Artefato - 6/2011

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Jornal-laboratório da Universidade Católica de Brasília ano 12, número 3 junho de 2011

FEITIO DE ORAÇÃO O Artefato descobriu o que as pessoas escrevem nos bilhetinhos que deixam a Deus A fé entra em colisão com movimentos sociais na política Páginas 14 e 15

A dura realidade dos jovens usuários de crack em Ceilândia

“Matar aula” pode ficar mais difícil: projeto quer reduzir faltas dos alunos

Páginas 4 e 5

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Foto: Nilson Carvalho


opinião

Editorial

Fé nos altares e na apuração Amandda Souza

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terceira e última edição do Artefato do semestre decidiu abordar a religiosidade em duas perspectivas. Nossa aposta de capa é a reportagem “Se eu quiser falar com Deus”, que mostra, a partir do que os fiéis escrevem em pedidos e súplicas depositados em cestinhas diante de altares e até na internet, um traço de como o brasileiro exercita essa relação. Numa segunda matéria, nossa equipe retrata as muitas discussões que opõem argumentos de grupos cristãos, de um lado, e entidades que defendem homosse­ xuais e feministas, de outro. Debates que tiveram como embrião as eleições presidenciais do ano passado, num bate-boca quase passional sobre o aborto, e que ganharam outros contornos este ano, com repercussões no Congresso Nacional e no Supremo Tribunal Federal. A ideia da apuração era mostrar os vários argumentos em questão na discussão sobre união civil entre pessoas do mesmo sexo, aborto de anencéfalos, criminalização da homofobia e no veto ao kit gay que seria distribuído pelo Ministério da Educação.

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Reflexões que, esperamos, ajudarão o leitor a formar melhor uma opinião crítica e técnica. Ademais, o jornal fez uma incursão sobre a realidade do crack em Brasília. Como a droga influi e pode acabar com a vida do usuário e de quem está ao redor? Em outro âmbito, uma reportagem sobre prostituição revela o lado de quem usa o próprio corpo para sustento, os sentimentos e ambições na vida dessas mulheres. Em meio a dilemas da sociedade, trazemos uma reportagem de serviço, sobre possíveis mudanças na rede pública do governo a partir da decisão de ampliar a frequência obrigatória dos alunos de 75% para 80% das aulas ministradas ao longo do ano. Às portas do frio e do inverno, o infográfico sobre conjuntivite mostra como a doença adora o clima seco e frio desta época do ano. Partindo para a política, nossos repórteres foram atrás e destrincharam o novo código florestal, aprovado recentemente pela Câmara. Boa leitura.

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Análise da edição anterior do Artefato

Pági

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Ombudskvinna Nathália Coelho

os Govern s à cego de da realida 16 do QN o Riach II Fundo 8 Página

Mais uma vez a equipe do Artefato surpreende seus leitores. Rica em conteúdo, a segunda edição do jornal laboratorial mostrou-se madura quanto à escolha de pautas e aprofundamento das informações. Passeou por entre assuntos polêmicos, que vão desde política à arte poética, esta, por sua vez, transcrita por teóricos e também na sabedoria de um flanelinha. Conseguiu desbravar novos rumos além do jornalismo comunitário, claro, sem deixá-lo de lado. Destaque para a reportagem de capa.

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Expediente

no de uma reforma política apresentaram-se sérias e bem coesas. Já o texto acerca do poema “Brasília” de Sylvia Plath, apesar de interessante, aparentou meio cansativa quanto à leitura. Os títulos “Cadê as vagas?”, “Malhação ao ar livre” e “Patrimônio mutilado” vieram para aliviar o impresso. O perfil de José Dantas fechou bem o pacote. Já a diagramação seguiu no mesmo ritmo. Talvez um cuidado maior com a segmentação do público a que se destina o periódico possa ser relevante na próxima edição. Todavia, foi perceptível a evolução da equipe quanto às ideias e temas. Parabéns!

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Repórteres: Amanda Perissé , Gilmar Satão, Haiany Mello, Lilian Alves, Mariana Santiago, Paulo Freire e Renata Bittes

Orientação gráfica: Amaro Jr. e Thiago Sabino

Fotógrafos: Aline Sales, Dimitri Alexandre, Gabriela Melo, Jônathas Oliveira, Nilson Carvalho, Taísa Lima e Tuane Dias

Estágio docente: Vânia Gurgel

Editores de texto: Gabriela Lobato e Maíra Pinheiro

Tiragem: 2 mil exemplares

Direção do Curso de Comunicação Social: Prof. André Luís Carvalho

Editora de fotografia: Narlla Sales

Disciplina: Produção e Edição de Impressos

Diagramação: André de Castro

Impressão: F Câmara Gráfica Universidade Católica de Brasília EPCT QS 07 lote 1 Águas Claras - DF CEP: 71966-700

Editoras-chefe: Amandda Souza e Cleicilene Lobato

Professores responsáveis: Gustavo Cunha e Karina Gomes Barbosa

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Jornal-Laboratório do Curso de Comunicação Social da Universidade Católica de Brasília Ano 12, nº 3, junho de 2011 Reitor: Dr. Cicero Ivan Ferreira Gontijo

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Como na edição anterior, a matéria surpreendeu ao trazer um relato real da rotina dos abrigados do Albergue Conviver, no Areal. A experiência de viver na pele, por um dia inteiro, a vida dos homens de lá, permitiu, aos repórteres, precisão e destreza ao estruturar o material. Parabéns à dupla que conseguiu levar, por meio de seus olhos, o leitor para dentro da instituição revelada. Com sensibilidade, a matéria referente a área abandonada no Riacho Fundo II focou uma minoria social esquecida pelo governo. Tanto a reportagem sobre os salários extras dos parlamentares quanto a discussão em tor-

Orientação de fotografia: Thiago Sabino

Projeto gráfico: José Eduardo Virgolino

Telefone: 3356-9337 artefato@ucb.br

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Geração ÁLCOOL GEL

Narlla Sales

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m uma conversa curta, momento em família, sentou-se ao meu lado o Felipe, um garoto de 9 anos. Na tentativa de tocar o universo dele e fazer sair dali uma conversa entre nós, perguntei o que ele havia pedido de presente aos pais no dia do aniversário. Para a minha surpresa, Felipe sacou do bolso um celular que berrava um som confuso, barulhento e palavras de conotação sexual, com batidas fortes. Mas, o que chamou atenção foi a tecnologia do aparelho. Bota inveja em muito adulto! Voltando à conversa, Felipe disse que, do pai, queria muito um modelo de tablet que ainda não estava disponível no Brasil; da mãe, gostaria de algumas peças de roupa e adereços importados, especialmente uma jaqueta de couro como a do Chris, da série “Todo mundo odeia o Chris”. A partir dessas informações, busquei saber quais eram as principais atividades escolhidas por Felipe para se divertir. Sim, o garoto não joga futebol, nunca quebrou um osso sequer de sua jovem estrutura e raramente desfruta dos raios solares. Ele também não gosta de ler e tem horror a telejornais. Sim, Felipe faz parte da geração álcool gel. Não se suja, não se relaciona além da rede. Está crescendo sem os prazeres que, na minha jovem geração, fez com que descobríssemos as grandes sensações

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opinião

CRÔNICA

da vida. O amor, a dor, a sujeira, a coceira, a dor do mertiolate, a repugnância de alguns legumes e verduras. Tudo limpinho, tudo cheiroso, tudo em ordem, sem conflitos, mas também sem profundidade. Ah, que saudade do Bozo! De dançar lambada na frente dos parentes, de costurar as roupas das minhas bonecas, de descer ladeira abaixo em cima de um carrinho de rolimã. Sim, a bandeirinha, o pique-pega. Nenhum aplicativo de Orkut ou Facebook é comparável à sensação de fechar os olhos por 30 segundos e gritar: ‘lá vou eu!’ E quem não se lembra da rosca com baré depois da aula? Sim, é claro que sobrava espaço para o almoço. Para isso, no entanto, não era preciso ter uma Second Life. Talvez o jovem Felipe conheça a fascinação do mundo virtual, mas desconheça a beleza do relacionamento humano, da briga, do abraço, do suor que selava o perdão. Talvez a geração dele, se não cuidarmos – pois também é nossa responsabilidade – desconhecerá os valores da lealdade, amizade, aceitação e honestidade. O chiclete era Ploc, a piada era a do Chaves, a música era super fantástica!, e o mundo era bem mais divertido. A vida era minha, sua, de cada um. Para ser aceito, não precisávamos ter 1 milhão de amigos, mas só a turma lá da rua. Sim, e a gente aprendia que era preciso respeitar os mais velhos, decorar o Hino Nacional e pedir a bênção antes de dormir. Sejam bem-vindos à Geração Álcool Gel. artefato

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Foto: Jônathas Oliveira

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cidadania

A pedra que mata Jovens usuários de crack sobrevivem nas ruas de Brasília Gilmar Satão

