Artefato - 5/2011

Page 1

artefato

Jornal-laboratório da Universidade Católica de Brasília

ano 12, número 2

Um albergue pelo olho da fechadura

maio de 2011

A reforma política que não é pensada no Parlamento Páginas 15 e 16

Governos cegos à realidade da QN 16 do Riacho Fundo II Páginas 4 e5

Equipe do Artefato passa 24 horas no espaço Conviver, no Areal, e faz relato minucioso de como é depender dos serviços oferecidos pelo governo a quem mora nas ruas

O alto custo da falta de cuidados com os livros de bibliotecas Páginas 18 e 19


opinião

Editorial

Por dentro do albergue Renata Bittes

N

a segunda edição do ano do Artefato, a preocupação com o texto, assim como com a parte gráfica, continuaram. Dessa vez, parte de nossa equipe foi além na apuração. A manchete é o retrato de uma incursão quase antropológica para viver a experiência de dormir no Albergue Conviver, no Areal. Nossos repórteres relatam de forma detalhada e objetiva a precariedade de serviços e de infraestrutura do lugar, que já havia sido visitado e comentado em edição anterior do Artefato. Isento de sensacionalismo, o texto procura mostrar o que é pas-

sar uma noite lá. E devido à liberdade quanto a escolha de pautas, o jornal oferece mais uma vez um leque de assuntos distintos, mas de interesse e importância social. A reportagem Patrimônio Mutilado ressalta a importância do cuidado com os livros e o enorme investimento necessário para restaurar e recuperar obras. Ainda nessa edição, as Academias da Terceira Idade (ATI) estão em pauta. Nessa reportagem, pode-se encontrar quais aparelhos e onde as ATIs são e estão disponíveis. Há também o perfil de José Dantas, conhecido como Índio. O personagem conta como

Análise da edição anterior do Artefato

é dividir seu tempo entre guardar carros e cantar forró. Na reportagem sobre reforma política, o leitor tem a oportunidade de entender e se inteirar sobre o poder do povo e a opinião de especialistas e políticos sobre o tema. Ainda no universo dos “representantes do povo”, fizemos uma incursão à história de uma quadra no Riacho Fundo II que vive de promessas não cumpridas de criação de um espaço de moradia e convivência para pessoas com deficiência. A acessibilidade e as condições mínimas de respeito passam longe dali. artefato

Ombudskvinna Nathália Coelho

S

e a intenção da nova equipe do Artefato era fazer um jornal com conteúdo e diagramação leve, foi com êxito que cumpriu a tarefa. A versão publicada está com mais jeito de impresso. Soube encaixar assuntos de repercussão na sociedade e utilidade pública com matérias descontraídas, proporcionando equilíbrio ao conjunto. E por falar em reportagens, destaque para a capa. Contrariando as opiniões de corredor que a intitularam como sensacionalista, digo que foi bastante madura e corajosa em pro-

Expediente Artefato Jornal-laboratório do Curso de Comunicação Social da Universidade Católica de Brasília Ano 12, nº 2, maio de 2011 Reitor: Pe. José Romualdo Degasperi Direção do Curso de Comunicação Social: Prof. André Luís Carvalho Disciplina: Produção e Edição de Impressos

2

por uma discussão acerca de um sério problema enfrentado pelo DF: a violência entre os jovens. Diariamente, acompanhamos histórias de famílias destruídas pela droga e perda dos filhos assassinados. Dura e triste realidade que não pode ser explicitada só por estatísticas. A abordagem dos repórteres conseguiu cumprir seu papel sem apelação. Tão pertinentes quanto a capa também foram as matérias sobre a visita de Michelle Obama e a desigualdade da posição das mulheres na política. O assunto é importante, visto que o Brasil elegeu como chefe maior do Estado uma mulher. A reportagem dos apagões trouxe um ângulo diferente sobre a problemática. Dessa vez, a falta de energia atingiu diretamente a

Editoras-chefe: Narlla Sales e Renata Bittes Repórteres: Amandda Souza, André de Castro, Gabriela Lobato, Haiany Melo, Maíra Pinheiro, Péricles Lugos e Thiago Baracho Fotógrafos: Iasmin Costa, Kellen Karina, Rick Astley, Taísa Lima, Tuane Dias Editor de fotografia: Gilmar Satão Editores de texto: Cleicilene Lobato e Augusto Dauster Professores responsáveis: Gustavo Cunha e Karina Gomes Barbosa

vida de uma pessoa. Simples e direto, o infográfico da EPTG mostrou com clareza as precariedades de uma das mais movimentadas vias do DF. Por trazer uma realidade mais segmentada ao público de maior poder aquisitivo, a matéria ‘Vida de intercambista’ foi o elemento destoante do conjunto, claramente voltado à comunidade. Ademais, a matéria sobre as nomenclaturas dos bairros e RAs ficou um pouco confusa. Já a reportagem sobre a menina Núbia Nathália fechou com chave de ouro a primeira edição. Parabéns à equipe que começou com o pé direto, mostrando, em sua maioria, maturidade na escolha e concretização das pautas. Bom trabalho e boa sorte! artefato Orientação gráfica: Profs. Amaro Jr. e Thiago Sabino Orientação de fotografia: Prof. Thiago Sabino Estágio docente: Vânia Gurgel Tiragem: 2 mil exemplares Impressão: F Câmara Gráfica Universidade Católica de Brasília EPCT QS 07 lote 1 Águas Claras - DF CEP: 71966-700 Telefone: 3356-9337 artefato@ucb.br

artefato


cotidiano

Novidades de uma tradição Em Brasília, pombinhos inovam na hora de casar

Gabriela Lobato

Arquivo pessoal

I

greja, vestido branco, aliança, marcha nupcial. Tudo como manda a tradição. Quer dizer, mandava. As cerimônias de casamento estão sendo inovadas cada vez mais. Ainda que o sonho do casamento religioso seja comum entre meninas e mulheres, a caminhada para o “feliz para sempre” pode ser realizada de várias maneiras. Na opinião do sociólogo Adão Aparecido de Oliveira, os diferentes modos de se casar estão ligados às mudanças na sociedade e também ao conceito de casamento, que mudou ao longo do tempo. “A tendência hoje é não casar”, afirma. Mas, de acordo com ele, ainda há muita gente que segue aquele modelo da cultura européia religiosa e tradicional, em que a mulher é colocada como esposa e mãe. Mas Adão avisa: “Não podemos ignorar que os tempos são outros e que esse velho cenário está perdendo espaço.” Uma das novidades diz respeito à data do casório. A diretora de uma empresa de cerimonial em Brasília, Ellen Dias, rechaça o mito de que maio é o mês das noivas: “Maio continua com o status de mês das noivas, mas a procura tem crescido muito em setembro, por causa da primavera.” O casal Thaís Neves e Rafael Penha decidiu que era hora de trocar as alianças há pouco mais de um ano. A intenção era marcar a data para o início da primavera. “Quando vi que não havia mais vagas e os fornecedores sequer me passavam orçamentos, fomos obrigados a rever a data. Foi aí que descobri que setembro era o segundo mês das noivas.” Sem a opção original disponível, o casal escolheu o dia 13 de agosto para celebrar o dia tão esperado. E eles não se importam com crenças populares que apontam o mês de agosto como o “mês do desgosto”. “Nós somos católicos e não temos superstições. A nossa data foi escolhida para entrar na rotina dos nossos familiares e amigos. E ainda vamos economizar com isso!” Os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística confirmam a descoberta de Thaís e Rafael. No Brasil, em 2009, a maioria dos casais preferiu dezembro – mês do 13o e de férias. Maio está em 6° lugar nos meses mais procurados pelos pombinhos. O que também acontece no DF. Enquanto mais de 1,6 mil casais escolheram outubro para trocar alianças, 1,3 mil preferiu maio.

artefato

casamento, do tradicional ao engraçado, do crédulo ao super religioso”, confessa. Muita gente entra no clima, mas Joel também já presenciou rejeições às idéias novas. “Uma vez filmei um casamento evangélico em que o cara queria inovar e entrou de all-star”. Algum tempo depois, a moda parecia ter “pegado”. “Vi a cena se repetir. Só que dessa vez a noiva se recusou a prosseguir com a cerimônia enquanto o noivo não tirasse o tênis. Ela alegava que era falta de respeito”.

Novos sonhos

Waléria Fortes entrou de branco. A diferença era o altar, montado numa garagem

Altar improvisado

A jornalista e publicitária Waléria Fortes, ao decidir se casar, priorizou outras coisas, para ela mais importantes, e não gastou com certos itens de um casamento tradicional. “Me casei aos 28 anos e, como toda mulher, tinha sonhos.” O mais original na escolha da noiva foi o local: a garagem da casa de uma amiga. “Foi uma loucura, correria pura. Foi muito emocionante”, lembra. Quem trabalha em casamentos conhece bem essas inovações. O cinegrafista Joel Dias, que realiza produções de casamentos há 15 anos, conta que já viu de tudo. “Já filmei todo tipo de

Adão de Oliveira acredita que, hoje, muitas pessoas preferem casar apenas no civil. Ele atribui essa mudança ao número de divórcios no país. De acordo com o IBGE, de cada quatro casamentos, um acaba em divórcio. Já o volume de casamentos oficiais no país caiu. Foram 2,3% menos casamentos registrados em 2009 que em 2008. O sonho do “até que a vida os separe” também parece mais distante. O instituto aponta que têm aumentado as uniões em que um dos dois já foi casado ou viúvo. A aposentada Heloísa Alves, um dia, imaginou que iria realizar o sonho do casamento. “Meu desejo era casar como minha mãe, na igreja. Acreditava que se fizesse tudo certo como pedia a igreja, seria feliz.” O casamento durou oito anos. Depois do divórcio, a visão dela mudou. “Passamos séculos com uniões arranjadas e de submissão total da mulher em relação ao marido e aos filhos. Hoje a mulher tem papel e um controle diferente na vida”, pondera. Heloísa defende que essa nova postura de mudar é um passo “para mudar até o seu estilo de casar”. Os novos tempos permitem até novas questões diante da união: “Por que entrar na igreja só de branco? E quem disse que eu quero casar na igreja?” artefato Colaborou Narlla Sales

