Jornal Artefato 05/2016

Page 1

Ano 2016 - N° 2 - Jornal-Laboratório do curso de Jornalismo da Universidade Católica de Brasília - Distribuição Gratuita - Maio de 2016

COMPORTAMENTO

Mulheres que largaram tudo para cuidar dos filhos Pág. 10

CIDADANIA

A dificuldade de ser mãe atrás das grades

Foto: Webert da Cruz

Pág. 08


EDITORIAL Polêmica das liberdades

A democracia ainda se impõe como o governo da maioria. Entretanto, isto não quer dizer que as minorias sejam menosprezadas neste sistema. Ao contrário, elas devem ter seus direitos assegurados e respeitados por aqueles que compõem a maioria política e organizacional de uma sociedade. Pode parecer fortuito, mas todas as decisões tomadas no âmbito coletivo passam pelo princípio majoritário. De maior relevância, ainda, neste contexto, é a segurança do direito à individualidade daqueles que constituem uma sociedade democrática. Ainda que exista um governo da maioria, é preceito democrático a liberdade individual. As pessoas têm o direito de escolher sobre sua própria vida e destino. Trouxemos em nossa primeira edição as preferências de jovens mulheres que escolhem se relacionar com homens mais velhos a partir do interesse financeiro. Por mais inquietante que seja o tema, não nos coube fazer juízo de valor a partir da decisão individual de cada mulher ou homem, que escolhe fazer o que quiser de sua vida. Polêmica sim. Atual e real também. Já nesta edição trazemos a história de mulheres que decidiram deixar suas carreiras profissionais para se dedicar à “profissão” de mãe. Apesar de todo o avanço feminino no mercado de trabalho e no cotidiano social, estas mulheres escolheram retornar ao lar para cuidar de seus filhos e acompanhá-los durante a infância. É uma prerrogativa individual, é democraticamente correto. Mas é igualmente polêmico. Antagonicamente, trazemos também aquelas mães que usaram sua liberdade individual para tomar decisões que, dentro do sistema democrático, viola os direitos e liberdades individuais e por que não dizer os seus próprios. Feriram a individualidade alheia e ficaram reclusas ao sistema prisional, que é uma das instituições garantidoras do funcionamento da democracia. Estas mulheres, consequentemente, recebem como punição a retirada do seu poder de escolha individual. Tornam-se mães, sem poder exercer a maternidade. O assunto também suscita discussões, polemiza e confronta opiniões. Com todas as imperfeições existentes, a democracia ainda se mostra o melhor modelo de governança social. A decisão da maioria coletiva deve ser acatada, desde que seja respeitado o processo de direito da minoria. Em alinhamento com nossas reportagens, e salientando o direito individual da mulher e do homem, dedicamos um feliz mês das mães.

EXPEDIENTE Jornal-laboratório do curso de Jornalismo da Universidade Católica de Brasília Ano 17, nº 2, maio de 2016 Reitor: Prof. Dr. Gilberto Gonçalves Garcia Pró-Reitor Acadêmico: Dr. Daniel Rey de Carvalho Pró-Reitor de Administração: Prof. Fernando de Oliveira Sousa Diretora da Escola de Educação, Tecnologia e Comunicação: Drª. Christine Maria Soares de Carvalho Coordenador do Curso de Jornalismo: Prof. Dr. Joadir Foresti Professora responsável: Me. Fernanda Vasques Ferreira Professora auxiliar: Me. Cynthia Rosa Orientação de Fotografia: Me. Bernadete Brasiliense Apoio: Me. Fernando Esteban Apoio Técnico: Sued Vieira Monitores: Larissa Nogueira e Lucas Lélis Editores-chefes: Eliezer Lacerda e Pedro Grigori Editores de arte: Tatiane Alice e Webert da Cruz Editores de texto: Hariane Bittencourt, Katielly Valadão, Lorena Braga e Susanne Melo Diagramadores: Ana Póvoa, Bruno Barbosa, Giovana Gomes e Sarah Peres Editores de fotografia: Jhéssika Almeida e Micaela Lisboa Subeditores de fotografia: Ana Paula, Daniele Matias, Danilo Queiroz e Jordania Correia Editores web: Catarina Barroso e Jéssica Luz Repórteres: Amanda Lima, Ana Veloso, Andressa Guimarães, Bruno Santana, Daniela Martins, Dalila Boechat, Enoque Aguiar, Filipe Cardoso, Letícia Teixeira, Lorena Carolino, Maianna Souza e Maria Alice Viola Checadores: Aline Cabral, Brenda Knutsen, Juliana Procópio, Mayara Dias, Natália Martins e Pabline Souza Fotógrafos: Alan Rios, Aline Castelo Branco, Anna Paula Fernandes, Bárbara Carvalho, Beatriz Ferreira, Bruce Macedo, Celise Duarte, Daniele Matias, Danilo Queiroz, Diego Rodrigo, Douglas Ramalho, Ello Romanin, Evelin Criss, Gabriela Brandão, Gabriela Gregorine, Germana Brito, Giovanna Ferreira, Hellen Resende, Jordania Correia, Karine Santos, Karyne Nogueira, Layla Andrade, Leticia Leonardi, Letícia Viana, Lucas Valverde, Patrícia Benevides, Rodrigo Souza, Tatiana Castro, Virginia Barbosa e Vitor Stoianoff Ilustrações: Freepik.com Tiragem: 2 mil exemplares Impressão: Gráfica Athalaia Universidade Católica de Brasília EPCT QS 7 Lote 1, Bloco K, Sala 212 Laboratório Digital Águas Claras, DF Telefone: 3356-9098/9237 Todas as matérias têm ampliação de conteúdo na web. Acesse nossas redes sociais e site. E-mail: artefatoucb1@gmail.com Jornal online: issuu.com/jornalartefato artefatojornal.wordpress.com Página no Facebook: facebook.com/JornalArtefato

2


CIDADES Revitalização

Foto: Gabriela Brandão

Entre o sepultamento e a ressurreição Espaço Cultural Cine Itapuã sofre deterioração em meio a debates e promessas de reforma. Atuante, a comunidade cobra ação do governo

