ano 15 - edição 44
junho de 2017
revista corpo da matéria CURSO DE JORNALISMO PUCPR
O primeiro gole Cerca de 40% dos adolescentes brasileiros contam que provaram bebidas alcoólicas pela primeira vez entre os 12 e 13 anos
Corpo da matéria Ano 15 - Edição 44 - Junho de 2017 Revista Laboratório do Curso de Jornalismo PUCPR Pontifícia Universidade Católica do Paraná R. Imaculada Conceição, 1115 Prado Velho, Curitiba PR REITOR
Waldemiro Gremski DECANA DA ESCOLA DE COMUNICAÇÃO E ARTES
Eliane C. Francisco Maffezzolli
COORDENADOR DO CURSO DE JORNALISMO
Julius Nunes
COORDENADOR EDITORIAL
Julius Nunes
COORDENADOR DE REDAÇÃO/JORNALISTA RESPONSÁVEL
Paulo Camargo (DRT-PR 2569)
COORDENADOR DE PROJETO GRÁFICO
Rafael Andrade
Alunos - 6º Período Jornalismo PUCPR Angelica Klisievicz Lubas, Eduardo da Paz Martinesco, Fabio Carvalho da Silva, Fernanda Adami Menuci, Giully Regina de França, Guilherme Osinski, Isabela Vera Mendes, Karine de Sales Santos, Karoline Mokfianski, Larissa Bonilauri Santin, Leticia Nascimento Aleixo, Loraine de Fátima Mendes, Lucas Pereira de Souza, Maria Cecilia Terres Zelazowski, Mariana de Sa e Benevides Souza, Mariana Pabis Balan, Natália Filippin, Rafael Henrique dos Reis Bronze, Renata Martins Navarro, Thaise Caroline Borges, Vanessa Gavilan Mikos, Vinicius Savaris Rech, Virginia Thaís Freitas, Yuri Braule De Paula Weiss
Imagem de capa: Angélica Klisievicz Lubas 6ºP Jornalismo
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CIDADES
Jovens e o consumo de álcool A longa espera
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COMPORTAMENTO
16 20 De volta ao campo 24
SAÚDE Vaidade ou vigorexia
EDUCAÇÃO
À esquerda de quem passa
A vida segundo os astros.
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Feminismo acadêmico
CULTURA
A arte da luteria
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ESPECIAL: A VIDA QUE NINGUÉM VÊ Sombras da noite
44 O jogo da inclusão 50 Jovens muçulmanos no Brasil 54 A culpa não é minha 60 Afinal, devemos ou não falar sobre suicídio 66 Como vai você? 70 Marcas do passado 74 Bem-vindo à Políonia 80
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título cidades da seção
Jovens e o consumo de álcool Angélica Klisievicz Lubas
Diversos fatores são apontados pelos jovens a respeito da motivação para o consumo de álcool. Alguns dizem ser por curiosidade, outros por diversão e pelo prazer. Mas até que ponto isso é saudável?
Angélica Klisievicz Lubas Renata Martins
O
estudante de Direito Rafael Guiraud, 21 anos, consome bebida alcoólica desde os 17 anos e já passou por situações de perigo graças ao álcool. Ele crê que a vida é feita de escolhas e que se um jovem tem consciência do seu limite, não vê problema que beba. Por outro lado, afirma que o que não pode acontecer, seja
De acordo com a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), o álcool é a substância psicotrópica considerada a droga legal mais utilizada por jovens e adolescentes no Brasil e no mundo. O consumo nessa fase pode gerar repercussões durante a vida adulta. Quanto antes se inicia o consumo do álcool, maior a probabilidade de se tornar dependente, é o que
menor ou não, é beber demais a ponto de perder a noção.
relata o pediatra Marino Miloca.
Erika Floriano de 22 anos é estudante de Economia e não consome bebida alcoólica. Ela acredita que muitas vezes o jovem usa o álcool como uma fuga, buscando se livrar dos problemas ou viver algo fora do comum, assim como outras pessoas utilizam outros tipos de drogas. Para ela, a oferta da bebida é muito alta e o desejo pelo novo e diferente é muito comum entre os jovens. 4
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Segundo o médico, a bebida alcoólica afeta áreas do cérebro comprometendo funções essenciais, como memória, aprendizado e cognitividade, além de ser um fator de risco para algumas doenças e determinante para outras. “Independentemente de ocupar ou não o papel principal, o álcool está relacionado com acidentes vasculares cerebrais, pancreatite, cirrose, câncer de esôfago, hipertensão, miocardiopatia alcoólica, dentre diversas outras doenças”, afirma Miloca.
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Em contrapartida, a Academia Americana de Pediatria (AAP) afirma que a maioria dos adolescentes que experimentam entorpecentes não se tornará usuária regulares do mesmo. Ainda segundo Miloca, existem estudos que defendem que o consumo moderado de bebidas alcoólicas, para maiores de 18 anos, podem ajudar na prevenção de doenças cardiovasculares, mas que ainda não há um consenso sobre a quantidade.
ao contexto social em que o adolescente/jovem está inserido. Eles querem uma aceitação por parte do grupo e buscam fugir das pressões da sociedade atual, eles vêem no álcool uma fuga (temporária) da realidade, uma forma de autoafirmação. “É uma fase de desenvolvimento e impulsividade, os adolescentes estão muito suscetíveis ao uso abusivo do álcool”, reafirma o pediatra.
Dados do SBP apontam que quase 40% dos adolescentes brasileiros experimentaram álcool
André Luiz, de 21 anos, conta que antes não consumia bebida alcoólica, mas quando saía em grupo com os amigos se sentia excluído.
pela primeira vez entre 12 e 13 anos, em casa. A maioria dos jovens ingerem bebidas entre familiares, estimulada por pessoas próximas que já bebem ou usam drogas. Entre adolescentes de 12 a 18 anos, que estudam nas redes pública e privada de ensino, 60,5% declararam já ter consumido álcool.
O Estudo de Riscos Cardiovasculares em Adolescentes (Erica), realizado em 2016, avaliou mais de 74 mil adolescentes de 1.247 escolas
“Nunca me senti pressionado pelos meus amigos, apenas sentia que não estava curtindo tanto quanto eles, e então comecei a beber”, afirma o jovem.
“Os adolescentes estão muito suscetíveis ao uso abusivo do álcool.” Marino Miloca, pediatra A psicóloga Maria da Penha Amorim, espe-
em 124 municípios brasileiros e obteve os
cializada em estratégias com famílias em risco, conta que quando uma família consome álcool dentro de casa, a criança pode interpretar como uma atitude cotidiana e compreender que é algo positivo, seguindo assim o exemplo dos pais. “De qualquer maneira, o álcool é uma droga, ele transita socialmente de uma forma muito tranquila, contudo, ele não deixa de ser uma droga, pois altera o comportamento”, reforça a médica.
seguintes resultados: cerca de 20% dos adolescentes consumiram bebidas alcoólicas pelo menos uma vez nos 30 dias anteriores à pesquisa e desses, aproximadamente 2/3 o fizeram em uma ou duas ocasiões nesse tempo.
Um consenso entre médicos e psicólogos é que o consumo de bebidas está intimamente ligado
O Erica ainda mostrou que entre os adolescentes que bebiam, 24,1% beberam pela primeira vez antes dos 12 anos de idade, e que os tipos de bebidas alcoólicas mais consumidas pelos adolescentes foram os drinques à base de vodca, rum e tequila, além de cerveja. Jornalismo PUCPR Revista CDM
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O estudante de Educação Física Edrian Antunes, de 21 anos, começou a consumir bebida alcoólica influenciado por familiares. Aos 14 anos, ele já havia experimentado e hoje reconhece que o consumo foi precoce. “Acho errado (começar tão cedo), pois o organismo de uma pessoa tão jovem ainda não está preparado para receber o álcool”, finaliza. Segundo dados de 2014 da Organização Mundial de Saúde (OMS), 4% das mortes por ano são consequência do consumo excessivo de álcool, o que representa cerca de 2,5 milhões no mundo. Isso faz com que o álcool se torne mais letal que a Aids e a tuberculose. A OMS também estima que 76,3 milhões de pessoas no mundo possuem diagnóstico de consumo abusivo de álcool. No Brasil, são estimados cerca de 4 milhões, ou seja, 3% da população brasileira acima de 15 anos é considerada alcoólatra. Nesses casos, o primeiro passo para o tratamento, segundo a psicóloga Maria da Penha, é o reconhecimento do motivo que leva o jovem ao consumo da bebida alcoólica. Ela também esclarece que o tempo de tratamento varia de pessoa para pessoa, que podem haver algumas
Maria ainda indica o jovem a procurar ajudas paralelas. “Um exemplo que ajuda muito é os programas de Alcoólicos Anônimos (AA), que possuem uma proposta positiva, ou seja, a história de ‘um dia após o outro’, e isso faz com que se obtenha sucesso através das diversas tentativas dos anônimos”, exemplifica a psicóloga.
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Angélica Klisievicz Lubas
crises de abstinência e que é imprescindível a ajuda dos familiares e amigos.
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Pablo
Durante a juventude ele costumava sair bêbado de carro, colocava a própria vida e a
O Alcoólicos Anônimos, o A.A., surgiu em 1935 por meio do encontro de um advogado com um médico, ambos alcoólatras. Eles conversaram sobre o seu problema em comum: o alcoolismo. Com o tempo notaram que juntos poderiam enfrentar essa doença. E esse é o principal objetivo do A.A.: um fortalecer o outro, de acordo com Amadeu, coordenador do A.A. da área 37 de Curitiba.
de muitas pessoas em risco, se envolveu em acidentes, testou a sua vida. “Eu não gostava de mim. Bebia todas, queria ir até o fundo”, conta. Nada mais era importante.
Detalhes de lado, vamos falar um pouco do Pablo, que prefere omitir seu nome. Por volta
Aos 20 anos Pablo conheceu o A.A., mas seria uma saída? Ainda era difícil de acreditar, assimilar os ideais de uma irmandade – como os frequentadores o A.A. à chamam – era complexo. “O A.A. funciona, mas só quando o alcoolizado está disposto a encarar os fatos”, ele
de seus 13 anos, Pablo teve seu primeiro contato com a bebida alcoólica. Tinha um exemplo negativo: o pai era alcoólatra, o que fez com que ele despertasse um interesse prejudicial.
não estava pronto. Ao alcançar seus 25 anos, Pablo enfrentou o auge de sua derrota. Estava no “fundo do poço” e só assim ele decidiu se entregar ao A.A. e vivenciar a filosofia deles.
Acostumado com o meio em que vivia, Pablo aumentou seu consumo de álcool de forma muito rápida. Entrou em coma alcoólico duas vezes em sua adolescência. Junto ao álcool, ele conheceu outras substâncias que o prejudicaram ainda mais. “Em pouco tempo, eu já consumia muito e isso foi gradual, é uma doença incurável e fatal. A gente não se cura do alcoolismo, a gente tem o alcoolismo”, afirma.
Aprendeu sobre os 12 passos – relação do próprio alcoólatra com ele mesmo – e as 12 tradições – relação para com o grupo. Trocou experiências, compartilhou coisas sobre ele mesmo, se apresentou “sem medos e sem reservas”. Para Pablo, a Irmandade se tornou um refúgio. “Ela me deu essa base pra continuar sóbrio, me ajudou com a mudança de hábito e de pensamento.”
Vidas alheias em risco Beber e dirigir não é uma opção O consumo de bebida alcoólica, além de prejudicar física e mentalmente o jovem, também coloca em risco a sua vida e de terceiros. No período de janeiro de 2016 até fevereiro de 2017, segundo dados do Batalhão de Polícia de Trânsito (BPTran), ocorreram 158 acidentes envolvendo condutores embriagados que tinham entre 18 e 29 anos. Esse número representa 30,62% do total de acidentes registrados nesse período. Por outro lado, durante o mes-
mo intervalo, não ocorreram acidentes envolvendo condutores menores de idade alcoolizados. Foram 137 homens envolvidos e 21 mulheres. O médico Marino Miloca também falou sobre o perigo que o álcool representa no trânsito. “Mesmo com a Lei Seca, ainda lutamos contra inúmeros e crescentes casos de direção e álcool, que resultam em acidentes, muitas vezes, mortais”, comenta o pediatra.
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“Nos anos anteriores minhas tentativas eram falhas e o A.A. surgiu como um remédio”, disse feliz. Hoje ele tem 32 anos e sua última recaída foi há seis meses. Caiu em uma armadilha e bebeu uma lata de cerveja. Ficou abalado? Um pouco, mas continuou se fortalecendo. “O milagre, do poder superior e do A.A., me proporcionou estar vivo, estar bem. Foi como um passe de mágica”, conta Pablo.
No trabalho recebeu o primeiro convite para uma festa. Bebeu e voltou a ser a “melhor companhia para baladas”. Começou a usar estimulantes para manter-se com um ânimo a mais. Ana destruiu um relacionamento, perdeu seu trabalho e se envolveu com um homem casado. Sofreu acidentes automobilísticos, uma concussão cerebral e chegou a incendiar sua casa. De tudo, só restava lembranças.
Ana
Concluiu a faculdade, mas não esconde a sua frustração. “Estudei menos do que eu gostaria e trabalhei apenas para resumir a minha vida a
“Eu estava numa festa de aniversário de 15 quando bebi meu primeiro copo de vinho”, contou Ana*. A busca pela aceitação começou fez com que Ana começasse a beber.
essa ‘estranha ilha que é uma garrafa de álcool”, contou Ana.
Após ingerir ácool, Ana passou a integrar o grupo dos “descolados”. Mais alterada, ela se tornava uma pessoa diferente, fez novos “amigos” e começou a namorar. Aos 15 anos, de melhor aluna da turma se tornou reprovada. Perdeu uma avó para o câncer e sentia-se estranha no próprio lar... Tudo colaborou para que ela entrasse para um mundo escuro. Começou a usar calmantes junto ao álcool.
Em um dia comum, Ana saiu para tomar um chopp às 20 horas e acordou às 8 da manhã na casa de um estranho. Espantada, disfarçou. Pediu desculpa e saiu. As lágrimas à acompanharam até o final do dia, quando encontrou uma sala de A.A. online.
Durante o período de faculdade, bebia de quinta-feira a domingo, acompanhada pelo namorado e amigos. Tinha apagões, mas não
Na sala de A.A. ela compreendeu o que era ser alcoólatra: era a compulsão e a obsessão pela busca dos bons momentos. No grupo, foi recebida como um ser humano digno em busca de recuperação. Sentiu-se acolhida. A primeira reunião ocorreu no dia 09 de mar-
recorria a lugar algum.
ço de 2017 e, desde então, ela não bebeu mais.
Aos 20 anos ficou solteira e começou a sair com amigas. Em suas noitadas não se recordava de tudo. “Em uma noite despertei quando fui arremessada numa caçamba por um rapaz que provavelmente almejava fazer sexo comigo. Não me recordo de como cheguei em casa”, contou Ana. O susto foi tão grande que a fez parar de beber e buscar uma religião, ideia que ainda a assustava. Sã, não conseguia fazer amigos e depois de um tempo se viu sozinha.
Não sente mais parte dos lugares dos quais ia, sente-se uma mulher renovada. Aos 32 anos e em recuperação, tudo ainda é novo. Mas se tem algo de que Ana tem certeza é de que “apenas por hoje”, ela se orgulha de estar consciente quanto às suas escolhas, por estar vivendo o presente, “por ter iniciado a trajetória necessária para ser uma filha melhor, uma irmã melhor, uma amiga melhor e uma profissional melhor”. *nome fictício
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Heidy Friedrich, 21 anos Nunca gostei de bebida e tive exemplos positivos em casa. Tudo tem seu tempo, menores não deveriam consumir bebidas, por prejudicar vários fatores.
Luis Agottani, 21 anos Acredito que a bebida é um complemento, se alguém precisa beber para tornar algo divertido, essa pessoa precisa rever algum conceito.
Gustavo Silva, 24 anos Nunca bebi, cresci longe de bebidas e vícios. Hoje vejo jovens que tentam preencher vazios com bebidas, mesmo existindo outros meios de se divertir e sem ingerir álcool.
Douglas Olgado, 21 anos Não bebo porque vejo as coisas erradas que bêbados fazem e me imagino no lugar deles. Respeito meus pais que nunca beberam, não quero preocupa-los. João Kreich, 19 anos Já fui em festas com muito álcool e uma hora cansa. Prefiro aproveitar as companhias, o momento, coisa que com o álcool, as vezes, fica impossível.
Yasmin Ferreira, 22 anos Eu já tive meus momentos de exagero, mas não acho legal. Acaba estragando a própria noite e a noite de quem está junto.
Motivação dos jovens Curiosidade
18,5%
Prazer
Não consumiram
52,3%
Não tem importância
15,4%
36,9%
Consumiram
41,5%
Motivador Motivos do consumo
Motivos para não consumir
16,9%
Medo dos pais
6,2%
Alívio do estresse
7,7% Influência de amigos
3,1%
Medo das consequências
3,1%
Religião
O medo dos jovens, a respeito dos pais, mostra que esse tema precisa ser abordado dentro de casa. A psicóloga Maria da Penha Amorim é especializada em estratégias com famílias em risco e afirma ser imprescindível o diálogo sobre o assunto. Fonte: Sociedade Brasileira de Pediatria
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A longa espera Natalia Filippin
Órfãos entre 9 e 17 anos são maioria em abrigos no Brasil. A preferência dos casais dispostos a adotar são por bebês. Mas há também histórias com finais felizes Natalia Filippin, Thaise Borges e Yuri Braule
A
bandono. Rejeição. Esquecimento. Palavras que por si só já nos remetem a fatos tristes, lamentáveis. Mas você já parou para pensar o que é abandono? Um total de 7.434 crianças sabe, e como sabe. Este é o número relacionado ao mês de abril deste ano, do Cadastro Nacional de Adoção (CNA),
o problema não estaria resolvido? Infelizmente, não. E o motivo é simples para essa conta não fechar. É que o perfil de criança exigido pelos pretendentes não é compatível com aquele disponível nas instituições de acolhimento.
um sistema de informações coordenado pela Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Destas 7.434 crianças, 4.811 já estão prontas para receber um lar.
ao sexo; 80% só querem adotar uma criança e menos de 10% aceitam crianças com mais de 5 anos. E a realidade dos abrigos é de que entre as crianças aptas para adoção, 93% têm mais de 5, sendo que mais da metade já passou dos 12 anos. Quanto à cor, 48% das crianças e adolescentes são pardos. Pelos dados do CNJ, é possível constatar ainda que 37% das crianças têm um irmão que, segundo a lei, deve ser adotado junto.
O CNA foi desenvolvido em 2008 e nele há dados de todas as Varas da Infância e da Juventude relacionadas a crianças e adolescentes em condições de serem adotados e pretendentes à adoção, que atualmente totalizam 39.376 pessoas cadastradas, sendo 37.275 já habilitadas a adotar. Então você pensa: se há muito mais pretendentes para adotar do que crianças, 10
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Segundo dados do CNJ, 57% dos candidatos à adoção têm restrição à cor da criança e 40%
“A maioria, para não dizer todos, passava por mim e nem me notava! Alguns até pensavam
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que eu trabalhava lá”, relata Jorge Welinton, 35 anos, negro, hoje estudante e auxiliar de obras. Ele não tem família. Viveu em um orfanato durante sete anos, ali viu e sentiu bem o que é essa realidade. “Sempre ajudei em tudo enquanto vivi lá. As 'tias', as professoras, as médicas, todas gostavam de mim. Mas, em relação à adoção, quando pequeno eu era negro, e quando grande eu era grande. Ninguém queria!”
o que é necessário para sobreviver, da melhor maneira possível, nunca será igual a um lar de verdade com uma família. Segundo o Cadastro Nacional de Adoção (CNA), apenas 0,04% dos pretendentes disponíveis aceitariam adotar crianças com idade de até 17 anos. Em contrapartida, há muito mais crianças com essa idade do que bebês, que é a preferência dos casais. Atualmente, 82% das crianças aptas à adoção têm entre 9 e 17 anos e menos de 2% dos
Em 2016, foram adotadas 1.226 crianças e adolescentes no Brasil por meio do CNA. Os estados com maior número de adoções foram Paraná, São Paulo, Rio Grande do Sul, Pernambuco e Minas Gerais. Ao reunir e cruzar informações, o programa permite a aproximação entre crianças que aguardam por uma família em abrigos brasileiros e pessoas de todos os estados que tentam uma adoção. O CNA também tem como objetivo reduzir a burocracia do processo, pois uma pessoa considerada
pretendentes aceitam adotar pessoas dessa faixa etária. A psicóloga Berenice Marie Ballande conta que, apesar de não ser possível avaliar o grau de intensidade dos traumas, os principais impactos gerados por uma criança, quando mal interpretados pela instituição, são: boicote à formação de grupos, por consequência a cooperação, e a perda do senso de questionamento, tratados como indisciplina, além do dano à formação da individualidade e o incentivo
“Quando eu era pequeno, eu era negro, e quando grande, eu era grande.”Jorge Welinton
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apta à adoção em sua região ficará habilitada a adotar em qualquer outro lugar do país. Em março de 2016, o CNJ passou a permitir que brasileiros e estrangeiros residentes no exterior se inscrevam no CNA. Com a medida, espera-se que aumentem as possibilidades de adoção de crianças mais velhas e de irmãos.
