deixar de homenagear uma pessoa é muito diferente de censurá-la. Não homenagear um autor que sempre foi crítico e até agressivo à Igreja, mas ainda assim manter o seu estudo e a sua memória viva é sinal de abertura e diálogo, não de obscurantismo”. Safatle, em sua tréplica, publicada em 9 de junho, afirma: “Tudo isto é uma afronta inaceitável ao ensino de Filosofia no Brasil. Não cabe à Igreja e às suas pretensas verdades seculares limitar a possibilidade do desenvolvimento de saberes na área de Filosofia. No entanto, é isto o que está a ocorrer. Faz parte da espinha dorsal de um Estado laico defender suas universidades como espaços nos quais diferentes concepções de verdade podem se confrontar e serem igualmente respeitadas. (...) Se a PUC quer agir como um seminário católico, então ela deve abrir mão de seu credenciamento como universidade e se contentar em ser um seminário católico”.
© Reprodução
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A polêmica, que seria reproduzida em termos quase que idênticos, no final de junho, entre a filósofa Marilena Chauí e o grão-chanceler da Fundasp d. Odílo Scherer ganhou ainda maior relevância pelo histórico da PUC, universidade que abrigou professores caçados e perseguidos pela ditadura militar, incluindo Florestan Fernandes e Paulo Freire, além de oferecer espaço de atuação a intelectuais polêmicos e críticos, como Maurício Tragtenberg. Para os professores da Instituição, essa tradição é colocada em risco no momento em que as instâncias administrativas da universidade – incluindo o conselho e a Fundasp – passam a exercer poder de veto e influência sobre aquilo que é ensinado. “Efetivamente, entendemos que o papel da mantenedora é tratar de questões administrativas financeiras. Mas temos uma situação esdrúxula em que a própria reitora é conivente e iniciadora da supressão de garantias acadêmicas mínimas que ela mesmo deveria representar”, aponta Jonnefer Barbosa, professor de Filosofia. Para ele e para João Batista, presidente da Associação dos Professores da PUC-SP (Apropuc), a Fundasp, que deveria lidar apenas com questões burocráticas da universidade, tem interferido diretamente no ensino: “Submetermos a questão da Cátedra Foucault, que é de cunho acadêmico, ao conselho superior da Fundação, já é um excentricidade em si. Nós temos o conselho universitário, que é o conselho superior, que delibera sobre todas as decisões acadêmicas dentro desta universidade”, declara Batista. Batista ainda afirma que a discussão não se resume simplesmente à uma questão religiosa ou de uma “picuinha” da Igreja com o filósofo. O bom senso deveria prevalecer e enxergar que se trata de uma questão de pesquisa de ensino:
“Se a PUC se entende como uma universidade, ela deve estar aberta à diversidade do pensamento. Não se pode orientar a direção de pensamento e a liberdade de expressão de cátedra dentro de uma universidade a partir da subordinação aos ensinamentos da Igreja, porque aqui não é Igreja. É uma universidade que está sendo administrada e gerida por ela, mas antes de tudo é um centro de educação, de ensino e de pesquisa. Nós não estamos tratando de falar de Foucault dentro do sermão do padre na missa de domingo”, explica. “Toda a comunidade tem estado muito envolvida em torno dessa questão. Tem-se realizado aulas públicas, houve um dia Foucault dentro da faculdade de Ciências Sociais, um ato em favor da cátedra patrocinado pelo Centro Acadêmico de Filosofia, os abaixo-assinados já ultrapassaram a marca de 4.000 assinaturas pelo mundo e artigos e manifestações de solidariedade continuam aparecendo em toda a imprensa e na Internet. Inclusive soube que durante a reunião do Conselho Universitário realizado hoje (24/06), D. Odilo encaminhou uma carta à reitora Anna Cintra, admitindo a possibilidade de rever a decisão do veto. Na carta, d. Odilo diz que ‘oportunamente resolveremos a situação’. Ele não propõe uma data nem nada, mas pelo menos ele acena uma possibilidade de resolução”, aponta Batista. Barbosa propõe um enfrentamento mais conciso e exige coragem do Conselho Universitário da PUC-SP para a revogação desse ato, além das mobilizações dentro da universidade. “É preciso uma luta política interna para resistir aos ataques, mas também ações efetivas para virar a mesa dos fundamentalistas incrustados na PUCSP. Essas mobilizações serão a pedra de toque dos próximos debates para a sucessão na Reitoria, que deverão começar desde já”, afirma.