Diagramação: Tatiane Alice e Webert da Cruz

Ana Póvoa

Cadeiras quebradas, pintura desgastada, vidraças remendadas com pedaços de madeira, equipamentos de projeção sem condições de uso, salas tomadas por mofo. A cena poderia compor um filme de terror, mas é a realidade de um ponto histórico da cultura brasiliense, o Centro Cultural Cine Itapuã, no Gama. Ele foi o segundo cinema inaugurado no Distrito Federal e desde sua fundação, em 1963, já teve outros nomes como Cine Club e Cine Itapuã. Nos primeiros anos, projetou filmes históricos e foi ponto de encontro de artistas e moradores, fazendo parte da memória afetiva da população. Apesar disso, desde a década de 90 encontra-se abandonado. O ambiente está insalubre por estar há tanto tempo fechado, consequência do abandono das autoridades do DF, situação constatada e já divulgada em 2014 pelo Artefato. Ao longo de décadas, muito se falou sobre reformas. Mas, na prática, o discurso de preservação nunca se confirmou. Audiências públicas e manifestações da comunidade pediram a revitalização do local. De acordo com Wander Teles, assessor da Ouvidoria do Gabinete da Administração Regional do Gama que é a atual responsável pelo local, o Cine Itapuã esbarra na burocracia e no trocatroca de gestores que prejudica o andamento da reforma. Entre idas e vindas, no momento o que existe é um estudo para o projeto de revitalização: o Quadro de Detalhamento da Despesa (QDD), que demonstra o orçamento previsto para a obra. Em 4 de abril de 2016, a Administração assinou portaria conjunta com a Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap) transferindo o valor de

R$ 257 mil para a elaboração do projeto de reforma do Centro Cultural Itapuã. A transferência foi publicada, em 6 de abril, no Diário Oficial do Distrito Federal (DODF) e sua aplicação descentraliza e desbloqueia o crédito para a reforma. Maria Antônia, Administradora do Gama, também mostra seu empenho no projeto. ‘’Não só por ser administradora, mas como moradora da cidade, também me preocupo e anseio pela revitalização do local. Com esse objetivo busquei, junto à Câmara Legislativa, recursos financeiros para serem utilizados nessa revitalização’’. A previsão da administração é que a obra seja executada em duas fases. A primeira é restaurar a área ao redor do local e o coreto da Praça do Cine Itapuã, projeto do arquiteto Oscar Niemeyer, e em seguida a parte interior do prédio. “A concepção arquitetônica obedece às correntes estéticas do modernismo, com a fachada livre, pé direito duplo no hall principal e linhas harmônicas buscando um domínio do espaço através de uma geometria.”, explica Rock Lane, gerente de Aprovação e Licenciamentos de Projetos da Administração do Gama. Com glamour ou não, o fato é que a população cobra o retorno das atividades do Cine Itapuã, um elefante branco que passa de mão em mão nas administrações.

Memórias Hoje é fundamental humanizar o local, completamente abandonado e sem estrutura. Ariomar Nogueira, formado em filosofia, história, arquitetura e urbanismo, é morador e um dos principais produtores de cultura

da cidade. Autor de 22 monumentos de arte espalhados pelo Gama, ele é considerado cidadão honorário de Brasília e se lembra dos bons tempos do lugar. “Frequentei o local quando eu tinha 16 anos. Nesse momento, despertei para o convívio cultural, pois esse espaço simboliza a sensibilidade de diferentes manifestações artísticas e já foi palco de artistas renomados”, recorda. Como cidadão, ele destaca a indignação que sente pelo estado de abandono do local: “A falta de interesse sociocultural em restaurar um patrimônio cultural prejudica toda a comunidade” Maria Alcântara é estudante do Centro 1 do Gama, local que já serviu para audiências públicas. Ela conta um pouco sobre a sua atuação nessas ações da comunidade em prol do Espaço Cultural. “Já participei de reuniões com a comunidade para cobrar a revitalização do local. Meus pais me contam sobre a época que o cine funcionava, e eu tenho muita vontade de ver esse espaço aberto’’, relata. Altervir Batista também é morador participativo da cidade e ressalta a importância do espaço para atividades comunitárias por proporcionar lazer e cultura para a população. Ele resgata memórias de infância que sempre estiveram ligadas à imagem do local. “Na infância lembro de assistir a muitas apresentações, encontrar amigos e brincar naquela praça”, relembra. Hoje, se entristece por não poder trazer os filhos para desfrutar da mesma experiência. Nostalgias à parte, promessas não cumpridas também, o fato é que a comunidade e integrantes do conselho artístico da cidade cobram medidas eficazes para dar um final feliz ao filme triste que não parece ter data para terminar. 3


SAÚDE Fora do padrão

Não é questão de peso

Especialistas afirmam que estar acima do peso não significa ter saúde ruim, mas alertam para os cuidados a serem tomados

Foto: Jordania Correia Diagramação: Ana Póvoa e Webert da Cruz

Amanda Lima e Andressa Guimarães

44

Tem que ser magra, não pode ser muito alta, o cabelo tem que ser liso e a maquiagem deve estar intacta. Ter boa aparência, fazer dieta para ter o corpo perfeito. Não é de hoje que esses padrões são impostos às moças. No século passado, mulheres com seios, coxas e barriga avantajadas eram apontadas como as mais belas. As que fugiam desse padrão, eram consideradas desnutridas ou doentes. Atualmente, ser magro, é um dos elementos do conjunto chamado beleza. Mas o desespero com o ponteiro da balança muitas vezes desconsidera a preocupação com a saúde. A busca pela perfeição do corpo pode levar à obsessão, que faz com que o indivíduo tome atitudes extremas. Luíza*, mede 1,64 e chegou a pesar 42 kg aos 21 anos. Ela afirma que sua paixão pela moda a fez entrar em um mundo de dietas e exercícios em busca do corpo magro e ideal, mas o peso baixo resultou em anorexia. “Eu não conseguia perceber o mal que estava me fazendo, até que comecei a sentir muita dor no peito e fraqueza nos ossos”, relata. Segundo a psicóloga especialista em avaliação de candidatos a cirurgias bariátricas, Andreza Sorrentino, os padrões estéticos divulgados pela mídia podem ser influência negativa e criar na pessoa uma expectativa irracional de obter um corpo perfeito. “Por não atender a esses padrões, a pessoa passa a ser seu próprio torturador. Logo, o processo de aceitação precisa ser trabalhado, desconstruindo modelos estabelecidos e ampliando a percepção para que o indivíduo reconheça que o belo ultrapassa o que é utilizado como

referência”, destaca. A endocrinologista especialista em diabetes e emagrecimento, Ana Rachel, afirma que o estereótipo do gordo como sinônimo de desleixo deve ser deixado de lado. “Hoje existem vários estudos que influenciam no entendimento do metabolismo de cada um. Não dá para generalizar”, pontua. Ela conta que já teve pacientes com excesso de peso que não tinham nenhuma outra doença associada à obesidade e com composição corporal de muita massa magra.