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a rua não se dorme. A noite serve para ficar andando de um canto para o outro. Velhos, jovens, crianças. Na rua aprende-se a roubar, a ser perseguido pela polícia – e a fugir dela. Aprende-se a se esconder como bicho. O banho já não se toma há alguns dias. Não tem importância andar sujo. Vive-se perambulando pelas esquinas, encostado nas paredes e nos muros, entocado em becos ou lugares escuros. Não se dorme em cama, mas em qualquer lugar que esteja quente naquele momento. Debaixo de papelões, das marquises dos prédios ou dentro dos bueiros. Não tem hora para acordar. Assim é a vida de muitas pessoas que estão no mundo do crack. O problema se espalha por todo país e não escolhe cor, sexo, raça ou classe social. Em Brasília, é comum pessoas andarem pelas ruas em busca da droga. É gente que perdeu a auto-estima e hoje mora na rua. São pequenos delitos cometidos, principalmente, nos comércios locais, onde a maiorias desses viciados pede dinheiro. “O comércio já não é mais o mesmo, a clientela caiu em 30% e as famílias não deixam mais seu filhos virem comprar, pois têm medo de serem assaltados”, conta Vanderval Oliveira Brito, 40, comerciante em Ceilândia. A reportagem do Artefato passou algumas horas com quatro policiais militares do 8° Batalhão da Ceilândia andando pelas ruas. Na ronda, é perceptível a quantidade de usuários. Ao abordar um grupo de cinco pessoas é difícil acreditar como eles sobrevivem sujos, cabelos sem cortar, barbas por fazer e descalços. A pele entrega uma idade muito maior que a real. O olhar é assustador. A fala é baixinha.

F.J.A. é um dos dependentes que consegue comprar a droga a valores entre R$ 5 e R$ 10: além de barata, a substância tem efeito rápido

Reféns das drogas F.J.A, 18, é morador de rua e fuma crack desde os 10 anos. “Fumo porque minha família me abandonou na rua, vim da Bahia. Não tem como eu sair mais do crack. Sei que meu destino é a morte”, relata o garoto. Mesmo morando na rua, o jovem não tem dificuldades para arrumar as pedras. No DF, a droga pode ser comprada em quase todas as esquinas, principalmente onde a aglomeração de jovens é frequente. A negociação é feita a todo o momento. Os valores variam de R$ 5 a R$ 10. Os usuários compram e saem rápido para fumar. Como o efeito não é duradouro, segundo eles, saem em buscar de dinheiro ou objetos para comprar mais. A história de F.J.A., que se viciou depois de um trauma familiar, é comum. R.L.S, baiano, 19, fuma crack desde os 15 anos. Apanhava em casa até o dia em que resolveu sumir. “Meu pai me batia muito, aí fui pra rua e nunca mais voltei pra casa. Fumo crack, vivo

roubando para fumar, não tenho outra alternativa.” Já A.P.S, 32, viu a vida desabar depois da separação. Trabalhava como vigia de carros, era casado e pai de três filhos. Sem ter pra onde ir após o fim do casamento, acabou na rua e nas drogas. “Tem seis meses que o crack acabou com minha vida. Vivo hoje catando lixo pra comer alguma coisa. Virei um zumbi, durmo quase o dia todo, não tenho hora pra mais nada. Quando vejo, virei a noite fumando a pedra. Um dia desses, levei um tiro na perna por não pagar um traficante.” As histórias dos três homens mostram como o vício é rápido e devastador. Além da facilidade de consumo e de ser uma droga barata, o crack chega ao cérebro na mesma rapidez em que é consumido. A droga é a mistura da cocaína em pequenas pedras não refinadas com bicarbonato de sódio. Essas pedras são cinco vezes mais potentes que a cocaína.

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Gerações viciadas P.O.S. tem 19 anos. O crack circula pelo corpo mesmo antes de ela nascer: a mãe era viciada em drogas e alcoólatra. Aos cinco anos foi para um orfanato. Aos 12 foi adotada e, a partir dos 13, a rua virou seu lar. Para sobreviver, ela teve que se prostituir, cometer alguns delitos e foi parar na cadeia. Sua família são os “amigos” da pedra e o filho que espera. Grávida de oito meses, ela não sabe o que acontecerá com o bebê após o nascimento. “Não sei ainda qual é o sexo do meu bebê, não fiz nenhum tratamento com médico, por isso não sei qual será o destino da minha criança.” Fotos: Dimitri Alexandre

Viciada em crack, grávida e sem expectativas, P.O.S. não sabe o sexo do bebê nem fez pré-natal

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Lugares a céu aberto são palco para moradores e viciados. Em Ceilândia, eles consomem a droga à luz do dia

A casa que salva vidas Com 22 anos de existência, a casa de recuperação Força para Vencer, em Ceilandia, trabalha para salvar vidas. O lugar mais parece uma oficina e mostra que é possível recuperar pessoas que sofrem por causa da dependência química. O espaço conta com área de triagem, alojamento para 15 pessoas, refeitório, igreja e consegue, aos poucos, minimizar as condições de muitos usuários de drogas. Após passar por entrevista o usuário é encaminhado para uma chácara de 10 mil metros quadrados que fica em Águas Lindas (GO). Durante seis meses, o viciado faz tratamento com oficinas de artes, terapia ocupacional, trabalhos braçais e religiosos, além de exercícios físicos como futebol, natação, musculação. A instituição conta com ajuda de doações de pessoas da comunidade, das famílias dos usuários ou de instituições governamentais. Um dos ex-usuários trabalha voluntariamente há nove meses no local. É um paulista que, aos 13 anos, conheceu a maconha. Aos poucos, outras drogas entraram em sua vida: merla, cocaína e, por último, o crack. Durante três anos o consumo foi intenso. Nesse período perdeu a auto-estima, a família e bens: casa, carro e a moto que usava para trabalhar como motoboy. “O crack me deixava fora de mim, a dependência e a alucinação são mais rápidas. Depois que vim para cá foram seis meses de recuperação. Minha vida voltou a ser o que era”, descreve Erismar Soares Oliveira, 27 anos, que hoje coordena a casa. Fundador da instituição, o pastor Sér-

gio Lima de Oliveira, 53, conta que durante esses 22 anos em que a casa existe, aproximadamente 4.600 pessoas já passaram por lá. Muitos conseguiram se recuperar. “Trabalhamos com terapia ocupacional para podermos salvar essas vidas”, destaca.

Campanha

Em julho de 2009 o Ministério da Saúde lançou a Campanha Nacional de Alerta e Prevenção do Uso do Crack. A iniciativa, inédita, buscava prevenir o consumo da droga Com lançamento de filmes e materiais impressos explicando os riscos e conseqüências da droga. O investimento é de R$ 98,3 milhões para habilitar 73 novos centros de Atenção Psicossocial (Caps) e criar incentivo financeiro para internações de até 20 dias em pacientes com crise e aumentar em até 31,85% o valor das diárias pagas por paciente internado em hospitais psiquiátricos em todo o país. artefato

Serviço: Qnm 26 Cj A, s/n - lt 37 Bairro: Ceilândia Norte Ceilândia - DF - CEP 72210260 http://www.grupoforcaparavencer.org Tel.: (61) 3581-8089

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cidadania

A importância de dizer “presente” Projeto para ampliar frequência dos alunos em sala de aula está na Câmara. Se aprovado, número de faltas permitidas cairá de 25% para 20% ao ano. Escolas do DF terão de se adaptar

Diário de classe repleto de ausências: “Aceitar que se falte é não dar importância à educação”, diz o senador Cristovam Buarque (PDT-DF)

Amanda Perissê (texto e foto)

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s faltas em excesso são um grande problema que educadores e pais enfrentam durante o processo de formação dos jovens e adolescentes brasileiros. Perder aulas, segundo especialistas, contribui para que conteúdos sejam apreendidos de forma parcial ou deficiente. Em 2009, 13.487 alunos, ou 18,5% do total, reprovaram na rede pública do DF. A Secretaria de Educação informa não ter catalogado quantos desses alunos perdem o ano por ausências, mas sabe que a questão terá de ser levada a sério. O Projeto de Lei nº 385/07, aprovado na Comissão de Educação do Senado e à espera de votação na Câmara prevê que a frequência mínima para um estudante ser aprovado passará de 75% para 80%. Luan Sousa, 18 anos, é retrato dessa estatística. Reprovou duas vezes por falta e conta que sempre teve consciência, mas não dava, na época, a devida importância aos estudos. “Reprovei dois anos seguidos. Tinha cerca de 400 e poucas faltas em um boletim e 300 no outro”, afirma. Hoje, está no 3º ano do Ensino Médio na Escola CENB1, do Núcleo Bandeirante, e tem em mente não reprovar novamente. A diretora da Escola, Mônia Lemos, afirma que a falta costuma ser recorrente por parte

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de alguns alunos. “O máximo permitido hoje são 25% e há alguns que extrapolam”, conta. Ao fim de cada bimestre a escola detecta os casos graves e comunica aos pais. Jane Carreiro, coordenadora da área de linguagens e professora da escola, afirma que o excesso de faltas precisa ser visto com atenção. “Se o aluno não tem o mínimo de presença e de participação, pode ter a melhor nota da escola, mas não poderá ser aprovado”, diz.