Prejuízo do tempo A permanência das crianças órfãs em abrigos gera, além de traumas, a independência antecipada. Por mais que as instituições deem Jornalismo PUCPR Revista CDM
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à delação. “Tem crianças que relataram ter tentado suicídio várias vezes pelo sofrimento que passavam e o risco que estiveram expostas no período da institucionalização.” Dados de novembro de 2016 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apontam que cerca de 40 mil crianças e adolescentes estão em abrigos sem saber se retornarão às suas famílias ou se irão para adoção. Geralmente, as crianças vão para o acolhimento institucional após a Pela lei, náo se separam irmãos na hora da adoção. suspensão do poder familiar por negligência ou É feita uma análise da documentação e são abuso cometido pelos responsáveis. A demorealizadas entrevistas com uma equipe técnica ra nos processos de destituição familiar pode formada por psicólogos e assistentes sociais. impactar seriamente a trajetória das crianças, Após entrar na fila de adoção, é necessário pois a idade é fator determinante, e a demora aguardar uma criança com o perfil desejado. no processo pode significar uma diminuição na possibilidade de ser adotado, tendo como Para conseguir adotar, também é necessário consequência a prolongação da permanência mostrar uma grande disposição e perseveno abrigo. rança para esperar uma longa fila de espera, capacidade financeira e estrutura familiar para Como forma de chamar a atenção para essas acolher a criança. A advogada Caroline Doquestões, o Fundo das Nações Unidas para a mingues conta que a maioria dos perfis dos Infância (Unicef ), junto a outras entidades na América Latina, lançou a campanha #FalePor- pais que querem adotar são casais heterosseMim, que busca mobilizar a sociedade a fim de xuais, entre 30 e 50 anos, com renda de classe garantir que os governos tomem medidas para média e moradores das regiões mais ricas. “Os acabar com a institucionalização de crianças de casais não se importam com a cor, raça ou sexo da criança, mas desde que elas não tenham até 3 anos. Segundo o Unicef, para cada ano mais de 4 anos.” Dos 39.376 pretendentes em uma instituição, a criança perde quatro cadastrados, quase 90% são casais, dos quais a meses de desenvolvimento; em abrigos, crianmaioria das pessoas formalmente casadas, mas ças estão seis vezes mais expostas à violência com uma considerável parcela de pessoas em e são quatro vezes mais suscetíveis à violência união estável. Apenas 8,4% dos pretendentes sexual. são casais solteiros. Os divorciados ou separaComo adotar? dos judicialmente são 2,4%. Homens solteiros Para adotar uma criança é preciso ir à Vara da são apenas 1,2% do universo total. Infância mais próxima de sua residência e se Greice de Oliveira é formada em Pedagogia e inscrever como candidato. Além de RG e comatualmente trabalha no Lar Criança Arteira, provante de residência, outros documentos são que abriga 13 crianças de 2 a 12 anos que fonecessários para dar continuidade ao processo. ram retiradas de suas famílias por negligência. 12
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Amor, carinho e respeito são as palavras que Greice define para o local em que trabalha. Ela conta que todas as crianças são bem tratadas, recebem tratamentos médicos, frequentam a escola regularmente e têm uma educação de qualidade. Além disso, todas elas transmitem muito amor a todos os voluntários que vão visitá-las. As crianças ficam em média três anos na casa, podendo ser menos quando o problema da família não é grave. Lá, elas são preparadas desde cedo para enfrentar a sociedade sem nenhum trauma. Apesar de ser apenas um lar temporário, todos os funcionários se apegam muito a elas. “É uma tristeza misturada com alegria, mas todos nós sabemos que é melhor para eles voltarem para suas famílias. Ficamos com o coração na mão e com um sorriso no rosto”, diz a pedagoga.
Apadrinhamento O dia 24 de dezembro, véspera de Natal, é dedicado aos órfãos. Nesta data, comumente comemorada em clima de confraternização familiar, crianças órfãs aguardam a chegada de uma surpresa, de um presente ou de uma
visita, que possa alegrá-las com brinquedos, roupas, donativos ou simplesmente um abraço ou uma palavra de esperança. Para quem não deseja ou não pode adotar uma criança, existe também a opção de se tornar um padrinho, que consiste em conviver, visitar e estar presente sempre.
Fora da curva Em 1955, Francisco nasceu. Na periferia da cidade de São Paulo. Com a pobreza extrema, foi morar com a avó, Flora, que dele cuidou por um tempo, depois começou uma peregrinação em casas de outros parentes, foi para Jacarezinho, Ribeirão Claro, Paranavaí. Então, devido a essa dificuldade, em 1964, Francisco veio para Curitiba e foi encaminhado ao Educandário Dr. Caetano Munhoz da Rocha, que acolhia crianças abandonadas, pelo Instituto de Assistência ao Menor (IAM), onde ficou quatro anos. “Ser órfão é entender que é só você, Deus e o mundo”, diz Francisco. Depois desse tempo, foi transferido para o Patronato Santo Antônio, em São José dos Natalia Filippin
82% das crianças tem entre 9 e 17 anos, mas menos de 2% dos pretendentes aceitam adotar essa faixa etária. Jornalismo PUCPR Revista CDM
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cidades Natalia Filippin
No dia 28 de fevereiro de 1988, Francisco se ordenou padre no patronato Santo Antônio.
Pinhais. Francisco tinha medo de ser adotado, ele não queria. Preferia ficar lá. Trabalhou na
Joel fazer exames, descobriu que, infelizmente, isso não seria possível. Decidiram então partir
prefeitura da cidade e tinha o desejo de se tornar padre. Sempre depois do trabalho, ele ia ao Santuário Nossa Senhora de Guadalupe, onde revelou ao padre Hermes seu desejo de ser padre. Então, Hermes encaminhou Francisco para conversar com o arcebispo daquela época, dom Pedro Antônio Marchetti Fedalto, que o aceitou na arquidiocese. Após quatro anos de Teologia, no dia 28 de fevereiro de 1988 Francisco se ordenou padre na capela do Patronato Santo Antônio.
para a adoção. Eles não conheciam ninguém que já havia adotado. Então foram ao Juizado de Menores, fizeram a habilitação, levando documentos e comprovante de residência, conversaram com a psicóloga, primeiro individualmente e depois o casal junto. Na época, já os alertaram que a resposta não seria imediata, cerca de nove meses a um ano. Porém, pediram para que eles já se preparassem. “Eles me fizeram me sentir grávida. Grávida de coração. E nós falamos que queríamos qualquer criança. Loiro, moreno, japonês, magrinho, gordinho, doente... O que viesse estaríamos preparados!”, conta Iraci.
Há pouco tempo na Paróquia São Benedito, um fato inusitado aconteceu. Enquanto o padre Francisco realizava um batismo, uma tia dele o reconheceu. Esse encontro foi marcado de lágrimas e muita alegria. Depois de tudo, Francisco, com 62 anos, relata: “Eu não esperava mais encontrar minha família. Eu não quero e nunca quis um sobrenome, eu só queria amor, carinho e agora eu tenho!”.
Amor sem medida Iraci Stela Gonçalves e Joel Rubens Gonçalves, já no namoro tinham a vontade de encher a casa de crianças. Quando completaram quatro anos de casados viram-se preparados para ter um filho. Mas o inesperado aconteceu e, após 14
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O tempo passou, Joel e Iraci acabaram esquecendo-se disso, afinal, levaria tempo para chegar a criança. Joel comprou um carro e bem no dia em que foi buscá-lo recebeu a ligação de Iraci. “Ela disse: ‘Nosso bebê chegou!’ O carro morreu na hora”, diz Joel. O bebê veio em seis meses, tinha 13 dias, sofria de epilepsia. Ele estava na Casa de Irmãs, que acolhia grávidas que estavam dando seus filhos. Quando Ricardo completou um ano, o casal decidiu ter mais uma criança e, como eles já tinham o Ricardo, o processo demoraria mais ainda, pois dariam preferência aos casais que não tinham nenhu-
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ma. Entretanto, a Casa de Irmãs recebeu uma ligação de Laranjeiras do Sul solicitando um casal habilitado, pois havia um bebê de dois dias disponível. “Tudo foi providência, é incrível como tudo foi acontecendo como era para ser”, diz Iraci. Esse processo foi mais rápido ainda, cerca de cinco meses. O bebê recebeu o nome de Gustavo. Quando Gustavo completou 4 anos e Ricardo 6, decidiram tentar uma menina. E como, pela primeira vez, tinham uma preferência, foram encaminhados para comarcas menores, mais
e não governamental que acolhe e atende crianças que tiveram direitos violados ou estão em situação de risco, se encantaram com um bebê e solicitaram a adoção. A surpresa foi que ele tinha uma irmã e, pela lei, não se separa irmãos. Então, o casal aceitou adotar Felipe, de um mês e Aline, de 3 anos. Mas, como havia mãe e familiares vivos das crianças, existia o risco de perdê-las com o tempo. Decidiram então apadrinhá-los por dois anos até que a decisão saísse de vez. Felipe com 2 e Aline com 5 anos foram, definitivamente, para casa.
na periferia. Então, Iraci ao comentar seu desejo com uma mãe na saída da escola, a mulher lhe contou que havia uma criança em Nova Londrina (SP), que ela conhecia.
Joel e Iraci realizaram o sonho de ter uma família. Após vários percalços e desafios, eles conseguiram escrever sua história de vida, de amor. Com dois netos, Gabriel, de 3 anos, e o Arthur, de nove meses, filhos de Aline, o casal Joel e Iraci entraram rapidamente em contatêm a certeza que era para ser do jeito que to com o juiz, que já os conhecia das outras foi, sem mudar nada. Cada obstáculo serviu adoções, e foram buscar Nicole, de cinco como aprendizado e para valorizar ainda mais meses. Ela pesava cinco quilos, desnutrida, o que significa família. “Eu queria a casa cheia sem unhas, com manchas, até teste de Aids já tinham feito com a criança. Dois meses depois, e hoje eu tenho. Aqui o amor aumenta a cada dia. Se antes me faltava algo, ou não entendia com os cuidados do casal e boa alimentação, o porquê das coisas, hoje eu entendo e sou Nicole já estava 100%. completo. A minha família é a minha vida!”, Após Joel e Iraci iniciarem trabalho voluntário completa Joel. no Lar Moisés, entidade sem fins lucrativos
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O dia 24 de dezembro, véspera de Natal, é dedicado aos órfãos. Jornalismo PUCPR Revista CDM
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À esquerda de quem passa Os desafios cotidianos de canhotos em um mundo pensado para destros Karoline Mokfianski Mariana Balan
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a época da faculdade, quando morava com uma amiga, era comum que a funcionária pública Bárbara Ayres, 29 anos, precisasse pedir socorro ao vizinho quando a colega não estava em casa. O motivo? Bárbara nunca conseguiu manusear um abridor de lata - como faria, então, com aquela receita em que o milho era um ingrediente indispensável? Quando a advogada Taisa Taborda, 32 anos, começou a autoescola, tão logo atingiu a sonhada maioridade, insistia em acelerar com o pé esquerdo e frear com o direito. Já com possíveis hobbies que não pareciam lá tão complicados, deparou-se com verdadeiros desafios, e acabou desistindo de atividades como crochê e tricô. Taisa e Bárbara não são esquisitas, “do contra” ou têm dificuldade em levar a sério o que começam. Elas são, simplesmente, canhotas. É difícil precisar a porcentagem de canhotos no mundo. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que haja uma relação de um canhoto para doze destros. A artista plástica 16
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Mariana Balan
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Lídia Peychaux, no livro Acessando o Hemisfério Direito do Cérebro: a Arte como Ferramenta para Desenvolver a Criatividade, aponta que, na maioria das culturas, cerca de 90% da população faria uso da mão direita para executar tarefas que exigem algum tipo de habilidade. A evidência seria coletada desde os tempos pré-históricos. Os pesquisadores norte-americanos Sally P. Springer e George Deutsch, em Cérebro Esquerdo, Cérebro Direito, analisaram trabalhos de arte oriundos de um período compreendido entre o ano 3000 a.C. e 1950 e constataram que apenas 8% dos desenhos teriam sido feitos com a mão esquerda.
conversa com um de seus maiores talentos, o musical. Quando decidiu aprender a tocar guitarra, acabou optando por um instrumento “normal”, para destros, por questões práticas. “Meu irmão, destro, já tinha uma guitarra em casa, e eu não queria gastar dinheiro com algo que eu não sabia se ia gostar ou não”, conta. Para quem não sabe, os instrumentos musicais adaptados para canhotos são razoavelmente mais caros do que os pensados para destros, uma vez que são produzidos em menor quantidade.
“Tudo parece invertido.”
Certo é que eles formam uma minoria, mas não são invisíveis. Todo mundo, afinal, conhece, ao menos, um canhoto. Mas pouca gente pára pra pensar que esse pessoal de esquerda precisa viver num mundo que não foi planejado para eles. “Tudo parece invertido”, afirma Taisa, que acredita sofrer uma dificuldade de coordenação maior que as dos destros. Muitas vezes, a advogada se constrange até com atos simples, como cumprimentar alguém, pois ela e a outra pessoa acabam estendendo mãos diferentes. Já Bárbara desistiu de vez dos enlatados, recorrendo aos produtos em sachê. E mesmo o ato de cortar o pacote, tão simples, veio de uma adaptação feita há muito tempo. É que, quando era criança, a funcionária pública se obrigou a aprender a manusear a tesoura com a mão direita, já que a posição das lâminas segue uma lógica destra e era difícil encontrar o objeto numa versão adaptada para os canhotos. Outra adaptação importante feita por Bárbara
Taisa Taborda, advogada e canhota Outro ponto que os canhotos levam em conta na hora de aprender a tocar um instrumento é o professor, que, na maioria das vezes, como a maioria do mundo, é destro, e acaba tratando o aluno como semelhante. Como Bárbara resolveu passar para o “lado de cá”, não encontrou muita dificuldade nesse sentido. Poderia até dizer que teve mais sorte do que juízo, mas a verdade foi que a paciência foi sua grande companheira no processo de aprendizagem, e hoje Bárbara é exímia guitarrista. Taisa, por sua vez, achou melhor não se arriscar numa empreitada musical. O mesmo aconteceu com o economista Rodrigo Pacheco, 30 anos, que tentou aprender a tocar contrabaixo com um instrumento destro. Desistiu, “mas se tivesse levado à frente, investiria em um instrumento adaptado mesmo”, confessa tardiamente. Jornalismo PUCPR Revista CDM
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Por quê? Assim como as estatísticas a respeito, as causas para o canhotismo são razoavelmente obscuras, e não há consenso na ciência. Grosseiramente falando, o cérebro é dividido em dois hemisférios, cada um responsável por funções específicas. Enquanto o senso comum pode acreditar que o cérebro de um canhoto funciona de modo “invertido” em relação ao órgão de um destro, não é isso que a ciência mostra. “Eles funcionam basicamente da mesma forma”, afirma o neurologista Fernando
explicar o canhotismo afirma que a condição estaria relacionada a uma maior exposição ao hormônio testosterona da mãe intra-útero. Outra possível causa é a genética. Não existe um “gene dos canhotos”, mas quando a mãe ou o pai é canhoto, a chance de que o filho também seja é de quase 20%. Há até quem afirme que pais canhotos estimulariam, de forma inconsciente, que os filhos fizessem mais uso da mão esquerda, “transformando-os” em Karoline Mokfianski
Tensini. No que diz respeito à linguagem, por exemplo, 95% dos destros têm o lado esquerdo do cérebro como dominante para a função, assim como 75% dos canhotos. Já o hemisfério direito sobressai em 5% daqueles que escrevem com a mão direita e em 10% dos que escrevem com a mão esquerda, enquanto em 15% dos canhotos a dominância é bilateral. Quanto à aprendizagem, não há interferência. Em termos práticos, porém, a diferenciação pode ser decisiva durante o processo de recuperação de um acidente vascular cerebral (AVC). No caso dos pacientes com dominância bilateral, existe a chance de recuperar a fala independentemente do hemisfério onde tenha ocorrido a lesão. Já quem tem o lado esquerdo dominante só não sofrerá danos se a lesão for no hemisfério direito, e vice-versa. No aspecto motor, Tensini afirma que a lateralidade — predominância motora de um dos lados do corpo — dos seres humanos começa a se manifestar por volta dos 4 anos, estendendo-se até o fim da infância. Acontece que as causas para essa escolha podem vir desde a gestação. Isso porque uma das teorias para 18
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canhotos, mas não há estudos que confirmem a suposição. Fato é que ainda se sabe muito pouco sobre a biologia dos canhotos. Por enquanto, ao menos, o mistério continua.
Estigma sinistro Na tela “Adão e Eva” (1550), do pintor renascentista Tintoretto, como era conhecido o veneziano Jacopo Robusti, é com a mão esquerda que a primeira mulher criada por Deus oferece o fruto proibido a seu companheiro. Cesare Lombroso, psiquiatra italiano, é considerado por muitos o criador da Antropologia Criminal. No século XIX, o médico afirmou que indivíduos com determinadas características físicas estariam mais propensos a cometer
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crimes, via o canhotismo como uma evidência de patologia e primitivismo. O “gauche” que um anjo torto disse para o poeta e escritor Carlos Drummond de Andrade ser na vida é, segundo o dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, um “indivíduo canhestro, inseguro, sem determinação”. Gauche, em francês, significa “esquerda”. No italiano parece pior ainda, sinistra. No tempo das nossas avós, não era raro que crianças canhotas fossem forçadas, por pais ou professores, a escrever com a mão direita. Segundo o médico Fernando Tensini, do ponto de vista neurológico, submeter alguém a uma tarefa difícil seria até benéfico para a cognição. Do ponto de vista social, porém, o ato pode levar à retração social, ao mau aproveitamento escolar e até a um aumento de transtornos psiquiátricos. A prática — ainda bem! — não é mais comum, o que não quer dizer que os canhotos não preferissem levar a vida pela direita. O estudante Giulliano Cruz, 19 anos, conta que já tentou várias vezes escrever com a mão direita, sem sucesso. Único canhoto da sala, sentia-se estranho ao ver todos escrevendo “corretamente”, como ele mesmo definiu. Quando alguém se aproximava, trocava o lápis de mão. Bendita uma professora do jovem que, ao constatar que ele era o único sinistro da classe, afirmou que não há nada de errado em ser diferente. “Ela passou o resto da aula falando sobre as diferenças e como elas nos fazem únicos. Pela primeira vez me senti bem em ser canhoto, diferente”, contou. “O importante é que, de uma forma ou outra, sempre acabamos nos adaptando”, conclui a guitarrista Bárbara.
Canhotos pelo mundo Os canhotos não ficam só no universo dos anônimos No dia 13 de agosto é comemorado o Dia Mundial do Canhoto, lançado pelo clube britânico Left-Handers para conscientizar as pessoas acerca das dificuldades enfrentadas por aqueles que têm a mão esquerda como dominante. Em 2014, pesquisadores da Universidade de Oxford publicaram um estudo que demonstra que os corvos, assim como os seres humanos com seus braços e pernas, também têm um lado de preferência do bico durante a realização de certas atividades, como construir ninhos ou se alimentar. No mundo dos animais mamíferos, há outras espécies, além do ser humano, que demonstram preferência por um dos lados em detrimento do outro, como chimpanzés e ursos polares, de acordo com o Instituto Smithsonian. 20% dos integrantes da Mensa, organização internacional sem fins lucrativos que reúne as pessoas com os maiores QIs do mundo, são canhotos.