Hit na internet

Um casal norte-americano ficou famoso ao inovar na entrada do casamento. Ao som de “Forever”, de Chris Brown, os padrinhos entraram dançando e usando óculos escuros, com coreografias das mais loucas. Os convidados riam. A noiva manteve a tradição de entrar por último na igreja, mas não parou o show e entrou dançando também. O vídeo foi colocado no YouTube, virou hit da internet e já teve mais de 65 milhões de acessos. Acesse: http://migre.me/4r0f0

3


cotidiano

Os órfãos da acessibilidade Criada para receber deficientes visuais em 1996, quadra do Riacho Fundo II vive de promessas não cumpridas Haiany Melo (texto e fotos)

E

ra para ser fácil chegar ao ponto de ônibus. Era para ser uma região de exemplo de respeito às diferenças. Era, enfim, para ser acessível. A realidade de quem vive na QN 16 do Riacho Fundo II, contudo, passa longe de tudo isso. Em 1996, o Governo do DF, durante a gestão do governador Cristovam Buarque, anunciou que faria a distribuição de 77 lotes para deficientes na região. A iniciativa era parte de um plano habitacional que dava prioridade à inclusão social. O mesmo programa foi feito em Santa Maria, Samambaia e Ceilândia. Só dez anos depois, em 2006, já na gestão de Joaquim Roriz, os deficien-

tes, muitos deles integrantes da Associação Brasileira de Deficientes Visuais (ABDV), começaram a receber os lotes no Riacho Fundo II. Lotes que vieram sem qualquer investimento em conceitos básicos para esse público, como acessibilidade. Os moradores sentem falta de placas em Braille, convivem com calçadas irregulares e faixas de pedestres sonoras inexistentes. As paradas de ônibus são distantes e, para chegar até lá, há um descampado com mato e buracos. O serviço incompleto continuou na gestão de José Roberto Arruda e segue como desafio para o atual governador, Agnelo Queiroz. Os obstáculos são tantos que há

vários relatos de acidentes. Em um deles, em novembro de 2010, Wallace Gonçalves, que se locomove com o auxílio de uma bengala, caiu em um bueiro destampado. Ficou 20 minutos esperando alguém que o ajudasse. O Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) chegou 40 minutos depois. Wallace feriu o pé direito e o joelho esquerdo. Acionou a Justiça e, em abril, ganhou o direito de receber indenização de R$ 20 mil da Caesb. “Estamos ao Deus dará. À espera de uma acessibilidade que nunca vem. Para ir ao mercado, preciso atravessar duas pistas sem faixas. Algumas calçadas são cheias de árvores e galhos, o que dificulta a passagem”, diz Wallace.

Campo minado: lixo, buraco e terreno irregular para chegar ao ponto de ônibus na BR. Armadilhas diárias para deficientes visuais

4

artefato


Construções conturbadas

Fica nesse impasse e nada é feito. É um jogo entre as secretarias e a Administração Regional. Aqui falta tudo. Nada está ao alcance das nossas necessidades

Justino Bastos, presidente da ABDV e morador da QN 16

Descaminho, a regra em todas as gestões Em meados de 2009, o governo local esboçou se movimentar em torno do tema. A Secretaria de Desenvolvimento Urbano (Seduma), o Fundo de Desenvolvimento Urbano do DF (Fundurb) e a Comissão Permanente de Acessibilidade (CPA) fizeram um projeto denominado Caminho Fácil. A proposta previa R$ 695 mil para resolver problemas de acessibilidade na QN 16 do Riacho Fundo II, conforme o documento nº 390-000.655/2010 da Seduma. Até hoje, contudo, tratores, obras ou trabalho de jardinagem não foram vistos na região. Segundo fontes da Secretaria de Obras, o processo foi arquivado. Este ano, a Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação (Sedhab) repassou para a Secretaria de Obras R$ 1,4 milhão referentes a obras de acessibilidade em

artefato

vários pontos do DF. Na QN 16 do Riacho Fundo II, conhecida popularmente como Vila dos Cegos, estão previstos a implantação de passeios com percursos até as paradas de ônibus, rotas acessíveis, travessias de pedestres, qualificação das condições de pavimentação, além de sinalização adaptada e uma praça sensorial. Por enquanto, contudo, nada de real ocorreu.

Impasse

Justino Bastos, presidente da Associação Brasileira dos Deficientes Visuais (ABDV), que mora na QN 16, resume a sensação dos moradores. “Fica nesse impasse e nada é feito. É um jogo entre as secretarias e a Administração Regional. Aqui falta tudo. Nada está ao alcance das nossas necessidades”, afirma. Segundo a esposa de Bastos, Kátia, há obstáculos para chegar a qualquer lugar.

“Nada é adequado. Muitos passam por constrangimentos. Nas paradas de ônibus, muitos motoristas não param para eles ou largam fora da parada. Já vi vários tentando encontrar lugares para passar”, comentou. O professor de xadrez Fernando Rodrigues, outro dos deficientes visuais da quadra, ressalta ainda a ausência de olhar público em questões como segurança e coleta de lixo. “Há uma falta de consciência dos outros moradores, que deixam o lixo na porta de casa. Como o caminhão de coleta só passa três vezes por semana, os sacos ficam jogados e dificultam nossa passagem”. A reportagem do Artefato tentou contato com a Administração Regional do Riacho Fundo II, mas não obteve resposta até o fechamento desta edição. artefato

Outro problema enfrentado pelos deficientes que receberam os lotes foi a construção das casas. Na época, segundo Justino Barros, presidente da ABDV, havia um prazo de 120 dias para que os terrenos fossem cercados ou tivessem as obras iniciadas. “Muitos desistiram por falta de dinheiro e pelo prazo”, afirmou. Algumas empreiteiras chegaram a propor linhas de crédito para construir casas de dois quartos, sala, cozinha e banheiro no valor de R$ 36 mil. Os moradores acabaram não aceitando. Em outra frente, um grupo apoiado pela professora Marta Romero, da Universidade de Brasília (UnB), ofereceu aos moradores da QN 16, em 2008, uma assessoria do escritório-modelo do Centro de Ação Social em Arquitetura e Urbanismo (Casas). Os estudantes auxiliam associações de moradores, sindicatos e ONGs para desenvolver projetos habitacionais e urbanísticos. Para a quadra, foi pensado um modelo de casas adaptadas à rotina de pessoas com deficiência. Poucos, no entanto, esperaram o resultado final e resolveram construir por iniciativa própria. “Muitos gostaram da proposta, mas nem todos esperaram o projeto ficar pronto e ser organizado. Apenas quatro casas foram feitas nesse modelo”, disse uma aluna que integra o projeto Casas.

77 Número de lotes distribuídos a deficientes visuais na QN 16 do Riacho Fundo II

R$ 1,4 milhão Valor reservado pelo GDF para aplicar em projetos de acessbilidade na capital em 2011

5


cidadania

Acolhidos por CARIDADE

Passamos 24h no Albergue Conviver, no Areal. Comemos no chão, e daí? A janta era estrogonofe

André de Castro Arthur Scotti*

D

o lado de fora pessoas pediam dinheiro e não escondiam a finalidade da esmola. “É pra comprar cachaça”, dizia Paulo Gomes, um rapaz de quase dois metros de altura, loiro, cabelo raspado e olhos azuis. Usava camiseta de mangas curtas, bermuda, chinelos tipo havaianas. Um dos dedos do pé direito estava machucado. Paulo foi expulso do Albergue Conviver na madrugada do dia 9 de abril. Confessou ter sido pego com bebida alcoólica dentro do estabelecimento. O mesmo lugar que expulsou Paulo estava prestes a nos receber. Às 9h10 do mesmo dia, um guarda fardado, equipado com revólver e cassetete, revistava nossa bolsa. No bolso grande, calção branco, agasalho de crochê, boné e caderno. No bolso pequeno, cigarros, caixa de fósforos, duas canetas, duas escovas e uma pasta de dentes. Essa era nossa baga-

gem. Somente o bolso grande foi aberto. Na parede da recepção uma frase com erros de pontuação dizia: “Tenha paciência.. não é no seu tempo e sim no tempo de Deus..... Você vê até um limite. Deus ultrapassa esse limite e vê muito mais além do que enxergamos. Deus te abençoe e tenha um bom dia”. Um senhor segurava um comprimido na mão, desmaiou na recepção e bateu a cabeça no portão, próximo ao detector de metais. A boca espumava e tremia. Duas loiras que trabalham na recepção e três guardas correram para ver o que era. Entre os seguranças, uma mulher tomou a frente: “Alguém tem uma colher aí?”. Queria verificar se a língua dele estava enrolada. Ninguém tinha, e por isso o velho ficou no chão até que alguém teve a idéia de ligar para o Samu. Confundiram o nome dele duas, três vezes. “Seu Antônio”, “seu Zé”, “seu Pedro”. O

Fotos: Rick Astley

velho acordou meio tonto e foi levado para as cadeiras da recepção, onde ficou deitado até que resolveu ir para o alojamento descansar. “Estou bem”, disse, e saiu a cambalear pátio afora. A coordenação do AlberCon afirma que não há serviço de saúde lá dentro. Quando acontece um incidente, os bombeiros e o Samu são “imediatamente” acionados. Uma das albergadas conduzia um senhor de 80 anos que estava perdido dentro do albergue. Camiseta floral em tons de cinza, chapéu panamá, calça tergal e tênis. Nas mãos uma passagem. O destino era São Paulo. Os albergados que desejam voltar para as cidades de origem recebem passagens gratuitamente por meio do Conviver. “Não se trata de limpeza social, e sim restabelecimento do vínculo familiar”, afirma Alison Pereira, coordenador da instituição. As passagens são financiadas pela Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social e Transferência de Renda (Sedest), instituição da qual o albergue é parte.