O senador Cristovam Buarque (PDT-DF) considera a aprovação do PLS na Câmara de extrema relevância. “Reduzir o número de faltas é atuar a favor da educação. Aceitar que se falte é não dar importância a ela. Imagine um casamento entre escola e aluno, em que o estudante precise estar presente, por exemplo, em apenas 60% dos dias e das noites e o resto ele possa se ausentar. É porque não tem amor”, compara.

Por dentro da Lei

De 800 para 900 horas

O texto aprovado na comissão é de autoria do ex-senador pelo Paraná Wilson Matos. Foi modificado pelo atual relator, Inácio Arruda (PCdoB-CE). O projeto original previa frequência mínima de 85%. Esse percentual, segundo Arruda, em entrevista à Agência Senado, poderia impor ao estudante trabalhador um “entrave intransponível à sua formação pessoal”. Na opinião de Jane Carrejo, a mudança de 75% para 80% ainda é pouco. “Deveria ir para 85% ou 90%, porque a falta deveria ser eventualidade. Ela não pode se tornar regra e muitos, às vezes, abusam”, ressalta. “Com essa lei, os alunos virão mais à escola”, diz o estudante Vinícius Souza, 17 anos.

Outro projeto relacionado à educação a ser votado na Câmara é o PLS nº 388/07, que aumenta a carga horária de 800 para 960 horas anuais. Segundo a Assessoria Especial de Comunicação da Secretaria de Educação, as escolas da rede pública do DF já adotam o sexto horário há cerca de dez anos. Mônia conta que a rede de ensino da capital trabalha com 1.240 horas no diurno para o Ensino Médio, que tem seis horários por dia letivo, mas no Ensino Fundamental é diferente, porque a carga horária dos alunos é menor. “Com certeza vai interferir. Porém, enquanto esse projeto não virar lei, não podemos tomar posição a respeito”, informa a secretaria de Educação, por meio da assessoria. artefato

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cidadania

Fotos: Dimitri Alexandre

Sozinhas na noite

Garotas de programa entram na profissão por diversos motivos, e muitas vezes não recebem apoio e proteção do Estado Narllla Sales e Eduardo Pessoa

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á quem diga que reconhecer e regulamentar a profissão seja a melhor escolha. Outros entendem que a opção não é a mais adequada. Mas o questionamento permanece: legalizar a prostituição e proteger as profissionais do sexo significa a mesma coisa? No Brasil, o assunto vem sendo discutido e especialistas buscam um entendimento comum sobre como amparar as prostitutas, muitas vezes sujeitas a agressões, descriminação e a doenças sexualmente transmissíveis. Em fevereiro deste ano, o Projeto de Lei 98/2003, de autoria do deputado Fernando Gabeira (PT-RJ), que regulamenta a profissão e estabelece a obrigatoriedade do pagamento pelos serviços prestados, foi arquivado. Em outro extremo tramita na Câmara um outro projeto, o PL 2169/2003, do ex-deputado Elimar Máximo Damasceno, que tipifica a contratação sexual como crime. Para a médica e sexóloga Rosângela Xavier, é importante observar o exemplo de outros

países que caminharam para a legalização médica destaca ainda que, segundo o Center da prática sob a perspectiva de minimizar os Disease Control dos Estados Unidos (Cenriscos e danos. “Estudos recentes na região tro de Controle de Doenças - CDC), a forma de Camberra, capital da Austrália, indicam mais correta de impedir a transmissão de que a legalização está longe de ser a solução uma DST é se abster de intercurso sexual ou perfeita”, afirma a médica, citando um artigo estar em um relacionamento monogâmico que descreve a experiência daquele pais. de longo período com parceiro sabidamente Rosângela Xavier, que também é sanita- não infectado. rista, entende que, O papel sob o ponto de vista do Estado médico e preventivo, Na opinião da mesas prostitutas estão tre em psicologia e expostas não somenEstudo realizado na Austrália examinou a te à violência física e informação de 471 organizações governamen- pesquisadora na área moral, mas a doenças tais e não governamentais que trabalham com de gênero e violência sexualmente trans- crianças no país. Foi identificado que mais de contra mulheres Flávia Timm, o Estado missíveis. “Dentro 3.100 crianças australianas entre 12 e 18 anos deveria reconhecer da epidemiologia, a tinham tido relações sexuais em troca de dique os próprios agenabstinência e a monogamia são fatores nheiro para sobreviver. O primeiro estado a ter tes estatais muitas protetores da pro- a prostituição legalizada foi o de Victoria e este vezes são machistas, pagação das doenças apresentou o maior número de crianças envol- negligenciam ou não têm informações sude transmissão sexu- vidas com contratação sexual, 1.200. ficientes para atender al (DST)”, afirma. A

Solução polêmica

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As prostitutas estão expostas não somente à violência física e moral, mas a doenças sexualmente transmissíveis. as prostitutas, principalmente quando elas estão passando por situações violentas. Segundo a pesquisadora, quando a mulher sofre algum tipo de violência durante a prestação dos serviços sexuais e procura um hospital, o problema pode ficar maior. “A prostituta, muitas vezes, é duplamente discriminada quando tenta acessar delegacias, hospitais ou outros serviços estatais”, afirma. Flávia atribui essa resistência à cultura machista que leva a população a culpar e moralizar as mulheres quando o assunto é sexo. Para a psicóloga, não se pode focar a discussão da prostituição sem colocar em relevo os consumidores, que são os homens. “Ainda debatemos a prostituição como uma questão moral, que vulnerabiliza e discrimina as mulheres, mas sempre protege os homens, o que reforça a hierarquia de gênero e a visão machista.” Já a sexóloga Rosângela Xavier entende que o papel do Estado é zelar pela família, segundo ela, célula básica da sociedade. “A prostituição não favorece a união da família, indo de encontro ao papel que o Estado é comprometido a cumprir.”

Uma experiência que pode ser positiva

Para a psicóloga e especialista em psicodrama Luciana Andrade Rocha, o que vai determinar que a experiência da prostituição pode ser positiva ou não é o histórico no qual a mulher está envolvida. “O que é mais importante, na hora de fazer uma avaliação dessas, é observar o que a fez decidir pela prostituição”, afirma. Luciana explica também que se o motivo é a fuga de situações traumáticas e realidades, a disposição do corpo para serviços sexuais pode não ser a melhor escolha, mas ressalta que, em muitos casos, a escolha é livre, portanto, pode ser positiva e precisa ser respeitada.

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Descrença no amor

Taguatinga Centro, onze horas da noite: o movimento ao longo da avenida, onde fica Luana(*), diminui consideravelmente. Atrás da avenida central de Taguatinga, próximo a uma agência bancária e na esquina com o Centro de Ensino Médio Ave Branca (CEMAB) ficam as garotas de programa. Elas surgem à medida que os trabalhadores e comerciantes lotam as paradas de ônibus, deixando a avenida deserta. Bem diferente do cenário que se vê durante o dia. Antes tímidas, as garotas começam a aparecer e a dominar as esquinas das ruas, cuja avenida leva ao Setor Hoteleiro de Taguatinga. Luana é uma das garotas que vivem da prostituição como fonte de renda. Entrou na prostituição aos 23 anos. O motivo? Traição. Após ser enganada pelo noivo, dentro da própria casa com a melhor amiga, e se desiludir com a vida amorosa. “Não acredito no amor. Para mim, sexo serve só para uma coisa: ganhar dinheiro”. Com aproximadamente 1,68m e cabelos loiros, Luana aparece na esquina de vestido curto preto, com um anel retangular no dedo indicador esquerdo e outro anel, redondo, de cor preta, na mão direita. Como boa parte das mulheres que ficam por ali, carrega uma bolsa, bege com bordas douradas. A bolsa serve para guardar objetos pessoais e também como arma de defesa. Fugiu de casa, em Samambaia, para morar em uma quitinete próximo ao local onde trabalha. Entre os seus clientes estão funcionários públicos, comerciantes e até mesmo policiais militares. “Alguns policiais passam aqui com a viatura. São dois ou três. Quando não pedem para fazer sexo no motel, acontece dentro da viatura mesmo”, relata Luana. Ela não tem ensino superior. Parou os estudos ainda no 1º ano do Ensino Médio. Nos dias de chuva, ela consegue atender até 10 clientes, mas nos dias “normais”, atende entre 15 e 20 clientes. “Tem muito jovem, de 18 anos, que passa duas ou três vezes”, explica. O rendimento é de R$ 1.200,00 por mês. Com o dinheiro compra roupas, jóias e paga as contas e o aluguel de sua quitinete, que divide com outra colega de profissão.