Gorda e saudável Ao contrário do que se pensa, estar acima do peso não significa ter saúde ruim. Nosso padrão de beleza é, inclusive, tema de pesquisas em comunicação, filosofia e antropologia. A doutora em comunicação, Lúcia Santaella, enfatiza, em um de seus livros, que a cultura tende a ser padronizada. Isso envolve a repetição de comportamentos similares aprovados pelo grupo, por isso quem foge da beleza padrão, às vezes é excluído de grupos sociais, recebe ofensas ou é criticado. Nathália Fraga, 20 anos, atualmente pesa 115 kg e se diz satisfeita com o corpo. Em apenas dois anos, engordou 28kg, e foi uma “transição dolorosa”, pois segundo ela o aumento de peso fez com que as pessoas começassem a tratá-la de maneira diferente. Olhares incomodados começaram a ser frequentes além de muitas opiniões sobre seu corpo disfarçadas de receio com a saúde “O argumento da saúde é o mais usado para começar o discurso

contra o corpo gordo”, relata. Mas apesar de estar acima do peso, Nathália faz exames anualmente e eles nunca apontaram problemas de saúde. Isso ocorre porque ela mantém uma alimentação equilibrada e não apenas fast food ou comidas industrializadas. “As pessoas não acreditam que podemos ter nossos exames em ordem, nosso corpo funcionando corretamente mesmo estando acima do peso”, desabafa. Mesmo que a obesidade seja uma doença que acarrete outras, como hipertensão, alto colesterol, dores articulares e apneia do sono - parada respiratória -, nem todo excesso de peso é maligno. A nutricionista Jaciara Casemiro, relata que a obesidade é uma doença complexa e não há dúvidas quanto à importância de atividade física regular e alimentação adequada, mas fatores ambientais e genéticos são importantes quando estão envolvidos no desenvolvimento da obesidade. Assim, ela recomenda. “É essencial saber se adaptar às situações e ter prazer de viver”, conclui.


COMPORTAMENTO Livros

Ler junto é bem melhor

Pesquisa revela que brasileiro lê, em média, apenas dois livros por ano, mas grupos de leitura tentam mudar essa realidade e compartilhar conhecimento

Aventuras, ação, um pouco de drama ou um belo romance. Os livros são conhecidos por levarem o leitor a outro mundo. Eles dão asas à imaginação e ampliam o conhecimento, transformando histórias de vida. Pensando nisso, novas iniciativas surgem na capital e alcançam leitores assíduos e quem não tem o costume de ler. São os chamados grupos de leitura. Inspirado na campanha #readwoman2014 lançada pela escritora britânica Joanna Walsh nas redes sociais, o grupo Leia Mulheres surgiu em fevereiro de 2015, em São Paulo. Idealizado pela consultora de marketing Juliana Gomes, a jornalista Juliana Leuenroth e a transcritora Michelle Henriques, o grupo completou um ano em março e está presente nas cinco regiões do país, incluindo o Centro-Oeste e a cidade de Brasília. Aberto para quem quer participar das atividades, o grupo prioriza a leitura de obras de escritoras. A jornalista Patrícia Rodrigues é uma das representantes do Leia Mulheres no DF e conta que as reuniões estão alcançando cada vez mais um novo público. “Inicialmente os participantes eram tão aficionados por literatura como nós, mas com o passar dos encontros e com a popularização do clube, nota-se que novos ‘curiosos’ estão participando”, afirma. Pesquisa realizada pela agência Londrina NOP World, responsável por um estudo de mercado em todo mundo, constatou que de 30 países avaliados o Brasil fica em 27º lugar em número de leitores ativos. Segundo os dados, o brasileiro lê em média dois livros completos por ano e dedica

aproximadamente cinco horas semanais para a leitura, mas a televisão é o meio de comunicação que ocupa a maior parte do tempo livre da população. A jornalista Mariana de Ávila, uma das representantes do Leia Mulheres em Brasília, ressalta a importância e os benefícios dos clubes de livro. “Realizamos momentos de debate, em que é possível conversar, compartilhar ideias e ouvir perspectivas diferentes de um mesmo livro. Livros também são responsáveis por formar e fortalecer amizades”, explica.

Transformando vidas Apaixonada por viajar e conhecer gente nova, Jaciara França, 28 anos, conheceu o grupo Leia Mulheres no Facebook. “O conhecimento que tenho adquirido no clube tem sido um incentivo para ideias. Não tenho nada concreto ainda, mas quem sabe não nasce uma escritora?”, indaga.

Pensando na importância de começar a ler logo na infância, a escritora Alessandra Roscoe sempre leu para os filhos, esse hábito criou a vontade de dividir histórias com outras crianças. Foi então que ela decidiu ser mediadora de leitura. Alessandra participa de eventos nas escolas e utiliza música, encenação e contos para atrair os olhares das crianças. Uni duni Ler, criado por ela em 2009, é um dos projetos direcionados para o público infantil. Já o Caixinha de guardar o tempo é um projeto que auxilia na reconstrução da memória a partir da literatura com idosos pacientes de Alzheimer. “Sempre que você ouve alguém falando sobre um livro pelo qual é apaixonado, certamente vai querer viver as emoções da leitura e se precisar de um empurrãozinho, tenho certeza que a leitura partilhada, em voz alta e carregada de afetos, pode ser um ótimo começo”, finaliza.