Para quem não sabe ler

6

Lá é proibido qualquer bebida alcoólica e drogas, mas alguns albergados não obedecem as regras

Recebemos uma ficha quando chegamos. Era o controle de albergamento para refeições e atendimentos. Nome completo do albergado, onde está alojado, número de dependentes, solicitação de passagens e solicitação de atendimento. Mais tarde, verificamos que esse campo estava marcado sem que tivéssemos pedido qualquer tipo de atendimento. Era uma reunião de grupo para o dia seguinte, que acabou não acontecendo. A reunião, segundo um albergado, “é de rotina e todos que chegam têm que passar por ela”. Serve para apresentar as normas do albergue. As normas estavam escritas na porta de cada alojamento, mas “tem pessoas aqui que não sabem ler”. Os colchões, apesar de muito finos, aproximadamente 5 cm, aparentavam ser novos e estavam limpos. O cobertor tinha um cheiro estranho, talvez por estar guardado há algum tempo, mas também estava limpo. O coordenador da instituição informou que as pessoas

artefato


Fotos: Rick Astley

cotidiano

Ao lado, clientes tomam a calçada. Acima, um dos points de Águas Claras, lotado

Cerca de 600 pessoas são hospedadas diariamente no Albergue Conviver, em média. A entrada é permitida a partir das 7h albergadas têm direito a receber um kit de higiene com sabão em barra, sabonete, creme dental, escova de dente, barbeador lençol e roupas. Nós só recebemos o colchão e o cobertor. Uma equipe realiza a segurança dentro do albergue. Os guardas, de uma empresa terceirizada, são divididos em 10 seguranças por turno, afirma o coordenador. Uma motocicleta também é usada para fazer a ronda dentro das instalações. Os dormitórios são estruturados em 12 pavilhões, do “A” ao “L”. São 16 quartos em cada pavilhão, seis de cada lado. No centro, um galpão comporta os banheiros. Do lado direito fica o banheiro masculino e do esquerdo, o feminino. Nas laterais do galpão ficam as pias para lavagem de roupa. Na verdade, se limpa de tudo nessas pias. Enquanto mulheres lavam roupas, crianças brincam próximas a elas. Em frente ao pavilhão “L”, Lúcio lia um livro, sentado em uma cadeira de praia. Da hora em que chegamos até escurecer, ele parou a leitura poucas vezes. Lia sobre mitologia grega, como afirmou mais tarde. Falava com propriedade sobre a origem dos signos do zodíaco, dizimação do povo inca, o Coliseu e a inquisição. “Eu gosto de leitura e de cinema, mas gosto de filmes que tenham uma mensagem construtiva.” Se declarou portador de doença mental. E esclareceu: “Existe uma diferença entre o deficiente e o doente mental. O doente tem crises, o deficiente tem o problema constante”. Lúcio freqüenta o estabelecimento desde 2008. Apesar de um dia antes “a polícia ter atendido uma ocorrência de esfaqueamento

artefato

dentro do albergue”, como afirmou, ele conta que a convivência no local melhorou. “Você precisava ver como era em 2008. Brigas, drogas, era um pessoal muito estranho.” O coordenador da instituição nega o esfaqueamento narrado por Lúcio. “A última ocorrência no albergue foi há 13 meses”. Fomos alojados no quarto 12 do bloco “K”. O espaço de uns dez metros quadrados comporta cinco camas – dois beliches e uma cama única do outro lado, tudo em estrutura de concreto. Nas paredes existem ganchos com capacidade para três redes. O alojamento não tem laje nem janelas. Entre as paredes, de aproximadamente três metros, e o teto, existe um vão de quase um metro de comprimento. Para a ventilação dos quartos, segundo a instituição. As portas do lado direito são de compensado, sem dobradiças, sustentadas apenas por um arame. Não há fechaduras. Nos alojamentos do lado esquerdo, algumas portas são de ferro. O hóspede do quarto 5, o Vuvuzela, chegou da rua pouco antes do almoço e fez o convite: “Vamos tomar um uísque, eu pago”. Estava bêbado e fez questão de mostrar seu quarto. Não tinha nada de diferente.

Cardápio variado

O refeitório fica em um galpão ao lado esquerdo do portão de entrada, atrás da administração. Uma linha de servir é definida por tela de ferro. As 16 mesas não comportam todos os albergados. Alguns comem no chão. Seguimos em fila, pouco demorada, e passamos por uma roleta que não registrara nada. O almoço e o jantar foram servidos em mar-

mitex de alumínio. As marmitas são retiradas de caixas térmicas. A alimentação é confeccionada fora do albergue por uma empresa terceirizada contratada pela Sedest. Os talheres são descartáveis. A salada e o suco também são servidos em copos descartáveis. No almoço havia arroz, feijão (ressecado), peixe e dois pedaços de batata cozida. O cardápio era variado. Em algumas marmitas, no lugar de peixe, havia empanado de frango. Um homem reclama da comida: “Rango bom mesmo é o que a gente faz no barraco da gente”. Dizia isso para uma mulher que devorava sua marmita sem dar bola para ele. As sete pessoas à mesa observavam um negro de cabelos sujos e enrolados, poucos dentes na boca, roupas sujas e humor extraordinário. “Não tenho dentes, mas nem me preocupo

O alojamento não tem laje nem janelas. Entre as paredes e o teto existe um vão de quase um metro. As portas são de compensado. Não há fechaduras.

7


8

Sábado à noite

Hora do jantar. Estrogonofe de frango. Ou perto disso, já que quase não se via frango no prato. O refeitório parecia mais cheio que no almoço. Tivemos que comer no chão. A van com a comida chegou 17h10, mas o jantar só foi servido às 18h. Quando saíamos do refeitório, cerca de 50 pessoas esperavam para repetir a refeição. À noite a sala de TV ficou lotada. Os albergados assistiam à novela em uma televisão de 27 polegadas. Quando o mocinho beija a mocinha os olhos de um homem se encheram de lágrimas. Uns assistiam pela janela, do lado de fora. Os albergados que saem na rua só podem voltar até às 22h. Como era sábado, muitos não voltaram. Durante a madrugada as luzes do lado de fora dos dormitórios ficam ligadas. Aquela noite foi tranquila. Uma mulher disse que no outro dia viria um ônibus para levá-los à igreja. “Após o culto haverá distribuição de roupas e uma galinhada.” Na manhã de domingo, Antônio Carlos, 23

*Quinto semestre de jornalismo da UCB, especial para o Artefato

  



                                                                                                

                                                                                                                                                                                                                                                                                       

        

                                                        



   



Memória

com espinhos. Mando tudo pra dentro e o estômago que se vire.” Riram. Ele acreditava comer peixe, quando o prato era frango. Enquanto alguns lavavam roupas, após o almoço, São Pedro, o velho de barba grande, calvo e com fisionomia que lembra o primeiro Bispo de Roma, naquele dia, lavava as partes íntimas na pia. Na frente de todo mundo. Enquanto o “santo, guardião das chaves do céu” tomava um “banho de gato”, um rapaz de aproximadamente 23 anos passava em nossa frente fumando um cigarro de maconha. Os seguranças não viram. Por volta das 15h um homem, com uns 27 anos, sem camisa, toalha no ombro, o corpo ainda meio molhado, sabão de barra e bucha na mão gritou irritado: “Esses guardas estão pior do que polícia, toda hora um bacoleijo”. No alojamento 14 do bloco “L” um homem era revistado por três guardas, um de moto e dois a pé, todos equipados com cassetete de plástico e revólver. O quarto do homem era revirado, e com ele foram encontrados dois vidros de conhaque Presidente. Como não é permitido bebidas e drogas no albergue, imediatamente os guardas pediram para que recolhesse todas as suas coisas e o acompanharam até a portaria. No chão do banheiro, pedaços de jornais, usados no lugar de papel higiênico. São doze privadas. A descarga funciona em três. Pelas 16h era possível sentir o mau cheiro do lado de fora. Algumas privadas estavam entupidas. No banheiro masculino existe apenas uma ducha com água quente, no box adaptado para deficientes. Os outros albergados têm que tomar banho nos outros boxes. Sem duchas, contam apenas com um buraco na parede, de onde sai água fria. O coordenador do Albergue Conviver diz que a manutenção do banheiro é feita por uma empresa terceirizada, contratada pelo GDF, porém atribui as péssimas condições à falta de educação dos usuários.

anos, e Atanael Santos, 19, circulavam entre os pavilhões a convidar os albergados a irem prestar suas homenagens à divindade. Dois ônibus estacionados no pátio, um iria para o Guará, o outro para Ceilândia. Ambos eram da Igreja Universal do Reino de Deus. Segundo Atanael, o almoço é financiado pelos próprios fieis da igreja. As roupas também são colhidas entre eles. 24 horas depois de entrarmos, era hora de sair do albergue. O desalbergamento é um processo menos demorado do que a entrada. Nada de revista pessoal ou constrangimentos. “Está indo pra onde?” é o máximo de burocracia na saída. Basta se dirigir à recepção com o colchão e o cobertor e pedir a saída. Um funcionário disse que os colchões são repassados para outras pessoas que se albergam. Alison Pereira revela: quem fica nas imediações do Conviver “não são albergados”. Segundo ele, “a região próxima é fruto de uma invasão” e essas pessoas estão em situação de “vulnerabilidade”. O coordenador explica que algumas pessoas podem ficar até 90 dias no albergue, e dependendo do caso, um pouco mais. “Cada caso é analisado separadamente”, afirma. Do lado de fora do albergue, no Areal, pessoas continuavam a pedir esmolas. Do lado de dentro, a esperança em arrumar trabalho, moradia, retornar para casa, ter uma vida melhor. Muitos não conseguem. E como Paulo Gomes, acabam indo viver do lado de fora. artefato