Fumaça e tristeza

Priscilla(*) fica nas proximidades dos hotéis, no centro de Taguatinga. Atravessando a Praça do Relógio, completamente deserta e com os termômetros marcando 17ºC, está sentada na calçada de uma loja. Morena, de cabelos pretos, aproximadamente 1,60m de altura, Priscilla está de sapatilhas pretas. Segundo ela, o calçado é confortável, embora não atraia os clientes.

Ela usa predominantemente preto e cinza, em tons apagados, diferentemente de Luana, que usa bolsa e algumas jóias. O indicador e o polegar da mão esquerda seguram o cigarro, já pela metade. Ao contrário de Luana, Priscilla cobra R$ 10,00 por programa. Ganha R$ 700,00 por mês e diz que faz mais de 20 programas para ter uma renda complementar. “O dinheiro é muito pouco, mal dá para o meu sustento”, relata. Com 32 anos e uma filha de 16 anos, Priscilla foi para a Praça do Relógio após sair da calçada do Hotel Nacional, no centro de Brasília. Por conta da idade e do número de garotas jovens na região, ela foi para Taguatinga, com o intuito de manter o padrão anterior. Não conseguiu. No Plano Piloto, ganhava R$ 2.500,00. Vive em um hotel no Centro de Taguatinga, em condições precárias de conforto e higiene. De fala pausada e arrastada, Priscilla conta rapidamente que o dinheiro perdido foi usado para consumo de drogas. Em especial maconha e crack. Ela entrou no mundo da prostituição pois sofreu violência física do ex-marido e fugiu com a filha, para não morrer. E conta: “Meu sonho é fazer faculdade de enfermagem”. artefato * Nomes trocados a pedido das personagens.

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cotidiano

Foto: Aline Sales e Tuane Dias

“Se eu quiser falar com Deus” Preces escritas em pedacinhos de papel revelam pedidos, anseios, esperança e fé

Cesta ao lado do altar guarda pedidos dos fieis: nem os padres sabem o que está escrito nos bilhetes, que são queimados

Paulo Freire

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m algumas igrejas do Brasil e do mundo é possível encontrar uma cesta, bem ali no canto, cheia de papeizinhos. Mas afinal, o que são esses papéis e o que há escrito neles? Esse é um mistério que somente Deus poderia responder. Isso porque todas as cartas dentro dessas cestas são direcionadas a Ele. É um momento íntimo com a divindade, no qual o fiel escreve ali o que considera importante naquele determinado momento da vida. A prática é comum no mundo. Muita gente escreve a Deus como uma maneira de reafirmar sua oração, seus pedidos e suas aflições. Um exemplo clássico é o Muro das Lamentações, em Jerusalém, onde milhares de pessoas depositam seus pedidos, em uma clara manifestação de fé. O padre George Albuquerque, responsável

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pela Catedral de Brasília, afirma que “essas preces e intenções apresentadas pelos fiéis são práticas bíblicas de revelação divina”. Para ele, Deus atende todos os anseios dos crentes, por isso Ele possibilita que as pessoas peçam graças, ofereçam suas intenções e entreguem o que é de necessidade pessoal.

Uma conversa particular

A professora Anita Selma, católica praticante, realiza suas preces de uma maneira diferente, e revela: “Ultimamente tenho passado por momentos difíceis. Venho aqui para buscar minha paz interior e pedir graças para minha vida”. Padre George conta que Anita não é a única a buscar a igreja nos momentos difíceis. “Muita gente vem quando está passando por um momento complicado na vida.” O padre ressalta que Deus não julga essas pessoas: “Deus entende que é da natureza humana pedir mais e agradecer menos.

Lembrar-se dEle mais quando estão à beira do abismo é normal”. Durante os três meses em que enfrentou um problema pessoal, quando achava necessário, Anita escrevia seus pedidos e orações, colocava em uma caixa e guardava. “Sempre tive muita fé, e conversando com Deus me sinto aliviada. É como se uma chama acen-

Sou caipira, Pirapora, Nossa Senhora de Aparecida, ilumina a mina escura e funda o trem da minha vida Renato Teixeira

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desse no meu coração, me fazendo enxergar o que está errado em minha vida.” Depois de ter seu pedido realizado e superado os problemas que a preocupavam, a professora foi até a igreja, colocou a caixa com as orações no altar e, após a missa, queimou tudo que havia escrito. Igrejas com espaços para que os seguidores coloquem suas cartas fazem o mesmo ritual, reforçando o sigilo dos pedidos. Padre George destaca a importância da privacidade nessa correspondência divina. “Ninguém pode ver o que está escrito nos bilhetes, é uma conversa pessoal com Deus e mais ninguém. Nem nós, como padres, podemos ler”. A função do sacerdote é receber todos os papéis e “entregar” a Deus, intercedendo para que sejam todos atendidos. “Transmito a Deus todos os pedidos e é Ele quem faz a graça divina.”.

Do Muro para o mundo virtual

Quem vai a Jerusalém certamente faz uma visita ao Muro das Lamentações, uma construção de 57 metros ao ar livre considerado sagrado por muitos. Os fieis, em frente aos grandes blocos, tocam as pedras e rezam, fazem preces e depositam orações com seus pedidos. Logo, as frestas são completamente preenchidas por esses pequenos papéis. É uma manifestação de fé de pessoas do mundo inteiro. No mundo moderno, não é preciso ir à igreja ou a Jerusalém para depositar os pedidos. O estudante israelita Alon Nir teve a iniciativa de fazer o twitter @thekotel, onde todos os pedidos virtuais feitos através da página são escrito em papéis e depositados no Muro. Além do twitter, é possível colocar seu pedido no Muro das Lamentações também pelo site Aish. No Brasil, a internet já ajuda fiéis a conversaram com Deus. Alguns sites reúnem pedidos de orações on-line, onde são expostos os recados para Deus, mediante autorização do autor. O site amai-vos, por exemplo, tem um oratório on-line. Já o SOS Oração, que visa à evangelização por meios de comunicação, possui um espaço reservado para os pedidos de orações e testemunhos. As preces digitais são de diferentes temas. Juntas, demonstram as aflições dos seres humanos. Muita gente pede que Deus olhe e proteja a família, dê saúde, vida estável e felicidade. Mas há os que estão em grande dificuldade e precisam de ajuda mais específica. “Estou desesperada, só quero morrer. Rezem por mim. Meu marido só me faz sofrer, estou sem rumo, sem chão.” Alguns pedidos são reveladores de conflitos internos: “Orem pela minha vida, fui errado em ter relações com

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outros garotos, mas agora quero voltar a ser normal, quero sentir atração por mulheres. Confio no Senhor”. Pelo teor de alguns pedidos, percebe-se que famílias inteiras se mobilizam para ajudar um ente querido. “Peço ajuda para meu sobrinho, ele está desorientado no mundo das drogas, não ouve ninguém, muito menos aceita ajuda.” Pessoas que estão no leito de morte também são motivos de oração. “Peço por minha filha de 8 anos que está entre a vida e a morte, me ajude Senhor.” Alguns pedidos são um tanto quanto curiosos: “Liberte meu filho da farra, do vício em sexo e de um amigo que não presta”. Outros emocionam. “Senhor, perdi meu filho hoje, cuide dele como eu sempre cuidei e me dê forças para suportar tanta dor.”

Alienação divina

Para o professor de Antropologia da Religião da Universidade Católica de Brasília Renato Thiel, essas cartas para Deus são manifestações populares de fé, uma maneira que o ser humano encontrou para criar um vínculo com a divindade em que acredita, seja qual for a religião. Para Renato, essa tendência revela, de certa forma, um pouco da consciência e da fragilidade humana que as pessoas sentem ao pedir ajuda espiritual. O professor lembra que a prática não é uma necessidade de Deus, e sim humana. A fragilidade e a necessidade de agradecer, pedir, orar e ter um orientador espiritual faz com que os seres humanos mantenham um vínculo divino. Porém, ele ressalta que a existência de diversas práticas religiosas dentro da sociedade leva os seres humanos a assumir um compromisso cristão que muitas vezes pode ser interpretado de maneira errada. “Existem religiões que alienam, fazem com que as pessoas se tornem dependentes de Deus em todos os aspectos, colocando na imagem divina o poder de resolver problemas pequenos, que podem se solucionados usando apenas a inteligência humana e sua capacidade de reflexão.”