Foto: Douglas Rodrigues/Divulgação

Diagramação: Giovana Gomes

Katielly Valadão e Pabline Souza

Encontro do grupo Leia Mulheres que acontece quase todo mês no Casa Park

5


EDUCAÇÃO Educação inclusiva

Entre a excelência e os desafios DF se destaca na orientação especializada para crianças com capacidade intelectual acima da média. Professores são diferenciais no acompanhamento aos alunos Letícia Teixeira e Lorena Braga

Bianca Rodrigues é aluna do sexto ano do ensino fundamental, e frequenta a Escola Classe 64 de Ceilândia. Aos dez anos de idade começou a receber orientação de um psicopedagogo, quando o professor percebeu que ela tinha altas habilidades. “Eu me sinto diferente dos meus colegas por gostar de estudar ciências, que é uma matéria extraordinária, principalmente astronomia. Estudo muito os buracos negros e a teoria da relatividade e as pessoas não gostam muito desse tipo de assunto”, conta. Apesar de Bianca ser vista como um caso raro, a Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que entre 3,5% a 5% da população brasileira – uma a cada vinte pessoas - seja composta por pessoas com desenvolvimento intelectual acima da média e muitas delas nem sabem que possuem essa característica. Segundo o Conselho Brasileiro para Superdotação (ConBraSD), no Brasil, apenas os estados do Paraná, Acre, Mato Grosso do Sul e Distrito Federal oferecem atendimento de boa qualidade para crianças com Superdotação. Para a presidente do ConBraSD Suzana Peréz, a escola tem o papel de identificar e oferecer oportunidades de desenvolvimento para crianças com esse diagnóstico: “A escola deve formar seus professores para que possam oferecer a elas atendimento educacional especializado ao qual têm direito por lei e permitir que cresçam como pessoas saudáveis”. De acordo com o Decreto Nº 7.611, de 17 de novembro de 2011, artigo 2º, as escolas públicas devem oferecer aos alunos as salas de 6

recursos. Equipadas com materiais didáticos e pedagógicos específicos como jogos de perguntas, raciocínio lógico, lego e outros, a sala multifuncional deve ser um lugar colorido, com vários desenhos e cartazes na parede, ter instrumentos de laboratório para promover condições de acesso e melhor conhecimento aos estudantes. No DF, o Atendimento Educacional Especializado (AEE) para crianças com altas habilidades (AH) ou também chamado de superdotação (SD), é oferecido nas escolas públicas há 40 anos. Desde abril de 2015 a regulamentação estabelece que o acompanhamento dos estudantes desde o início da educação infantil até o último ano escolar. “Toda essa ajuda é para a construção de identidade e de motivação do aluno. Devese aceitar que a criança é diferente, pensa e tem interesses diferentes. Ela tem que ser aceita para não ser desmotivada, não ter mais vontade de, por exemplo, frequentar a escola”, defende a psicopedagoga Mical Vieira, que trabalha com crianças do primeiro até o sexto ano do ensino fundamental. Por essa razão, é oferecido acompanhamento de psicopedagogos, psicólogos e em alguns casos, professores especializados em áreas como artes, informática e robótica. Para ela, o diferencial é o entusiasmo dos professores em procurar se especializar no assunto e incentivar o aluno. “É necessário que tenha especialização e faça vários cursos, pois cada aluno possui uma dedicação e talento diferente”, ressalta. A psicopedagoga teve que, logo no início

da carreira, procurar cursos e formações para complementar sua área, pois o aluno superdotado exige muito do professor. “Fiz algumas formações especificas. Por exemplo: eu tinha um grupo grande de alunos que tinham interesse por insetos e como não tenho formação em Biologia eu tinha que estudar sobre o assunto para acompanhá-los e melhor orienta-los” conta.

Superando os obstáculos Os desafios são muitos. A família e a escola precisam estra preparadas. A psicopedagoga Carla Oliveira, da escola classe 64 de Ceilândia, reclama da falta de materiais e das vezes que foi preciso tirar dinheiro do próprio bolso para a compra de equipamentos. “Para ser uma sala completa o que falta são recursos. Não temos acesso à internet, os livros já estão defasados, mas é o que a gente tem, não podemos deixar de trabalhar por causa disso”, desabafou. A professora Sandra Machado, especialista em arte-terapia, trabalha com crianças que têm interesse por artes visuais. Segundo ela, as atividades melhoram o desempenho escolar e estimula os estudantes. “Uma das minhas maiores dificuldades é conseguir material. Cada aluno trabalha com um tipo de pintura diferente. Tenho alunos que utilizam tinta a óleo que é um material muito caro”, afirma a professora. Mas ela usa a criatividade para suprir a necessidade de seus alunos. “Para arrecadar material vendemos algumas obras dos alunos. Do valor arrecadado, 50% são do estudante


e os outros 50% compramos materiais para a sala. Além do material os alunos se sentem reconhecidos e estimulados”, avalia Sandra.

Segundo a professora doutora Susana Pérez, presidente do ConBraSD, o papel da família é informar-se sobre o tema, oferecer apoio e suporte para que essas crianças possam ser felizes, educar, como qualquer outra criança. A funcionária pública Jacqueline Pacheco ficou surpresa ao saber que sua filha de seis anos - hoje com dez - era superdotada, logo que entrou na escola. Segundo ela, isso era algo distante de sua realidade. “Minha reação foi de surpresa, orgulho e insegurança, pois havia e ainda há muitas dúvidas quanto ao atendimento prestado a essas crianças com AH. Fiquei mais atenta aos questionamentos e interesses relativos a estudos por parte dela, além dela passar a ser uma aluna assídua na sala de recursos”, conta. O incentivo é o foco principal porque esses alunos acabam perdendo o interesse pelos estudos por não terem o suporte de que precisam. Jacqueline diz que o apoio é no dia-a-dia, pois sua filha que tem habilidades em português e matemática exige que seja feito um trabalho além da escola. “Incentivamos levando-a a feiras de livros, comprando livros e fazendo assinatura de gibis do interesse dela. Além de criar problemas matemáticos do diaa-dia, como total gasto em mercado, total de troco, e assim, solicitar a ela ajuda para chegarmos ao cálculo correto”, explica a funcionária pública. A maioria dos alunos são orientados pela instituição escolar regular, a partir de uma avaliação de professores e psicólogos a acelerarem no fluxo escolar que adianta uma ou mais séries. Existem controvérsias a respeito do assunto. Em pesquisa, a psicóloga Renata Maia concluiu que a aceleração é necessária e não resulta em dificuldades posteriores na sua formação educacional. Mas a presidente da ConBraSD discorda: “Deve ser realizado com muito cuidado, com o consentimento do aluno, da família e do professor que o recebe