Lázaro, albergado

Sebastião, 52 anos, saiu do Maranhão há três meses para trabalhar. Primeiro trabalhou em uma lavoura de algodão em Goiás. “Os produtos utilizados na lavoura me intoxicaram. Fiquei muito doente.” De cama por alguns dias, “o patrão não mandava nem comida”. A diária era média de R$60. Resolveu pedir as contas e, como o “João de Santo Cristo” do Faroeste Caboclo de Renato Russo, veio para Brasília. Chegou doente, procurou o serviço social do governo e foi encaminhado para o albergue. A principal dificuldade que Sebastião vem enfrentando é conseguir trabalho com carteira assinada e alugar uma casa. “Quando falo que estou no albergue não me dão o emprego.” Mas garante que não irá desistir. “A passagem de volta eu não quero, se fosse pra voltar do jeito que vim, com as mãos abanando, tinha ficado por lá mesmo.” Empreiteiras passam todos os dias de manhã no albergue, selecionando pessoas para trabalharem nas obras. “Pagam uma mixaria, média de R$35 a R$40, acho um abuso”, reclama. Outro homem submetido à realidade dos albergados é Lázaro. Envolveu-se em uma briga no centro de Taguatinga e acabou matando um homem. Cumpriu parte da pena em regime fechado e agora está em prisão domiciliar. Saiu da Papuda no dia 1º de maio. Como não tem residência na capital foi obrigado a se albergar, pois é necessária a referência domiciliar. É um dos que trabalha nas obras e recebe os cerca de R$40 por dia. “Na cadeia não é muito diferente daqui”, afirma. “A única diferença é que aqui a comida é boa e não precisamos dormir no chão, mas o banheiro e a estrutura...”.

    

cidadania

“Na cadeia não é muito diferente daqui. A única diferença é que aqui a comida é boa e não precisamos dormir no chão.”

Na edição de março de 2010, o Artefato já mostrava que o Albergue Conviver é fonte de polêmica. Reportagem ouviu os comerciantes e moradores próximos à instituição. Eles se sentem incomodados e pedem a retirada do albergue para outra localidade. Até abaixo-assinados foram feitos para tentar removê-lo do Areal.

artefato



infográfico

Cadê as vagas? Maíra Pinheiro

A

20 quilômetros do centro de Brasília, Águas Claras é uma cidade de concreto. Projetada pelo arquiteto e urbanista Paulo Zimbres, começou a ser construída na década de 1990 e tornou-se a 20a região administrativa do DF em 2003. Hoje, com cerca de 145 mil habitantes, a satélite é o maior canteiro de obras da América Latina. Com uma população jovem, a tendência de Águas Claras é crescer cada vez mais. Segundo a Codeplan, a cidade tem uma taxa de crescimento anual de 20,8%, muito acima da média do Distrito Federal. Esse crescimento excessivo tem causado vários problemas. Um deles é a falta de estacionamentos públicos. O caos é notório e foi conferido pela equipe do Artefato. Depois de muitas tentativas de informações com departamentos de trânsito e órgãos oficiais sobre o número de vagas em relação ao de carros, a reportagem fez um trabalho independente de apuração, para ter conhecimento do tamanho do problema.

Carros demais e estacionamento de menos obrigam os moradores de Águas Claras a improvisarem. Mas “jeitinho” pode custar caro Avenidas das Araucárias e Castanheiras Vagas residencias: em media 6 vagas por entrequadras Aproximadamente 1030 vagas Vagas comerciais: em média 53 vagas por comerncial Aproximadamente 265 vagas comerciais Águas Claras Shopping Estacionamento: 70 vagas As vagas, que deveriam ser rotativas, são usadas pelos funcionários, que as ocupam o dia inteiro. Sem ter como estacionar, os clientes param em fila dupla Preços: de R$ 2,00 a R$ 5,00 O Valet Park fica na terra, mas custa R$ 4,00

Confira!

Metrô Estação Aguas Claras Estacionamento público: 75 vagas

Shopping Quê Estacionamento privado: 160 vagas R$ 2,00 as 3 primeiras horas + R$ 2,00 as horas adicinais

Na contramão: infração média. Multa de R$ 85,13 e 4 pontos na carteira

Em esquinas e em cima de linhas transversais: infração média. Multa de R$85,13 e 4 pontos na carteira Afastado mais de um metro da guia do meio-fio: infração grave. Multa de R$ 127,69 e 5 pontos na carteira. Remoção de veículo

10

Junto ou sobre hidrantes de incêndio, registro de água ou tampas de poços de visita de galerias subterrâneas: infração média. Multa: R$85,75 e 4 pontos na carteira

Trancando outro carro: infração média. Multa de R$ 85,13 e 4 pontos na carteira

Em viadutos, pontes e túneis: infração grave.

Multa de R$127,69 e 5 pontos na

Em fila dupla: infração grave. Multa de R$ 127,69 e 5 pontos na carteira Em área de cruzamentos de vias, prejudicando a circulação de veículos e pedestres: infração grave. Multa de R$127,69 e 5 pontos na carteira

No acostamento: infração leve. Multa de R$53,20 e 3 pontos na carteira Em subida ou descida, sem freio devido ou calço de segurança, no caso de veículos que pesam mais de 3,5 mil kg: infração grave. Multa de R$127,69 e 5 pontos na carteira

Em locais e horários proibidos especificamente pela placa de Proibido Estacionar: infração média. Multa de R$85,13 e 4 pontos na carteira

Bloc apar 94 ap de 4 188

Bloc apar 56 ap de 4 112 v


A falta de vagas pode mexer com o seu bolso

Em um quarteirão há, em média, 70 vagas públicas Cada quateirão tem 4 blocos. Veja um quarteirão típico:

Bloco 2: 2 vagas por apartamento 94 apartamentos, todos de 4 quartos 188 vagas de garagem

Bloco 3: 1 vaga por apartamento 288 apartamentos, de 2 e 3 quartos 288 vagas de garagem

infográfico

Aproximadamente 26 mil veículos circulam por Águas Claras diariamente

Fotos: Iasmin Costa e Tuane Dias

Bloco 4: 1 vaga por apartamento 82 apartamentos, de 2 e 3 quartos 82 vagas de garagem

Bloco 1: 2 vagas por apartamento 56 apartamentos, todos de 4 quartos 112 vagas de garagem

Estacionar na calçada, sobre faixa de pedestre, ciclovia, balão, ao lado ou sobre canteiros centrais, gramados ou jardim público pode ser leve: só 5 pontinhos na carteira e multa de R$ 127,69 Parar onde houver placas de estacionacionamento regulamentado, como as vagas para idosos e deficientes, é uma infração leve, sujeita a multa de R$53,20 com 3 pontos na carteira. Isso além da falta de respeito... Se não há mesmo onde estacionar, melhor pensar bem antes de parar onde os veículos trafegam: estradas, rodovias, vias de trânsito rápido e com acostamento. A paradinha pode render 7 pontos, multa de R$191,54 e o carro guinchado.

Impedindo os outros carros de trafegarem: infração média. Multa de R$ 85,13 e 4 pontos na carteira Em meio-fio rebaixado: infração média. Multa de R$ 85,13 e 4 pontos na carteira

Em locais e horários de estacionamento e parada proibidos pela placa Proibido Parar e Estacionar: infração grave. Multa de R$127,69 e 5 pontos na carteira

Nas paradas de ônibus ou, onde não há ponto, no intervalo entre dez metros antes e depois do marco do ponto: infração média. Multa de R$ 85,13 e 4 pontos na carteira

Não basta deixar o carro em local permitido. Tem que parar certo. Estacionar o carro afastado da calçada, de cinqüenta centímetros a um metro, é infração leve, que pode render multa de R$53,20 e 3 pontos na carteira.

Tuane Dias

11


BRASÍLIA

segundo Sylvia Plath

BRASÍLIA Will they occur, These people with torsos of steel Winged elbows and eyeholes Awaiting masses Of cloud give them expression, These super-people!And my baby a nail Driven, drive in. He shrieks in his grease Bones nosing for distances. And I, nearly extinct, His three teeth cutting Themselves on my thumb And the star, The old story.

Juliana Campêlo*

B

rasília é uma cidade nova de gênese peculiar e ar cosmopolita. As características sugerem interpretações diversas e contraditórias, responsáveis por construir a imagem da capital do Brasil. Utopia de JK; a cidade sem esquinas; expoente do modernismo curvilíneo de Niemeyer; ponto convergente cultural do país; ilha da fantasia; centro do poder político; fonte de corrupção; patrimônio da humanidade; capital do rock... Essas são algumas das versões difundidas. Mas há outra tradução pouco conhecida da cidade. “Brasília” é nome de um dos últimos poemas de Sylvia Plath e retrata o período de edificação do Planalto Central. Concebida em 1962, cerca de dois meses antes de a artista norte-americana se suicidar, a obra mescla os sentimentos da poetisa com a aura de esperança em que estava envolvido o nascimento da capital. A lua indiferente, os ossos e a redoma são elementos do poema e também comuns aos escritos dela. Ao cometer suicídio em 1963, aos 30 anos, a escritora deixou o projeto original de seu livro “Ariel” e também uma série de poemas soltos, dentre os quais estava “Brasília”. Após a morte de Sylvia, Ted Hughes, marido de Plath e também poeta, foi responsável por encaminhar a publicação das obras da mulher. Só o livro “The Collected Poems”, de 1981, revelou ao público todos os poemas redigidos nos últimos sete anos de vida de Sylvia Plath. Por ter sido escrito em dezembro de 1962, “Brasília” é parte dessa obra que a tornou a primeira poeta a ganhar o prêmio Pulitzer póstumo da história. Não se sabe ao certo como aconteceu o contato de Sylvia Plath com a cidade que surgia. Brasília já ganhara fama mundo afora desde as primeiras ações de Juscelino Kubitschek em favor da nova

12

capital. Em “Brasília”, Plath une o evento histórico e a própria emoção, assim como faz no poema “Holocausto” e “Febre 40º”.