pensei ter pedido meu filho. Mas não, ele disse que o Alanzinho ainda teria alguns meses de vida e falou que eu voltasse para casa, pois não tinha mais saída”, relembra a mãe. Celeste voltou para casa e viu seu mundo desabar. Tentava não demonstrar a dor que sentia para que a criança não percebesse. Após seis meses, Alan faleceu, com apenas 13 quilos. A perda trouxe muita dor para a família e, principalmente, para a outra filha de Celeste, de 13 anos. Para continuar cumprindo seu papel de mãe, Celeste buscou ajuda na igreja e na psicologia. A filha também passou se consultar com uma psicóloga e a família começou a freqüentar mais ainda a igreja. “Busquei forças onde dava. Tinha que continuar lutando, tinha que criar minha filha. Meu mundo não podia parar”, conta, às lágrimas. Muito católica, a aposentada procurou na religião um apoio. “Começava meus dias rezando, pedindo forças a Deus e agradecendo por tudo, inclusive as dificuldades. Na hora do Terço da Misericórdia colocava meu filho em Suas mãos e pedia que Ele fizesse o que

Se eu quiser falar com Deus Tenho que ficar a sós Tenho que apagar a luz Tenho que calar a voz Tenho que encontrar a paz Tenho que folgar os nós Dos sapatos, da gravata Dos desejos, dos receios Gilberto Gil

Fé e terapia

A aposentada Celeste Moreira perdeu um de seus filhos ainda criança. Aos 11 anos, Alan começou a se queixar de dores de cabeça. Depois de uma longa peregrinação pelos hospitais de Brasília, a mãe resolveu ir até Campinas para tentar descobrir qual a doença da criança. A equipe do hospital diagnosticou Alan com câncer no cérebro e deram a ele no máximo cinco meses de vida. “Quando o médico entrou naquela sala, me chamou e olhou no fundo dos meus olhos,

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fosse melhor.” A psicóloga Cynthia Lira explica que o ser humano, nos momentos de maior dificuldade, tende a exercitar toda sua fé. “Muitos necessitam de algum apoio sagrado. Não importa a religião ou em quê acreditam, o importante é confiar em algo, para que assim consigam manter a fé e a esperança”, diz. Para ela, muitas pessoas escrevem para Deus porque precisam ser ouvidas. “Cada um se expressa de maneira pessoal. Alguns preferem falar, outros têm dificuldade e por isso escrevem, até mesmo para organizar as ideias. Dessa maneira é possível colocar para fora os problemas e aflições.” Cinco anos depois da morte do filho, a família Moreira tenta ter uma vida normal. “Foi Deus que nos ajudou e ajuda até hoje. Não superamos a dor, mas aprendemos a aceitar a perda. Seguimos nossas vidas e nossos caminhos. Às vezes a tristeza retorna, mas converso com meu Deus e Ele me ilumina”, afirma Celeste.

Foto: Nilson Carvalho

Pai, afasta de mim esse cálice de vinho tinto de sangue Chico Buarque

Provação Hoje com 25 anos, Stênio Vinícius Barreto é técnico em informática e coordenador do grupo jovem da Paróquia Nossa Senhora Auxiliadora, mas essa não era sua realidade há alguns anos. Desde criança Stênio sempre frequentou a igreja, mas na adolescência resolveu abandonar tudo. Parou de ir à missa, passou a sair mais com os amigos e a rotina religiosa se transformou em farras. Festas até altas horas da madrugada, muita bebida e diversão. Em determinado momento, entrou em desespero. “Chegou uma hora que me perguntei o que estava fazendo com minha vida! De repente tudo começou a dar errado, meu amigo morreu, meu pai ficou doente, eu só queria saber de me divertir enquanto minha mãe precisava do meu apoio.” A volta para a igreja não foi de imediato. Stênio viajou para um retiro com a família. Lá, escreveu um bilhete para Deus com os seguintes

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Fiel reza na capela da Paróquia Santa Edwiges, protetora dos endividados, 905 sul dizeres: “Senhor meu Deus, olhe por meu pai, o ajude a superar os problemas e as doenças, proteja minha mãe nessa jornada e guie meus passos, me ajude a ser uma pessoa melhor e mais íntegra”. Diante dos problemas, o jovem sentiu falta de algo para se apegar: alguém que pudesse lhe dar forças para enfrentar os obstáculos. Para ele, foi necessário passar por algumas provações para perceber que a presença de Deus pode ser percebida no dia-a-dia de qualquer pessoa. “Na verdade, me faltava amadurecimento no que diz respeito à fé”, diz. No ano passado, devido aos problemas, Stênio voltou a freqüentar a igreja. Rigorosamente, toda quarta-feira ele estava presente na missa e sempre deixava um papel com uma oração: “Senhor, eu quero trilhar pelos Teus caminhos, faça de mim um instrumento da Tua glória!”. Um dia, voltando para casa, recebeu um convite para coordenar o grupo

jovem. Não aceitou pois não se sentia preparado para a função. Uma jovem da paróquia aceitou o cargo, mas dois dias depois ligou para Stênio dizendo que não teria capacidade de seguir em frente. A família estava com problemas e ela estava doente. Foi aí que Stênio percebeu que aquela era a oportunidade para provar o que ele pedia todas as quartas-feiras nos bilhetes. “A única coisa que tinha coordenado na vida até então foram cachaçadas (risos), mas dessa vez a coisa era séria.” Assumiu a coordenação do grupo com apenas 8 pessoas. Hoje são 48. Para Stênio, Deus atende os pedidos “por amor”. “Ele nos ama incondicionalmente. Apesar de saber de nossas necessidades, não interfere no nosso livre árbitro. Temos o poder de escolher o que queremos para nossas vidas.” artefat *Agradecimento especial ao professor Lunde Braghini

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Mariana Santiago

Infográfico

De olho na conjuntivite Com a proximidade do inverno, o clima frio e seco deixa os olhos vulneráveis a contaminações. É justamente nessa época que a conjuntivite se espalha, pois essas condições facilitam a propagação. Apenas no início do mês de maio, a Secretaria de Saúde do Distrito Federal já havia decretado surto da doença, com nove mil casos registrados. Número 50% maior em comparação ao mesmo período do ano passado. A justificativa desse aumento se dá pela mutação do vírus, que o deixou mais resistente.

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política

Entre a cruz e o arco-íris

Discussões sobre criminalização da homofobia, união civil entre pessoas do mesmo sexo, anencefalia e kit gay nas escolas expõem divergências entre militantes cristãos e defensores de um Estado laico

Lilian Alves (texto e fotos)

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este ano, o Brasil acompanha uma disputa acirrada que opõe, em várias instâncias, grupos cristãos e representantes de organizações que dão suporte às causas feministas e homossexuais. Congresso Nacional, Supremo Tribunal Federal e a Esplanada dos Ministérios têm sido os palcos principais desse debate. No dia 1° de junho, com a intenção de “preservar a constituição tradicional da família (pais e filhos heterossexuais) e declarar oposição ao Projeto de Lei n° 122/2006”, o pastor Silas Malafaia convocou manifestação que reuniu cerca de 20 mil cristãos em frente ao parlamento. “Já existe uma lei contra a homofobia. Homofóbica é uma pessoa doente que quer matar, bater em homossexual. Para isso já tem lei. Então o que vale para um heterossexual, se apanhar ou bater, vale também para um homossexual”, afirmou. Eles entregaram um abaixo-assinado com um milhão de assinaturas ao presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP) Um grupo de 40 pessoas que defende a causa homossexual protestou ao lado da manifestação cristã. Uma das militantes era a integrante da asso ciação lésbica Coturno de Vênus Karen Lúcia Borges, 28 anos. “O Estado precisa ser laico. Política é para todo mundo e não deve ter negociação religiosa. Uma crença não pode sobressair”, disse Karen. Até 26 de junho, data da Parada do Orgulho LGBT em São Paulo, ativistas favoráveis ao projeto prometem coletar 1,5 milhão de assinaturas. Apresentado em 2001 pela então deputada Iara Bernardi (PT-SP) e sob a atual relatoria da senadora Marta Suplicy (PT-SP), o PL n° 122 tem o objetivo de criminalizar a homofobia. Um dos pontos polêmicos é o artigo 8°: “O disposto neste artigo envolve a prática de qualquer tipo de ação violenta, constrangedora, intimidatória ou vexatória, de ordem moral, ética, filosófica ou psicológica”.

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Manifestação contrária à aprovação de projeto que criminaliza a homofobia reuniu quase 20 mil em frente ao Congresso

Homofóbica é uma pessoa doente que quer matar, bater em homossexual.

Para isso já tem lei Pastor Silas Malafaia

Por questionar moralmente a homossexualidade, religiosos entendem que poderiam ser punidos por manifestar opinião contrária à prática da sexualidade entre pessoas do mesmo sexo. “A conduta de um sacerdote que, em uma homilia, tratar do assunto condenando-o poderá ser enquadrada como crime”, afirmou o advogado Paulo Fernando, ao prestar parecer jurídico sobre o projeto no Congresso Nacional. A senadora Marta Suplicy promete fazer alterações no texto para atender parte das reivindicações religiosas e dar mais chance de aprovação ao texto.