Foto: Virginia Barbosa

Diagramação: Sarah Peres

Escola e família

A estudante Bianca Rodrigues recebe acompanhamento na rede pública de ensino desde os 10 anos

e acompanhado para verificar se houve adaptação adequada do aluno a sua nova realidade. Pessoalmente não sou favorável à aceleração no contexto brasileiro porque as escolas não estão preparadas para realizar esse processo adequadamente”. Pouco se sabe sobre as necessidades e como é diagnosticado um estudante com altas habilidades/superdotação. Para identificar uma pessoa com AH/SD é necessário ter conhecimentos sobre o tema. A presidente do ConBraSD explica que a pessoa com AH/SD possui três conjuntos de traços que a identificam: habilidade acima da média em uma ou mais áreas do saber ou fazer humano; elevado grau de criatividade e comprometimento com a tarefa na área de interesse. Segundo o livro Altas habilidade/

superdotação: encorajando potenciais, classifica as crianças superdotadas em duas categorias: a superdotação escolar e superdotação criativo-produtivo. Para diagnosticar, é necessário fazer reste de habilidades. O livro explica que é possível reconhecer a superdotação quando a criança apresenta rico vocabulário para a idade, tira boas notas, apresenta excelente raciocínio verbal e/ou numérico, lê por prazer e gosta de livros técnicos/ profissionais. O superdotado criativo-produtivo não necessariamente apresenta QI superior. Ele é criativo e original, gosta de fantasiar, é produtor de conhecimento e não gosta de rotina. “Existe hoje, mitos sobre esse grupo. Ao contrário do que se pensa, a superdotação não é exclusividade de alguma classe social ou gênero”, afirma a psicopedagoga Mical. 7


CIDADANIA Mães

Além das grades

Elas cumpriram pena na penitenciária feminina. Algumas ainda estão em reclusão. O que há em comum? A culpa, a dor e o sentimento de não poder viver uma maternidade digna Jhéssika Almeida

Ser mãe é um desafio. E quando este momento da vida é passado em uma cela de alvenaria, longe do agradável direito do ir e vir, a situação se torna ainda mais desafiadora. Nessas condições, a mulher nem sempre tem assegurada a privacidade necessária. Assim, enfrentam a realidade de serem mães em condição de cumprimento de pena à Justiça. Luana Costa* é um desses casos. Ela cumpriu pena na Penitenciária Feminina do Distrito Federal (PFDF), conhecida como Colmeia. Presa pela primeira vez em 2005 por tráfico de drogas, enquanto levava drogas para o namorado na cadeia. Passou para o regime semi-aberto e pela Fundação de Amparo ao Trabalhador Preso do Distrito Federal (Funap/DF), fez oficina de panificação. No processo de ressocialização conseguiu emprego numa padaria próxima a sua casa na época. Tudo parecia estar nos eixos e para completar a felicidade, descobriu que estava grávida. O pai da criança, João Silva*, também ex-detento, tinha dificuldades para conseguir emprego. Foi quando o encarceramento voltou à vida deles, que resolveram cometer um assalto juntos. Na ocasião, uma das vítimas foi morta e eles foram presos em flagrante. A ex-detenta foi ao médico apenas três vezes para o pré-natal, e passou por situações que a colocavam em risco, como uma ocasião em que duas internas brigaram dentro da cela em que ela estava. “As agentes entraram para conter a situação jogando spray de pimenta e batendo em todas que estavam lá e uma delas bateu várias vezes na 8 8

minha cabeça. Nesse dia passei mal a noite inteira”, revela. Apesar das condições que enfrentou presa, nenhum momento foi tão doloroso como o dia que teve que entregar o neném. “Foi como se tivessem arrancando o meu coração, foi desesperador. Pensei que fosse morrer. Eu desejei morrer”, desabafa Luana. Diferente de outras penitenciárias do Brasil, na PFDF, as internas grávidas ficam em um bloco com estrutura melhor, onde há camas para todas e vaso sanitário. Também ficam ali mulheres que têm alguma doença ou precisam de tratamento diferenciado. Alexandre Vaz, assessor de comunicação do Departamento Penitenciário Nacional (Depen-DF), explica sobre gestão do sistema penitenciário, de responsabilidade da União. “O Depen tem a responsabilidade de zelar para que as normas de execução penal sejam corretamente aplicadas em todo o país”, explica. Desde 2014, o tratamento da população carcerária feminina é responsabilidade da Política Nacional de Atenção às Mulheres em Situação de Privação de Liberdade e Egressas do Sistema Prisional (PNAMPE). “O objetivo é desenvolver ações que garantam a integridade física e psicológica das mães e seus bebês”, informa Vaz.

Dar o filho à luz Emanuelle Souza é irmã de Bruna*, presidiária que teve filho na Colmeia. Bruna foi presa por assalto à mão armada. Para ela, é muito difícil a realidade de ver uma mulher ter um filho atrás das grades. “Minha irmã já entrou grávida na Colmeia e desde então

sofria muito pensando na hora de entregar o bebê”, conta. Quando Bruna entrou em trabalho de parto, foi encaminhada para o Hospital Regional de Santa Maria. Ao retornar, a mãe relatou para a família que teve sorte, pois pegou o plantão dos “agentes bons”. Emanuelle relata que a família não chegou a ser informada sobre o parto. Somente no dia de visita souberam do nascimento. A advogada Carolina Barreto Lemos realiza pesquisa na PFDF. De acordo com a doutoranda, os exames de pré-natal das internas são precários e não acontecem com a frequência recomendada. “Para sair do presídio é preciso escolta. É um procedimento bastante desconfortável para uma mulher grávida, porque elas vão dentro de um camburão fechado, balançando”, afirma. O parto das presas também é complicado por conta da burocracia. Carolina explica que a escolta é parte do regimento interno da penitenciária. Mas às vezes, mesmo em trabalho de parto, as grávidas têm de aguardar. Não é possível sair se não houver agentes suficientes. A advogada alega que nos casos em que a interna não tem com quem deixar o bebê, ela corre o risco de perder a tutela da criança, que vai para a adoção.