Famosos sinistros
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Barack Obama, ex-presidente dos EUA.
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Os guitarristas Kurt Cobain e Jimmy Hendrix.
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Bill Gates, fundador da Microsoft. Ayrton Senna, piloto de Fórmula 1. O príncipe William e seu pai, o príncipe Charles, do Reino Unido.
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A VIDA SEGUNDO OS ASTROS Assunto antigo, mas ainda em evidência, a astrologia norteia a via de muitas pessoas, que consideram a influência dos astros em suas vidas determinante Eduardo Martinesco, Fábio Carvalho e Karine Sales
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igno? Lua? Ascendente? Essas são algumas das palavras mais populares do momento e que estão ligadas à astrologia. O significado, encontrado em qualquer dicionário, é dito como o estudo da influência dos astros nos acontecimentos terrestres e na vida das pessoas. A crença nos signos é um tabu, pois há quem diga que tudo não passa de bobagem e enganação; mas há quem viva disso e quem vê na posição dos astros a explicação para as situações e acontecimentos do mundo. Fernanda Christina Gomes, de 23 anos, é uma dessas pessoas que leva os signos a sério. O interesse por astrologia veio do berço: ganhou de sua madrinha,
sua carta, e o que cada informação contida nela queria dizer, a aquariana diz que conseguiu aprender a lidar com sua personalidade marcante desde muito cedo, pois conseguia estudar os seus ciclos astrológicos. Ela é estudante de Direito, e ao contrário da sua futura profissão, que é baseada em regras e conceitos, no estudo dos astros ela vê equilíbrio. “Não há extremos na astrologia. Vejo que, apesar de tudo estar conectado, muitos caminhos nos levam à evolução”, reflete a estudante. Até para conhecer novas pessoas ela leva os astros em consideração. “Tenho facilidade em lidar com pessoas dos signos de ar e fogo, mas os de água, como Peixes e Escorpião, normalmente não dá”, diz.
logo quando nasceu, um mapa astral. Ao conhecer a
O sucesso da astrologia é bem antigo: desde sempre,
ASTROLOGIA ATRAVÉS DO TEMPO
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MESOPOTÂMEA
GRÉCIA ANTIGA
No atual Iraque, os babilônios do ano de 700 a.C percebiam os movimentos celestes. Vendo que o sol passava por 12 constelações, dividiram o céu em 12 faixas de 30 graus - resultando em 360°.
Gregos antigos adaptam os conhecimentos adquiridos pelos babilônios, desenvolvendo padrões entre acontecimentos terrestes e os astros.
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SÉCULO XVI O astrólogo Johannes Kepler desenvolve as leis que regem a mecânica dos planetas. Nasce aí o conceito de mapa astral.
comportamento Aquivo pessoal
jornais e revistas têm seu espaço reservado para o horóscopo, que é uma previsão de curto prazo (diário, semanal, quinzenal ou mensal) sobre o que os astros aguardam para cada signo. Atualmente, constata-se um constante crescimento de sites, blogs, perfis em redes sociais e centros de convivência ligados ao assunto, que interessam pessoas de todas as idades. Apenas o horóscopo já não era mais suficiente, e assim começou a busca por mapa astral, buscando entender o que a posição de cada astro influenciava no seu jeito de ser. Além disso, como a própria Fernanda diz, o mapa virou porta de entrada para conhecer alguém: dependendo do signo, a pessoa já é previamente descartada. O mapa astral sempre existiu entre os estudiosos da astrologia e, antes da internet, o acesso ao mapa só se concretizava consultando um astrólogo. Porém, hoje em dia em poucos minutos pode-se fazer o mapa on-line, gratuitamente, em dezenas de sites, como nos portais Personare, Viastral, Astrolink e muitos outros.
SÉCULO XVII Astrologia e astronomia são tidas como ciências separadas. A astronomia se difere ao estudar o universo por base da matemática.
Fernanda tatua a constelação que representa o signo de Aquário.
Tenda Esotérica No centro de Curitiba, em um prédio comercial, está o Tenda Esotérica. É lá que Amanda Astral (pseudônimo) achou um espaço para exercer seu papel de astróloga, taróloga, terapeuta holística e conselheira sentimental. Logo na entrada, dois pacientes aguarda-
ANOS 80 Populariza-se o conhecimento sobre mapa astral. Estudos mais aprofundados são publicados na revista Nature. Com a Internet, os estudos astrológicos ficam mais acessíveis.
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vam serem chamados. No balcão, a filha de Amanda, Bruna, de 17 anos, diz querer seguir os passos da mãe: “Acho que a pessoa nasce com um dom, não tem como aprender”. Se ela tem esse dom? Sim, confirma fechando os olhos, cheios de rímel. Os ancestrais da família de Amanda e Bruna já tinham a veia mística. A avó de Amanda era benzedeira, e desde pequena ela se encantou com as cartas que ela usava e começou a fazer cursos nos quais estudou sobre o assunto nunca mais parando. “Eu não escolhi minha
“Eu foco no lado do positivo, mesmo que eu veja algo de mal, eu não foco naquilo.” Amanda Astral profissão, ela que me escolheu.” Em tom confessional, admitiu ter pequenas revelações desde pequena, assustando os amigos do colégio. Mesmo adulta, o preconceito com a astrologia ainda existe, confirma Amanda. Além de ler cartas, fazer consultas terapêuticas e conferir o mapa astral dos pacientes, Amanda Astral assina colunas de horóscopo para jornais e rádios. Na televisão, a astróloga tem um espaço em um programa onde os espectadores mandam suas datas de nascimento por meio dos comentários no Facebook. “Eu sei da minha responsabilidade com as pessoas que querem meus conselhos. Eu foco no lado do positivo, mesmo que eu veja algo de mal, eu não foco naquilo.” O interesse das pessoas pela astrologia sempre teve e Amanda conhece aquelas que não saem de casa sem antes ver as suas previsões. Astrologia é coisa séria. 22
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Início da astrologia no Brasil Segundo dados publicados na página oficial da Associação Brasileira de Astrologia (ABA), os estudos da astrologia no Brasil vêm de diversas heranças. Desde nossos colonizadores portugueses, influenciados pela Escola de Sagres, pelo Infante Dom Henrique, que abandonou o conforto da corte para dedicar-se aos estudos de astrologia no início do século XV. França e Inglaterra também trouxeram influências com suas lojas maçônicas, que se dedicavam a pesquisar a matéria – parte integrante de seu simbolismo filosófico –, chegando no país no século XVII. Há registros históricos de que o primeiro movimento astrológico realmente efetivo no Brasil nasceu com a fundação do Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento, no início da década de 1900, pelo libriano Antonio Olívio Rodrigues, também criador da a Editora O Pensamento e do mais importante livro do passado astrológico brasileiro: Astrologia, da coleção Ciências Herméticas, próximo de 1920.
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Astrologia vira arte “Eu sempre gostei dessa coisa meio mística e esotérica”, diz Beatriz Lago, que é designer gráfica e buscou conhecer a astrologia mais profundamente há cerca de dois anos, com o objetivo de conhecer melhor a si mesma. “Eu não tinha noção da imensidão”, afirma, ao dizer como foi a descoberta do mapa astral. Para entender melhor o que cada posição do mapa dizia, ela foi atrás de um astrólogo e uma numeróloga. Além disso, o conhecimento trouxe curiosidade para Beatriz, que passou a trocar conhecimentos com esses profissionais. A astrologia foi tão importante na vida de Beatriz que ela conseguiu arranjar espaço para ela até no trabalho: “Nós temos um quadro. Lá que eu atualizo a posição da Lua e escrevo as características disso”, conta. Ela alerta que, apesar da curiosidade que o assunto traz, é necessário levá-lo com cautela. “É muita coisa para estudar, mas se eu ficar vendo todo dia, eu não vou ter vida”, explica. Beatriz tem uma página no Facebook, na qual ela compartilha ilustrações que ela mesma faz, de forma independente e muitas vezes com influências da astrologia. A fanpage Be a Lake (www.facebook.com/bealake3) e sua conta no Instagram, @bealake, trazem imagens que a própria Beatriz diz ser “um mergulho no íntimo para tentar desconstruir padrões de beleza e comportamento”. Aquivo pessoal
Beatriz Lago, 22 anos Designer
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De volta ao campo Busca por qualidade de vida? Liberdade? Descontentamento com a sociedade? O fenômeno conhecido como êxodo urbano tem marcado o século XXI, contrariando os paradigmas do passado
Fotografias: Pexels e Sasint Composição: Larissa Santin
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Danielle Spielmann, Fernanda Menuci, Larissa Santin, Letícia Aleixo
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omprar um terreno na Colônia Witmarsum é o sonho do jovem casal Martin Ewert e Rafaelle Mendes. Atualmente, os dois hoje vivem em Campo Largo, cidade localizada no meio do caminho entre a grande Curitiba e o sítio que ainda querem comprar na colônia. O que os move é a possibilidade de viver um estilo de vida plenamente sustentável, independente e livre. “A ideia é ser autossuficiente. Produzir tudo o que a gente precisa. De alimento, mas também energia. E construir a nossa própria casa, com as próprias mãos”, diz Martim, que pretende realizá-la com feno. Rafaelle já produz seus remédios naturais, cosméticos, desodorantes e pó dental. A energia será por roda d’água ou painéis fotovoltaicos. O plano para previdência, madeira de lei. No jardim da casa em Campo Largo, plan-
tam os mais diversos alimentos para consumo próprio, tudo orgânico. O excedente tem um destino certo: “Eu troco laranjas por pães caseiros da minha vizinha, por exemplo”, conta Rafaelle. Mas eles concordam que nem sempre essa busca por autonomia é fácil. “A vida no campo é muito mais simples. Mas você precisa ser mais disciplinado para que ela funcione. É necessário todo um planejamento.” Gabriel Menezes é mais uma dessas pessoas que adotou a vida rural. Sua empatia pela natureza começou cedo. Desde a infância cresceu próximo aos avós maternos, que moravam em uma casa que tinha um quintal grande, com plantas, hortaliças, frutas e galinheiro. Era como uma pequena chácara. Gabriel já havia vivido
o ritmo frenético de São Paulo, mas isso não se encaixava com ele. “Não via mais sentido e conexão entre os trabalhos e serviços prestados e a manutenção da vida propriamente dita. Vejo muitas pessoas correndo atrás de trabalhos bem remunerados para comprar e satisfazer necessidades superficiais, sendo que as necessidades fundamentais muitas vezes não eram atendidas.” Ele acredita que o êxodo urbano será uma tendência que veio para ficar. “Na minha opinião, mais cedo ou mais tarde, isso vai acontecer, pois necessariamente as pessoas precisam satisfazer suas necessidades primárias, as quais são água pura, ar puro, alimentos saudáveis e abrigo.” Segundo o professor de Sociologia da PUCPR Cesar Bueno, esse fenômeno inverso ao tradicional êxodo rural está vinculado ao processo de globalização vivenciado no momento e é uma tendência que não tem previsão para acabar. Para ele, os fatores que desencadeiam esse processo são múltiplos. “A dificuldade de você obter uma qualidade de vida na cidade, a questão do medo e da violência e o custo de vida são alguns fatores. Uma questão que é colocada hoje, para quem tem condições e está fazendo essa opção, é a reflexão sobre como usar o tempo livre de modo criativo. Porque
“As pessoas precisam satisfazer suas necessidades primárias, as quai são água pura, ar puro, alimentos saudáveis e abrigo” Jornalismo PUCPR Revista CDM
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nas cidades o tempo livre praticamente não existe.” Para Bueno, o próprio perfil dessas famílias é distinto daqueles que até então procuravam oportunidades nas cidades. “Hoje em dia quem está propenso a voltar a viver em pequenas comunidades no meio rural são pessoas que de alguma maneira já tem uma certa condição econômica, social e educacional. Muita gente deseja, mas nem todas as pessoas têm condições de materializar esse desejo.” Segundo ele, essa decisão muitas vezes está relaciona-
sistência, e sim pelo prazer, afirmando que irá continuar com sua ocupação atual como enfermeira. “Eu apenas gosto de vida tranquila, da minha privacidade, e de ser capaz de fazer o que eu quero na minha propriedade. Na cidade, há essas associações de moradores que impõe restrições e orientações para o que você pode ou não, fazer em sua propriedade.“, conta, contextualizando com a situação em que foi impedida, pela associação, de pendurar luzes decorativas em seu próprio jardim.
da a questões alimentares.
Imersão em conjunto
Apesar disso, não é, para ele, um processo simples. É necessário um novo processo de ressocialização.
Uma faceta dessa tendência é o surgimento das chamadas ecovilas, também chamadas de ecoaldeias ou vilas ecológicas, onde um grupo de pessoas vivenciam juntas um estilo de vida ecológico. Em meio a mata atlântica catarinense, a Bio Aldeia Arawikay é um retiro e uma escola para aqueles que estão abertos para vivenciar a ecocultura por alguns dias, sema-
Fenômeno global A migração da cidade para o campo não é exclusividade do Brasil. O fenômeno é percebido em escala global. O site Urban Exodus (colocar hiperlink), reúne um compilado de histórias de pessoas e famílias que fizeram essa transição. O geólogo e músico alemão Wolf Schweizer-Gerth, 49 anos, deixou há dez anos os confortos de Stuttgart, no sudoeste da Alemanha, para viver em Goppingen, uma cidade a 50 Km de distância. "As coisas mais importantes para mim são a minha vida familiar, meus amigos morando perto e ter tempo para fazer minha música." Lá, pode compor e plantar alguns alimentos, como tomates e abobrinhas. A americana Nicole Slosser deseja comprar uma propriedade rural por uma espécie de nostalgia de sua infância no interior. Ela tem planos de ter um jardim, mas não por sub26
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Eva VerBeeck
Kate Rustemayer higienizando seus rabanetes, no Canadá.
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nas, meses, ou para morar definitivamente em ecomoradias. “Aqui as pessoas encontram a si mesmas, se motivam a estudar e procurar redes, círculos positivos, transformar seus hábitos, procurar por conceitos e práticas que as realizem como pessoas”, diz Eliana Gavenda, uma das fundadoras.
uma criação interiorana. A maioria escolhe esse rumo para produzir comida orgânica em pequena escala.
Talita Moser
Gabriel Menezes em sua propriedade, em Campo Largo.
Dos visitantes que para lá vão, há aqueles que procuram uma transição para o campo, buscam uma outra visão de seus sítios, há aquelas que não se identificam com a sua profissão ou ambiente e decidem por mudar de rumo. Outros vão para descobrir algum ativismo pacífico. Nesse ambiente comunitário, conhecimentos distintos de cada indivíduo são uma ponte para construir um ambiente criativo em busca dos pilares da sustentabilidade.
Wolf Schweizer-Gerth
Wolf Schweizer-Gerth e família no norte da Alemanha.
Segundo Eliana, não há uma idade ou nacionalidade específica que tenha interesse por esse estilo de vida. Arawikay recebe pessoas na casa dos vintes e dos setenta anos, estrangeiros e brasileiros. A antropóloga canadense Kate Rustemayer, 29 anos, há muito tempo tinha a ideia romântica de se mudar para o interior. Mas sua vontade só tomou forma quando começou a estudar políticas da alimentação e percebeu os impactos ambientais e sociais do processo tradicional de produção alimentícia, que a fez querer comer “boa comida”. Resolveu aprender técnicas para que ela mesma produzisse a sua. A grande dificuldade de Kate era adquirir um pedaço de terra. Com outros jovens agricultores, alugam em conjunto uma grande fazenda, onde dividem-se em pequenas propriedades. No Canadá, conta Kate, o movimento de jovens para o campo está ficando cada vez mais comum, principalmente daqueles que não tiveram
Bryan Lin
Nicole Slosser treinando as habilidades com machado em Ohio, EUA. Larissa Santin
Martin Ewert e Rafaelle Mendes em Campo Largo.
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Entrevista O publicitário Marcelo Cruz, largou tudo em Belo Horizonte para constuir a própria casa na praia da Pipa, Rio Grande do Norte. Ele tem um canal no YouTube, que orienta pessoas que possuem o mesmo sonho. De onde surgiu a ideia de construir uma casa com as próprias mãos? Quando eu morava em Belo Horizonte, ia com a família visitar sítios, e isso me inspirou por ser um ambiente que sempre me agradou. A ideia principal é construir minha casa para não pagar mais aluguel e plantar o máximo que eu puder para consumo próprio, assim reduzindo gastos. Quanto tempo você levou planejando? O projeto é antigo, apesar de ter começado a construir em outubro de 2016. Como você escolheu o local? Meus pais moram aqui perto, fizeram um investimento aqui em Pipa e comprei uma parte desse investimento para mim, ou seja, uma parte do terreno. Também vou ajudar meus pais a construírem a casa deles. Como você decidiu o modelo de construção? Pesquisei na internet sobre o assunto assim que me mudei para Pipa. Pensei em construir a casa em container, depois Earthship. Casas feitas com pneus seria mais trabalhoso, então encontrei informações sobre o tijolo ecológico, procurei pessoas para tirar dúvidas e decidi. Você tem alguma dica para as pessoas que pensam em ter uma casa ecológica assim como a sua? Minha dica é quem quiser é começar com uma planta simples, depois poderá expandir. Quando fiz minha planta pensei em algo grande, mas depois me apaixonei por um lugar menor. O Tiny House me inspirou pelo movimento ser de casas pequenas e com mobilidade. Por que você resolveu criar um canal no YouTube? Comecei o canal pois senti que falta mais contato com as pessoas, assim posso mostrar e sinto que essa é a fase mais lúcida de minha vida. Marcelo Cruz
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Marcelo Cruz exibe o tijolo ecológico, em Natal, RN.
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Glossário Êxodo Urbano: consiste na migração das pessoas que moram em grandes cidades para lugares afastados, como praias, ecovilas e campos. Agrofloresta: é associar cultivos agrícolas com florestais, para a criação de ecossistema abundante e resgate de áreas degradadas. Permacultura: é uma cultura de planejamento para criar e manter ambientes humanos sustentáveis, financeiramente viáveis e socialmente justos. Ecovila: São comunidades urbanas ou rurais de pessoas que tem a intenção de integrar uma vida social harmônica a um estilo de vida sustentável. Tiny House: Movimento que visa um estilo de vida minimalista, desde o tamanho reduzido das casas como a quantidade de bens adquiridos.
Willian Boslooper
Documentários inspiradores
(Age of the Farmer, 2015, Canadá)
A idade média de agricultores é 65 anos e não há jovens suficientes para substituí-los. Devido essa preocupação, Eva Verbeeck convidou Spencer MacDonald a se juntar a ela numa viagem através do noroeste do Pacífico para produzir um curta-metragem sobre o tema.
(Conservation Generation, 2016, EUA)
No oeste árido a maioria dos jovens agricultores e pecuaristas da região nunca cultivou em condições de não-seca, e por isso são focados em soluções criativas para a conservação e otimização do uso da água na região de Colorado, EUA.
( To make a Farm, 2011, Canadá)
Documentário aborda a vida de 5 jovens canadenses que decidem tornar-se agricultores, mostrando as alegrias e dificuldades da vida no campo para aqueles que não tinham conhecimento prévio mas que também possuem um senso de propósito inabalável. Jornalismo PUCPR Revista CDM
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saúde
Vaidade ou vigorexia? Facilmente confundida com determinação, a vigorexia se confunde com o alto nível de vaidade na busca pelo corpo ideal considerado perfeito Maria Cecília Terres
“E Virgínia Freitas
u já tive vigorexia, sim. É horrível, estava quase entrando em depressão. Não cheguei a procurar um especialista no assunto porque, graças a Deus, saí por força própria. Você entra em uma paranoia tão grande, que toda vez que você se olha no espelho, se acha magro. Eu me olhava no espelho e não estava satisfeita com o que via. Me achava feia, magra demais, embora muitas pessoas me achassem forte”, diz Fabíola Carvalho, atleta bodyfitness.