O kit polêmico Produzido pelo Ministério da Educação e composto por três filmes curtos e um guia para professores, o chamado kit anti-homofobia foi outro foco de conflito. As produções abordam transexualidade, bissexualidade e lesbianismo. Seriam distribuídas a seis mil escolas. Suspenso pela presidente Dilma Rousseff depois de pressão dos grupos religiosos, o material trazia beijo entre garotas do mesmo sexo. “A suspensão do kit mostra quanto o Brasil pode fazer conchavo com a Igreja e não com os direitos humanos”, critica Karen, da associação Coturno de Vênus. Para o diácono Evaldo Pina, presidente da Associação Pró-Vida e Pró-Família, a Igreja Católica respeita e acolhe os homossexuais, mas não concorda com a promoção da homossexualidade. “O Estado tem a responsabilidade primordial de defender a vida e a família, pois entre os sexos há relação de complementaridade para a transmissão da vida no cumprimento do amor”.

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A primeira polêmica do ano opondo esses grupos veio com a decisão do Supremo Tribunal Federal, no início do ano, de legalizar a união civil entre pessoas do mesmo sexo. Os militantes da causa homossexual celebraram. “Foi um passo que a gente deu. Um Estado laico, democrático e igualitário deve respeitar todas as diferenças”, defende Gabriel Fontana, 17 anos, estudante de Serviço Social da Universidade Católica de Brasília. Em nota, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) reafirmou o modelo tradicional da família e questionou a legalização feita pelo Supremo e não pela Câmara. “Preocupa-nos ver os poderes constituídos ultrapassarem os limites de sua competência”

Movimento LGBT promete reunir 1,5 milhão de assinaturas favoráveis ao PL nº 122

Das eleições à cegonha Uma prévia desse embate ocorreu ano passado, durante a campanha eleitoral. Para garantir os votos do segmento religioso, a então candidata Dilma Rousseff teve de se reposicionar em relação ao aborto. Em sabatinas à revista Marie Claire e ao jornal Folha de São Paulo, em 2007, Dilma apoiou a legalização do aborto. Também em 2007, durante seu 3º Congresso Nacional, o Partido dos Trabalhadores fechou questão ao defender a legalização. Sob a ameaça de perder votos importantes, então candidata flexibilizou a opinião. “Não enviarei ao Congresso nenhuma medida para alterar legislação alguma. Sou pessoalmente contra o aborto”, afirmou a então candidata. Um dos contrapontos de Dilma para o tema foi bater

política

União civil divide opiniões

na tecla da Rede Cegonha, lançado oficialmente em 28 de março. Com previsão de investimento de R$ 9,4 bilhões até 2014, o programa promete atendimento adequado à gestante, do pré-natal aos primeiros anos de vida da criança. Coordenado pelo Ministério da Saúde e executado pelos estados e municípios, o Rede Cegonha terá como público-alvo 61 milhões de mulheres em idade fértil. Entre as estratégias está a garantia de vaga no atendimento hospitalar às gestantes e aos recém-nascidos. “Queremos implementar um novo modelo de atendimento à mulher e à criança para a redução da mortalidade infantil”, afirma Maria Esther de Albuquerque Vilela, representante do Ministério da Saúde.

STF decide sobre anencéfalos Outro “round” da disputa está previsto para a discussão sobre anencefalia, prevista para o Supremo Tribunal Federal. A anencefalia é uma má-formação que ocorre nos primeiros meses de vida do embrião e desencadeia a ausência de parte variável do encéfalo. A maioria dos bebês morre no parto. Dos que sobrevivem, cerca de 1%, quase todos falecem até o terceiro mês. O STF reabrirá neste ano a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF n° 54), que solicita que não seja considerado crime o aborto de anencéfalos. Uma das defensoras da ADPF é a antropóloga Débora Diniz, doutora pela Universidade de Brasília (UnB). “Os anencéfalos dependem da escolha da mãe em serem abortados ou não, e podem ser classificados como seres subumanos, pois nunca chegarão a ser viáveis. Não

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há expectativa de vida na anencefalia”, sustenta. Doutora em microbiologia, também pela UnB, Lenise Garcia discorda. Ela ressalta que, mesmo com a deficiência, existe respiração espontânea, sem uso da assistência mecânica de aparelhos. Até por esse motivo, ressalta, as certidões de nascimento dos anencéfalos os caracterizam como nascidos vivos. “Fica claro nessa discussão que a intenção não é descriminalizar o aborto em situação de forte conflito emocional, mas de relativizar o respeito à vida e à dignidade de toda pessoa humana”, alega Lenise. Os contrários ao aborto nesses casos costumam citar a história da menina Marcela de Jesus, nascida em Patrocínio Paulista (SP). Mesmo sofrendo de anencefalia, ela sobreviveu por um ano, oito meses e doze dias. artefato

Foi um passo que a gente deu. Um Estado laico, democrático e igualitário deve respeitar todas as diferenças

Gabriel Fontana, estudante, sobre decisão do STF que legalizou a união civil entre pessoas do mesmo sexo

Bancada religiosa Não é só no STF que o tema está na pauta. Tramita na Câmara o Projeto de Lei nº 478/2007, que prevê o Estatuto do Nascituro. O texto é um contraponto ao PL nº1.135/91, que promove a descriminalização do aborto. “O nascituro é o ser humano concebido, mas ainda não nascido. E por ser concebido tem dignidade e proteção jurídica”, diz a relatora, deputada Solange Almeida (PMDB-RJ). A parlamentar integra a Frente Parlamentar em Defesa da Vida, composta por 205 deputados e senadores.

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cultura

Uma lupa sobre Hiroshima Obra clássica de John Hersey reconstrói a tragédia de 1945 a partir do olhar de quem sentiu de perto o poder da bomba atômica Mariana Alvarenga

Shigeo Hayashi/Memorial da Paz/Divulgação

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lançamento da bomba atômica sobre a cidade japonesa de Hiroshima em seis de agosto de 1945 matou 100 mil pessoas e deixou 100 mil feridos. Mais do que relatar números e destroços da guerra, em Hiroshima (John Hersey, Companhia das Letras) o autor se insere na vida de seis sobreviventes. Desde instantes de cada um antes da explosão da bomba, passando pelo esforço pela sobrevivência e o anseio de ajudar feridos, o livro traz um perfil minucioso de cinco japoneses e um alemão (posteriormente naturalizado japonês). Inicialmente sem vínculo entre si, Toshiko Sasaki, Mazakazu Fugii, Hatsuyo Nakamura, Wilhelm Kleinsorge, Terufumi Sasaki e Kiyoshi Tanimoto romperam sua rotina quando o bombardeio ocorreu. Em meio a escombros, poeira, estilhaços de vidro, fogo, agonia e dor, não puderam ao menos parar para pensar na causa da catástrofe. Jamais podiam supor que era uma nova modalidade de destruição em massa testada pelos EUA para encerrar a Segunda Guerra Mundial. A persistência para sobreviver e salvar vidas era a prioridade naquele instante. O doutor Toshiko Sasaki, um dos poucos médicos a escapar ileso, trabalhou por três dias seguidos com apenas uma hora de sono. Envolta em ruínas, minutos após a explosão, a senhora Nakamura só pensava em salvar os filhos. O afeto e a compaixão não era característica apenas de médico e mãe. Uma japonesa generosamente distribuía folhas de chá para matar a sede dos feridos. Enquanto procurava sua família, o reverendo Tanimoto via cidadãos mutilados por todo o caminho. Compadecido, pedia desculpas por não estar em tais condições. Cinco anos após a tragédia, ele manifestou seu desejo de paz nos Estados Unidos e impressionou os senadores com uma oratória isenta de ressentimentos. Hiroshima comove até pela forma de agir dos cidadãos japoneses, seguindo princípios da cultura oriental diante da calamidade. Numa apuração detalhada, John Hersey valoriza cada personagem, mostra suas emoções e

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pensamentos como se soubesse exatamente o que estavam sentindo. Ele descreve com toda precisão possível os locais por onde os sobreviventes passaram e os destinos de cada um.

Desconforto

Imagem de 1945 mostra a cidade dizimada pela bomba

A Sra. Hatsuyo Nakamura, a viúva do alfaiate, lutou para desvencilhar-se das ruínas de sua casa, após a explosão, e, ao ver sua caçula, Myeko, soterrada até o peito e incapaz de se mover, rastejou pelos escombros, afastando tábuas e removendo telhas, no afã de libertar a menina. Então ouviu duas vozes, provenientes das profundezas, do que parecia uma caverna distante: “Tasukete! Tasukete! Socorro! Socorro! Ela chamou o filho de dez anos e a filha de oito: “Toshio! Yaeko!” As vozes responderam.