Ressocializar é preciso A exclusão das internas é anterior à entrada na penitenciária. São mulheres que já viviam à margem da sociedade antes de terem cometido um crime. Segundo dados de 2014 do Levantamento Nacional de


Foto: Evelin Criss Diagramação: Sarah Peres

Informações Penitenciárias (Infopen), 81% das presas do DF são negras e 50% não possuem ensino fundamental completo. São dados preocupantes e deixam claro o estigma dessas mulheres frente à sociedade. A maioria das presas são esquecidas pelos companheiros e familiares. Conforme delimita a advogada. “Há um julgamento por parte da família, que não aceita que mulheres possam se envolver com criminalidade”, esclarece Carolina. Mas há exceções. O zelador de condomínio Paulo Medeiros, 25 anos, faz parte dessa minoria. A esposa, Maria Medeiros*, foi presa em 2013 por homicídio e formação de quadrilha. De acordo com Paulo, ela é inocente, mas como estava na hora do crime, foi detida como cúmplice. Na época, a filha do casal tinha três anos. Ele conta sobre a dificuldade de enfrentar a situação sozinho. “Ela sentia muita falta da mãe na hora de dormir, chorava muito”, afirma. Ele não leva a filha, agora com seis anos, para visitar Maria frequentemente. As idas na Colmeia ocorrem às quintas-feiras, horário de aula nas escolas. “Minha esposa reclama que sente muita falta da filha e sempre pede para eu levá-la, mas evito por conta do ambiente e porque não é bom que ela falte aula toda semana”, argumenta. A professora de Serviço Social Erci Ribeiro, diz que “Para uma parcela da sociedade, a partir do momento em que um indivíduo entra em um sistema prisional, independente do sexo, ele não precisa ter benefícios respeitados. Apesar dessa condição, ninguém pode ter seus direitos básicos anulados. Estar cumprindo pena não pode anular imunidades garantidas à pessoa humana, como uma mãe encarcerada poder ter um convívio digno com sua família”. “O fortalecimento de vínculos entre a mãe encarcerada e seus filhos é essencial. Apesar dos presídios não serem um local agradável para as crianças, o serviço social da penitenciária deve proporcionar um ambiente digno para os dias de visitas”, ressalta Erci. Para contato de carinho e afeto. De mãe e filhos. Apesar das grades. Além das grades.

Colaborou para a matéria Aline Cabral *Para preservar a identidade de detentas e ex-detentas, foram usados nomes fictícios na matéria.

9


COMPORTAMENTO Família

Mãe em primeiro lugar

Elas estudaram, se aventuraram na carreira profissional e abandonaram tudo para viver o que acreditam ser o maior desafio da vida: a maternidade Lorena Carolino

Ser independente, estudar idiomas, cursar administração, especializar-se em um mestrado e aventurar-se no doutorado. Estes desejos sempre estiveram latentes nos sonhos de Angélica Velasques, 36 anos. Como profissional, construiu uma carreira de sucesso e trabalhou muito, até que teve uma grata surpresa: a gravidez. Angélica afirma que descobriu a felicidade plena em cuidar do filho e, então, abriu mão de tudo para perseguir esse objetivo. O marido apoiou a decisão e a ajudou em todas as etapas. “A colaboração dele foi de extrema importância. Ele me incentivou, me apoiou e esteve comigo em todas as decisões. Isso foi mágico”, revela. Conciliar as funções de mãe, amiga, mulher e profissional não é simples. Ao longo dos anos, as mulheres lutaram para alcançar destaque no mercado profissional. E conseguiram. As muitas batalhas travadas e vencidas vieram acompanhadas de grandes responsabilidades e inúmeras cobranças sociais. Na correria do dia a dia, Victória Toledo, 29 anos, tem um compromisso marcado com Alice, quatro anos. Para ela, a dedicação é diária e em tempo integral. Victória abriu mão da carreira para se dedicar à filha com tempo, atenção, estímulo e muito amor. “Quando descobri que estava grávida, coloquei em uma balança a rotina pesada que eu levava e a minha nova fase de vida e vi que não valia a pena sacrificar o tempo com a minha filha por nenhum trabalho desse mundo. Não me arrependi e faria tudo novamente”, garante. Eriane Castro, 23 anos, passou por situação parecida quando descobriu que estava grávida, aos 20. Ela trabalhava como consultora de seguros e, algumas vezes, precisava atender os 10

10

clientes até tarde da noite. Isso foi fundamental para esta escolha. “Ainda na gestação eu tomei a decisão de que sairia do meu emprego e que passaria a primeira infância ao lado da minha filha. Queria moldar a personalidade e os valores dela”, conta. Eriane considera que a primeira infância — período que vai desde a concepção do bebê até os seis anos de idade — é um momento de extrema importância na formação da criança. É quando o vínculo se estreita, quando os pequenos começam a descobrir os sentimentos. “Ter os pais nessa primeira fase da vida, ensinando a lidar com os sentimentos e valores, é muito importante e saudável. Minha filha tem personalidade forte, mas é uma criança calma e muito compreensiva. Sei que isso é fruto do meu trabalho com ela nos primeiros meses”, avalia. Maria Emília, 38 anos, não abriu mão da carreira no primeiro momento e tentava suprir com presentes a falta que fazia para o filho. “Eu sentia o peso da culpa de não ser tão participativa na vida dele, me sentia cansada por causa do trabalho e, muitas vezes, tentei suprir esse vácuo com brinquedos”, recorda. Apesar disso, em 2012, ela decidiu abrir mão da carreira profissional para cuidar exclusivamente do filho. Em 2014, teve outro filho e o cenário era outro. “Eu o criei com aleitamento materno exclusivo. Ele não tinha a interferência de outros líquidos, exceto xaropes e vitaminas. Foram poucas as vezes em que precisei ir ao médico com ele”, atesta. Segundo a psicóloga Lia Clerot, a presença dos pais na vida dos filhos é essencial, pois é a partir da convivência que o amadurecimento emocional, psicológico e cognitivo virá.