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saúde
Vanessa Gavilan Mikos
Apesar de não ter feito tratamento, a fisiculturista Fabíola Carvalho afirma que já sofreu com o transtorno.
A vigorexia não está nas classificações diagnósticas atuais que a psiquiatria segue, contudo, pode ser enquadrada como um dos transtornos dismórficos corporais (TDC).
da percepção de seu corpo, pode ter delírios e não aceitar que precisa de ajuda. A busca pelo corpo idealizado como perfeito se torna obsessão quando há excessos.
O vigoréxico tem uma preocupação excessiva com sua aparência física, se vê pequeno
Desistir de alguma atividade importante da sua vida, seja relacionada ao trabalho, família ou
diante do espelho quando, na verdade, já está musculoso. Sem causa específica, os fatores podem ser biopsicossociais como genéticos, psicológicos e sociais. Glauber Higa Kaio, psicoterapeuta, acredita que conflitos mentais presentes no inconsciente também podem desenvolver a vigorexia podendo, inclusive, se manifestar ao longo da vida.
lazer, para praticar atividade física ou para não fugir da dieta. Permanecer cerca de cinco horas diárias na academia, consumir substâncias até 20 vezes acima do recomendado pelos médicos e checar compulsivamente os ganhos musculares, chegando até 13 vezes ao dia, são sinais de que há algo errado.
A pessoa que sofre com o transtorno tem um objetivo que, muitas vezes é inatingível, e por estar com uma visão distorcida da realidade e
Sofrimento, ansiedade, angústia, irritabilidade e depressão. O vigoréxico se sente fraco e pequeno, tendo medo de expor seu corpo. Os prejuízos variam tanto no psíquico quanto no corpo físico, causando alteração de voz, Jornalismo PUCPR Revista CDM
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saúde
atrofias, colesterol, problemas de pressão e câncer.
determinando a não fazer tudo por um objetivo corporal”, declarou.
O psiquiatra defende que todos estão preocupados com a aparência e que é difícil identificar quando estão ocorrendo os excessos. “É preciso prestar atenção e perceber a duração e a intensidade dos sintomas, se for por muito tempo ou muito intenso, deve-se ligar o alerta”, afirma Kaio.
Não existe um tratamento sistematizado para a vigorexia, visto que ainda não é um transtorno oficializado, os métodos utilizados são os mesmos do TDC e dos transtornos alimentares.
Fabíola pontua que deve haver equilíbrio e que todo excesso faz mal. “O limite é você não começar a prejudicar as pessoas mais próximas, como filhos, marido, família, amigos. Muitos deixam o convívio social pela busca de seus resultados.”
A psicoterapia é um dos procedimentos mais recomendados pelos médicos em que especialistas desenvolvem um trabalho de esclarecimento e conscientização. São trabalhados todos os excessos e as consequências proporcionadas pela vigorexia na saúde física e mental, apresentando possibilidades que tragam o paciente de volta à realidade. Pode-se também utilizar medicamentos psicotrópicos quando surgem sintomas obsessivos compulsiCarvalho, fisiculturista. vos.
“Me achava feia, magra demais, embora muitas pessoas me achassem forte.”
O movimento fitness que estamos vivendo, principalmente com - Fabíola a influência das mídias, contribui para o aumento de casos de vigorexia, estabelecendo padrões de homens fortes e mulheres magras. De acordo com o médico especialista em medicina esportiva Luiz Paulo de Souza, nos homens a vigorexia é mais comum: eles têm mais chances de ter o distúrbio porque sofrem mais psicologicamente. A faixa etária mais atingida são homens de 18 a 35 anos e de classe média. Souza, enquanto cursava Medicina, identificou que seu comportamento estava próximo do transtorno. ”Na época, eu sai um pouco da academia, fiquei sem treinar e quando voltei estava mais consciente e 32
Revista CDM Jornalismo PUCPR
De acordo com Kaio, o tratamento tem pouca adesão, pois o papel dos especialistas é incentivar os pacientes a diminuírem o ritmo de treino, e esses nem sempre aceitam e acabam abandonando o acompanhamento médico. Outra causa da desistência é quando percebem a melhora devido à medicação e se consideram curados. O médico esportista defende que não se deve associar vigorexia ao fisiculturismo. Para Souza, pessoas comuns também estão sujeitas ao transtorno, principalmente aquelas que não têm um acompanhamento médico e acabam se pautando em informações rasas sobre a prática de exercícios físicos e suplementação.
saúde Vanessa Gavilan Mikos
Agora, com acompanhamento médico, Fabíola se sente mais segura consigo mesma.
A fisiculturista Ana Carolina Fritzen ressalta a importância de os atletas fazerem acompanhamento psicológico. “Realmente, muitos atletas têm vigorexia. Eu conheço alguns que têm a imagem totalmente distorcida, porque mexe muito com a cabeça, com a minha também, tenho que me cuidar”, diz.
A vigorexia tem cura. Além do treino na academia, pratique também o que os especialistas chamam de musculação mental. Cuide do equilíbrio do seu corpo e mente, para quando chegar um peso pesado em sua vida, você tenha mais capacidade de aguentar a barra.
Anabolizantes X Suplementos
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Os esteróides androgênicos anabólicos, mais conhecidos como anabolizantes, são feitos a partir de hormônios esteróides naturais e sinteticos. Promovem o crescimento celular e sua divisão, resultando no desenvolvimento de diversostipos de tecidos, especialmente muscular e ósseo.
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São ilegais no Brasil e geralmente conseguidos no “mercado negro”.
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Deca-durabolin e Durateston são injetáveis, e Winstrol, via oral, são exemplos.
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Os suplementos são extraídos dos alimentos e servem para completar a dieta.
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O consumo é permitido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)
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De um modo geral, são indicados para todas as idades. Desde uma criança com dificuldades para ganhar peso ou até mesmo a creatina em idosos. Sempre deve ser prescrito por uma especialista.
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Alguns exemplos são: Whey Protein, BCAA e Creatina. . Jornalismo PUCPR Revista CDM
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educação
Feminismo acadêmico
Os coletivos feministas dentro das universidades são uma forma das estudantes lutarem contra o machismo e clamar por igualdade no ambiente que deveria ser de conhecimento e quebra de paradigmas Giully Regina
O
feminismo é uma forma de defesa, uma
forma de impor voz e pedir por igualdade. E foi esse movimento que impulsionou mulheres a criarem coletivos feministas dentro das universidades. Os coletivos são uma maneira das estudantes terem voz dentro do ambiente acadêmico, criado por mulheres para ajudar mulheres.
Giully Regina
A estudante de Engenharia Mecânica Brisa Mar Piaskoski, 23 anos, é uma das fundadoras do coletivo Enedina Alves Marques, dentro da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
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O nome homenageia a primeira mulher formada em Engenharia no Paraná e a primeira engenheira negra do Brasil. Brisa conta que o coletivo era uma ideia que ela e algumas amigas tinham, mas que em agosto do ano passado teve que sair às pressas do papel. O coletivo surgiu em modo de urgência devido a um caso de revistas Playboy dentro do centro acadêmico. “A gente teve que surgir mais para amparar as meninas que estavam se sentindo incomodadas”, conta. O coletivo começou com dez participantes,
Universitárias do coletivo Maria Falce de Macedo (UFPR), na Marcha do dia 8 de março.
educação
atualmente são 15 ativas, mas no grupo de uma rede social são 80 integrantes. O coletivo Enedina é voltado para os cursos de Engenharia. Brisa explica que as alunas dessa área estavam sentindo carência por parte da faculdade em recolher seus problemas, então o espaço foi criado para que fosse possível discutir assuntos pertinentes entre elas nas reuniões semanais do coletivo.
Maria conta que não há represálias diretas contra o movimento, mas que existem pessoas que elas sabem que não gostam do coletivo. “Mas feminismo que não incomoda não está fazendo seu papel”, afirma. Maria alega que a universidade é um ambiente hostil: “A mulher é vista como secundária, e o machismo é visto em professores que fazem piadinhas e até mesmo entre colegas. O coletivo é também um grupo de apoio.”
“O coletivo também é um grupo de apoio.” Maria Emília, estudante de Direito
Brisa ingressou no movimento feminista por meio da influência de uma amiga, e quando entrou na faculdade ela sentiu falta de algo: “...e foi no movimento feminista que eu achei o que eu precisava”.
A estudante teve seu primeiro contato com o feminismo
dentro de casa – foi criada por uma mãe feminista. Maria conta que percebeu o feminismo na escola, mas de maneira rasa e que a faculdade traz mais voz ao movimento. “Eu acho que é o universo onde mais se prolifera esse discurso, porque é um ambiente de formação, estamos questionando várias coisas.”
Já Maria Emilia Glustak, acadêmica de Direito, conta que o Coletivo 3 Marias, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), nasceu em 2014 por um grupo de estudantes de diferentes cursos que já se conheciam e foram se integrando por causa do
Uma das últimas pautas abordadas pelo 3 Marias é a falta de fraldários nos banheiros femininos. Como é apontado, existem muitas mulheres mães dentro do ambiente universitário: professoras, funcionárias e alunas.
movimento feminista. Essas garotas perceberam que faltava um grupo, uma união dentro da universidade para levar suas demandas para frente.
da Universidade Positivo (UP), faz parte do coletivo Alzira, que começou há quatro anos e homenageia uma poeta feminista, Alzira Rufino, grande ativista do movimento das mulheres e também o movimento negro. O coletivo promove eventos, tentando trazer a reflexão para os estudantes. “Nosso movimento ainda é um tanto tímido, mas é constante.”
No começo eram em torno de sete participantes, e atualmente há cerca de dez a 15 participam ativamente. As reuniões do coletivo são quinzenais e ocorrem em salas vazias, na cantina ou até mesmo ao ar livre. São escolhidos temas para cada reunião, e pesquisados textos sobre o assunto e a questão é discutida entre as meninas.
Daisyrre Peres, acadêmica do curso de Direito
No começo do coletivo, cerca de 17 pessoas participavam das reuniões, atualmente 27 participam ativamente do coletivo. A estudante conta que conhecer o feminismo Jornalismo PUCPR Revista CDM
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educação
abriu sua cabeça para o senso crítico, e afirma que, como estudante de Direito, está se formando uma profissional diferente. “Eu consigo ver como a sociedade é formada e isso me agrega muito como ser humano”, declara. Já as integrantes do coletivo Maria Falce de Macedo, do curso de Medicina da UFPR, declaram que não gostam de definir uma fundadora ao grupo, porque elas começaram juntas, em agosto de 2016 no movimento. As primeiras reuniões foram para fazer um levantamento de dados de violência contra a mulher no ambiente universitário. Para elas, o movimento feminista é importante para todas as mulheres. “A primeira vez que você escuta que é ‘coisa de menina’, você começa a perceber muito cedo que você tem uma desvantagem.” Sobre o machismo dentro da faculdade, elas afirmam que presenciam todos os dias. “Todo dia um professor tem alguma atitude machista. Antes a gente ficava quieta. Só que o coletivo trouxe um apoio. Hoje a gente tem mais força para contar.” O movimento feminista dentro da faculdade dá uma voz para quem ficava calada e sofria seus abusos em silêncio. Os coletivos existem para dar suporte às alunas que nada mais querem além de igualdade entre seus colegas de classe e futuros companheiros de profissão. Para a professora de Cultura Religiosa da PUCPR Edile Rodrigues, “a universidade tem que levar essa questão, um pensamento crítico e superação do senso comum, esse senso comum que lugar de mulher é atrás do fogão ou atrás do tanque”, porque, na realidade, lugar de mulher é onde ela quiser.
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Por que ter coletivos? A Constituição Federal garante no artigo 5º que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se (...) direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. Porém, na realidade, não é isso que acontece. Em 2010, a diferença salarial entre homens e mulheres era de 29,04%, segundo Censo feito pelo IBGE. A igualdade entre homens e mulheres existe apenas dentro da Constituição. Fora dela, as mulheres ainda são vistas como inferiores, julgadas pelo simples fato de serem do sexo feminino. O feminismo luta para mudar essa realidade, que está em todos os lugares, inclusive dentro do ambiente acadêmico. O machismo pode aparecer entre colegas e até mesmo professores. Disfarçado em piadas, trotes violentos, falas sexistas e até mesmo assédio, é possível encontrar esse comportamento dentro de um lugar de conhecimento e quebra de paradigmas, a universidade. Segundo dados de pesquisa feita pelo Instituto Avon, em outubro de 2015, 67% das mulheres admitiram, em uma lista anônima, terem sofrido violência dentro do ambiente acadêmico. Ainda de acordo com a pesquisa, 42% das alunas sentiram medo de sofrer violência dentro da universidade. O termo violência, tratado na pesquisa, abrange assédio sexual, violência sexual, violência física, desqualificação intelectual, agressão moral ou psicológica.
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Histórico O movimento feminista é organizado por mulheres, e teve seu início pouco depois da Revolução Francesa, no século 18. Inflamadas pelo lema Fraternidade, Liberdade e Igualdade, mulheres decidiram lutar por seus direitos, reivindicando seu espaço dentro da sociedade patriarcal que marcava a época. No Paraná, Marianna Coelho foi uma das percussoras do movimento feminista, era educadora, escritora e poeta. Ela escrevia colunas e artigos na imprensa, sustentando que as mulheres deviam ser preparadas para o mercado de trabalho.
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Os ideais feministas consistem, basicamente, na igualdade de gêneros. O movimento anseia que as mulheres sejam vistas como iguais diante aos homens. As mulheres devem ter os mesmos direitos e oportunidades que os homens, em relação ao trabalho e à educação.
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magine uma criança fabricando um violão, utilizando apenas uma caixa de sapato e uma raquete de tênis. Uma cena difícil de visualizar na cabeça, certo? Pois foi exatamente isso que aconteceu no centro-leste da França, na cidade de St. Etienne, nos anos 1980. O responsável por tal façanha atende pelo nome de Mickael Bellil, 40 anos, que desde 2011 reside em Curitiba, após ter se casado com uma brasileira. E já se vão 23 anos que Bellil trabalha no ramo da luteria, tendo concluído seus estudos na área na Ecole Nationale de Lutherie de Mirecourt, no norte da França. O lutier, para quem não sabe, é um profissional habilitado para construir instrumentos musicais, sejam de corda, sopro, ou percussão, 38
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“Quando tem uma época bastante úmida, eu não envernizo os instrumentos. Eu deixo até chegar uma época com umidade mais razoável.” Mickael Bellil, lutier além de também reparar, avaliar, consultar projetos e ensinar. Desde 2011, a Universidade Federal do Paraná (UFPR) oferece a graduação em Luteria, a única no Brasil. Segundo teorias,
cultura
A arte da luteria Curitiba tem profissionais especializados na construção e reparação de instrumentos musicais, além de ser a única no país a oferecer uma graduação na área Guilherme Osinski
a profissão teria surgido na Itália, mais especificamente na província de Cremona, na região da Lombardia. No entanto, a origem da palavra é francesa, e o lutier é, em toda a concepção da palavra, um exímio artesão, responsável por dar vida, cor e alma aos mais diferentes instrumentos musicais. Como toda profissão, a luteria também tem seus desafios, principalmente quando fatores externos se envolvem nesse trabalho, como pode ser o caso da umidade. “Quando tem uma época bastante úmida, eu não envernizo os instrumentos. Eu deixo até chegar uma época com umidade mais razoável”, conta o francês Mickael Bellil. Mas por que é necessário tomar essa atitude? Isso porque em
Créditos: Rafael Bronze
Mickael Bellil tem 23 anos de experiência. Hoje sua oficina fica na Avenina Arthur Bernardes.
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períodos mais úmidos leva-se mais tempo para envernizar um instrumento, graças aos problemas com o acabamento com verniz a base de álcool, enquanto para construir um violino, já envernizado, demora-se normalmente de um a um mês e meio. Mickael, que também já morou em Seul, na Coreia do Sul, conta que não envernizava nenhum instrumento no verão, quando havia mais chuvas e consequentemente mais umidade. O trabalho com confecção de instrumentos, além de ser um talento que pode nascer na infância, é também uma arte que pode surgir quando a pessoa já está inserida no ramo musical, como é o caso do curitibano Denílson Barbosa, de 43 anos, que começou a fazer manutenção em suas guitarras e violões no auge de sua juventude, em plenos anos 90, enquanto passava noites tocando em diferentes bares. Há cerca de 12 anos, Denílson tem sua própria lutieria, a Barh Custom Guitars, devido à sua paixão pela música. “Eu atendo todos os músicos, profissionais ou não, mas principalmente os que tocam à noite, que precisam de serviço urgente e mais rápido”, afirma o lutier, contando um pouco de sua rotina, que muitas vezes vai de encontro também às necessidades
“Já atendi o Tiago Iorc, o Xandão, do Rappa, e o Lulu Santos, quando ele veio para Curitiba.” Denílson Barbosa, lutier de personalidades da música. “Já atendi o Tiago Iorc, que precisava fazer vários reparos no violão dele, instalação de captadores, e depois ele se amarrou. Era eu que também regulava os instrumentos do Xandão, do Rappa, e, do Lulu Santos, já regulei as guitarras dele quando veio para Curitiba.” Quando perguntado do panorama da profissão em Curitiba, Denílson é taxativo. “Tem muita gente fazendo serviço, mas eu pego muito trabalho de pessoas que foram em outros lutiers, que não têm muita experiência. Então são poucos os lutiers de qualidade”, atesta o curitibano. Entre os pedidos que o dono da Barh Custom Guitars mais recebe de seus clientes, destaque para as regulagens, quebra de braço de instrumentos, troca de trastes (partes metálicas de um violão ou guitarra, que divide o braço do instrumento em casas) e pintura. Vinicius Rech
Guitarras Gibson na oficina do lutier Denílson.
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E qual deles Denílson mais gosta de fazer? Ele mesmo responde. “Eu sou apaixonado por fazer regulagem, tenho muita experiência nisso, gosto de pegar essa parte difícil”, confessa.
A importância da profissão A relevância de um trabalho de um lutier pode vir também das palavras de quem já organizou um workshop, em Curitiba, com Ron “Bumblefoot”, guitarrista do Guns N’Roses entre 2006 e 2014. Para Breno Teixeira, guitarrista, compositor e professor de música na capital paranaense, desde 1995, a real dimensão dos serviços de um lutier é dar asas à imaginação dos músicos e fazer com que a pessoa consiga colocar todos seus projetos em prática. “O contato com uma grande firma, uma grande marca, não vai ser igual ao contato com um lutier, e, provavelmente, vai ser muito mais caro. Fora a manutenção dos instrumentos, que são iguais carros. A diferença é que um carro sai da concessionária regulado, enquanto o instrumento não sai da loja regulado. Se você comprar uma guitarra, e querer sair tocando, ela não vai ter a performance que teria se tivesse passado por um técnico”, afirma o professor. Como em tudo na vida, a música também é separada em estágios, que vão sendo alcançados de acordo com uma evolução natural da pessoa por trás de um instrumento. “Um dia o músico vai querer unir as características de vá-
rios instrumentos diferentes, de várias guitarras, por exemplo, em um só, e isso só pode ser feito por um lutier. Às vezes, o cara gosta de uma coisa X de uma guitarra, uma coisa Y de outras e uma coisa Z de outra. E quando você faz seu instrumento em um lutier, você pode unir juntar todas essas coisas que você gosta. Mas é importante que a pessoa saiba do que ela gosta, então não é muito aconselhável a pessoa levar um instrumento em um lutier como sendo o primeiro instrumento dela”, ressalta Breno Teixeira, eleito em junho de 2009 como “Destaque do MySpace”, pela revista Guitar Player, muito conceituada no ramo musical.
Novidade na UFPR Em 2009, a Universidade Federal do Paraná (UFPR) deu início às atividades do curso superior de Tecnologia em Luteria, o único existente no país. Um dos objetivos iniciais da graduação era que o curso fosse realmente original, diferente de tudo que a universidade oferecesse. Hoje, oito anos depois de seus primeiros passos, o curso de Luteria, que abre anualmente, registra uma procura de três alunos por vaga, o que é considerado extremamente positivo pelo professor e vice-coordenador do curso, Rodrigo Mateus Pereira, que Rafael Bronze
Um pouco de história Gerardo de Cremona foi um importante tradutor de textos árabes no século XII, por motivos religiosos muitos destes texto não possuíam autor e durante o renascimento, diversos documentos publicados na Europa eram plagiados.