Mal teve tempo de pensar que estava morrendo, pois logo constatou que estava vivo, imprensado entre duas vigas em V, mantido na posição vertical, de modo que não conseguia se mexer, com a cabeça miraculosamente acima da água e o torso e as pernas submersas. Os destroços do hospital se espalhavam ao seu redor numa mistura louca de estilhaços de madeira e anestésicos.

Hiroshima John Hersey Cia. das Letras 176 páginas Preço: Entre R$ 30 e R$ 40

Diferente da ficção, o jornalismo literário traz um desconforto no leitor. Por mostrar de perto o infortúnio de uma cidade inteira e o sofrimento de seis pessoas, o autor cria uma empatia entre quem lê e os personagens reais da história. Apesar de não presenciar a dor de cada um deles naquele seis de agosto de 1945, Hersey ouve com atenção as histórias dos hibakusha (termo usado para designar as pessoas atingidas pela explosão) para escrever Hiroshima. De forma linear e novelística, seu trabalho de reportagem compromete-se com os fatos e com descrições da vida cotidiana dos personagens. Sua obra é fruto de muita apuração, observação e imaginação para fazer jornalismo nos moldes de uma ficção, onde a veracidade é a essência. Os recursos são vários. Cenas, diálogos, descrição do ambiente. O jornalista apresenta os acontecimentos na visão de cada um dos seis sobreviventes, “dando ao leitor a sensação de estar dentro da mente da personagem”, nas palavras de Tom Wolfe, um dos fundadores do chamado Novo Jornalismo. Hersey teve a ideia do formato da reportagem na viagem para o Japão, lendo A ponte de São Luís Rei, de Thornton Wilder, relato de uma tragédia no Peru pelos olhos de cinco sobreviventes. Em 19 dias na Terra do Sol Nascente, retornou com uma boa história para contar. Publicada na revista The New Yorker em edição especial, Hiroshima tornou-se livro-reportagem e é até hoje considerado por muitos uma das melhores reportagens de todos os tempos. Quarenta anos depois, o autor retornou à cidade, colheu mais depoimentos e concluiu a história. Hiroshima é considerado um dos primeiros textos classificados como integrante do Novo Jornalismo. Encantadora e comovente, a obra é recomendada tanto para estudantes de jornalismo quanto para os que querem conhecer um pouco mais da tragédia de 1945, em uma perspectiva totalmente inovadora. artefato

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Um cortejo de artistas populares convocou a população para a inauguração: resgate

Haiany Melo

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uem cruza a Estrutural não imagina que as margens daquela via escondiam quase meio século de história e sofrimento de uma comunidade que nasceu e sobreviveu do lixo. Essa trajetória começa a sair do esquecimento e ganhar a voz dos próprios moradores por meio de materiais resgatados ao longo desses anos, como aparelhos de televisão, rádios, câmeras fotográficas, esculturas formadas por pneus para representar os protestos que fechavam a Via Estrutural, objetos decorativos em ferro, cortinas e divisórias de garrafas pet e tampinhas. Tudo isso, além de muitas fotos, agora compõem o Ponto de Memória da cidade, um espaço de 96 metros quadrados no Conjunto E da Quadra 9 inaugurado no fim de maio. Os primeiros moradores da Estrutural foram atraídos pela possibilidade de renda e alimentação dos resíduos provenientes das regiões administrativas do DF. Os habitantes foram se aglomerando ao redor desse lixo, onde acabaram construindo barracos e formando a invasão, berço do que hoje é a Cidade Estrutural. Adoaldo Alencar é um dos antigos moradores e lembra que o local não tinha qualquer infraestrutura, como água, energia e esgoto. “Só nós sabemos o sofrimento que enfrentamos. Nunca contamos com o apoio dos governantes. Tivemos que lutar muito para permanecer. Em razão da nossa luta, hoje podemos retratar nossa história. Esta comunidade tem cultura e não só miséria”, conta Adoaldo, abraçando a filha, que foi criada na Estrutural.

Mudança de rótulo As lutas contra governantes que ali já quiseram arrancar barracos, trabalhadores, mulheres e crianças – até por conta da proximidade do local com nascentes de água – são eternizados nos relatos dos moradores no Ponto de Cultura. Para a líder comunitária Maria Abadia, que vive há 17 anos ali, a iniciativa valoriza a história e tem potencial de tirar da região, aos poucos, o rótulo de cidade violenta. “É preciso conhecer o passado para escrever o futuro. O Ponto de Memória ajudará a cidade em tudo, até mesmo com o crescimento e

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Por uma Estrutural mais cultural

cultura

Fotos: Marcela Mattos/Divulgação

História de lutas, resistência e criatividade dos moradores da cidade que cresceu em torno do lixão ganha registro no ponto de memória

a visão da comunidade. Vai se tornar um ponto de visitação e mostrar que coisas legais acontecem aqui”, disse. Esse resgate histórico e cultural tem muita importância para os moradores, tanto que os motivaram a organizar o acervo e o evento de inauguração. Um cortejo passou pelas ruas da Cidade, acompanhado de músicos e dançarinos de Maracatu para convidar e arrastar as pessoas para o local. Muitos moradores que aderiram ao convite levaram em mãos objetos retirados do próprio lixão da cidade e imagens para compor o acerco. Fizeram parte do evento, também, um grupo de rap da própria cidade, a confecção de grafite por artistas locais e a projeção de vídeos. Hoje com cerca de 40 mil habitantes, a Estrutural é uma das 12 comunidades apoiadas pelo Programa de Ponto de Memória, criado pelo IBRAM, pelo Projeto Mais Cultura e Cultura Viva, do Ministério da Cultura, e conta com o apoio do Programa Nacional de Segurança com Cidadania (Pronasci), do Ministério da Justiça. A ação busca fortalecer vínculos sociais e compor a história e a vivência desses moradores para a sociedade. Para Mário Chagas, diretor do Ibram, o Ponto de Memória apresenta uma nova visão do que é a Estrutural. “Traz um elo entre a comunidade e sua história”. artefato Os pneus simbolizam resistência: usados em barricadas e protestos

Visite Ponto de Memória da Estrutural Quadra 9, Conjunto E, lote 21

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cultura

Brasilienses se movimentam para acompanhar o Rock in Rio, seja por meios próprios ou por pacotes de empresas especializadas

A capital na cidade do rock Divulgação

Renata Bittes

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inda dá tempo de garantir presença no Rock in Rio. Só na pré-venda foram vendidos 100 mil ingressos. No período oficial de comercialização, as entradas se esgotaram em quatro dias, masalgumas empresas prometem resolver o problema de quem não conseguiu comprar. O festival, marcado para 23, 24, 25 e 30 de setembro, além de 1º e 2 de outubro, acontecerá em Jacarepaguá, na Cidade do Rock, no Rio de Janeiro - mesmo bairro da primeira edição, em 1985. A operadora de turismo TAM Viagens fornece quatro modalidades de roteiros, que levam em conta diferentes perfis de espectadores: Rockstar, Classic, On the Road e Hardcore. O Rockstar, por exemplo, oferece passagem aérea, hospedagem nos principais hotéis do Rio, traslados e ingresso para área VIP. Todos os roteiros completos (com ingresso) e pacotes que não incluem ingresso estão disponíveis. Os preços variam de R$ 525 a R$ 3.985,84 e podem ser parcelados em até 10 vezes.

Bate e volta A Rock Total Excursão oferece, para 25 de setembro e 2 de outubro, o serviço conhecido como “bate e volta”, que consiste em assistir aos espetáculos e retornar a Brasília assim que o show termina. O serviço inclui ingresso, ônibus de luxo e sorteio de brindes. Custa R$ 650, valor que pode ser parcelado em até 3 vezes. Quem já tem ingresso e quer apenas o transporte paga R$ 260 em até cinco vezes. “Recebo cerca de 10 e-mails por dia e várias ligações. A maior procura está para o dia do metal”, afirma Luis da Silva, conhecido como Luis Rock Total, dono da empresa. Ao todo, há 30 pessoas confirmadas para cada dia. “Até setembro, penso que fecharemos mais de um ônibus para cada dia. Tem gente que deixa para procurar em cima da hora”. Há, também, quem se vire sozinho.

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Mariana Mello mora na capital e mesmo antes da divulgação das bandas já queria ir. “Em 2001, não pude porque era universitária e não tinha dinheiro. Dessa vez, botei na cabeça que ia, pois nunca se sabe quando haverá outro festival desse no Brasil”, diz a servidora pública. Ela tem ingressos para 1º e 2 de outubro, mas ainda não reservou hospedagem. “Grande parte dos hotéis na Barra já está reservada ou com preços absurdos”, disse. Ela estima investir R$ 1.700 na empreitada. Já Antonio Mação é carioca, com família no Rio, mas vive em Brasília. Ele já garantiu

o ingresso para 25 de setembro, “dia do metal”, e pretende ficar hospedado em hotel para estar mais perto do evento. Mação esteve nas duas últimas edições do Rock in Rio, em 1991 e 2001. Como vai com a esposa, estima um gasto de R$ 2 mil. João de Oliveira estuda Psicologia na Universidade Católica de Brasília. Ele conta que deu trabalho comprar os ingressos, mas conseguiu confirmar presença em 24 de setembro e 2 de outubro. Ficará na casa de um conhecido. Só precisa garantir as passagens aéreas. “Estou artefato esperando só uma promoção.”