Mas como nem todos os pais conseguem disponibilizar todo o tempo do dia para essa tarefa, é importante observar a qualidade do momento reservado à criança. “Períodos de interação familiar são fundamentais para o amadurecimento. É importante reservar tempo para refeições em família, brincadeiras e atividades que reforcem esses laços. Não adianta os pais se sentarem à mesa para comer juntos, se estiverem no celular o tempo todo, por exemplo”, alerta.

Alternativas A advogada Michelle Marcondes, 35 anos, não deixou de trabalhar totalmente após o nascimento dos filhos. Hoje, realiza as atividades em casa e no período da noite, horário em que as crianças estão dormindo. “Antes de ser mãe, eu já atuava como advogada, ministrava aulas de direito e tinha uma carga bem maior de clientes. Quando tive meu primeiro filho, precisei tomar a decisão de trabalhar em casa e diminuir o número de clientes para ter mais tempo”, explica. Depois de um tempo, ela engravidou do segundo filho. Desta vez, uma menina. Os planos da advogada incluíam a volta à rotina normal quando as crianças estivessem maiores. Mas ela teve que se readaptar: “A Maria Eduarda nasceu com um atraso motor e precisava de muito tempo, estímulo, terapias e programas que incentivassem o desenvolvimento. Eu precisei acompanhar passo a passo. Com o tempo, percebi que essas atividades também fariam bem para o meu outro filho e, hoje, os dois fazem atividades como futebol, aulas de música, hipismo e natação”.


Apesar das muitas críticas que recebeu, Michelle afirma que não se arrepende da decisão e percebe um bom progresso na vida dos filhos. “Muita gente critica minha rotina, mas eu não ligo, pois vejo um ganho enorme na vida deles. Eles não fazem birra e não pedem a atenção dos pais, porque estamos sempre presentes. Esse é um diferencial”, conclui. A psicóloga Lia Clerot esclarece, ainda, que as escolhas na maternidade costumam vir acompanhadas de críticas da sociedade e que isso não quer dizer que uma decisão é mais correta do que a outra. “O que observo é que se a mulher opta por trabalhar fora é criticada por não dar tanta atenção. Se decide se dedicar à criação dos filhos é julgada por ter um pensamento retrógrado. As escolhas carregam bônus e ônus, sendo igualmente desafiadoras”, pondera.

Cuidar dos filhos é uma atividade que exige esforço e dedicação, mas traz alegria e contentamento. Ser mãe em tempo integral traz inúmeras satisfações para a mulher, como estar presente quando o bebê fala a primeira palavra, segurar na mão da criança e ver os primeiros passos e acompanhar a primeira ida à escola. Essas mulheres passam por cima do preconceito social e seguem rumo à maior conquista de suas vidas: cuidar dos filhos em tempo integral. Elas reafirmam para a sociedade que a profissão escolhida foi ser mãe em todos os momentos.

Maria Emília brinca com seu filho, Pedro, no parque de Águas Claras

Foto: Karyne Nogueira Diagramação: Webert da Cruz

11


COMPORTAMENTO Violência doméstica

Espectadores do medo

Segundo especialistas, crianças e adolescentes que cresceram em lares violentos podem reproduzir o comportamento agressivo na vida adulta Pedro Grigori

Foto: Jordania de Cassia

Era noite e chovia. Em uma casa no Entorno de Brasília morava Daniel Alvez*, dez anos na época. Ele se escondia atrás da geladeira para que o som do motor abafasse os gritos da briga dos pais. Após quase meia hora no lugar, a falta dele foi sentida. Ao achá-lo, o pai teve que insistir para que o menino saísse do esconderijo. E foi nesse momento que a mãe acertou, com um tapa, o rosto do pai, alcoolizado. E novamente mais um entre tantos confrontos se iniciava. Como espectador de um filme real de violência doméstica, estava ele, uma criança assustada e sozinha. “Eu tinha muito medo. Não dormia à noite para ficar prestando atenção se eles iriam brigar. Uma vez vi no jornal que a ex-mulher tinha esfaqueado o

12

ex-marido até a morte, então peguei todas as facas de casa e escondi embaixo do meu colchão com medo de que eles fizessem o mesmo”, confessa. Daniel hoje tem 19 anos. Na pele, nenhuma cicatriz aparente. Na alma, a memória viva das cenas de horror que presenciou. Levantamento realizado pela Central de Atendimento à Mulher, o Disque 180, constatou que as crianças estão diretamente envolvidas em casos de violência doméstica. Dentre as vítimas ouvidas em 2014, 80% tinham filhos, que em 64,35% dos casos, presenciaram a violência, e em 18,74% eram vítimas diretas junto das mães. Mesmo presenciando agressões verbais e físicas quase que diariamente, o pior momento para Daniel foi quando os pais se separaram, dias antes dele completar 11 anos. O menino se sentia completamente sozinho após a separação. “Eu não aguentava mais. Me sentia muito sobrecarregado e solitário. Esperei meu pai ir trabalhar e peguei todos os remédios que encontrei em casa, engoli e fui para a caixa d’agua, onde fiquei dentro até apagar. Depois disso, só lembro de várias pessoas em cima de mim, enfiando o dedo na minha garganta para que eu vomitasse”, relata. Após o episódio, os pais do garoto voltaram a morar juntos, e o menino fazia de tudo para impedir que novas brigas ocorressem, o que não adiantava. “No começo eu queria muito que eles ficassem juntos e morássemos como uma família. Mas depois

percebi que juntos eles só brigavam, e eu não era feliz ali”, conta.