“Poética do suicídio”

A psicanalista e autora do livro “A poética do suicídio em Sylvia Plath”, Ana Cecília Carvalho, aponta o cuidado essencial para ler a obra de Plath. Segundo a psicanalista, ao tomar conhecimento do suicídio de algum escritor é comum as pessoas buscarem no texto pistas sobre a razão do ato mortal. “Parafraseando Freud, costumo dizer que, nesses casos, ‘a sombra do suicídio do autor cai sobre o texto’, e torna-se difícil achar um ponto de equilíbrio entre o dado biográfico e a construção textual”. Ana Cecília buscou investigar a possível relação entre o processo criativo e o auto-extermínio da escritora. “Minha pesquisa apenas mostra a existência de limites no processo criativo. Se a escrita é remédio, para alguns ela pode ser também veneno - ‘pharmakon’, como diziam os gregos -, mostrando que há um aspecto funcional e outro disfuncional nesse processo”, disse. No artigo “Limites da sublimação na criação literária”, Ana Cecília aponta as falhas da linguagem para manifestar os sofrimentos psíquicos. “Talvez possamos ver no suicídio de Plath uma tentativa desesperada para conter, em ato, o transbordamento dos elementos dolorosos que a escrita durante algum tempo tinha conseguido conter e organizar”, explica. Sobre o poema “Brasília”, a escritora confessa nunca o ter visto antes, mas percebe a presença sombria da melancolia. “Como acontece nos últimos poemas de Plath, o ‘eu lírico’ evoca a morte e a desesperança. Alguns críticos incluem esse poema no que chamam de ‘poemas de morte’ da autora, em que a linguagem parece ter perdido

In the lane I meet shep and wagons, Red earth, motherly blood. O You who eat People like light rays, leave This one Mirror safe, unredeemed By the dove’s annihilation, The glory The power, the glory.

sua função de ordenação de sentido (como se pode ler no poema ’Words’, por exemplo)”, escreve por email a psicanalista. Para Ana Cecília, “a escrita de Plath ressoa única, atraindo e repelindo qualquer interpretação que se tente sobre ela”. Ela prefere não insistir em uma tradução correta e final. “Como psicanalista, acostumei-me a trabalhar com a inexatidão, com a incerteza e com o fato de que não existe um ‘gabarito’ de correção das nossas interpretações.”

Traduções

Traduzir uma obra para outra língua não é tarefa fácil e não depende somente do domínio da linguagem. “A tradução ao pé da letra não monta por si só metáforas em português”, afirma Rogério da Silva Sales, professor do curso de Letras da Universidade Católica de Brasília (UCB). “Há uma perda da mensagem original, além da presença do discurso próprio do tradutor inerente ao processo”, justifica. Deste modo, em um exercício de tradução livre, sem o compromisso de fechar significados, Rogério aventura-se na interpretação do poema “Brasília”. Segundo ele, no verso da 3ª estrofe, “And my baby a nail / Driven in, driven in. / He shrieks in his grease”, a filha seria Brasília,

artefato


Fotos: Thiago Sabino

BRASÍLIA Ocorrerão Estas pessoas com peito/torso/busto de aço Cotovelos e olhos alados Povo na expectativa De uma nuvem que dê a eles expressão Estas super-pessoas!

Poema da autora norte-americana remete à formação da capital

E meu bebê um prego Adentro, adentro Ele grita/ri em seu unto Ossos procurando por distância E eu, quase extinto, Seus três mordazes dentes Eles no meu polegar E a estrela, A velha estória Na passagem/vereda/caminho eu encontro ovelhas e [carroças/vagões Terra vermelha, sangue maternal Oh Você que come/se alimenta Pessoas como raios de sol, deixam Este Salvos do/pelo espelho, não resgatados/redimidos Pela aniquilação da pomba/também símbolo de paz A glória O poder, a glória. uma cidade que nasce suja do barro vermelho, deslocada no Planalto Central. E “By the dove’s annihilation, / The glory, / The power, the glory” representaria a capital como símbolo de esperança, poder e glória, “e ao mesmo tempo um pedido para que se liberte de tudo isso e seja apenas uma cidade”, explana Rogério. Seguindo a proposta de percepção livre, os professores de inglês do Centro Interescolar de Línguas de Ceilândia (CILC) Jerson de Moura e Rejane Vieira propõem outra versão sobre “Brasília”. “O assunto realmente é a construção da cidade. Creio que a autora faz uma analogia entre o bebê, primeiro estágio da vida humana, e o prego, matéria-prima de uma construção. ‘He shieks in his grease’ pode ser referente ao prego que entra e se encolhe devido às marteladas”, diz Jerson. Rejane Vieira deduz a alusão de Sylvia Plath aos três riscos feitos na planície durante a demarcação do Plano Piloto no verso ‘His three teeth cutting’. “Há também certa espiritualidade quando Plath escreve ‘O You who eat’ e ‘By the dove’s annihilation’, que também pode se dirigir ao espírito santo desenhado por Athos Bulcão”, conta a professora. A professora de letras da UCB Georgina Maria Campos preparou uma tradução mais literal do poema, especialmente para o Artefato. Confira a versão inédita acima.

artefato

Visão estrangeira

Em uma rápida pesquisa eletrônica com as palavras-chave “Sylvia Plath” e “Brasília”, é possível ainda encontrar uma analogia entre o poema e a capital do Brasil feita pelo escritor e pesquisador do Gay Men’s Health Crisis in New York (GMHC) John Guidry. No blog de sua autoria (truthandrocketscience.wordpress.com), John publicou em 2009 quatro postagens reflexivas sobre obras literárias e musicais e sua relação com Brasília, entre elas o poema de Plath.“São histórias do meu coração e profundamente ligadas a minhas próprias paixões”, escreve John no texto de abertura. No início da década de 90, enquanto realizava as pesquisas do doutorado em ciências políticas, John Guidry frequentemente visitava o aeroporto de Brasília. Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro, Pará, Amazonas, Brasília e Belém foram as cidades por ele visitadas, sendo a última fonte principal no desenvolvimento de seu estudo. Em Brasília, porém, só conheceu o aeroporto Juscelino Kubitschek. “Para mim, que gastei horas e horas no aeroporto de Brasília ano após ano (para ir a Belém é preciso fazer escala), ‘Brasília’ foi um poema perfeito”, comentou o escritor por email. Para Guidry, em “Brasília”, Sylvia Plath aplica no poema o conceito de futuro, a arquitetura e a mitologia nacionalista existente como plano de fundo durante a construção da cidade. “Esta modernidade modelada por Brasília era o mundo em que a poetisa se encontrava ao escrever a obra, e incorpora tanto a cidade que estava sendo construída quanto o nascimento de seu filho”, interpreta John. Segundo o blogueiro, as duas primeiras estrofes do poema se referem à escultura de Bruno Giorgi “Os Guerreiros”, mais conhecida como “Os Candangos”, erguida em 1959. John destaca em sua página on-line o discurso nacional da

época, de transformar os camponeses pobres, símbolos do passado colonial e agrário do Brasil, nos novos pioneiros a descobrir e ocupar o interior vazio do país. “Ao contrário dos escravos norte-americanos que construíram a Casa Branca e os edifícios E.U. Capitol, os candangos foram celebradas como parte integrante da visão futurista de Brasília.” Ao ler o poema, o pesquisador e admirador de Plath afirma sentir “humildade”. “Todos os nossos sonhos grandiosos ficam à deriva das nossas intenções em algum ponto, tornam-se próprios. Brasília em si nunca chegou a ser a modernidade que pretendia. O lugar real em que vivem os brasilienses não é nada parecido com os símbolos e imagens da Plath - tornou-se lugar de ‘Faroeste Caboclo’, a música de Renato Russo”.

A voz de Ted Hughes

Trinta e cinco anos após a morte de Sylvia Plath, Ted Hughes escreve o livro “Birthday Letters” (“Cartas de Aniversário”), espécie de auto-defesa dos acontecimentos passados em que é considerado culpado por muitos pelo suicídio da esposa. No total, 88 poemas compõem o livro, sendo 86 dirigidos à ex-esposa, e um deles também se chama “Brasília”. Contudo, ao invés de sugerir uma cidade simbólica unida à emoção, a “Brasília” de Hughes oferece um recorte sobre a separação do casal. Obras da autora: The Colossus and Other poems (1960), coletânea de poemas; The Bell Jar (1963), romance; Ariel (1965), publicado por Ted Hughes; Crossing the water (1971); Johnny Pannic and the Bible of Dreams (1977), contos e prosa; The Collected Poems (1981); Ariel (2004), publicado pela filha de Sylvia Plath, Frieda Hughes, seguindo o projeto inicial da autora. artefato *Quinto semestre de jornalismo da UCB, especial para o Artefato

13


política

Minoria contra a farra do 14° e 15° Carlos Gandra / CLDF

Apenas cinco dos 24 deputados distritais preferiram não receber os dois salários extras