Violão em processo de construção na UFPR. Jornalismo PUCPR Revista CDM
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avalia o mercado para lutiers, em Curitiba,
te na fabricação de instrumentos musicais,
ainda como pequeno, mas o que não representa falta de oportunidades para os alunos da graduação. “Nossos alunos têm se formado, têm montado suas oficinas, virado lutiers. Era um meio mais restrito, que poucas pessoas faziam, mas acredito que está ampliando”, conta o vice-coordenador, lembrando ainda que a formação prática do curso visa a incentivar os estudantes a serem lutiers autônomos, com seus próprios ateliês.
desconsiderando outros elementos importantes na formação dos estudantes. Porém, basta uma ida ao câmpus da universidade para ver o real significado dessa graduação. “Nossa ideia é a seguinte: é um curso de luteria que não é somente construa seu instrumento e vá em-
Para quem vê de fora, pode-se imaginar que o curso oferecido pela UFPR foca basicamen42
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“Nossos alunos têm se formado, têm montado suas oficinas, virado lutiers.”
Rodrigo Mateus Pereira, vice-coodenador do curso da UFPR
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bora feliz. Tudo que envolve a luteria a gente trata aqui. As aulas de construção são mais braçais, com mais prática e sujeira, mas temos as aulas teóricas, de física, de desenho, de música, e também as de restauração. Então, os alunos aprendem tudo isso, todos os cuidados, como consertar, o que estraga”, relata Rodrigo Mateus Pereira.
existem ainda os óculos de proteção. Como
evidência da preocupação que os responsáveis do curso têm com seus pupilos, um fato a ser mencionado é que os estudantes só utilizam as máquinas a partir do quarto semestre, quando todos já estão cientes dos riscos e também de todo o processo. Outra curiosidade sobre a graduação em Luteria é que os alunos escoNas aulas de construção, por exemplo, existem lhem, do segundo ano em diante, quais instrumentos irão trabalhar, enquanto apenas o normas de segurança a serem seguidas pelos primeiro ano tem uma abordagem mais geral. alunos, que não podem usar bermudas, sendo Se o graduando escolhe uma guitarra elétrica, obrigatório o uso de calças, sapatos fechados, aventais, máscaras, e, dependendo da máquina, será com este instrumento que ele caminhará até o fim do curso.
Alunos do curso de luteria na UFPR.
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Sombras da noite No país que mais mata travestis no mundo, o preconceito está sempre à espreita e gera medo Natalia Filippin, Thaise Borges e Yuri Braule
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espeito! Essse é o apelo de Kelly Souza, 28 anos, nascida em Maceió e há cinco meses buscando novos caminhos em Curitiba. Ela é travesti. Desde criança, não se via como homem: ela não era aquilo, ela era a Kelly, sempre foi. Quando os sapatos de salto da mãe no chão ressoavam em seus ouvidos e aquelas maquiagens pela penteadeira, cheias de cor, lhe faziam querer usá-las, ela era Kelly. Quando desejava ter cabelos longos, usar vestidos e ser reconhecida como mulher, ela era Kelly. Dos 14 para 15 anos, resolveu libertar, aos poucos, aquela pessoa
população ostenta uma identidade de gênero diversa da imposta pelos padrões em que homem é homem e mulher é mulher, e qualquer coisa que fuja dessa norma é encarada com estranhamento, motivo para ódio, agressão, exclusão e até morte. “É barra ter que lembrar que ainda não podemos sair de casa tranquilas. Muitas de nós só queremos ser tratadas como pessoas. Mas, mesmo com grande apoio de grupos e associações, essa classe ainda é alvo fácil para a violência e o desrespeito”, relato de Viviane, 26 anos, nascida em São Paulo, travesti e há três anos fazendo programa na região
que existia dentro dela. Mas tinha medo. Da família, da sociedade, dela mesma.
central de Curitiba.
Parece clichê, mas você já parou para pensar como deve ser terrível a sensação de não se pertencer, não poder se expressar, não conseguir ter amor pelo que vê refletido no espelho? Costumam dizer que travesti é uma pessoa que “não se decide”. É homem? É mulher? É o quê? Para Kelly, travesti é ela. Na hora do nascimento, ela até podia
Diferentemente do que é propagado pelas mulheres trans, travestis não querem ser
“Ser trans e travesti no Brasil é resistir. É luta diária!” Maria Vargas, transexual.
ser João, Pedro ou Marcos. Mas, agora, Kelly é Kelly. Assim como tantas outras pessoas que nasceram em um sexo, no qual não se sentem realizadas e, assim, assumem um papel de gênero diferente do sugerido pela sociedade. Travestis e transexuais são populações que carregam uma imensa carga de preconceitos desde sempre. Essas pessoas estiveram, e ainda estão, na ponta de lança das discriminações existentes no Brasil com a população LGBTT, que é a sigla designada para lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Isso ocorre porque essa 46
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identificadas como mulheres travestis. Elas reivindicam, sim, o respeito às suas vivências e individualidades, bem como o viver na classe feminina, assim como o direito de serem respeitadas suas identidades de gênero dentro desse universo feminino. O que, infelizmente, não acontece na maioria das vezes. Pois, após se sentirem em um gênero diferente do que lhes foi atribuído no nascimento, essas pessoas passam a enfrentar uma luta para viverem sua identidade. E, para complicar ainda mais, não contam com uma legislação que as proteja. Dados da União Nacional LGBTT apontam que o tempo médio de vida de uma pessoa transexual no Brasil é de 35 anos, enquanto a expectativa de vida de uma população em
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geral é de 75 anos, de acordo com informações divulgadas em dezembro de 2016 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Kelly, Viviane e outras milhares de travestis pelo mundo sofrem diariamente por ser quem são. Não é preciso nem falar, nem fazer nada, elas já são julgadas pelas pessoas, seja pelas roupas, pelo modo de viver, por ser uma “aberração”, por não ser o “comum”.
Trabalho Viviane se considera uma pessoa extremamente desconfiada e violenta. Não porque ela quis, mas foi a maneira com que ela conseguiu aguentar firme até hoje. Aos 20 anos, ela perdeu a mãe e, então, mesmo com a dor, ela tinha que dar um jeito para ganhar dinheiro. Afinal, era ela e mais dois irmãos. Sozinhos. Foi a todo lugar, “ralou” entregando currículos, mas de nada adiantou. E olha que o problema não foi por não ter nenhuma faculdade ou experiência. “O problema foi porque eu era um homem vestido de mulher. Nenhum lugar queria! Aliás, nem me olhavam direito e já vinha o não.” Viviane foi obrigada a viver como homem. Vestir-se e portar-se como tal.
E tudo isso porque como homem ela era aceita na sociedade. Virou garçom, cabeleireiro, balconista. Conseguiu trabalho, sustentou a casa e deu aos irmãos, o que ela mesma não sentia, a alegria. Ela vivia essa realidade obscura, mentirosa, doída. Ela não era aquilo, ela não era garçom, ela queria ser garçonete, ou qualquer outra função que lhe pudesse dar o direito de ser ela. Assim como ela se sentia. Mas, ninguém sabia, ninguém podia saber. “Muitas de nós gostaríamos de arranjar um emprego com rotina, horário de trabalho e carteira assinada, mas o preconceito fica evidente quando vamos nos candidatar a uma vaga”, completa Viviane. Este segmento social não consegue um emprego formal e, por isso, na maioria das vezes, realiza trabalho informal e/ou atua na prostituição. A hipótese é que isso ocorre devido ao preconceito presente na cultura brasileira, que atinge todos os setores da sociedade. Segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), 90% das travestis e transexuais estão se prostituindo no Brasil. Natalia Filippin
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sociedade sociedade
Violência e saúde
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De acordo com os dados do segundo Relatório sobre Violência Homofóbica, publicado pela Secretaria dos Direitos Humanos, ligada ao Ministério da Justiça, somente em 2012 foram quase 10 mil denúncias de violação de direitos humanos relacionados a esta população registradas. Catuxa Bougers é vice-presidente do Transgrupo Marcela Prado, que atua com esse mesmo objetivo, o de promover a cidadania, saúde, educação, segurança pública, defesa dos direitos humanos e, incansavelmente, combater os estigmas socialmente construídos sobre o tema. “Para que diferenciar? Somos todos humanos, somos todos iguais. É dever respeitar. Eu e você somos iguais, é só ver com o coração, como ser humano”, diz.
Dos 14 para os 15 anos, Kelly resolveu se assumir como travesti.
O Transgrupo surgiu como um núcleo dentro do Grupo Dignidade — pioneiro no estado do Paraná na área da promoção da cidadania LGBTT e foi a primeira organização no Brasil nesse âmbito a receber o título de Utilidade Pública Federal. O Transgrupo tem esse nome porque, na década de 1990, Marcela Prado foi a primeira mulher trans a levantar a bandeira das pessoas transexuais, tendo como missão incluir pessoas diferentes num mesmo ambien-
regularmente atividades voltadas para a prevenção de HIV/Aids, hepatites virais e outras DST, como testagem de fluído oral e testagem de Sífilis e HPV. Tudo isso em parceria com o Departamento Nacional de DST, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde e Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC). Essas atividades são feitas com abordagens semanais. “É uma ação muito boa. Eles vêm até nós para entregar preservativos
te, promover inclusão, integração, sentimento de pertencimento e aceitação social. “Não olhe o meu sexo. Olhe-me como a pessoa que eu construí, me olhe como eu me sinto ser. Eu me construí feminina, então é assim que quero ser tratada. É a liberdade das pessoas em ser o que elas quiserem. E vocês não sabem o quanto isso é importante para nós”, afirma Catuxa.
de graça, perguntar se está tudo bem. E essa ação não é mais ‘patrocinada’ pela prefeitura, é preocupação deles mesmo”, comenta Stephany, 20 anos, também de Maceió e que está em Curitiba tentando a “sorte”. Para ela, essa luta contra o preconceito e a discriminação está só no começo. “Eu admiro muito as iniciativas feitas para a nossa inclusão, isso deve ter e nos ajuda, mas, pensar que essa realidade vai mudar... Acho difícil! Falta muito ainda para a sociedade nos ver como pessoas”, completa.
O Transgrupo Marcela Prado também trabalha na prevenção da saúde, dando orientações, disponibilização de preservativos, palestras, cartilhas, capacitações em saúde e realizando 48
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E os impasses não param por aí. Não é possível
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ter um número exato de quantas são as vítimas LGBTT em casos de assassinato, ou até mesmo de agressões, que por sinal são relatadas em quase todas as travestis. “Quando morre uma travesti, nunca é respeitado o seu nome social, que é o nome pelo qual as pessoas escolhem ser chamadas e não aquele que é identificado em documentos. Se a travesti se chama Ana e no documento está escrito Edson, é enterrado como Edson. Os dados existentes só diferenciam homens e mulheres”, comenta Viviane. Devido a isso, criou-se a Rede Trans Brasil – Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil, que
europeia de organizações que apoiam os direitos da população transgênero, entre janeiro de 2008 e março de 2014, foram registradas 604 mortes no Brasil, sendo o país com o maior número de assassinatos de travestis e transexuais no mundo. A Secretaria Especial dos Direitos Humanos, vinculada ao Ministério da Justiça e Cidadaina, apontou o recebimento, pelo Disque 100, de 3.084 denúncias de violações homofóbicas relacionadas à população LGBTT. “Seria muito bom termos dados em relação a isso, justamente para vermos se nossa luta está fazendo efeito. Mas a questão maior é
é um site de monitoramento desses acontecimentos. Catuxa diz que de janeiro até agora, foram 144 assassinatos, 54 tentativas de homicídios e 54 violações aos direitos humanos.
que se nem em vida atingimos a compreensão, o respeito, o zelo pela vida, depois de mortas ser enterradas como homens, é só o reflexo de que falta muito, muito mesmo, para mudarmos esse jogo”, diz Catuxa.
Segundo pesquisa da organização não governamental Transgender Europe (TGEU), rede
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A luta do gênero O processo de mudança de sexo vem avançando no Brasil. A ação é feita através de um advogado particular ou pela Defensoria Pública. É necessário possuir negativo nos cartórios eleitorais e civis. Reunir testemunhas, fotos, laudo psicológico que atestem a sua identidade feminina. Maria Vargas, 38 anos, trabalha em um pensionato para transexuais. Em 2004 operou o nariz, depois colocou próteses de silicone. Aos 25 anos, criou coragem de mudar a genitália. “Ser trans e travesti no Brasil é resistir! É luta diária. A mesma sociedade que empurra a trans para a rua, para a prostituição, é a mesma que condena as que estão na rua lutando para sobreviver”, completa Maria.
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A curitibana Isabelle Neris joga no time Voleiras desde 2015.
O jogo da
INCLUSĂƒO Em campo e em quadra, transexuais realizam sonhos e se encontram no esporte Karoline Mokfianski Mariana Balan
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dia 21 de março de 2017 foi um divisor de águas na vida de Isabelle Neris. Embora ela descreva a ocasião como um sonho, o que aconteceu foi a mais cristalina realidade. A data marcou a estreia da curitibana, de 25 anos, como ponteira do time Voleiras, na Taça Paraná, organizada pela Federação Paranaense de Voleibol (FPV). Era a primeira vez que a jovem participava de uma disputa como integrante de uma equipe feminina da modalidade.
A saída do projeto de Bernardinho da capital paranaense acabou desmotivando Isabelle, além de coincidir com sua fase de transição, da mudança de um corpo masculino para um feminino. Ela conta que é comum as pessoas imaginarem que o processo é rápido, “que um dia você vai estar de menino e amanhã vai acordar com cabelo comprido, seio”. É um período delicado, que exige paciência e machuca. A dor, porém, é pior que a física. É a dor que vem da discriminação.
O esporte esteve presente na vida de Isa, como
E o Brasil é cruel com os transgêneros. É
gosta de ser chamada, desde a infância, quando daqui o recorde digno de nenhum orgulho começou a treinar no já extinto Paraná Vôlei de país que mais mata transexuais no mundo, Clube, conhecido como “projeto Rexona”, segundo levantamento divulgado pela ONG comandado por Bernardinho em Curitiba. Foi incentivada por um grupo de amigas, sem muita pretensão, mais porque ficava à toa no contra-turno escolar. Nunca tivera contato com voleibol. Chegando lá, apaixonou-se. Mas como, então, o sonho só foi ser realizado mais de 15 anos depois? É que quando começou a treinar, no fim da década de
“Quando eu soube a definição, eu falei ‘Eu sou uma transexual’.”
1990, ela ainda se vestia e se apresentava como menino. Isabelle é uma mulher transexual. “A partir do momento em que eu descobri o que era ser transexual, eu automaticamente me enquadrei. Não tive dúvidas, não analisei prós e contras. Quando eu soube a definição, eu falei ‘Eu sou uma transexual’”, relata. Conforme explica a psicóloga e pesquisadora Ana Lucia Canetti, transexuais são as pessoas que possuem uma identidade de gênero que difere daquela designada no nascimento, relacionada ao sexo anatômico.
Isabelle Neris, 25 anos Transgender Europe em 2015. Para Ana Lucia, essa marginalização é fruto de uma sociedade intolerante e desrespeitosa com as diferenças, que muitas vezes quer manter as pessoas trans excluídas, invisíveis e até mesmo “eliminá-las”. Isabelle define sua transição como “punk”, pois foi quando começou a enfrentar preconceito aonde ia. Como não queria mais praticar com equipes masculinas – “Era muito triste quando eu tinha que jogar no masculino” –, desistiu de treinar em clubes. Mas o vôlei era sua paixão, e ele não se livraria de Isa tão fácil assim. Jornalismo PUCPR Revista CDM
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Passou a se reunir com grupos que jogavam por hobby, “especialmente de homossexuais, porque eu sabia que não ia enfrentar problema”, segundo ela. Numa dessas reuniões, em 2015, foi convidada a integrar um time que estava se formando. Feminino, com intenção de participar de campeonatos. Isa deixou claro que poderia apenas frequentar os treinos, pois não tinha noção dos procedimentos burocráticos para poder competir com as meninas. Na época ela ainda não sabia, mas seu sonho estava cada vez mais perto de se tornar realidade.
conseguido, por meio de um processo judicial, a alteração de nome e gênero em seu registro civil, decidiu arriscar. Queria poder competir com seu time, o Voleiras. E em 20 de março de 2017, o sonho bateu na porta: a atleta recebeu autorização da Federação Paranaense de Voleibol (FPV) para disputar a Taça Curitiba, torneio amador da modalidade que começava naquela mesma data. No documento, a FPV afirmou que Isa tinha seus direitos civis garantidos pela Justiça e que inexistia regulamenta-
“Não somos pessoas ruins, não somos bichos.”
O estalo, como a própria Isabelle chama, veio quando ela conheceu e fez amizade, por meio das redes sociais, com Tiffany Abreu. Em fevereiro deste ano,Tiffany se tornou a primeira transexual a conseguir autorização pela Federação Internacional de Voleibol (FIVB) para competir em um time feminino – no caso, o Golem Volley Palmi, equipe da segunda divisão da liga italiana.
Tiffany teve o respaldo de um relatório divulgado pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) no início de 2016, com as diretrizes para a participação de atletas transexuais em competições esportivas. O COI definiu que no caso de mudança de sexo biológico de masculino para feminino, a atleta precisa ter declarada a identidade de gênero feminina em seus documentos e manter baixo nível de testosterona. Não há necessidade de ter se submetido a uma cirurgia de redesignação sexual, a chamada “mudança de sexo”. No caso dos atletas que são homens trans, o COI não prevê restrições. Como desde o final de 2016 Isabelle já tinha 52
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Erick Lima Ribeiro, 29 anos ção de atletas transgêneros no voleibol brasileiro para embasar um veto. Além disso, a jovem já havia se submetido a um exame de sangue que comprovou baixo nível de testosterona. No dia seguinte, entrou em quadra numa nuvem.
Meninos de ouro O esporte foi aliado na luta contra o preconceito não só na vida de Isabelle, mas também na de um time de futebol de homens trans de São Paulo: o Meninos Bons de Bola. Os treinos acontecem sempre ao ar livre, na quadra do Parque da Juventude, local onde funcionava o antigo Carandiru. Lá, num lugar onde antes imperava o terror, as manhãs de domingo são mais cheias de vida. O futebol se fez presente na vida deles desde que eram apenas crianças, ainda sem entender
esportes Isabel Abreu
Os Meninos Bons de Bola treinam no local onde antigamente era o presídio do Carandiru. quem realmente eram. Quando trabalhava em de Bola em uma organização não governaum centro de referência da diversidade, Rapha- mental (ONG), para acolher jovens trans que el Henrique Martins, 30 anos, percebeu que só estejam passando por dificuldades e precisem as mulheres trans é que frequentavam o espaço algum tipo de ajuda. Ainda, como muitos desde convivência. “Por quê?”, pensou. Junto com ses meninos acabam abandonando os estudos os profissionais do local, pesquisou e pensou muito cedo, a ideia é fazer parcerias com emem estratégias. Até que no dia 8 de agosto de presas e faculdades para oferecer capacitação e 2016, conseguiu atrair homens trans em um evento que reuniu conversas e muito futebol. Foi aí que nasceu o Meninos Bons de Bola. O que parece um simples grupo de homens que adora bater uma bola nos fins de semana, na verdade é um espaço de amizade, respeito e onde o preconceito não faz morada. Algumas pessoas maldosas até tentam, mas não conseguem acabar com a alegria que o futebol proporciona para os Meninos. E a vontade é de ir além: eles querem disputar campeonatos e transformar o Meninos Bons
oportunidades de emprego. Para Pietro Henrique Alves dos Santos, 20 anos, que descobriu o time pelas redes sociais e hoje faz parte da diretoria, o preconceito nunca vai deixar de existir, porque a sociedade não aceita muito bem o fato de existirem homens trans. “As pessoas não conseguem aceitar e muito menos respeitar. É como se tivéssemos que matar um leão por dia”, explica Raphael, que há oito meses luta pela organização e manutenção dos Meninos Bons de Bola. Jornalismo PUCPR Revista CDM
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Os esparadrapos são usados para esconder os ‘intrusos’, como eles chamam os seios
Erick sonha fazer um curso para ser o primeiro homem trans a se tornar bombeiro civil 54
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esportes
E a discriminação não existe somente na sociedade em geral, mas também em campo – e não somente nos clubes amadores. Erick Lima Ribeiro, 29 anos, sabe bem o que é isso: sofreu com comentários e até perdeu oportunidades em grandes times de futebol feminino – antes de se entender como homem trans – por não ser “feminina o suficiente”. E as palavras vierem diretamente do presidente de um grande clube de Campinas, na região de São Paulo, que dizia querer montar um time apenas com meninas e não admitia lésbicas no grupo, pois “não queria criar sapatão lá dentro”. Por causa dessa e de outras situações, o sonho de ser jogador profissional de futebol foi ficando cada vez mais distante, até que Erick se viu obrigado a desistir. Pouco tempo depois de se mudar do interior para São Paulo, após a morte da bisavó, com quem morava, conheceu o Meninos Bons de Bola. Apesar do preconceito enfrentado, o time vem conseguindo se manter financeiramente com recursos dos próprios organizadores. Ali dentro, cultiva-se a esperança de dias melhores. “Pelo ‘andar da carruagem’, até que estamos indo bem. Não são todos que aceitam [o time] de coração aberto, mas várias vezes em que apresentei a equipe para empresas e faculdades, aceitaram numa boa”, conta Pietro. Raphael endossa o otimismo e relata que os times contra quem já jogaram, em amistosos, os receberam de braços abertos. O esporte, afinal de contas, acolhe.