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CONTRAPONTO
Educação
Cresce o número de escolas públicas militarizadas
O
número de escolas da rede pública de ensino dirigidas por policiais militares tem crescido no Brasil. No segundo semestre de 2015, estudantes de oito colégios estaduais de Goiás terão que bater continência ao encontrar os dirigentes das instituições onde estudam. São 93 escolas espalhadas pelo país em que os alunos seguem regras militares para o “controle” disciplinar. Em Manaus, a Escola Estadual Prof. Waldock Fricke de Lyra passou a ser administrado pela PM por ordem do governo em 2012 e em seguida chamada de 3º Colégio Militar da PM. No começo, segundo pais e alunos, muitos estranharam as novas atitudes dentro e fora das salas de aula, entretanto, passaram a aprovar a existência de policiais dentro da instituição ao notarem diferenças no comportamento e nas notas dos alunos.
Em todo o país, estudantes de 93 instituições têm que seguir normas militares; Goiás é o campeão as consideram como uma solução para a violência e tráfico de drogas. Crianças marginalizadas vivem no contexto violento e, por serem invisíveis e periféricas, são alvos dessa realidade. Por isso, deve-se pensar primeiramente em um plano pedagógico que faça com que o aluno sinta-se parte do mundo, fomentando debates e reflexões.
© Fotos:Isa Assumpção, dos Jornalistas Livres
Por Rafael Santos e Talitha Arruda
Proerd – São Paulo figura entre os cinco estados brasileiros que ainda não possuem escolas públicas regidas por policiais militares, mas existem nove colégios privados da Polícia Militar. No entanto, os estudantes da rede pública de ensino e também particular, quando chegam ao último ano da primeira etapa do ensino fundamental (a antiga 4a série), têm aula pelo menos uma vez por semana com policiais fardados dentro das salas de aula, por meio do Programa de Resistência às Drogas e à Violência (PROERD). O projeto nasceu no Rio de Janeiro, em 1992, baseado no modelo estadunidense do DARE (Drug Abuse Resistance Education). O intuito do programa é fomentar discussões sobre os riscos que as drogas podem trazer. Portanto, por meio de cartilhas pedagógicas e um policial militar fardado, quando os estudantes concluem o curso, recebem um diploma em compromisso de se manterem longe das drogas e da violência. O Brasil passa por um período de ascensão do conservadorismo na sociedade, portanto, na medida em que a escola perde a autoridade disciplinar, o Estado recorre a outras instituições de controle social. As regras seguidas pelos estudantes dentro dos colégios públicos regidos por policiais militares não desenvolvem a pluralidade de pensamento, além de produzirem alunos pouco críticos, com comportamento padronizado. A mesma polícia militar que mata jovens negros nas periferias, hoje ocupam as escolas para melhorar a disciplina entre os alunos.