Chico Leite é um dos integrantes da CLDF que abriu mão dos extras

Thiago Baracho

U

m debate sobre gastos públicos tem mobilizado os parlamentares do Distrito Federal. A discussão é até que ponto os benefícios dados aos deputados são utilizados com retorno à população, tornando-se então investimento, ou se essas vantagens estão sendo mal utilizadas, trazendo prejuízo aos cofres públicos. A responsabilidade com a “coisa pública” não depende de sigla partidária nem de ideologia política. Na Câmara Legislativa do Distrito Federal, cinco deputados abriram mão de dois salários extras no ano: Cláudio Abrantes (PPS), Israel Batista (PDT), Cabo Patrício (PT), Raad Massouh (DEM) e Chico Leite (PT). Chico Leite não quis receber os 14° e 15° por acreditar que é incoerente receber mais dois salários quando o povo, que ele representa na Casa, recebe 13 salários ao ano. E ainda defende que ocupantes de cargos eletivos nem recebam remuneração. “Sou contra a figura do ‘profissional da política’. No meu caso, desde que assumi o primeiro mandato, em 2003, abri mão do 14º e 15º e da remuneração por convocações extraordinárias. Continuo recebendo pelo cargo que

14

conquistei por concurso público há mais de 20 anos”, afirma ele, que é promotor de Justiça. O deputado Raad Massouh, do Democratas, abriu mão dos “extras” desde quando era suplente na CLDF e tem um projeto de lei, que será votado ainda neste semestre, para cancelar este beneficio dos parlamentares. “Durante os três meses de campanha, em 2010, abri mão da verba indenizatória. Em janeiro, por ser um mês de recesso, também não quis receber essa verba. Não achei justo ganhar quando o trabalho era mais interno, de gabinete”, explica. Como os ganhos com atitudes como essas extrapolam os valores monetários, fica difícil mensurar o real lucro dessas iniciativas. Chico Leite acredita que se todos os colegas aderissem à medida, “é indubitável que a Câmara Legislativa seria mais valorizada e a população se aproximaria mais dos seus representantes parlamentares - para cobrar, fiscalizar, denunciar ou sugerir. Com isso, sem dúvida, a gestão pública melhoraria significativamente, aproximando-se cada vez mais do que a sociedade espera do Estado e de seus poderes”. Se todos os deputados distritais deixassem de receber os salários extras, a economia para os

cofres públicos seria de R$ 1 milhão nos quatro anos de legislatura. E essa é apenas uma atitude para deixar de investir mal o dinheiro público. Outras atitudes mais simples, porém não menos importantes, também diminuem o desperdício de dinheiro. Entre elas, adotar medidas de redução no consumo de energia, água e telefone; reduzir o número de cargos comissionados e ampliar a participação dos servidores de carreira na ocupação deles. Com o novo reajuste, aprovado pelos próprios distritais, agora eles recebem por mês a bagatela de R$ 20.025,00, aumento de 61% que começou a valer a partir do dia 1° de fevereiro. Além do salário mensal existe uma verba indenizatória que os deputados podem gastar, de até R$ 11.250,00/mês para manter o gabinete, pagar gasolina e outras despesas. O que não for utilizado no mês é acumulado para o mês seguinte, com limite de 90 dias. Em teoria, esses gastos podem ser acompanhados pelos eleitores na internet. Porém, o espaço destinado na área “Transparência” do site da Câmara Legislativa tem apenas informações da legislatura passada. Dos 14 listados, apenas cinco são desta legislatura e quatro ainda não disponibilizam suas contas, comprovantes e notas fiscais no portal. A alternativa é acompanhar o que é gasto no Diário Oficial da Câmara Legislativa do Distrito Federal.

E a maioria?

Na outra ponta do debate estão os deputados que apoiam a existência de tais benefícios e eles são maioria na Casa. O deputado Chico Leite não tem medo de ser vítima do preconceito de seus pares na CLDF pelas atitudes de redução de gastos. “Não Você acompanha tenho nenhum receio de ser perseguido por os gastos dos adotar princípios étideputados distritais cos. Cada parlamenneste endereço: http:// tar tem autonomia www.cl.df.gov.br/cldf/ para gerenciar seu gatransparencia binete da forma que bem entender. O papel de fiscalização e julgamento, nesse caso, cabe à sociedade”, garante. Espera-se que a política esquematize diretrizes que visem o bem de toda sociedade, considerando que esse bem, em sua síntese, dependa de uma política onde se prioriza a melhoria social, a diminuição da desigualdade de classes, a oferta de um serviço satisfatório de educação, saúde, geração de empregos, saneamento básico, promovendo debates, levando sempre em consideração a diversidade de opiniões e de posicionamentos ideológicos. Mas principalmente respeitando a probidade administrativa. Só assim o custo-benefício de um parlamentar se justifica. artefato

@

artefato


Augusto Dauster

A

Constituição Federal de 1988 define no artigo 1º: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Com essa simples frase, ficam garantidas a democracia representativa, na qual a sociedade elege vereadores, deputados, senadores, prefeitos, governadores e presidentes para governá-la, e a democracia direta, por meio de mecanismos como plebiscito e referendo, onde o cidadão participa diretamente nas decisões políticas. No entanto, muitas vezes os representantes eleitos se mostram incapazes de legislar e agir conforme a vontade soberana da população. Ao enxergarem um estado assolado pela corrupção, impunidade e má utilização da verba pública, setores da sociedade resolveram então exercer pressão para que haja uma mudança na forma de se fazer política no Brasil. José Antônio Moroni, do Instituto de Estudos socioeconômicos (Inesc), questiona a falta de incentivo aos mecanismos de decisão popular. “No sistema brasileiro, nós temos uma supervalorização da representação, com poder ilimitado e quase nada de democracia direta.” A mais recente dessas iniciativas foi o relançamento, em março, da Frente Parlamentar pela Reforma Política com Participação Popular, da qual participam diversas entidades,

“Quem está com privilégios não quer perdê-los e esse grupo privilegiado é maioria no Congresso.” artefato

Carmem Silva

Brizza Cavalcante / Agência Câmara

Cansada de esperar o Legislativo, população resolveu assumir as rédeas do processo

entre elas o Inesc, na Câmara dos Deputados. Composta por parlamentares e também pela sociedade civil organizada, o principal objetivo da frente é ampliar ainda mais o debate sobre a reforma política, incluindo a população nas esferas decisórias do Estado. A reforma política é assunto recorrente nos debates do país. Este ano, no Congresso Nacional, foram instituídas duas comissões especiais para discutir a modificação do sistema político nacional. Câmara e Senado têm visões distintas sobre as mudanças nessa área. Para a frente, nenhuma das duas propostas é abrangente o bastante. Segundo o cientista político Leonardo Barreto, as propostas apresentadas pelo Congresso, até o momento, não podem ser definidas como uma reforma política. “Todas as medidas estão relacionadas ao sistema eleitoral e há outros aspectos do sistema político que poderiam ser discutidos, como a relação Legislativo X Executivo e o modelo do Orçamento”. Tendo em vista essa fragilidade no processo iniciado pelo Parlamento e a importância da participação da sociedade na discussão, o senador Rodrigo Rollemberg (PSB-DF), representante do movimento no Congresso, é taxativo sobre o alcance das mudanças. “Nós só teremos uma profunda reforma política, que radicalize a democracia, que amplie os instrumentos de democracia direta e participativa, se tivermos o envolvimento da população”. Segundo os integrantes da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político, o principal impedimento para a aprovação de uma reforma ampla são os próprios políticos, que temem perder o poder que possuem. “Quem está com privilégios não quer perdê-los e esse grupo privilegiado é maioria no Congresso Nacional”, afirma Carmem Silva, que contesta também a baixa representatividade de mulheres, negros, indígenas, homossexuais e outras minorias no Legislativo. Já o senador Randolfe Rodrigues (PSol-AP), também representante da frente, defende que, “se não houver participação popular e se não inundarmos as ruas com mobilizações, a reforma política pode até piorar o nosso sistema”.

política

Reforma política: anseio do povo, dever de todos

A deputada federal Luiza Erundina quer mais mulheres no Parlamento

Longa espera

“Há muito tempo que a sociedade espera por uma verdadeira reforma política, mas ela tem ficado só no âmbito do Congresso”, defende a deputada federal Luiza Erundina (PSB-SP). Para ela, “a reforma política pela qual lutamos e que a sociedade espera é a que garanta o estabelecido pela Constituição: a democracia direta e a democracia participativa”. A ex-prefeita de São Paulo também reclama da participação feminina. “Nós, mulheres, somos menos de 9% na Câmara, pouco mais de 10% no Senado. Já o negro é menos ainda e os índios são inexistentes na Casa. É preciso corrigir essa distorção.” Erundina acredita ainda que este momento da reforma é apenas o início de uma profunda rediscussão da política brasileira. “Temos que repensar o Estado. O pacto federativo, a distribuição de poder entre as três esferas: município, estado e União. Há uma enorme concentração de poder na União, muito menos nos estados e um esvaziamento total nos municípios”.