Em campo, em quadra e na rua Com 25 anos, Isabelle, que trabalha como cabeleireira, considera-se, entre risos, “velha” para investir em uma carreira profissional no vôlei. A intenção da jovem é continuar trei-
nando, desenvolvendo sua técnica, mas viver como jogadora é vontade que já ficou para trás. O que não significa que a jornada até aqui tenha sido em vão. Com sua história, Isa quer mostrar que as transexuais podem ser quem elas quiserem. “Afinal, qual é o estereótipo? Prostituição, atividades ilícitas. Eu quero mostrar que não é só isso, que temos caminhos diferentes, que podemos fazer escolhas diferentes”. Mas não é só para o público trans que Isabelle espera ser exemplo. Ela acredita que todas as pessoas, independentemente de raça, sexo ou orientação sexual vão enfrentar algum tipo de barreira na vida, “mas se você tem um sonho, corra atrás”. Já Erick quer que “as pessoas entendam que não somos pessoas ruins, não somos bichos. Somos apenas seres humanos correndo atrás dos nossos objetivos”. Raphael, que com os Meninos consegue ser ele mesmo, afirma que os comentários maldosos não vão abalar o time. “No futebol nós podemos mostrar que somos normais como qualquer outra pessoa e que nós existimos, resistimos e não vamos parar. Vamos lutar até o fim”. E que venha vitória.
Estigma A transexualidade ainda é considerada patologia na Classificação Internacional de Doenças (CID10), tanto é que Isabelle precisou ter o diagnóstico de “transtorno de identidade de gênero”, após tratamento com psiquiatras e psicólogos, para dar entrada no processo de alteração de seu registro civil. Mas a expectativa é de que na 11ª Revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-11), prevista para 2018, a situação mude.
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Jovens muçulmanos no Brasil A religião Islâmica é a segunda maior do mundo, mas, no Brasil, os fiéis são apenas 0,01% de acordo com o IBGE. Neste pequeno grupo, estão jovens que enfrentam dificuldades para praticar a fé em um país ocidental e cristão Eduardo Martinesco, Fábio Carvalho e Karine Sales
Rohger cresceu com o Islamismo e acredita que a prática da religião é importante para manter a fé e a cultura.
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a Mesquita de Curitiba – ou Mesquita
Imam Ali ibn Abi Talib –, o movimento é intenso. Inaugurada em maio de 1972, é um espaço que tem a peculiaridade de integrar xiitas e sunitas — grupos com vertentes diferentes dentro do islamismo —, fato incomum não só no Brasil como ao redor do mundo. No templo, pessoas de todas as idades 56
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entram em contato com uma religião ainda bastante distante da cultura brasileira, que tem apenas 0,01% de muçulmanos, segundo censo do IBGE de 2010. Logo na entrada, os visitantes são orientados a retirar os sapatos em respeito ao espaço sagrado. Para as mulheres, véus são disponíveis e indispensáveis para adentrarem na mes-
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quita. Muitas vezes, conta o diretor religioso da Mesquita de Curitiba, Gamal Oumairi, a relação do jovem com a religião no século XXI é de distanciamento, que segundo ele está diretamente ligada à falta de pessoalidade e profundidade das novas relações estabelecidas pelas redes sociais, que ele chama de “mundo virtual”. “Este espaço não tem valores religiosos, não estudam a religião, não tem práticas religiosas. Você não sabe quem está do outro lado, não sabe se essa informação é verídica. Infelizmente, os jovens têm navegado por esse mundo do nada, de um niilismo”, declara Gamal. Na religião muçulmana, os jovens começam a praticar atividades religiosas a partir da puberdade, que varia entre os 10 e 11 anos, para as meninas, e 13 e 14 anos, para os meninos. A doutrina muçulmana exige algumas regras a serem seguidas como o uso de véu para as mulheres, mas, segundo a estudante Sumaya Srour, de 21 anos, sua maior dificuldade ainda encontra-se na alimentação. “A sociedade muçulmana tem um jeito excepcional para o abate de animais. Assim,
Arquivo pessoal
Grupo de Escoteiros Árabe de Curitiba: jovens e religião. é no mercado de trabalho, declarando que existem preconceitos com as garotas que usam o lenço: “As pessoas raramente abrem espaço para elas no âmbito profissional”, declara a jovem. Gamal lembra que o Islã não é uma religião teórica. Nela você estuda, compreende e pratica. “Uma forma de você demonstrar que você acredita em Deus é praticando a religião. Deve haver um conjunto entre teoria e prática, que é o que constrói a personalidade religiosa da pessoa”, disse o diretor religioso. Para Yasmine
“Na maioria das vezes, o preconceito contra muçulmanos é provindo de falsas notícias da mídia.”
a ausência de alimentos halal (autorizado) a base de carne ou frango dificultam nossa dieta ao frequentarmos locais públicos”, conta a jovem muçulmana. Outra dificuldade que Sumaya encontra para seguir o Islamismo
Sumaya Srour, estudante Nemer Hajar, 22 anos, estudante de Direito, o significado da religião é “ficar mais próxima de Deus, ter fé em uma força maior”. Jornalismo PUCPR Revista CDM
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Em Curitiba, os jovens iniciam suas práticas religiosas em estudos e práticas no Grupo Escoteiro Brasileiro Árabe de Curitiba, que tem reuniões sempre aos sábados na Sociedade Beneficente Muçulmana, sede que existe há 60 anos no tradicional bairro São Francisco. Logo ao iniciarem a puberdade, quando passam a ter suas responsabilidades dentro da doutrina muçulmana, os adolescentes recebem ensinamentos da cultura islâmica, como aulas de língua árabe e de religião, além das atividades no grupo comandado por Hassan Ali Hamid, de 31 anos. “A função do grupo escoteiro é aperfeiçoar o conhecimento dos jovens e desenvolver princípios morais, cívicos e organizacionais. A partir da puberdade, as práticas islâmicas tornam-se obrigatórias a todos os jovens, como as orações e o jejum no mês sagrado de Ramadã”, diz Hassam. Para ele, um dos principais objetivos do grupo escoteiro é justamente o de não afastar o jovem da religião. Rohger Mansur tem 18 anos, é estudante de Química, e participa do Escotismo. “A religião Islâmica se encaixa muito bem com o movimento escoteiro, pois ambas possuem valores similares”, diz Mansur. Rhoger tem origem libanesa, e cresceu em um ambiente onde o Islamismo sempre foi praticado dentro das regras impostas pela religião. Ele diz que vê grande importância em praticar sua fé aqui no Brasil, como forma de não perder a cultura e os valores muçulmanos. Quanto aos preconceitos por viver em um país ocidental, ele cita um bem comum na era atual: “Algumas pessoas não têm conhecimento da imensidão da religião, e acabam associando o Islamismo ao terrorismo”. Yasmine diz que nunca sofreu preconceito direto, mas vê situações de estranhamento: “Por vezes, quando estou 58
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com minhas avós que usam o hijab (lenço que cobre o cabelo da mulher), percebo que as pessoas olham diferente para nós”, diz Yasmine. Com diversas atividades, incluindo encontros com outros grupos de escoteiros, o grupo árabe vem para preencher o vazio espiritual e fazer com que o jovem conheça com propriedade sua religião, o que o grupo entende ser a chave para que não seja criado um afastamento, incentivado pelos costumes culturais brasileiros. “Na maioria das vezes, o preconceito contra muçulmanos é provindo de falsas notícias da mídia”, lembra Sumaya.“A religião, acima de tudo, serve como um rótulo para moldar as pessoas que se dizem ser do bem. Mal sabem elas, que ser do bem é ter boa moral e espalhar o amor gratuitamente”, completa.
Alimentação Para o consumo da carne por islâmicos, o animal deve ser abatido direcionado à cidade de Meca, na Arábia Saudita. Além disso, de acordo com o Alcorão, o livro sagrado que rege o Islamismo, eles não podem consumir carne de porco.
Ranking dos países latinos em número de muçulmanos Argentina - 400 mil Venezuela - 90 mil Brasil - 40 mil Panamá - 30 mil Colômbia - 10 mil Honduras - 10 mil * Centro de Pesquisas Pew (2010)
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Fábio Carvalho
Em todo Paraná existem 12 mesquitas. A Mesquita de Curitiba, aberta ao público para visitação sempre aos domingos das 10h30 às 13h, desperta a curiosidade dos jovens, que resgistram a visita em várias selfies. Fábio Carvalho
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A culpa não é minha Ter um raciocínio formado sobre os medos e inseguranças que estão impedindo a vítima de tomar uma posição é de extrema importância, como também incentivar o assediado a lutar pelos seus direitos são. De acordo com dados da Secretaria de Estado da Segurança Pública do Paraná (Sesp), o número de vítimas de assédio no estado do Paraná em 2016 atingiu 611 pessoas e no
dois sozinhos. A menina ficou um pouco desconfortável, mas achou que não teria problema, já que ele era seu amigo. Infelizmente, o rapaz começou a assediá-la. Agarrava, prendia e machucava. Começou a tentar tirar o biquíni dela e a estuprar. “Eu era mais forte que ele e consegui me desvencilhar e mandei ele embora. Eu me senti muito mal, achando que a culpa era minha, por ter usado biquíni na frente dele”, lamenta.
primeiro trimestre de 2017 um total de 133. A cidade com mais casos foi Curitiba com 13 casos, seguida por Maringá e Ponta Grossa com sete.
Insistência, perseguição, intimidação, constrangimento. O assédio é todo o comportamento indesejado com o objetivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afetar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador. Hoje há diversos tipos de assédio, como o moral, sexual e psicológico. De acordo com o dici onário, todos se tratam, basicamente, da insistência de alguém para fazer algo contra a vontade de uma pessoa. O que aconteceu com Gabriela* acontece com muitas outras e está muito presente na nossa sociedade. Muitas vezes esse crime passa despercebido ou não se conhece a sua dimen60
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A empresa internacional de pesquisas YouGov realizou um levantamento, feito em maio de 2016, que mostra o Brasil com um dos países com maiores índices de assédio sofrido por meninas antes dos 10 anos de idade, cerca de 16%. A pesquisa também apontou que 55% das vítimas são menores de 18 anos. Em uma audiência pública da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) de Crimes Cibernéticos ocorrida em fevereiro de 2016, a Organização não Governamental (ONG) Think Olga realizou um levantamento de dados através de redes sociais em que o tema principal era abuso. Através da campanha “Meu Primeiro Assédio”, mais de 80 mil pessoas se manifestaram contando os casos que vivenciaram na infância ou na adolescência. A idade média das vítimas de assédio era de 10 anos. Em outro levantamento, foi revelado que 99,6% das 7,7 mil mulheres entrevistadas já foram assediadas em algum momento de suas vidas.
Angélica Klisievicz Lubas Isabela Vera Renata Martins
A
os 15 anos, Gabriela* convidou um amigo para passar a tarde com na sua casa na praia. Os dois foram para a piscina e sua mãe teve que sair, deixando os
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Luiza* tinha 10 anos quando foi assediada. Muitas vezes quando sua mãe trabalhava a deixava sozinha em casa. Aos poucos, Luiza notou que seu vizinho, um homem adulto, tinha atitudes estranhas em relação a ela. “Ele fazia montagens com revistas pornográficas, colocava meu nome nelas e jogava no quintal da minha casa, também jogou camisinhas usadas e sempre que podia mexia comigo”, afirma. Ela ainda conta que o assediador tentou forçar o portão para entrar em sua casa.
assédio que sofreram de forma anônima e voluntária. Segundo a Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos, cerca de 28 mil pessoas responderam à enquete, destes, 39% admitiram ter sofrido algum tipo de violência.
Segundo o projeto Via Lilás, realizado no Rio
Desde 1986 existe a Delegacia da Mulher no Paraná, com a intenção de oferecer um atendimento especial para mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, violência sexual, importunação ofensiva ao pudor e assédio sexual. Sâmia Cristina Coser é delegada do local
de Janeiro, cerca de 71% das mulheres que responderam que sofrem assédio, não fizeram o boletim de ocorrência (B.O.). Ao todo hoje são 40 tótens espalhados por estações de trem do Rio, onde as pessoas tem como relatar o
e ressalta que a polícia precisa que a vítima realize o B.O. para que assim eles possam investigar o caso. Infelizmente, o número de denúncias de assédio sexual ainda é muito baixo: são cerca de cinco a seis registros por mês,
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Isabela Vera
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sendo que em redes sociais e conversas com mulheres, é perceptível que o número de casos é bem maior que este.
cendo. A informação chegou ao chefe do local, que deu uma advertência ao funcionário, que ainda foi tirar satisfações com a vítima.
Aos 14 anos, Giovana* sofreu assédio dentro de um táxi, indo para a escola. O taxista parou o carro na frente do colégio e foi para o banco de trás, onde tentou beijar e abusar da menina. Ela, mesmo nova, reagiu e saiu do carro correndo. Ao chegar em casa, Giovana contou para seus pais, ainda sem noção do quão grave era aquilo. Eles se surpreenderam e decidi-
Giselle Acciolly, psicóloga clínica especializada em desenvolvimento pessoal, ressalta que o assédio normalmente está relacionado à hierarquia existente na sociedade atual. Segundo ela, a vítima do assédio normalmente se sente impotente. A incapacidade faz com que muitas vezes a vítima sofra com problemas de autoestima e faça escolhas destrutivas
“Me senti um lixo, sempre pensei que se algo assim acontecesse comigo, eu resistiria.” ram denunciar. Ela optou por fazer o B.O. Por precaução, quando ela saiu de casa, sua mãe anotou a placa do carro e foi assim que o agressor foi localizado.
em sua vida. “Ela pode ter um sentimento de raiva e ódio do assediador, mas também de si mesmo, por não ser capaz de acabar com esta situação”, afirma.
A delegada reforça a diferença entre importunação ofensiva ao pudor, “que é o que acontece, por exemplo, nos ônibus, quando
Sâmia também fala da violência doméstica e familiar, que abrange várias situações, não somente dentro de casa, como o nome sugere,
uma pessoa importuna, de maneira ofensiva ao pudor, outra pessoa”, e assédio sexual, que seria o ato relacionado à hierarquia, como chefe e funcionário.
mas em todas as relações afetivas, entre namorados e noivos, mesmo que ainda não morem juntos. Essa categoria também inclui violência familiar, que envolve pessoas com parentesco com a vítima, como irmãos, cunhados e tios. “Desse tipo de violência nós temos uma média de registro de 500 a 600 boletins de ocorrência por mês”, finaliza a delegada.
Luana* trabalhava como atendente em um restaurante e recebia cantadas, em tom de brincadeira, do motoboy do local. “Uma vez ele me disse que se não fosse casado ele iria me ‘pegar de jeito’, com essas palavras, eu me senti horrível. E ele só falava essas coisas quando eu estava sozinha”, confessa. Ela chegou a falar com a gerente do local sobre o que estava aconte-
Em uma relação afetiva Tainá* sofreu com a violência. Em uma festa, o menino com quem ela estava ficando, oferecia muita bebida e a fazia tomar. Quando ela estava mais alterada, ele Jornalismo PUCPR Revista CDM
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“Ter um raciocínio formado sobre os medos e insegurnças é de extrema importância.” Gisele Acciolly, psicóloga a levou para um banheiro e abusou da situação dela, passando a mão pelo seu corpo. Depois ele a deixou com uma amiga e sumiu. “Tenho poucas lembranças desse dia, porque realmente estava muito bêbada, cheguei a passar mal.”
para conseguir me perdoar”, desabafa Tainá.
Em uma outra situação, desta vez no cinema, o mesmo rapaz a coagiu a encostar em seu pênis, ela não queria. Na última ocasião, os dois estavam na casa do menino, que forçava a situação para que ela tirasse a roupa, novamente contra a sua vontade. “Me senti um lixo, porque sempre pensei que se algo assim acontecesse comigo, eu resistiria. Demorei muito tempo
O primeiro passo para a recuperação é procurar o auxílio de um profissional. “Ter um raciocínio formado sobre os medos e inseguranças que estão impedindo a vítima de tomar uma posição é de extrema importância, como também incentivar o assediado a lutar pelos seus direitos, sua dignidade e pela preservação de sua integridade”, finaliza.
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Ainda segundo a psicóloga, é comum que a vítima tenha vergonha em dividir com as pessoas a sua volta a situação em que ela se encontra, por medo de não ser compreendida.
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Formas de assédio sofridas em público pelas mulheres brasileiras
Assobio 77%
Olhares insistentes 74%
Comentários de cunho sexual 57%
Xingamentos 39% Fonte: Pesquisa ActionAid - 2016
Não estamos sozinhas Sites de ajuda podem fazer com que as mulheres encontrem apoio e consigam se fortalecer O Minha Voz é uma plataforma destinada ao acolhimento de mulheres vítimas de violência. Seu objetivo é oferecer informações para que elas saibam como lidar com a sua atual situação, além de poder compartilhar anonimamente com outras usuárias a experiência que sofreu. De acordo com Daniela Rozados, psicóloga do Minha Voz, no site a mulher pode se sentir mais fortalecida por ter informações para buscar ajuda e não se sentir sozinha. Segundo ela, “uma das coisas mais importantes a serem desconstruídas é: a culpa não é da vítima. Reconhecer que a violência contra a mulher é algo comum dá outra dimensão ao sofrimento da mulher,
ela enxerga que não é um problema só dela”, afirma. A psicóloga comenta que eles procuram considerar todas as formas de agressão, desde as emocionais, até as físicas. Qualquer tipo de violência, seja ela moral, psicológica ou física, pode ser registrada no depoimento ou no questionário. Um outro programa que auxilia as mulheres a saber mais sobre os seus direitos é o Via Lilás, desenvolvido pelo RioSolidário, em parceria com a Secretaria de Estado e Assistência Social e Direitos Humanos, Banco Mundial, SuperVia e Secretaria de Estado de Transporte, do estado do Rio de Janeiro. Por várias
cidades do Rio foram distribuídos totens, onde as mulheres podem se informar sobre atitudes a serem tomadas após uma agressão. É um sistema que garante o sigilo e anonimato das mulheres, ajudando com informações sobre os seus direitos, mostrando endereços de delegacias especializadas e disponibilizando todas as informações contidas no tótem também por mensagem de texto. O Via Lilás também ajuda a identificar os locais onde ocorrem mais agressões, para que o governo possa intensificar ações nesses lugares, já que a maioria dos casos não é registrado pelas delegacias. Jornalismo PUCPR Revista CDM
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título saúde da seção
Afinal, devemos ou não falar sobre suicídio? Com sensibilidade e convidando as pessoas para refletir, a mídia pode quebrar esse tabu
Vanessa Gavilan
Virgínia Freitas
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saúde
“A
s pessoas não sabem a história por trás disso. Você vira um número. Não é assim que eu queria ser lembrada”. Julyana Lara Dal’Bó tem 23 anos, é estudante e já tentou pôr fim a sua vida quatro vezes, a primeira delas aconteceu quando tinha 14 anos. Ela se culpava pela relação dos pais e pelos problemas dos amigos. Todos os conflitos, somados ao universo confuso da juventude, foram transformando sua vida em uma eterna busca por algo que nem ela mesma sabia o que era. Tentando
pensamentos que não conseguia controlar, “Eu sentia que só desperdiçava o oxigênio do mundo. Para mim, eu não valia nada”, conta. A questão do suicídio é muito mais recorrente na sociedade do que se pensa, pessoas sofrem por diversos motivos, não há uma fórmula de se enfrentar a vida e os problemas. O baixo rendimento escolar chamou a atenção de um professor, que a acolheu e a encaminhou para um tratamento psicológico. Até hoje ela faz terapia e garante que isso foi a sua salvação. A jovem alerta que a banalização dos sentimentos
preencher um vazio, Ju não encontrava o sentido de viver e seu mundo virou uma bola de neve. A menina sofria bullying na escola e isso contribuiu para seu isolamento e falta de motivação. Na pré-adolescência, é comum que os jovens passem por problemas emocionais, os levando a uma confusão de pensamentos. Em Julyana, essas emoções desencadearam a depres-
do outro influencia negativamente nas ações de quem sofre, é importante não julgar ou menosprezar o problema de qualquer pessoa.
são, um dos primeiros sintomas que ela apresentou. “Eu me sentia triste, não sentia motivação. Isso foi evoluindo até o ponto de eu não sair de casa e meus pais não poderem chegar perto de mim”, diz a estudante.
primeira pessoa que percebeu e me entendeu foi meu professor e a partir daí comecei a ver que o mundo poderia ser colorido”.