Com disciplina rígida, os estudantes são educados como nos quartéis
Método educacional – O dia a dia dos alunos remete aos dos quartéis. Quando chegam – todos, sem exceção – devem seguir as diversas regras de disciplina e comportamento, como andarem fardados pelas dependências da escola e seguirem regras extremamente rígidas, que vão desde a proibição de acessórios de beleza e cosméticos até as relações afetivas. Na rotina também inclui cantar o Hino Nacional e gritos de guerra e bater continência quando avistam os PM. Quanto às advertências, os alunos são notificados de acordo com a gravidade das transgressões, que podem levar à transferência do estudante. A semelhança com as dependências dos policiais cria um ambiente totalmente antagônico ao que se conhece como escola. O tenente responsável pela escola diz que após a entrada dos PM houve uma grande melhora nas notas do Enem e no comportamento dos jovens. Porém, por outro lado, a escola torna-se um quartel, e como consequência, há um distanciamento nas relações entre todos, pois a hierarquização que dita como as coisas devem ser. Esse novo modelo educacional que se populariza no país gera discussões. Alguns alunos que não se adaptaram após as novas medidas saíram de suas respectivas escolas e até mesmo professores deixaram de lecionar nessas instituições, pois não acreditam que a figura do agente militar deva estar nas salas de aula. Pensando no politicamente correto, tais escolas formam alunos iguais e padronizados. Todos devem seguir o mesmo modelo, deixando de lado o pensamento crítico individual e único. Criar seres pensantes, reflexivos, com diversidade certamente não está no cronograma deles, muito menos falar das minorias – negros, pobres, mulheres – nem sobre gênero, machismo e sexualidade. A Polícia Militar brasileira foi educada de forma a desumanizar e não a dialogar com quem, em teoria, deveriam proteger. Por isso, como diz o jornalista e professor da Puc-sp, Silvio Roberto Mieli: “às vezes a culpa não é do policial, mas sim sua formação. Antes de entrarem na polícia
eram uma pessoa, para sobreviver na instituição eles se desumanizam”. Passar a responsabilidade de educar para os militares e não mais a profissionais específicos demonstra a fragilidade em que se encontra o país, pois a pedagogia é ensinar, todos os dias, uma percepção de mundo, diferenças e tolerância com base no diálogo e conhecimento. Já as Instituições militares trabalham em outra sintonia, tirando a liberdade individual de cada um. Segundo comentários e opiniões em redes sociais, grande parte da sociedade apoia essas escolas administradas por policiais, uma vez que
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Óculos coloridos, cabelos longos e maquiagem são proibidos nas escolas. Os estudantes são obrigados a bater continência aos dirigentes O projeto nasceu no Rio, em 1992, baseado no modelo estadunidense do DARE (Drug Abuse Resistance Education)
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Antes de entrarem na polícia eram uma
pessoa, para sobreviver na instituição eles se desumanizam”
(Professor Silvio Mieli)
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Por Andressa Vilela
uri é feita de concreto, mas sua mas o relacionamento não durou. Já livre das drogas, alma é composta mesmo de encontrou o segundo marido, com quem teve um filho, esperança”. É assim que o prefácio do livro mas o vício logo bateu novamente a sua porta. Ainda Auri, a anfitriã – Memórias do Instituto Penal assim, Jaderson não desistiu dela. Feminino Desembargadora Auri Moura Costa Quatro mulheres que chegaram até Auri pelas apresenta a penitenciária feminina de Itaitinga, mãos de homens. Homens esses que geralmente só fazem região metropolitana de Fortaleza, Ceará. O parte do processo do crime: o abandono das mulheres livro é resultado do Trabalho de Conclusão de na cadeia é uma realidade. Apenas uma delas, Patrícia, Curso das jornalistas Aline Moura e Bárbara teve o apoio de seu Jaderson durante todo o processo, Almeida e traz Auri, que antes era apenas mesmo quando ela o rejeitava. As outras, permaneceram prisão, como