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“Meu caderninho”

A poetisa que passou 43 anos sem escrever para cuidar da família

André de Castro

Neusa guarda as poesias que escreve em um caderno que tem lugar cativo na estante da sala

André de Castro

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eusa Maria Queiros Silva nunca foi a um carnaval em toda sua vida. Morou na fazenda até os 14 anos e só conhecia as letras por meio da mãe. Ao se mudar para Frutal (MG), passou a frequentar a escola. O primeiro contato com a poesia foi quando a exigente professora da quarta série primária passou 20 textos para a turma decorar. Decorou todos. A poesia que mais chamou sua atenção foi O canto do Piaga, de Gonçalves Dias. “Sabe que outro dia eu a procurei na internet para relembrar algumas estrofes que havia esquecido?”, revela Neuza. Em 1957 se mudou para Uberaba. Foi estudar em um colégio interno de freiras. Tinha 17 anos e iniciaria o terceiro ginasial. Nessa época conheceu Maria de Canaã Moraes, uma garota um ano mais nova, de Marabá (PA). Se tornaram amigas inseparáveis e compartilhavam o gosto pela poesia. O convívio com a madre superiora e o ronco do trator trabalhando do lado de fora da sala eram transformados em poesias. Neuza lem-

bra quando escreviam escondido das freiras: “Elas pensavam que estávamos estudando mas, na verdade, escrevíamos poesia. Foi uma pena ter perdido minhas anotações”. Gostava da convivência entre as freiras e as diversas garotas de outras cidades, mas se sentia muito presa. Não tinha autorização dos pais para sair do colégio, tampouco ir ao cinema. “Lembro-me que Canaã podia sair. Os pais autorizavam”. As cartas que saíam e entravam no colégio eram lidas pelas freiras. Na época ela tinha uma “paquera” em Frutal e, para falar com o namorado, tinha de usar códigos. A remetente era uma amiga que repassava as mensagens para Vaninho. “Eu perguntava como estava a ‘Vaní’, ela sabia que era ele, e assim nos correspondíamos”. A falta de liberdade foi um dos motivos que a levou a sair do colégio no ano seguinte. Ao voltar para Frutal escreveu a poesia Miscelânea da quarta série, em homenagem a cada colega da turma. Os 40 alunos que acabara de deixar pra trás foram descritos em 20 estrofes, cada uma dedicada a dois colegas. Ainda se

recorda do poema anotado num caderno perdido. “Corália estava sempre perfumada, Adelino era muito atencioso. Ambos muito estudiosos. A referência aos dois colegas é dos trechos que Neusa ainda se recorda: “Adelino bom aluno/ porém muito chorão/ segue logo a Corália/ com o cheiro de loção”. As memórias de um tempo perdido voltaram à tona há aproximadamente 12 anos, no dia do aniversário. O telefone tocou na sala de visitas, cheia de convidados. De início, Neusa não reconhecia a voz do outro lado, que dizia: “Oi Neusa, é a Canaã”. A amiga que não via há quase 50 anos. “Fiquei muito emocionada”, conta. Relembraram o passado. No calor da emoção, se esqueceu de perguntar à amiga se ela continuava a escrever. O telefonema inesperado era um presente de aniversário dos filhos de Neusa, que, com muito custo, encontraram Canaã em Belém (PA).

Da casa à sala de aula

Neusa terminou a oitava série quando tinha dezoito anos. Aos 19, parou de escrever. Casou-se aos 20 e, em 1961,


nasceu sua primeira filha. Num período de cinco anos estava com quatro filhos e passava dificuldades com o casamento. O marido “acabou com todo o dinheiro da família na farra”. Neusa resolveu voltar a estudar. O quarto filho estava com seis meses quando o segundo grau foi instalado em Frutal. Neusa não tinha condições de pagar a escola e recorreu à mãe, que bancou os três anos de estudos. Nesse período teve mais dois filhos. Tornou-se professora pelo magistério aos 28 anos. A diretora do colégio acreditava que Neusa não iria conseguir dar aulas e cuidar de tantos filhos. Mesmo assim, ela insistiu e foi lecionar para uma turma noturna da quarta série. Eram todos alunos adultos. Em 1970, já estava separada do marido, que se mudou para Brasília. Neusa ficou mais três anos dando aula, ganhando o salário mínimo da época. O governo de Minas Gerais, então, comandado por Magalhães Pinto, não pagava em dia. “Fiquei oito meses sem receber. Meu pai tinha que colocar tudo dentro da minha casa.” Sem gostar de depender da família, ela se incomodava. Foi quando o marido ligou disposto a reatar o casamento. Neusa decidiu vir para Brasília. Colocou a mudança em um caminhão, e em janeiro de 1972 foi morar na QND 19 em Taguatinga. Um mês depois passou em um concurso para professora. O salário era melhor e não havia atraso, as coisas estavam se acertando. O marido voltou a beber e deixou de ajudar em casa. Ganhava 750 cruzeiros e pagava 500 de aluguel. Os outros 250 eram para cuidar da casa e dos seis filhos. A mãe continuou ajudando. Neusa resolveu fazer faculdade. Integrou a primeira turma de pedagogia do colégio Marista. Não concluiu. O marido fazia questão de buscá-la na porta do colégio, sempre bêbado e de carro. “ Ele corria muito, por isso larguei o curso. Imagina se acontecesse um acidente e fica esse tanto de menino sem mãe no mundo, cursei apenas dois semestres.” Os filhos já eram adolescentes quando resolveu pedir demissão do colégio, em 1982. Dispensou a empregada e foi cuidar da casa. Ficou longe das escolas por três anos. Não agüentou. Fez outro concurso. Com 42 anos foi dar aula no P Sul, em

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Ceilândia. Demorava 35 minutos para chegar ao trabalho. Levantava às 5h da manhã, fazia o almoço e deixava em cima do fogão. Os filhos só tinham o trabalho de esquentar. Neusa se lembra de uma garotinha chamada Magna, a melhor aluna que já teve. Ela morava com tias, passava muitas dificuldades em casa. Um dia estava chorando na sala de aula. A garota estava com fome. Neusa, ao ouvir aquilo, encheu os olhos de água: “Tem dois dias que não como, tia”. Neusa pegou a garota pela mão e correu com ela para a cantina. O apego pelas crianças e as lembranças de Magna inspiraram, anos depois, a poesia Sonha criança:

“Sonha criança Criança faminta Que vaga nas ruas A busca de um pão Sonha criança Que dorme nas praças Nos becos sombrios Sem mesmo um colchão”... Reabrindo o caderno

Neusa aposentou-se aos 55 anos. Mas só voltou a escrever em 2002. “Agora estou memorizando o que escrevi, tenho que exercitar minha cabeça.” No ano passado fez 70 anos. Dias antes do aniversário, não conseguia encontrar seu caderno de anotações. O caderno com as poesias. A comemoração do septuagésimo aniversário teve missa e festa. ano meio da celebração, Olga, irmã do ex-marido, resolveu dizer algumas palavras em homenagem à aniversariante. Abriu um livrinho na página 21 e iniciou: “Meus filhos queridos, não tens a noção, de como os tenho, em meu coração”. Neusa logo reconheceu as palavras. “Quase acabaram comigo, caí no choro.” Era o início de um de seus poemas. A foto de Neusa estava na capa do livrinho.

Acervo pessoal

perfil

Neusa no tempo em que escrevia escondido das freiras. Até o convivio com a madre superiora era transformado em poesias

Em mais uma surpresa, os filhos haviam mandado encadernar 15 de seus poemas para distribuir aos convidados. “Se você olhar com atenção tem uns errinhos, pegaram sem eu saber, precisava editar algumas coisas.” Mesmo com as falhas, Neusa gostou da surpresa. Seu primeiro e único livro acabara de ser publicado. A ex-professora deixou de lado as poesias para criar a família durante um longo tempo. Ficou 43 anos sem escrever. Antes de casar, aos 19, fez sua última poesia. Só voltou a escrever aos 62. O caderno com as anotações fica na estante da sala. “Meu caderninho”, como gosta de chamar. As poesias escritas nele são suficientes para a publicação de um livro. E tudo indica que Neusa irá publicá-lo. “Estou estudando uma forma de transformar minhas anotações em livro”. A poética de Neusa Maria Queiroz Silva fala de sentimentos próximos: crianças, religião, família, amor e natureza. Cada um dos 16 netos e sete bisnetos tem uma poesia dedicada a eles. Uma outra é dedicada aos filhos, aquela lida no aniversário. artefato


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