Congresso x movimentos sociais

Apesar de dissonâncias entre as propostas do Congresso e as dos movimentos sociais, existem também similaridades no que diz respeito ao processo eleitoral, como a votação

15


política 16

@

“A federação permite que os partidos com maior afinidade ideológica e programática Plataforma dos Movimentos Sociais Pela Reforma do Sistema Político unam-se para atuar www.reformapolitica.org.br com uniformidade em todo o país”, define a carta proposta dos Congresso Nacional movimentos sociais. www.senado.gov.br/noticias/especiais/reformapolitica/ Já Leonardo Barreto, mesmo considerando Câmara Federal www2.camara.gov.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/ essencial o fim das coligações, para que haja especiais/54a-legislatura/reforma-politica um “saneamento do sistema partidário”, em lista fechada, intercalada entre homens e se posiciona contra o mecanismo. “Não posso mulheres. Segundo essa proposta, a popula- aprovar as federações, um subterfúgio inventação votaria em uma lista pré-definida pelos do para que a associação eleitoral entre partidos partidos. O total de votos da legenda definiria pudesse continuar em vigor.” o número de eleitos a partir da lista. O financiamento público de campanha é outro ponto Democracia direta em comum. Para Leonardo Barreto, é possível Um dos principais eixos defendidos pelos que as propostas sejam desenvolvidas parale- movimentos sociais é a democracia direta, calamente, porém em algum momento terá que paz de gerar ferramentas por meio das quais a ser feita uma opção entre as duas. “Por isso, é população participa ativamente no processo de importante para os movimentos sociais apoia- decisão. A grande crítica é a inviabilidade de o rem fortemente os pontos de convergência Estado lidar com uma gama ampla de consulentre as suas propostas e as do Senado para tas. Questionado sobre essa possibilidade, Bargarantir um ganho, pelo menos, parcial”, de- reto defende a aplicabilidade da proposta: “É fende o especialista. possível que esse tipo de medida prospere, sim. Mesmo havendo propostas similares entre o Uma forma de diminuir os custos seria casar os Congresso e a plataforma, existe um déficit nas referendos e plebiscitos com as eleições regulaproposições parlamentares com relação ao sis- res, como é feito nos Estados Unidos”. tema partidário. Os movimentos sociais defenO cientista político ainda considera possídem que haja prévias eleitorais dentro dos par- vel que estados e municípios façam também tidos para definir quem disputará as eleições. consultas populares, por considerar a medida Já o Congresso não contempla essa questão. como educação política. “É um ponto muito Para Barreto, esse é um ponto polêmico, importante porque as consultas populares, pois “os partidos são instituições de direito além do aspecto decisório, possuem uma forte privado e, a priori, podem escolher os méto- característica pedagógica, estimulando as pesdos para a tomada de decisões internas, como soas a pensarem sobre assuntos substantivos e a composição de uma lista, por exemplo”. Mas, ligados à vida da sociedade”. segundo o analista, “sem mecanismos de deO presidente do Tribunal Superior Eleitoral mocracia interna, os partidos tendem a se tor- (TSE), Ricardo Lewandowski, defendeu, no nar oligarquias”. Diante desse perigo, Barreto dia 14 de abril, que o TSE está preparado para considera importante que cidadãos pudessem lidar com ferramentas de participação popuse candidatar às posições na lista em primárias lar, como referendos e plebiscitos, desde que com a participação de todos os filiados. haja alguns meses para organizá-la. “Com o progresso da informática aplicado ao processo Fim das coligações eleitoral, podemos aplicar essas ferramentas Como mecanismo que leve ao fim das coli- de forma mais constante”, explicou o ministro. gações partidárias, a frente defende que, em Na legislação atual, para se levar um projeto vez de coligações, os partidos que desejem se de iniciativa popular para votação no Congresso unir para uma eleição se tornem uma federa- é necessária a obtenção de assinaturas referenção. Para que seja aceita, a federação deverá se tes a 1% do eleitorado nacional. Para a deputada unir ao menos quatro meses antes da eleição e federal Erika Kokay (PT-DF), é necessário endurar por pelo menos três anos após. Durante contrar uma forma de facilitar o uso da iniciativa esse período, os partidos federados deixariam popular. “Instrumentos como plebiscito e refede funcionar isoladamente e atuariam como rendo têm que ser desburocratizados.” Kokay vai um partido único. além: “Projeto de iniciativa popular tem que ter

Para saber mais e acompanhar as propostas para a Reforma do Sistema Político, acesse:

prioridade e tem que, inclusive, trancar a pauta se não for avaliado em determinado período”. Outra proposta que merece destaque é o “veto popular”. O conceito é que a ferramenta exista para o caso de a população discordar de alguma lei que seja aprovada pelo Parlamento. O funcionamento seria o mesmo das leis de iniciativa popular. Atingindo-se o número necessário de assinaturas, a lei em questão seria, automaticamente, submetida a referendo popular. “A ideia é vetar assuntos que firam os direitos fundamentais e que o povo possa barrar assuntos que sejam contrários a ele”, explica o integrante da plataforma Daniel Monteiro Lima. Para o Leonardo Barreto a medida pode ser adotada, “a partir da criação de um novo dispositivo constitucional prevendo esse instituto”. Além das iniciativas citadas, os movimentos sociais possuem também propostas como: o fim da imunidade parlamentar, das votações secretas nos legislativos e do foro privilegiado, exceto em casos em que a apuração refira-se ao estrito exercício do mandato ou do cargo.

Câmara ouve sociedade

Ao contrário do que vem acontecendo no Senado, a Comissão Especial para a Reforma Política da Câmara tem se mostrado mais disposta a escutar a sociedade quanto ao assunto. Mesmo não possuindo propostas definidas ainda, a Casa agendou uma série de audiências públicas no primeiro semestre de 2011 para debater o tema. A primeira audiência ocorreu no dia 29 de abril em Goiânia. Confira as próximas datas no quadro.

LOCAL

DATA

Aracaju (SE) João Pessoa (AL) Florianópolis (SC) Belo Horizonte (MG) Curitiba (PR) Salvador (BA) Rio de Janeiro (RJ) São Paulo (SP)

13/5 16/5 19/5 23/5 27/5 30/5 3/6 10/6

Próximos passos

No dia 25 de abril chegou ao fim o período de contribuições da população para a criação do Projeto de Lei de Iniciativa Popular para a Reforma do Sistema Político. Daí em diante, a proposta será finalizada, apresentada à sociedade e passará pela coleta de assinaturas para que possa ser levada à votação no Legislativo. Já a Comissão da Reforma Política do Congresso terá até o dia 20 de maio para transformar as propostas apresentadas em projeto. artefato

artefato


saúde O casal de aposentados Políbio e Mariana testa um dos aparelhos em Taguatinga Sul. Abaixo, placa explicativa destruída: manutenção fica na conta das administrações regionais

Fotos: Pericles Lugo

Malhação ao ar livre Péricles Lugos (texto e fotos)

A

distância e o preço não são mais desculpas para os sedentários do DF não praticarem exercícios. Em 35 locais da capital, tais justificativas deixaram de ter validade desde que foram implantadas as Academias da Terceira Idade (ATIs). Embora alguns já apresentem sinais de pichação e vandalismo, os equipamentos de musculação ao ar livre, presentes nos Pontos de Encontro Comunitário (PEC), passaram a fazer parte da rotina dos brasilienses e ainda conquistam adeptos. Num domingo de sol em Taguatinga Sul, o casal de aposentados Políbio Alves, 73 anos, e Mariana Gomes, 70, estreava nos aparelhos, por volta das 9h. “É a primeira vez que viemos”, conta o ex-técnico judiciário.

artefato

Academias da Terceira Idade estão em 35 regiões do DF e se firmam como opção para muitos

“Vamos vir uma ou duas vezes por semana agora”, emendou Mariana, ex-professora que optou por testar os equipamentos mesmo de chinelos e com roupas não adequadas. Feitos de metal dobrado e pintados em duas cores (em geral branca e azul ou amarela e verde), os módulos ganharam o nome de ATI porque não têm pesos, o que facilita o uso por pessoas de qualquer idade. Em cada aparelho há uma explicação dos músculos trabalhados e da maneira correta de fazer os exercícios. A implantação atende demandas das administrações regionais, que também são as responsáveis por separar recursos para manutenção e recuperação dos aparelhos. Assim, parte do trabalho de zelar pelos equipamentos cabe aos usuários. As academias

são compostas por um kit de aparelhos aprovados por entidades especializados em ginástica para a melhor idade. O custo de implantação é de cerca de R$ 30 mil e a fabricação fica por conta de uma empresa paranaense que trabalha há 15 anos no ramo. De acordo com informações da assessoria de comunicação da Secretaria de Obras, a primeira PEC entregue foi a da Praça da Vitória, na Vila Cauhy, no Núcleo Bandeirante. “Hoje são 35, em locais como Sobradinho, Itapoã, São Sebastião, Sudoeste, Vila Telebrasília, Gama, Riacho Fundo, Samambaia, Ceilândia e Cruzeiro”, lista a nota da assessoria. As ATIs são compostas por vários equipamentos como: alongador, esqui, remada sentada, rotação vertical com rotação diagonal, simulador de cami-

nhada e cavalgada, além de surf de pernas e multiexercitador.

Professores?

As academias ao ar livre têm a vantagem de serem acessíveis, mas só isso não é o suficiente, segundo especialistas consultados pela reportagem. “Os equipamentos são bons para a prática de exercícios, sim, mas a presença de um profissional de educação física seria importante para o indivíduo ter melhores resultados e evitar lesões causadas pelo uso inadequado”, afirma o professor Francisco Prada, da Faculdade de Educação Física da Universidade Católica de Brasilia. Consultado pela reportagem, o governo local informou que não o oferecimento de profissionais depende de iniciativas da própria comunidade em parceria com as administrações regionais. artefato

17


universidade

Patrimônio mutilado

Biblioteca promove campanha para conscientizar usuários a conservarem as obras Amandda Souza (texto e foto)

A

ideia surgiu como ação concreta para combater as mutilações de livros e para tentar reduzir os gastos nas atividades de restauração, que em 2010 chegaram a quase R$ 20 mil. Dinheiro que poderia ser revertido em novos volumes para o acervo e em melhorias para os usuários. Diante desse cenário, responsáveis pelo Sistema de Bibliotecas da Universidade Católica de Brasília (UCB) resolveram lançar uma campanha como forma de reeducar e conscientizar a comunidade acadêmica. “Queremos orientar, sensibilizar e conscientizar os usuários sobre a importância da conservação e do manuseio adequado das obras, além da preservação do material bibliográfico. Acredito que a biblioteca seja mais que um depósito de livros. É um centro de cultura, energia, vida. Precisamos ensinar isso”, conta Beatriz Veloso, responsável pela Coordenação de Desenvolvimento e Promoção da Informação (CDI) e pela organização da ação. Beatriz e sua equipe coordenam a campanha intitulada “Quem cuida tem”. A UCB recebe, diariamente, quatro mil pessoas na biblioteca, entre alunos e comunidade, que consultam os mais de 250 mil exemplares disponíveis. A ação seguirá até 25 de maio. A última campanha do tipo ocorreu em 2000. De acordo com ela, os usuários precisam ter uma noção melhor de responsabilidade. “Os alunos devem ser corretos e não só mentes pensantes. Temos na universidade um perfil de jovens de 16 a 24 anos, em fase de reeducação, e também é nosso papel

18

ensiná-los”, acredita. A equipe da CDI conta com 53 funcionários e foi a responsável pelo material impresso com orientações para o uso correto dos livros. O projeto foi criado em parceria com os músicos Marcos MC e Marcos Aborígine, e contou com a produção de um videoclipe pelo Centro de Rádio e Televisão, CRTV, com cenas da má utilização dos livros. “O intuito foi dar um tom de exagero para que ficasse engraçado, mas muitos alunos se identificarão com as cenas”, disse Beatriz. Além disso, foi criado um concurso de ilustrações que retrata o mau uso dos livros pelos usuários. As imagens eleitas geraram vários produtos, como folders, marcador de texto, banners e cartazes, para a divulgação da ideia.