contadora de sua própria história. a mercê do Estado, se virando como podiam. Ela nos chama pra entrar. Pedimos licença e Ao apresentarem Auri como a contadora dessas mergulhamos na história de quatro detentas. histórias, as autoras emprestam humanidade a um local Maribel e Jéssica são “As estrangeiras”. duro por natureza, acostumado a receber mulheres que A primeira, dominicana e a segunda, espanhotiveram suas vidas cortadas pela metade. Auri é mãe, amila, gringas que deixaram a Espanha com todas ga, refúgio. E ao narrar o cotidiano da prisão, as regras do as esperanças depositadas no Brasil. Esquejogo, o íntimo das detentas, cumpre seu papel de anfitriã. cidas por seus parceiros, encantaram-se por Cumpre também seu papel de incubadora: as mulheres um charmoso boliviano e foram usadas como que entram por suas portas jamais serão as mesmas. “mulas” de drogas sem sequer perceberem. Auri, entretanto, é diferente de outras cadeiras: Auri, a anfitriã Cinara é a “Amante dos livros”. Teve educa e oferece emprego em troca de remissão de pena. Memórias do Instituto Penal Feminino uma vida marcada por homens violentos, mas Ainda assim, continua sendo aparato de um Estado que Desembargadora Auri Moura Costa foi o mais encantador deles que a levou até prefere punir ao invés de educar, que castiga as muAutoras: Aline Moura e Bárbara Almeida Auri. Bibliotecária na prisão, ficou entendida lheres duplamente: por serem criminosas e por serem TCC editado e publicado com recursos de assuntos que a maioria das presas, por sua mulheres, que ainda resiste em entender que a maioria obtidos via Internet origem humilde, sequer teria noção, e ganhou das relações lésbicas de dentro das prisões são uma destaque por sua conduta exemplar. Lá de denresposta ao abandono masculino, que ainda se nega a tro, prestou o Enem, passou na faculdade e ingressou no curso de Filosofia, garantir direitos básicos às populações pobres e periféricas. para o qual ia todos os dias, acompanhada de uma tornozeleira elétrica. Através da construção de Auri, as autoras conseguem realizar um Patrícia é a “Mãe do crack”. Experimentou maconha pela primei- trabalho exemplar para qualquer jornalista: dão voz a vidas que são caladas ra vez aos 15 anos e, com uma maneira particular às crianças criadas diariamente e, ao mesmo tempo, tecem uma lúcida e importante crítica na periferia, à margem da sociedade e sem muitas perspectivas, logo ao sistema carcerário brasileiro e às construções sociais que encaminham aprendeu a se virar. Aos 16, o primeiro marido a apresentou ao crack, cada vez mais homens e mulheres para atrás das grades no país. © Divulgação
RESENHA
Auri, um espectro de humanidade
Por Juliana Venturi Tahamtani
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rmãs são todas meio iguais, têm os mesmo pais, moram na mesma casa, brigam por causa do chinelo, dividem os mesmos amigos e se odeiam de vez em quando por terem muito amor. Mas nós nunca fomos desse tipo, já começamos a vida com um pai meio estranho que nos deixava usar sapatos três vezes maiores que o nossos pés. Vivíamos em um mundo diferente, um mundo partido em dois. Não crescemos compartilhando nossas roupas, ou brigando pela atenção dos nossos pais. Eu não vi a felicidade dela ao ganhar a sua primeira prova de hipismo e ela não me viu chorar de alívio ao passar de ano depois das provas de matemática, muito menos me viu sofrer pelo meu primeiro amor ou escutar eu contar sobre o primeiro beijo. Somos daquelas que sempre estivemos distantes, dividíamos, no máximo, a metade de um misto quente algumas vezes por ano. Mas o amor cresceu quando um dia nos alcançamos. Esse alcance aconteceu de repente, do nada, sem propósito e sem ajuda. Foi assim, simples e sutil. Um amor tão grande que me surpreendeu e me completou de uma forma única. Mas tinha uma coisa ainda no nosso meio: O mundo. Ela tinha o mundo nas mãos, tinha qualquer parte dele, e escolheu o pedaço que mais a encantava e foi. Foi buscar coisas além da felicidade, foi descobrir um pouco da vida. Ela foi. Eu fiquei. Não a culpo, nunca entendi isso como uma escolha e sim como um destino de vida. Mil milhas parecem muito longe, uma distancia inalcançável pra quem tem saudades e tem vontade de agarrar todas as oportunidades de ter o melhor abraço do mundo mais perto. Mas eles têm aviões, trens e carros,