“Você pode estender a mão para uma pessoa que está passando “Para as pessoera mais por um momento difícil.” - Julyana asumaeu adolescente revoltada Lara Dal’Bó, estudante. que sofria por
A explicação que ela encontrou para sua fase de depressão é que não achava justo continuar respirando. Ainda que as coisas não fizessem muito sentido, a menina sentia muita culpa, inclusive por tudo o que acontecia ao seu redor, fazendo com que ela se isolasse cada vez mais. Durante esse tempo, esteve profundamente perdida em
isso ou aquilo, mas elas não tinham noção de quanto isso era pesado para uma menina que ainda estava se conhecendo. Ninguém sabia o que eu estava passando, talvez nem eu mesma. A
Ela diz que superou e aconselha: “As pessoas podem se tratar, você pode estender a mão para uma pessoa que está passando por um momento difícil. O suicídio deve ser tratado com mais normalidade nesse sentido”. Agora, Julyana abraça a vida, mesmo que sua caminhada seja a passos curtos. O tratamento psicológico e os remédios ajudaram, mas sua força de vontade e prazer pela vida foram maiores. Jornalismo PUCPR Revista CDM
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saúde
Cheia de orgulho, conta que hoje ela ouve das pessoas o quanto é especial e amada. Para ela, se sentir importante é fundamental para que nunca mais pense em fazer algo contra si. Hoje ela sabe o seu valor.
dade. Só quem já passou por isso sabe que o tema é romantizado o suficiente na sua cabeça e como não existe muita noticia sobre isso, as pessoas não tem noção de como essa realidade é dura”, diz Julyana.
Série
A discussão também repercutiu no Baleia Azul, jogo que incentiva os jovens a praticarem desafios que levam à morte.
A série 13 Reasons Why e o jogo Baleia Azul alertaram a sociedade para a importância em discutir sobre o suicídio. A série mostra distúrbios psicológicos entre os jovens de uma escola norte-americana que parece estar indiferente ao comportamento de seus alunos. A abordagem do suicídio na série é tratada de uma forma não vista até hoje mostrando as motivações psicológicas que fizeram com que a personagem principal cometesse o ato.
Vanessa Gavilan
“Pra mim, a série não foi um gatilho, não funcionou como um influenciador e nem me sugestionou. Eu já refleti muito sobre suicídio e já tenho esse assunto bem resolvido dentro de mim. Me identifiquei com os dramas da personagem da série porque eu já passei por isso e não acho que seja tratada de forma romantizada, essa é a reali-
Se sentir especial e amada torna a vida mais colorida. 68
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O psicólogo Henrique Costa Brojato, afirma que antes desses produtos midiáticos a temática era pouco discutida, mas o suicídio já acontecia. Para ele, o importante agora é debater sobre o assunto nas escolas e universidades, quebrando o tabu, porque o suicídio é um problema de saúde. Brojato ressalta que também é preciso discutir outros elementos da série. “Temos que falar sobre bullying, violência e abuso sexual dentro do contexto escolar. A gente precisa entender que a educação tem um viés de compromisso social dessa cultura que é machista e preconceituosa”, diz. A série e o jogo envolveram principalmente os jovens. Pais, educadores e especialistas não devem deixá-los a margem dessa discussão, é preciso
saúde
incluir, dar espaço, buscar os porquês
“Temos que falar sobre bullying, violência e abuso sexual dentro do contexto escolar.”
e ficar atento as mudanças de comportamento. Se a mídia decide trazer o jovem como audiência participativa, deve-se estar preparado para trabalhar com as consequências de um tema pesado, que precisa de diálogo.
- Henrique Costa Brojato, psicólogo.
O sociólogo Lindomar Wessler Boneti defende que o suicídio é uma construção social em que o individuo estabelece uma noção de si a partir das relações que desenvolve com o mundo. Nesse aspecto, a mídia, enquanto agente transformadora da sociedade, deve estabelecer um jornalismo mais humanizado. Sem dados. Sem estatísticas. Sem números. Especialistas defendem que o suicídio deve ser encarado de uma forma mais natural pela sociedade. Para eles, a mídia deve abordar o tema de uma forma humana, mostrando a realidade de quem decide tirar sua vida. O suicídio não acaba no ato, ele se dissemina em quem ficou. E como lidar com isso? Assim como notícias diárias de crimes e tragédias é preciso discutir e mais importante que noticiar, é saber como falar e de que maneira abordar. “Não vejo problema em usar o termo suicídio, nomeá-lo, desde que o jornalista tome cuidado para não expor o indivíduo e nem incentivar outras pessoas a cometer o ato”, diz o jornalista Cristiano Luiz Freitas, com vasta experiência na cobertura de assuntos relacionados a jovens. Para ele, é papel da mídia dialogar com os profissionais especialistas a fim de unir os pontos de vistas clínicos e noticiosos para abordar o tema com responsabilidade social. Afinal, o suicídio não acontece por acaso, tem um processo, não
é uma fatalidade e existe uma série de questões elencadas. Freitas defende que a missão do jornalista, nesse contexto, é o de atuar como agente de prevenção do suicídio. A principal ajuda é profissional, psicológica ou psiquiátrica, mas qualquer auxílio é sempre bem-vindo. Além de perceber sintomas, Heyde explica que é preciso ouvir o que as pessoas têm a dizer. Perceber que o indivíduo que começa a pensar no suicídio mostra sinais indiretos como a queda no rendimento no trabalho ou escola, descuido com aparência e afastamento social. É preciso ficar atento a esses sinais. O suicídio é uma questão complexa. O sociólogo o relaciona não só ao indivíduo, mas, também, a fatores externos. O psicólogo, a questões do existencialismo e da filosofia. O psiquiatra defende que a maioria dos casos são desencadeados por transtornos psíquicos. O jornalista acredita que o ato acontece devido a uma série de acontecimentos que formam o ser humano. Os especialistas estabelecem associações, mas defendem que não há como atribuir causas ou explicações específicas ao suicídio, afinal, cada caso é um caso. Quem já tentou tirar a própria vida deseja que sua história seja vista com empatia, se colocando no lugar do outro para compreender seus sentimentos e emoções, procurando experimentar de forma objetiva e racional o que sente outro indivíduo. Não glamourizar e nem banalizar o jornalismo precisa rediscutir seus manuais e códigos de ética para conseguir humanizar a questão do suicídio. Jornalismo PUCPR Revista CDM
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saúde
Como vai você? O Centro de Valorização da Vida oferece acolhimento sigiloso a todos aqueles que precisam, seja por telefone, e-mail, chat ou Skype Giully Regina
“C
omo vai você?” Esta é a saudação usada pelos voluntários do Centro de Valorização da Vida (CVV), uma ONG que atua em todo o Brasil
esse acolhimento em casa com familiares, ou com amigos e namorado ou namorada, e o CVV está lá para estar junto”, explica o voluntário Rael de Melo.
há mais de 50 anos oferecendo apoio emocional sigiloso, visando a prevenir o suicídio e valorizar a vida. As pessoas podem entrar em contato com a ONG por telefone, e-mail, chamada de voz online, e o chat no site do CVV.
Rael é voluntário há pouco mais de dois anos, mas conheceu o CVV há oito por uma amiga, mas naquela época não se engajou ao projeto. Foi só depois de assistir a uma palestra de um voluntário que ele decidiu fazer parte.
Não existe um assunto específico para tratar durante as conversas com os voluntários. A pessoa liga, sem revelar nome, idade ou gênero, e pode simplesmente desabafar, falar sobre problemas que a afligem, compartilhar dúvidas, falar sobre seu sofrimento ou até mesmo comemorar algo que aconteceu de bom durante o seu dia.
Rael é psicólogo, mas esclarece que, dentro do projeto é apenas mais um voluntário como qualquer outro e que o serviço oferecido pelo CVV não substitui uma intervenção médica; “Não é terapia, não é acompanhamento psicológico, não substitui nenhum serviço médico, mas complementa.” E não importa a formação profissional do voluntário, apenas os seus preceitos de atendimento, o respeito, acolhimento
Giully Regina
A ONG oferece acolhimento a todos aqueles
A ajuda está ao alcance das mãos. 70
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que procuram, porque se a pessoa procura essa forma de acolhimento, é porque ela está precisando. “Às vezes, a pessoa não encontra
incondicional, empatia por quem procura, o posicionamento de nunca julgar e estar disponível a quem procura. Voluntária há cinco anos, Claudiane Araújo procurou a instituição para um dos cursos de voluntariado, que consta em nove encontros presenciais e mais quatro semanas de estágio antes que o voluntário possa realizar o atendimento. Ela considera o trabalho do CVV fundamental. “A gente percebe que as pessoas estão muito vulneráveis, carentes de serem ouvidas.”
Giully Regina
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Dagmar Pugin Miguel é voluntária desde 2015 e conheceu a ONG através de um site que lista as ONGs e trabalhos voluntários dentro de Curitiba. Ela decidiu se inscrever para o treinamento de voluntários do CVV, porque percebeu que a sociedade precisa desse tipo de trabalho. “Muitas pessoas não têm com quem desabafar e precisam ser acolhidas”. Dagmar explica que o CVV procura criar um ambiente favorável para que a pessoa encontre dentro de si mesma uma solução para o seu problema. O psicólogo Diego Scheidweiler, explica que o serviço oferecido pela ONG é muito importante, porque muitas pessoas não procuram ajuda psicológica e, “apenas poder falar sobre o problema já é essencial”. Em Curitiba, o posto do CVV está localizado no bairro Água Verde e conta com 45 voluntários, que se dividem nas funções de atender o telefone, responder e-mails e também um atendimento presencial das 8 às 18 horas e telefone 24 horas. A agenda dos voluntários é fechada de acordo com sua disponibilidade durante a semana.
o sexo da pessoa que procurou o atendimento. No mês de março, foram feitos mais de 1,8 mil Rael é voluntário atendimentos no CVV de Curitiba. há mais de O principal tema abordado pelo CVV é a pre- dois anos. venção ao suicídio, assunto ainda considerado tabu na sociedade – algumas crenças religiosas condenam o suicídio e as pessoas que sofrem e pensam em acabar com a própria vida não falam sobre esse sentimento por medo de
“Poder falar sobre o problema já é essencial.” Diego Scheidweiler, psicólogo Como profissional da psicologia, Rael considera o trabalho realizado pelo CVV um serviço interessante, mas aponta que “não é psicologia, mas para ajudar e escutar o outro não precisa de diploma”. O único dado que é anotado durante o atendimento é número, não existe nenhum tipo de relatório, não é possível saber a idade média ou
represálias de pessoas próximas.
Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), no mundo todo, um suicídio acontece a cada 40 segundos e, no Brasil, ocorre um suicídio a cada 45 minutos. Ainda segundo dados da OMS, 90% dos suicídios poderiam ser evitados, desde que existam condições mínimas para a oferta de ajuda, voluntária ou profissional. Jornalismo PUCPR Revista CDM
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11.821 9.190
A cada 45 minutos, uma pessoa comete suicídio no Brasil 2.620
Total
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Mulheres
A OMS fez uma cartilha de prevenção ao suicídio em 2006, e o CVV também distribui sua própria cartilha, deixando claro que podem ligar para desabafar a qualquer hora do dia. As cartilhas explicam que existem várias razões para uma pessoa pensar em suicídio, Rael exemplifica que “as pessoas pensam em acabar com o sofrimento e, por consequência, acabar com a própria vida”. Por ser um assunto não debatido socialmente, quem liga não consegue falar do seu desespero, e o CVV tem como objetivo estar disponível para essa pessoa. Existem duas campanhas movimentadas pela ONG CVV que procuram tratar do assunto suicídio e de formas de melhorar a vida. A primeira delas é a Semana de Valorização da Vida, que ocorre em maio em Curitiba, com palestras com profissionais da psicologia e outros parceiros da CVV. E a campanha mais ativa é o Setembro Amarelo. Durante todo o mês, são feitas ações para a prevenção do suicídio, como iluminação de pontos turísticos pelo Brasil e em Curitiba mil balões amarelos foram soltos na Praça Santos Andrade. As campanhas de conscientização são feitas para lembrar que o suicídio, a vontade de dar 72
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fim à própria vida é resultado de um sofrimento expressivo, que os voluntários do CVV acreditam que pode ser evitado por meio da conversa. Estima-se que mais de 10 milhões de pessoas tentam o suicídio a cada ano no mundo. E a cada suicídio, seis a dez pessoas são diretamente afetadas. A cada três meses, o Centro de Valorização da Vida promove cursos para novos voluntários. O próximo acontece nos dias 5, 6 e 7 de junho, e a inscrição é feita pelo site e é gratuita.
Centro de Valorização da Vida Rua Carneiro Lobo, 35, Água Verde, Curitiba, (41) 3342-4111 Atendimento Telefônico: 24 horas Atendimento presencial:8 às 18 horas
Curso para novos voluntários 5, 6 e 7 de Junho Inscrições pelo site: http://www.cvv.org.br/
Dados: Organização Mundial da Saúde
11 mil suicídios por ano no Brasil
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13 Porquês e o bullying O serviço de streaming Netflix, além de oferecer um vasto repertório de filmes, séries e documentários, também tem produção própria. Sua última produção de sucesso, a série 13 Reasons Why vem gerando um debate social sobre bullying e suicídio. A série é baseada no livro Os 13 Porquês de Jay Asher, lançado em 2007. Conta a história de Hannah Backer, uma adolescente que cometeu suicídio e deixa 13 fitas cassetes contando por que tirou a própria vida. Cada fita tem o nome de uma pessoa, que ela culpa por sua morte. A série surpreendeu pelas cenas fortes e impactantes, que chamam atenção para o tema tabu do suicídio e também para um assunto bastante debatido ultimamente, o bullying. Luiza Silva (nome fictício), 21, conta que sofreu bullying durante a infância, por estar um pouco acima do peso. Ela conta que colegas a chamavam de “gorda, ridícula”, e ela ganhou uma série de apelidos maldosos. O que, para alguns, pode ser algo “normal” ou apenas uma brincadeira, afetou demais uma criança de 11 anos, que teve de fazer acompanhamento psicológico e tomar calmantes naturais. O bullying resultou em uma depressão em Luiza, que perdeu peso diante da doença, e mesmo mudando de colégio, ainda foi vítima de bullying com novos colegas. Hoje universitária, prestes a se formar, ela afirma que apesar de anos sofrendo, “atualmente estou muito tranquila, depois que aprendi o que tinha para aprender, minha cabeça é outra”. O psicólogo Diego Scheidweiler explica que muitas crianças
cometem bullying por insegurança, para se reafirmarem no ambiente escolar, ou até mesmo repetem o que presenciam em casa, “se a criança vive em um ambiente de críticas, ela tende a reproduzir na escola, criticando seus amigos e a quem é diferente”. Diego ainda explica que o começo da adolescência é uma época de criação de identidade, e as vezes o bullying é cometido porque a identidade do outro não agrada, ou até mesmo para reafirmar a sua própria identidade ataca o outro. O bullying pode causar à vítima efeitos de timidez, introversão, insegurança e, como foi o caso de Luiza, a depressão. Segundo pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2015, 7% dos estudantes afirmaram ter sofrido bullying, ou se sentiram humilhados pelos colegas. O bullying agrega casos de humilhação, agressão e preconceito entre jovens e, ainda segundo o IBGE, um dos principais motivos das provocações foi a aparência. A série da Netflix desencadeou uma campanha contra o bullying nas redes sociais com a hashtag #NãoSejaUmPorque, iniciando o debate sobre o tema e suas consequências. Uma provocação, humilhações podem afetar o psicológico da vítima e até ser desenvolvida uma doença, como, por exemplo, a depressão.
Dados: IBGE
Uma, em cada cinco crianças, já cometeu bullying Jornalismo PUCPR Revista CDM
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Marcas do passado A hanseniase, embora relacionada aos tempos antigos, ainda é atual. A demora na realização do diagnóstico pode trazer sequelas irreversíveis Fernanda Menuci, Larissa Santin e Letícia Aleixo
Foto: Letícia Aleixo
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arlos Dártico, de 88 anos, descobriu que era portador do bacilo de Hansen quando nada sentiu ao se queimar na perna. Nascido em Irati, veio a Curitiba aos 13 anos para se tratar no antigo Leprosário São Roque, em Piraquara. Dártico ficou seis anos no hospital, e saiu após a descoberta da sulfona. Deixou a instituição e se tornou enfermeiro e depois funcionário público da Prefeitura de Curitiba. Apesar de não apresentar qualquer risco aos que estavam à sua volta, Carlos teve que manter sigilo sobre seu passado no leprosário. Isso era essencial para manter seus empregos. “Depois que eu fui doente, arrumei um serviço. Falei que era hanseniano e não me aceitaram. Eles têm preconceito ainda. Hoje dizem que não têm problema nenhum, mas têm sim, eu sei disso”, afirma Carlos. Quando veio para Curitiba, foi trazido à força para se tratar. Na época ainda vigorava a lei do isolamento compulsório de pacientes de hanseníase em hospitais colônia. ”Pegaram a gente na marra. Eu tava lá cortando lenha e me pegaram e trouxeram para cá.” A doença marcou a família. Ele, seu pai, seu tio, o irmão e os primos tiveram hanseníase. O pai passou anos no leprosário e veio a falecer lá, e a mãe nunca pode ir visitá-lo por falta de condições financeiras. No mesmo asilo em Piraquara, vive Leocádia Delinski ,81. Ela se descobriu doente aos 17 anos. Veio para o Hospital Colônia São Roque, onde ela diz que, apesar da reclusão, havia bons momentos. “Tinha baile, tinha festa, era
muito bom". Ficou lá por dois anos até receber alta. Depois disso, começou a trabalhar e não revela a ninguém sobre seu passado no antigo leprosário. Na família não foi só ela que teve a doença. Seu irmão e seu pai também. “Toda hanseníase tem uma sequela. Fica com dedo torto, corta uma perna, corta pedaço do pé", conta Leocádia.