Cachaça?

Também há uma exposição com o nome “Os Mutilados” no hall da biblioteca, com o intuito de apresentar os livros danificados e fotos de materiais bibliográficos com problemas. Histórias de publicações maltratadas, rabiscadas, rasgadas, estragadas por umidade ou ressecamento excessivos, com cheiro de cachaça, molhadas, sujas com café ou coca-cola e até batizadas com xixi de cachorro e mofo estão sendo contadas. “Precisamos chocar para que todos tenham consciência de como os livros têm sido maltratados”, relata a coordenadora. Quanto à restauração, Beatriz explica que há um setor responsável pelos pequenos reparos. “Casos como colagem de lombada, de folhas soltas, de capa e reposição de folhas arrancadas são tratados aqui. Mas a biblioteca não dispõe de infraestrutura adequada para grandes restaurações. Esse serviço é feito em empresas especializadas, o que aumenta o custo”, esclarece. Beatriz Veloso examina um exemplar de livro estragado: R$ 20 mil em restaurações em 2010

artefato


blio a tec U da CB

Você sabia?

> A restauração de um livro com até 50 páginas demora pelo menos 2 dias, tempo em que ele fica indisponível para o empréstimo > Um livro muito danificado, com a capa descolada e folhas internas soltas, fica distante do usuário por pelo menos 4 dias > No ano de 2010 foram restauradas 1.962 obras que sofreram desgaste natural e mutilação. E foram gastos R$18.018 só com encadernação

De acordo com relatórios da equipe do CDI, nos três últimos anos o número de livros recuperados cresceu. Houve gastos de aproximadamente R$ 77 mil, que poderiam ser revertidos em novas obras. “É um absurdo saber que os livros estão chegando assim. Isso é falta de consciência. Atrapalha a todos. O certo é estudarmos pelo livro, para sermos bons profissionais, mas para isso precisamos deles em bom estado”, diz Yasmine de Oliveira Vieira, 20 anos, aluna do segundo semestre de Medicina da UCB. “Sempre tenho cuidado. Quando preciso grifá-los para estudar, uso um lápis, e, depois, apago quando vou devolvê-lo”, afirma. Thiago de Matos Gurgel, 22, estudante do 5º semestre de Farmácia, acredita que a biblioteca deveria ser mais radical. “O livro é o foco dos nossos estudos. Para mim, quem não cuida do patrimônio deveria ser proibido de usar os livros. É importante ter zelo, mas acho que a campanha é relativa. Pode conscientizar uns, mas sempre tem aqueles que não estão nem aí, por isso acho que deveria haver mais rigor”. artefato

Mandamentos dos livros Prolongue a vida útil do acervo com cuidados preventivos

Evite passar o dedo na língua para virar a página, pois a saliva é ácida e deteriora o papel

artefato

universidade

Bi te: Fon

O alto custo do descaso Ao retirar o livro da estante, não o pegue pela parte superior da lombada, e sim pelo meio.

Evite rasgar ou recortar folhas, para não prejudicar a informação que é insubstituível

250 mil Estimativa do número de exemplares da Biblioteca da UCB

Utilize marcadores de páginas. Evite dobrar ou identificar com objetos como clipes, lápis, canetas e outros

Não sublinhe o texto dos livros com marca-texto, caneta ou lápis. Faça anotações no seu caderno

Lembre-se de que a exposição dos livros à luz solar, à chuva ou ao calor prejudicam a conservação do papel

Evite comer e beber perto das obras, pois o alimento e o líquido causam danos irreversíveis Ilustrações: Olávia Bonfim

19


Taísa Lima

perfil

Flanelinha pé-de-serra CD gravado, 15 filhos e moedas no bolso. Esse é José Dantas

Cleicilene Lobato

N

ascido em 1954, brasiliense por opção e potiguar por naturalidade. Pele morena com tons avermelhados devido ao sol.Nem alto nem baixo, corpo robusto. Pai de 15 filhos – dez homens e cinco mulheres, de mães diferentes. Dono de vocabulário sagaz e muito educado, ativo como um adolescente e carismático como uma criança, praticante do bem e amante do forró. Conhecido pelos colegas como Índio, por causa da origem na tribo poti (os bisavós biológicos eram indígenas), José Dantas é exemplo de perseverança. Índio, que anseia por descobertas, não teve medo das mudanças quando aqui chegou há 20 anos. Ele já sabia da realidade que iria enfrentar e das poucas oportunidades de trabalho. Aos 38 anos, recém-chegado à capital, começou trabalhando como carroceiro, depois na limpeza e manutenção de prédios, e agora labuta de sol a sol como flanelinha na praça do antigo terminal rodoviário norte de Taguatinga, atual Taguacenter. De lá, tira parte do sustento e espalha felicidade. O complemento da renda é retirado de um outro ofício, que ele considera mais prazeroso: cantar. Ele revela o talento logo que é indagado sobre seu estado civil. A resposta vem no tom de cordel, uma música de sua composição chamada Vida de solteiro é Bom. A letra diz:

20

“Quero casar, mas tenho medo. Não vou falar com o vigário nem gastar o meu salário com bambolê de otário para enfiar no meu dedo. Solteiro eu chego às quatro da madrugada, pois não se importa com nada. Eita que vida legal. Mas o casado quando chega atrasado a mulher diz: Ei, seu safado, e começa o que-

Índio recebe até R$ 45 por dia vigiando carros. Mas sua paixão é cantar

bra-pau. Homem casado quando ele tem dinheiro a mulher mata de cheiro, com tudo faz uma festa, mas quando alisa já começa com a fofoca, se brincar ela coloca um par de chifres em sua testa...” Como se precisasse de mais explicações, ele conta, com o sorriso no rosto, que não nasceu para casar, pois tem medo. Desde os nove anos José Dantas solta a voz para animar as festas. Tem orgulho de falar de sua banda de forró estilo pé de serra, a Cangaço de Fortaleza. Só depois de muita luta, recebendo R$ 30, R$ 40 e até R$ 45 por dia de trabalho como guardador, é que conseguiu juntar, no ano passado, dinheiro suficiente para ir até sua terra natal, Mossoró, a 277 Km de Natal (RN). Aos 57 anos, com o apoio de Dezim Goveia, dono da gravadora GPE, consegiu enfim gravar seu primeiro CD. Gostou tanto do trabalho que no início deste ano voltou e gravou o segundo. Como teve dificuldades em gravar o álbum no DF, foi para o Rio Grande do Norte. Lá, usou uma banda local, já que a sua, de Samambaia, não pode ir. Dantas ressalta que o trabalho como flanelinha dá a ele a oportunidade de divulgar seu trabalho com a música, passar os contatos para shows e principalmente vender seus CDs.

Histórias do cotidiano

Indío se considera bem humorado, respeitador e honesto. Paciente, mesmo se sentindo discriminado com a profissão de flanelinha. Ele afirma que trabalhar com ser humano “é difícil”, mas acredita que o carinho é a base para conquistar a confiança das pessoas que estacionam no local. “Já me deparei com pes-

soas ingnorantes, que eu sobe me relacionar e que, com um certo tempo, se tornaram pessoas legais”, relata. Como flanelinha cadastrado, se revolta ao ver outros vigilantes, principalmente os do Plano Piloto, utilizando de forma errada o colete de identificação para praticar crimes. Também não concorda com a pressão feita por “certos” flanelinhas para receber a gorjeta pela “olhada”. “Se meu cliente não me der nada eu digo, ‘Deus o acompanhe’. É por isso que tenho muitos clientes e sou feliz em trabalhar aqui”, conta. Ele diz que já flagrou muitas pessoas tentando roubar e que sua grande salvação é um celular velhinho, que tem na agenda os contatos dos policiais. Por isso, nunca viu um carro que viagiava ser levado. Trabalhando como flanelinha, já salvou até um rapaz de ser demitido. O jovem foi fazer o pagamento do mês dos funcionário da empresa onde trabalhava em um banco próximo ao estacionamento que Índio toma conta. Chegou com pressa, trancou o carro e se esqueceu de pegar o pacote de R$ 100 mil, que deixou em cima do capô do carro. Índio “deu fé” do pacote logo depois que o rapaz saiu. Desesperado pelo sumiço do pacote, o desatento voltou e o flanelinha entregou o pacote, sem nem saber o que havia dentro. Ele recebeu R$ 300 de recompensa pela a atitude. Adotado, recebeu do pai a lição de ser honesto. “Ele me ensinou a artefato ser o homem que sou hoje”, afirma. SERVIÇO: Quem quiser contratar o show de forró pé de serra da banda Cangaço de Fortaleza pode ligar para o telefone do Índio: 8633.7489

artefato


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.