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estradas infinitas, mares navegáveis, e mesmo que não tivessem nada disso eu andaria até ela e arrumaria outras maneiras, outros jeitos, eu reinventaria novos caminhos só para traçar o meu com o dela. A distância nos é concedida de tantos modos diferentes que, mesmo tão chata, tem um jeito bonito de ensinar. Ela e essa tal de distância estão lá longe me mostrando que pra estar perto não precisa estar junto, lado a lado, não precisa ser irmã de berço para ter aquela cumplicidade, aquela proteção. Não precisa estar lado a lado para ter ajuda ou dar conselhos, não precisa estar cara a cara para ter as melhores risadas, só precisa ter amor de cada lado. E assim, eu percebi que quando damos as mãos, a gente abraça o mundo inteiro. Mesmo estando a 100 mil milhas da lua é possível enxergá-la, e o mesmo acontece com o coração. Todos nós percorremos uma longa distância para poder pertencer a algum lugar e só temos essa força pra ir porque sabemos que a nossa lua vai ser sempre igual a do outro que fica. Ela sempre me diz para não me preocupar com a distância porque se eu fechar os olhos ela vem pra perto. É verdade, e quando ela vem a vida fica tão mais vida.
Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP
© Juliana Venturi
CRÔNICA
Delilah
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ANTENA
Por Ana Ludelou
■ Manifestações ao redor do país
© Talitha Arruda
© `Nadine Carolina Nascimento
Em contrapartida, integrantes de partidos de esquerda e de sindicatos como a Central Única dos Trabalhadores (CUT), participaram de uma marcha por direitos e liberdade, no dia 20 de Agosto. Em São Paulo, a concentração foi no Largo da Batata, zona Oeste da cidade, com cerca de 60 mil pessoas, segundo os organizadores. Houve manifestações em outros 20 estados e também no Distrito Federal. Os participantes deixaram claro que a marcha não era em prol do governo, mas sim em prol da democracia.
No dia 16 de Agosto, milhares de brasileiros vestidos de verde e amarelo foram às ruas protestar. As demandas eram diversas, mas todas, de alguma forma, exigiam a saída da presidenta Dilma Rousseff do poder. O motivo dos protestos, segundo os manifestantes, era a corrupção e a insatisfação com a situação atual do país. Embora o epicentro das manifestações tenha ocorrido na Avenida Paulista, em São Paulo, com 135 mil pessoas, segundo o Instituto DataFolha, outros 291 municípios do Brasil também participaram das manifestações.
Dezenas de casais recriaram, no dia 14 de Agosto, a famosa cena do beijo na Times Square em Nova York. Para os participantes, o “beijaço” era um sinal de esperança por um mundo melhor. A foto, tirada no mesmo dia do ano de 1945 por Alfred Eisenstaedt, foi símbolo do fim da Segunda Guerra Mundial e representação da vitória dos Aliados na guerra.
O presidente da câmara dos deputados, Eduardo Cunha, foi denunciado pelo procurador-geral da república, Rodrigo Janot, por envolvimento nos esquemas de corrupção da Petrobrás. A denúncia foi apresentada para o Supremo Tribunal Federal (STF) no dia 20 de agosto e pede a condenação de Cunha pelos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro. Caso a denuncia seja aceita, o presidente se tornará réu. Apesar disso, o deputado nega ter recebido dinheiro.
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■ Cunha é investigado na operação Lava Jato
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■ O Beijo, 70 anos depois
No dia 13 de agosto, 18 pessoas morreram e seis ficaram feridas nas cidades de Osasco e Barueri, na Grande São Paulo. A principal hipótese da chacina é a vingança pela morte do policial militar Avenilson Pereira de Oliveira, durante um assalto a um posto de gasolina de Osasco, uma semana antes do ocorrido. No momento ainda não se sabe a autoria dos crimes, porém um soldado da ROTA foi preso como suspeito por participar dos crimes.