Sobre a hanseníase A lepra, doença quase tão antiga quanto a humanidade, nos remete às mais terríveis imagens mentais. Uma doença historicamente estigmatizada, relatada nos textos do antigo testamento, porém ainda presente no Brasil do século XXI. Hoje não mais conhecida como lepra, a hanseníase (nome escolhido como forma de retirar o peso do antigo termo e aliviar o estigma do seu portador) existe e registra novos casos cada ano. Automaticamente relacionada a deformidades corporais, e, erroneamente, à falta de higiene, alguma pessoas sentem desconforto em relação ao assunto. Mas o imaginário do leproso bíblico não é, necessariamente, a realidade do doente de hoje. O preconceito, às vezes explícito, às vezes velado, ainda acompanha quem
“Falei que era hanseniano e não me aceitaram no emprego. Eles têm preconceito ainda.” Carlos Dártico, aposentado
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teve, em algum momento da vida, o bacilo de Hansen. A bactéria responsável pela doença atinge os nervos periféricos do corpo, acarretando deformidades e perda gradativa de sensibilidade. Quando identificada e tratada com antecedência, as sequelas deixadas pela hanseníase podem ser quase imperceptíveis e o paciente pode viver uma vida normal, sem indicar sua condição. Diferentemente do que ocorria até o século passado, hoje não há mais a necessidade do isolamento do doente para segurança da maioria. Após o desenvolvimento de um medicamento eficaz contra o bacilo, o paciente de hanseníase pode retornar ao convívio social sem apresentar riscos. Dionei Santos é terapeuta ocupacional em Piraquara, em um centro especializado que atende pessoas com feridas crônicas e hanseníase. Ela explica que os pacientes diagnosticados precisam de treinamento para aprender a cuidar de seu corpo. Como há perda de sensibilidade, são comuns queimaduras e cortes profundos sem o paciente sentir, o que pode gerar infecções e amputações. Nesses casos, é necessário o desenvolvimento de uma rotina de autocuidado. "A gente orienta o paciente a usar utensílios que preservem aquela mão, aquele pé. Não andar descalço. E sempre estar mapeando a questão da sensibilidade." "Uma vez faltando o tato, e a gente tem que substituir pelo olhar. Analisar o que ele vai fazer e utilizar alguns utensílios, como luvas, cabos para que se isole o calor." No centro onde trabalha, ela faz o diagnóstico, mapeia os locais com alteração de sensibilidade, faz o acompanhamento desses pacientes e realiza treinamentos para a prevenção de incapacidade. 76
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A transmissão se dá por meio das vias aéreas, por meio da fala, de tosse e espirros. Porém, para o contágio, é necessário se enquadrar em uma série de fatores, como o contato prolongado com o doente (que não está recebendo tratamento) e estar com a imunidade baixa.
Políticas públicas Para Dione, a divulgação da hanseníase e a melhor política pública para o problema. Ela conta que, com campanhas, mais pessoas vêm ao posto para descobrir se a sua marca é uma micose, hanseníase ou outra doença. "Se existissem mais campanhas, iríamos descobrir novos casos, e não casos tardios." Segundo ela, qualidade de vida também está relacionada à manifestação do bacilo. Falta de saneamento básico, por exemplo, está ligada à baixa imunidade. Locais imundos e com grande aglomeração de pessoas, como, por exemplo, favelas, têm relação direta com a Campanha de conscientização, promovida pela Secretaria de Saúde do estado.
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história da hanseníase. Pessoas que vivem em condições assim têm chance de contaminação maior. Para a presidente estadual da Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan), Francisca Barros da Silva, 62, políticas públicas direcionadas à doença no Estado do Paraná e no Brasil deixam a desejar. "Se existissem políticas públicas para hanseníase não haveria tantos casos no Estado do Paraná e tantas sequelas grau 2". Segundo ela, a um número significativo de pessoas procuram o serviço de saúde para tratamento já se encontrando no grau 2 (grau de maior incapacidade e danos no sistema nervoso). Francisca diz que algumas doenças são tratados de formas muito enfática. Ela cita, por exemplo, os casos da Aids e da dengue, que são mazelas combatidas com vigor e muito mencionadas na mídia. Já “a hanseníase está sempre em último lugar” se tratando de divulgação e atenção do poder público. “E eu quero levar a hanseníase na primeira fila.” “A melhor política pública seria a educação. Começar a falar no primário, na faculdade, nas igrejas. Não a Morhan, mas o estado e o município, devem fazer isso”. “Fazer com que todo munda tenha conhecimento da patologia.” Jaquelina Finau, coordenadora estadual de Hanseníase da Secretaria Estadual de Saúde, conta que o maior desafio das políticas públicas é a sensibilização dos profissionais da saúde e da população em relação ao diagnóstico da doença, que muitas vezes ocorre de forma tardia. A secretaria possui há mais de 30 anos programas direcionados à hanseníase e também investe em campanhas de conscientização, para tentar retirar um pouco do estigma
relacionado à doença. Embora haja uma queda nos casos da doença nos últimos três anos, Jaqueline alerta que a questão do diagnóstico tardio pode afetar diretamente os dados recolhidos. Em 2015, há o registro de 737 casos, em 2016 foram 584 e 2017, até o período atual, foram constatados 128 casos.
O isolamento compulsório Segundo relatório do Morhan (Movimento de Integração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase), teve início, em 1923, a política nacional de profilaxia da lepra. Os doentes de hanseníase eram separados e levados para as colônias onde eram internados compulsoriamente. Os internados deixavam tudo para trás, inclusive os filhos. As crianças eram retiradas do convívio dos pais e enviadas para instituições onde eram criadas de forma coletiva, sem contato com os parentes doentes. Isso gerou uma leva de crianças que posteriormente foram denominadas pela Morhan como Filhos Separados, que cresceram sem contato com a família. Muitos perderam qualquer elo com seus parentes e trabalham hoje para redescobrir sua história. O movimento faz hoje o trâmite para o reencontro entre pais e filhos através do Programa de Identificação de Familiares Separados pelo Isolamento Compulsório de Pessoas com Hanseníase. O instituto usa até mesmo de exames de DNA para identificação dos parentescos. A separação familiar e recolhimento das crianças filhas de doentes de hanseníase pelo Estado era vigente na legislação brasileira. Segundo o Decreto nº 16.300, de 31 de dezembro de 1923, filhos saudáveis de pais com a doença deveriam ser afastados do convívio familiar e segregados em instituições criadas para esse Jornalismo PUCPR Revista CDM
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fim, os chamados preventórios ou educandários. Já a Lei Federal nº 610, de 13 de janeiro de 1949, determinava que todo recém-nascido filho de pais portadores de hanseníase deveria ser imediatamente afastado da mãe e não poderia nem mesmo ser amamentado por ela. Estimativas da Secretaria Nacional de Direitos Humanos indicam que aproximadamente 40 mil brasileiros perderam contato com parentes durante o período em que vigorou a lei do isolamento compulsório. Francisca Barros da Silva, presidente estadual do Morhan, foi uma dessas mães. Por causa do isolamento, foi separada da filha mais velha, adotada por uma família para que não crescesse em um educandário (a adoção não foi legal). As duas só retomaram contato anos depois, nas redes sociais. Segundo Francisca, são comuns os relatos de maus tratos, tortura, abuso sexual e negligência com as crianças e adolescentes que viveram nos educandários. Ela conta que muitos carregam ainda hoje sequelas emocionais e distúrbios comportamentais devido aos abusos a que foram submetidas ao longo da vigência da legislação. Apesar de não estarem infectados, os filhos de pais com hanseníase viveram em regime de clausura e isolamento. Placa que exibe a data de fundação do Hospital São Roque.
Letícia Aleixo
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Unidos pela rejeição O Hospital Colônia São Roque, leprosário em Piraquara, foi fundado em 20 de outubro de 1926 pelo governo do estado e administrado pela congregação irmãs franciscanas de São José. Até a década de 80 vigorou a Lei Federal número 610, de 13 de janeiro de 1949, que previa isolamento compulsório de pessoas com o bacilo de Hansen. Segundo Mara Lucia Gomes Dissenha, diretora administrativa de Hospital de Dermatologia, novo nome dado ao local em 1990, há relatos de que a colônia chegou a abrigar mil doentes. No local acabou surgindo uma estrutura para atender as necessidades dos moradores que vai além das do hospital. Hoje ainda há casas vazias ao longo de todo o complexo que antes era habitada ou usadas para atender as demandas da colônia. “Aqui funcionava como se fosse uma mini cidade. Então tinha toda uma condição de cidade. Tinha cinema, campo de futebol, correio, prefeitura e até prefeito”, lembra Mara Lucia.
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Leocádia Delinski, recebeu alta do hospital São Roque, quando tinha 19 anos.
Sintomas
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Manchas esbranquiçadas, avermelhadas ou amarronzadas em qualquer parte do corpo, com diminuição ou perda da sensibilidade nessa região.
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Manchas que não coçam, são dormentes e não desaparecem rapidamente.
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Caroços ou inchaços no corpo, em alguns casos avermelhados ou doloridos.
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Dor e sensação de choque, fisgadas ou agulhadas ou longo dos nervos dos braços, mãos, pernas e pés.
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Áreas com diminuição de pelos e do suor.
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Perda da sensibilidade ou da força do quinto dedo.
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Perda de força e de sensibilidade nas mãos, pés e face.
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Cortar-se ou queimar-se sem sentir.
Fernanda Menuci
Carlos Dártico, escondeu o passado por medo de represálias sociais. Fernanda Menuci
Francisca Barros, presidente da MORHAN.
Mitos sobre a hanseníase Ela não é transmitida por:
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Copos, pratos e talheres.
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Picada de insetos.
Fernanda Menuci
Mara Lúcia, apresentando o Hospital São Roque.
Cadeiras e bancos. Aperto de mão, abraços, contatos rápidos em transporte coletivo. Relação sexual. Aleitamento materno. Herança genética. Letícia Aleixo
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Acervo pessoal Regiane Czervinski
Bem-vindo à Polônia País do centro oeste europeu atraí a atencao de brasileiros para intercâmbios e oportunidades de trabalho Guilherme Osinski e Vinícius Rech
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uitos brasileiros, ao procurarem dar um passo adiante em suas carreiras profissionais, procuram por intercâmbios mundo afora. Muitas vezes, cria-se o senso comum de que os melhores países para viver essas experiências são sempre
fronteiras, estando viva no sangue de muitas famílias curitibanas. E o interesse em estudar lá é algo que pode passar de mãe para filho, como é o caso da professora de artes plásticas da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Acervo pessoal Dulce Baggio
os mesmos, como os já tradicionais Estados Unidos, no continente americano, e a França, na Europa. Mas, para qual destino os curitibanos têm ido, recentemente, para estudar ou trabalhar? A resposta é simples, ainda mais se levarmos em conta que Curitiba é a segunda cidade nas Américas com maior número de descendentes de poloneses, perdendo apenas para Chicago. A Polônia, localizada no centro-oeste da Europa, tem pouco mais de 38,5 milhões de habitantes e é um país cuja tradição transcende Dulce conheceu duas Polônias diferentes. 80
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Dulce Regina Baggio, e de seu filho mais novo, Pedro Carneiro, que fizeram intercâmbio na República da Polônia em épocas muito distintas. “Quando eu estudei na Polônia, entre Pedro Carneiro, estudante 1985 e 1987, ainda era o tempo do socialismo, enJá o estudante de Licenciatura em Música da tão era um país muito diferente de hoje, com Faculdade de Artes do Paraná (FAP) Pedro muita censura, muita dificuldade de movimen- Carneiro, de 20 anos, visitou em 2015 Polôtação e muita precariedade de bens de connia, onde ficou na cidade de Reszów, influensumo. Era uma Polônia mais cinza, mas para ciado principalmente pela família, uma vez
“Eu aconselho as pessoas a es-
tudarem lá porque o país recebe muito bem seus visitantes.”
que tanto a mãe como o avô falam a língua, o que despertava a curiosidade do jovem. “Eu já vinha fazendo curso de polonês pelo Celin, da UFPR, então já tinha interesse pela língua e cultura. O intercâmbio que fiz era um curso de verão. O nome do curso era idioma e cultura,
Acervo pessoal Pedro Carneiro
mim era tudo novidade, porque eu era jovem, então foi uma experiência muito importante não só profissionalmente”, afirma Dulce, que na época ganhou uma bolsa do governo polonês para fazer um estágio de pós-graduação na Academia de Belas Artes da Cracóvia.
Pedro Carneiro durante seu intercâmbio em Reszów.
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e os professores tentavam fazer a mescla entre ensinar o básico do idioma e introduzindo também alguns aspectos da cultura. Eles chegaram a levar a gente em várias cidades menores para conhecer grupos folclóricos tradicionais dessas cidades”, relembra Pedro, que estudou na Universidade de Reszów, descrita por ele mesmo como uma cidade para estudantes, devido ao baixo apelo turístico e muitas moradias estudantis.
um intercâmbio. “Minhas experiências com estudo aqui no Brasil são boas e lá também foram boas. As aulas que tive foram intensivas, porque o período era curto e eles queriam passar muita coisa. Eu aconselho as pessoas a estudarem lá porque o país recebe muito bem seus visitantes. Muita gente acha que a língua pode ser um grande obstáculo, mas depende de você mesmo estudar bastante e dominar o idioma”, conta o estudante.
Dulce passou seu primeiro ano na Polônia apenas estudando a língua, para no segundo
Sonho
ano frequentar o ateliê de gravura em metal, da Academia de Belas Artes de Cracóvia. Quase 30 anos depois, em 2014, ela recebeu um convite do Consulado da Polônia para voltar ao país, não precisando arcar com as passagens. Na ocasião, o objetivo era estudar a língua polonesa em uma turma com pessoas de 30 países diferentes, oportunidade na qual ela pôde ver o surgimento de uma nova Polônia. “Eu tive um contato com um país totalmente diferente. Os jovens não têm mais a memória do sofrimento que era viver atrás da cortina de ferro. Então é uma Polônia muito mais alegre, muito mais leve, em termos de expectativa e esperança. Mas também fiquei um pouco
são dois curitibanos cujas histórias se cruzam com o país do centro-oeste europeu, já que ambos têm ascendência polonesa. Regiane é professora de polonês na capital paranaense, enquanto Ricardo é mestrando em Ciências Políticas com especialização em Relações Internacionais, ao mesmo tempo em que atua na área de Recursos Humanos da General Mo-
Pedro, por outro lado, ficou pouco tempo na Polônia, apenas três semanas, talvez pouco para perceber as diferenças entre os sistemas de ensino brasileiro e polonês, mas o suficiente recomendar o país para outros brasileiros que tenham interesse e vontade de embarcar em 82
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Acervo pessoal Regiane Czervinski
nostálgica, porque aquele país de antigamente também tinha seus encantos. As pessoas tinham mais tempo, mais interesse umas nas outras. São sentimentos contraditórios, um pedaço da nossa vida que não existe mais”, confessa a professora da UFPR.
Regiane Maria Czervinski e Ricardo Pianovski
Regiane estudou na Universidade da Silésia, em Katowice.
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“Acho que a maior dificuldade que eu tive foi ficar meses sem o sol.” Regiane Czervinski, professora de polonês tors, em Katowice. Curiosamente, Katowice também foi o destino do intercâmbio de um ano da professora Regiane, quando participava de aulas de polonês e também de algumas disciplinas do curso de Relações Internacionais.
boas lembranças e tudo de positivo que vivenciou na Polônia. “Acho que a maior dificuldade que eu tive foi ficar meses sem o sol. Por
Com toda essa imersão na Polônia, torna-se mais fácil perceber as diferenças entre o sistema de ensino polonês e o praticado no Brasil. Regiane lembra que na Polônia, o ritmo de estudos era muito árduo, mais do que em solo brasileiro. “Eu entrava às 7 horas e saía às 16, 17 horas. Detalhe: sem pausa de uma hora para o almoço, pois os poloneses geralmente almoçam às 15, 16 horas da tarde, e não toleram atrasos. Além disso, lá também não existem cursos noturnos”, recorda a professora. Já Ricardo, aconselha que brasileiros estudem na Polônia principalmente pela qualidade do ensino. “O sistema educacional polonês é muito melhor que o brasileiro. E mesmo se for pra ir pagando você chega a pagar menos para morar na Polônia e arcar com a mensalidade, enquanto no Brasil se gasta mais pra pagar a mensalidade de uma universidade privada, nem sempre com a mesma qualidade”, afirma. Acervo pessoal Ricardo Pianovski
Como uma consequência da sua atuação profissional em Curitiba, Regiane perseguiu o sonho de fazer um intercâmbio na Polônia exatamente para conhecer a cultura e o dia a dia do país, para assim passar todo esse conhecimento para seus alunos. Desembarcando lá, se deparou com alguns obstáculos, mas, logicamente, ela guarda no coração apenas as
Ricardo Pianovski na casa do estudante em Katowice. Jornalismo PUCPR Revista CDM
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Acervo pessoal Ricardo Pianovski
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Baixas temperatuas podem ser um empecilho para os brasileiros .
outro lado, o que mais me impressionou foi a segurança, ainda mais como mulher. Eu fazia caminhadas em algumas trilhas na floresta, e quando encontrava algum homem no caminho, não sentia medo e eles não mexiam comigo”, conta Regiane. Ricardo, assim como a compatriota Regiane, também sempre quis conhecer melhor o país do centro-oeste europeu, principalmente para aprender o polonês, tarefa um tanto quanto complicada, já que é uma língua muito diferente do português. Primeiramente, o objeto do curitibano era somente estudar, sem preocupação em arranjar trabalho. Porém, a vida vive nos trazendo surpresas, e, em abril de 2016, a vida de Ricardo mudou para melhor. “Eu consegui um emprego em uma empresa de tecnologia de informação, que terceiriza serviços. Então eu trabalhava para alguns projetos que usavam a língua portuguesa e inglês. Trabalhei lá durante seis meses e depois apareceu em um portal de emprego uma vaga para trabalhar na General Motors, onde estou 84
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desde outubro do ano passado”, conta o brasileiro, por enquanto sem vontade de voltar a viver no Brasil.
A palavra do cônsul Qual é o grande segredo por trás de intercâmbios bem sucedidos na Polônia? Não é novidade para ninguém que normalmente brasileiros viajam em grupo para outros países, e é exatamente nesse ponto que o cônsul geral da Polônia em Curitiba, Marek Makowski, dá algumas importantes dicas. “A chave do sucesso é fugir do grupo de brasileiros. Cada lugar tem um grupo e eles sem mantêm unidos. E isso é um grande erro, porque, ao invés de falar polonês, todo o tempo falam português. E eles se incentivam nas coisas ruins. Se um diz que está deprimido o outro vai dizer que tem que voltar pro Brasil. O segredo do sucesso é se relacionar com poloneses”, acredita o cônsul. Até o momento, não existe um acordo entre Brasil e Polônia sobre intercâmbios de estudantes, já que nunca houve a assinatura de
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algum tratado. Menos mal que o Ministério de Ensino Superior da Polônia oferece bolsas de estudos aos descendentes de poloneses que possuem segundo grau completo. Basta que esses alunos procurem o Consulado de Curitiba, tragam a documentação de conclusão de segundo grau, para aí então ser enviado para a Polônia com bolsa de aproximadamente R$ 850 mensais.
títulos de 20 livros e têm que se virar”, revela Marek.
as férias, comprar roupas e também pagar um apartamento melhor de que uma residência estudantil. Tudo em paralelo com um nível de ensino contrastante com o brasileiro. “Lá se exige muito mais do estudante e as pessoas aqui do Brasil não estão preparadas para isso. De repente, elas se chocam com um muro de exigências, que para os estudantes poloneses é normal. É uma outra maneira de ensino. Aqui no Brasil os alunos às vezes recebem apostila, recebem todas as dicas para se preparar para um exame, e na Polônia os alunos recebem os
80% consegue terminar bem, mas na universidade uns 30% desses 80 fracassam, por causa das dificuldades com a língua e a adaptação em si. Aqui em Curitiba, por exemplo, é uma cidade onde faz frio, mas não abaixo de zero. E, durante o inverno, o dia começa às 8h30, 9 da manhã, e às 16 horas já está escuro. Então, para muitas pessoas é um choque psicológico”, constata o cônsul, citando ainda outros empecilhos para o sucesso dos intercâmbios, como a distância de namorados e também a comida polonesa.
Acervo pessoal Regiane Czervinski
Segundo Marek, chegando na Polônia, a maioria dos estudantes encontra algum trabalho que resulte em mais dinheiro para passar
Geralmente, no primeiro ano do intercâmbio, os alunos brasileiros aprendem a língua polonesa, ao mesmo tempo em que são preparados para as disciplinas que enfrentarão durante o curso universitário. Por exemplo, se a pessoa vai estudar Engenharia, recebe um auxílio em matemática, física, química, entre outras coisas. E, infelizmente, muitos alunos não conseguem dar conta dos estudos, por diferentes razões. “Nas aulas de polonês, cerca de
Polônia tem cerca de 9.300 lagos em seu território.
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