Na madrugada do dia 2 de agosto, a lutadora de UFC, Ronda Rousey, venceu a brasileira, Bethe Correia, durante a principal luta do UFC 190 e, manteve seu título. O combate era esperado pelas inúmeras provocações que Correia vinha fazendo à americana. A disputa, que demorou 34 segundos, ocorreu no HSBC arena, na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro. Mesmo estando no país da concorrente, Rousey conquistou a maior parte dos fãs.
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■ Ainda não há adversária para Ronda Rousey
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■ Chacina em Osasco
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CONTRAPONTO
PUC-SP
Apesar de represálias, Creche Popular resiste
Por André Vieira e Talitha Arruda
Resistência pela Reitoria – Pouco antes do final do semestre letivo, no final de junho, houve uma tentativa, por iniciativa dos alunos e de organizadores do projeto, de integrar a Creche à Universidade. No entanto, a Instituição não apenas se manteve contra o projeto, que visa ajudar dezenas de famílias trabalhadoras, mas também impôs barreiras para a implementação do programa.
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Alunos de vários cursos se unem e dão vida a um projeto que beneficia muitas mães funcionárias e estudantes
© Reprodução/creche popular
ão é de hoje que a comunidade puquiana tem que resistir aos tramites burocráticos da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Em meio a tantas decisões que esfacelam a PUC-SP, estudantes e funcionários se utilizam da mobilização social para enfrentar as dificuldades impostas pela atual gestão. As últimas atitudes da Universidade, como aumento de mensalidades, sucateamento de cursos, aumento do “bandeijão”, descompromisso com a estrutura das salas e laboratórios e a falta de diálogo com os estudantes e movimentos estudantis culminaram em uma ação prática: ocupação da reitoria, exigindo conversa e compromisso com os que escolheram a PUC-SP para estudar. Diante desse cenário, cerca de 15 alunos de vários cursos, entre eles Economia, Psicologia, Direito, Pedagogia e Relações Públicas criaram, no começo desse ano, o projeto Creche Popular da PUC-SP, devido a demanda de mães estudantes do cursinho popular e funcionárias terceirizadas que não têm condições de pagar alguém que fique com seus filhos durante o dia. A creche funciona aos sábados, por volta das seis horas da manhã, horário em que as funcionárias da Higilimp – empresa que presta serviço de limpeza à PUC – chegam até o final do dia, momento em que as mães estão saindo do campus. Aos poucos, o número de alunos foi crescendo e já chegaram a receber 30 alunos, com idades entre seis meses e 16 anos. Leonardo Brandão Oliveira Rocha, de 27 anos, estudante de Economia, é um dos voluntários na Creche e conta como funciona a organização interna do projeto: “São feitas reuniões, normalmente uma ou duas por semana, para decidirmos o que as crianças vão fazer, quais atividades serão aplicadas e o que elas vão comer no café da manhã, almoço e janta”. A alimentação das crianças é feita por meio de doações dos alunos, de uma padaria do bairro e principalmente dos tickets de alimentação de alguns estudantes da Universidade. Além disso, toda semana planejam quais atividades irão desenvolver com as crianças durante o dia a fim de interagir, ensinar e cuidar, assim como relata o estudante de economia: “o projeto não é apenas um local para as crianças ficarem; existe um plano pedagógico por trás desse projeto. A gente quer ver as crianças se desenvolvendo e serem inserida na comunidade”. Apesar de ser um projeto novo e idealizado por estudantes de diversas áreas, com a ajuda de psicólogos e aprovação de pedagogos, elaboraram uma carta de apresentação onde descrevem a proposta da creche, seu funcionamento, plano pedagógico, concepção de creche e ações educativas.
Parede da creche com desenhos dos alunos
© Reprodução/creche popular
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Tem que avisar o papa que tá
tudo errado, que a filantropia não tá acontecendo”
(mãe e estudante) Um desses empecilhos ocorreu logo em seguida ao término das aulas do primeiro semestre. No primeiro sábado do mês, dia 4 de julho, funcionários e seus filhos tiveram sua entrada barrada por seguranças informados e instruídos pela reitoria de que nenhuma criança ficaria na creche e que, daquele dia em diante, ficava proibida a entrada delas. Dessa forma, os funcionários, que dependiam da Creche para acomodar seus filhos enquanto encaravam uma longa jornada de trabalho, tiveram que retornar às suas casas e deixar seus filhos com amigos, parentes ou até mesmo sozinhos. Mais tarde, no mesmo dia, a empresa Higilimp repassou um comunicado da Pontifícia dizendo que as funcionárias que levassem seus filhos à Creche seriam demitidas. Essa ameaça fez com o número crianças que frequentavam a creche caísse bruscamente. De 30 caiu pra 15 e de 15 passou a ter oito, chegando a não receberem nenhuma criança no período de recesso escolar por conta do medo das funcionárias de perderem o emprego. Este medo não é de hoje. Demissões por causas injustas ou em situações inesperadas – como o “ajuste” da folha de pagamento em dezembro de 2014, que desligou da universidade cerca 3% de seu corpo docente - são, ainda, reJornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP
correntes dentro da instituição. Não bastavam as más condições de trabalho e a baixa renumeração que os funcionários terceirizados são submetidos todos os dias, eles devem ainda temer por seus empregos toda vez que tentam colocar seus filhos na Creche. Uma estudante e mãe concedeu uma entrevista ao Jornal, mas prefere não ser identificada por medo de ter seus estudos prejudicados. Ela relata que a Creche Popular agrega muito, pois ela, mulher, negra e da periferia sai de casa para estudar e não tem com quem deixar seu filho de quatro anos e, com a creche no campus, é uma maneira de fazer com que as minorias tenham acesso a educação. Para ela, a posição da PUC-SP não condiz com o tipo de Universidade que pregam: “por ser uma universidade católica e falar tanto em filantropia eles estão agindo errado”. Tem que avisar o Papa que “tá” tudo errado, que a filantropia não ‘tá’ acontecendo”. Fica claro, mais uma vez, que a Pontifícia insiste no projeto de “Higienização” da Universidade com aumento de mensalidades, corte do subsídio do “bandeijão” e, mais recentemente, a proibição de crianças pobres dentro de suas instalações. “Dos dias que eu vim na creche e vi as crianças, a maioria eram negras, de mães terceirizadas. E se essas crianças não estivessem na creche elas estariam na rua, e sofrendo a redução da maioridade penal”, desabafa a estudante. Em nota oficial, os representantes da Creche exaltaram o descaso, a falta de respeito e, sobretudo, a humilhação que a Universidade propiciou as mães no episódio do dia 4 de Julho. Para os organizadores do projeto social fica cada dia mais nítido o projeto de Universidade que a PUC desempenha: “um espaço cada vez mais restrito e longe do que Paulo Freire e Florestan Fernandes arduamente construíram.” Ainda segundo eles: “a função social da universidade está muito para além de produzir conhecimento. Uma universidade não é uma bolha que se fecha em si mesma. Ou ao menos não deveria. A educação, como nos ensinou Paulo Freire, é práxis. O ‘objetivo fim’ da universidade deve estar alinhado com as demandas da comunidade acadêmica e, mais, com as demandas da sociedade”. Em meio a todo esse terror propiciado pela Pontifícia, organizadores e voluntários do projeto, de maneira cautelosa, rápida e sem expor as mães e os demais funcionários da PUC, tentam encontrar um espaço temporário, no bairro de Perdizes, que possa fazer com que as crianças voltem a Creche. Tentamos conversar com alguma funcionária terceirizada, mas nenhuma quis gravar entrevista devido a repressão que poderiam sofrer. O Assessor de Comunicação da PUC-SP, Claudio Junqueira, respondeu a equipe que a Reitoria está discutindo o caso com a Fundasp e, por isso, ainda não vai se pronunciar sobre o caso.
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