Reflexos da violência O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) reforça que crianças e adolescentes devem receber proteção e assistência para se desenvolverem plenamente, e enfatizou a importância de boa estrutura familiar como o meio determinante para isso. Mas ao contrário do que seria ideal, a realidade é mostrada nos noticiários: problemas em ambientes familiares, sendo a presença de violência uma das principais. O lugar que deveria ser seguro se torna exatamente o contrário. Segundo a psicóloga Mirian Sagim, esse tipo de violência costuma deixar reflexos. Em sua tese de doutorado, entrevistou 17 famílias em que ocorreram casos de violência, e concluiu que muitas vezes, mesmo inconscientemente, os espectadores repetiam os atos que presenciavam. “As entrevistadas me contaram que foram criadas em lares onde a violência familiar sempre esteve presente; muitas afirmam que deixaram suas casas por terem presenciado brigas entres seus pais e, também, terem sofrido violência por parte deles. Mas que atualmente, mesmo sem pretender que seus filhos tenham a infância que elas tiveram, muitas não conseguem romper o ciclo de violência que faz parte da vida de cada uma. E assim, seguem reproduzindo o modelo vivenciado por elas na infância”, explica. É o caso de Marta Santos*, 41 anos. Hoje, casada e com família formada, a mulher sente


Apoio Glenia Rosa é psicóloga do abrigo Casa de Ismael, localizado na Asa Norte, e conta que a violência doméstica é um problema hereditário. “Fizemos um estudo com os casos que temos no abrigo, e descobrimos que em determinadas famílias eles não percebem que estão passando por uma situação de violação dos direitos. Eles narram que as avós sofriam, as mães, as tias e possivelmente eles sofrerão também. Eles acham que aquilo é normal. Mas na verdade é um ciclo de repetição dos padrões comportamentais”, explica. A Casa de Ismael é um abrigo que existe desde 1964, e atua nas áreas de

assistência social, educação e socialização. Oferece serviços totalmente gratuitos para 1.083 pessoas, sendo dessas 824 crianças e adolescente em situação de risco e vulnerabilidade. Atualmente, 70 menores estão em situação de acolhimento, passando tempo integral no abrigo e sendo cuidados por mães sociais. Valdemar Martins, presidente do abrigo, conta que a casa atende qualquer menor que esteja passando por situação de violação de direitos. “A assistência social traz a criança para cá por diversos motivos, como abuso sexual, situação de vulnerabilidade, maus tratos e abandono. Chegando aqui, procuramos um tipo de serviço que se enquadre melhor no caso do individuo”, relata. Em casos de violência doméstica, a Casa de Ismael faz um trabalho que visa reintegrar a criança de volta à família, mas isso só acontece quando é constatado que os pais têm condições de cuidar dos filhos. “Nós fazemos um atendimento psicológico não só com a criança, mas com toda família. Conversamos com os pais e explicamos a seriedade da situação. Quando a criança se sente confortável para voltar para casa, e sentimos que os pais têm condições de criála, fazemos a reintegração, mas continuamos acompanhando o desenvolvimento da família”, explica. Em 2015, 31% das crianças e adolescentes que saíram da Casa de Ismael conseguiram ser reintegrados as suas famílias. E esse é o principal objetivo da instituição. “Nós sabemos que na grande maioria dos casos as crianças querem ficar em casa com as suas famílias. Elas não querem ser adotadas por outras pessoas. Mesmo estando em um lar violento, eles querem ficar com seus pais. O nosso trabalho é ajudar para que isso aconteça. Mas ela só pode ficar com a família se estiver tendo os direitos básicos respeitados”, conta. Crescer em um lar violento não é fácil, mas também não é simples sair da situação. Mães e filhos têm medo das consequências de uma denúncia, mas elas são necessárias para mudar aquela realidade. As psicólogas afirmam que a violência doméstica é uma “doença hereditária” da sociedade, e precisa ser tratada.

O Disque Direitos Humanos, ou Disque 100, é um serviço de proteção a grupos sociais vulneráveis, e recebe denúncias 24 horas por dia. A ligação é gratuita. Quem sofre ou presencia violência doméstica não precisa lidar sozinho com a situação. O Governo Federal oferece diversos serviços, não só para denúncia, mas para atendimento total a situações de violações aos direitos da criança e do adolescente, como é o caso dos Centros de Referência Especializado da Assistência Social (Creas), com oito sedes espalhadas por Brasília. Viver em uma situação de violência não é uma escolha, mas também não precisa ser uma sentença. Denuncie.

Foto: Letícia Leonardi Diagramação: Giovana Gomes

que mesmo sem querer, carrega algumas marcas causadas após presenciar os diversos tipos de agressões verbais e físicas do pai com a mãe. “Éramos uma família pobre, eu, meus pais e mais três irmãos. Minha mãe era quietinha e tentava fazer todos os deveres exigidos para uma mulher de casa, mas nada nunca estava bom para o meu pai. Os xingamentos eram diários. E passavam de agressões verbais para murros. Já teve dias de ele até colocar ela pra fora de casa. E sempre por motivos bobos, como a janta não estar pronta antes das 19h”, lembra. Por ser a mais velha entre os irmãos, Marta ficava encarregada de cuidar da família quando a mãe era expulsa de casa, e conta que durante esse período tentou até fugir. “Eu tinha dez anos, e decidi fugir para a casa do meu avô materno com meus irmãos. Coloquei algumas roupas e mamadeiras com mingau dentro de um saco, mas a fuga não deu certo porque demorei muito tempo para conseguir colocar o meu gato dentro da mochila, aí meu tio chegou e convenceu a gente a ficar”, conta. Os reflexos da violência começaram a aparecer ainda na escola. A garota passou a reprovar diversas vezes, pois não tinha ânimo para estudar. Aos 18 anos, foi expulsa de casa pelo pai por estar grávida, e começou a entrar em vários relacionamentos que não deram certo, sendo algumas vezes até vítima direta de violência doméstica. “Acontece, né? Até eu já cheguei a agredir meu atual marido, eu só me estresso e acaba acontecendo, sem eu perceber”, relata.

*Os nomes dos personagens utilizados na reportagem foram alterados para proteger a identidade da fonte e da família.

13


COMPORTAMENTO Transição capilar

Meu cabelo, minha identidade Mulheres e homens deixam o alisamento de lado para assumir os fios naturais. Romper com preconceitos e manter a autoestima são fatores que valorizam os cabelos Tatiane Alice

Estica, puxa, abaixa o volume — essa é a rotina de muitas pessoas que alisam o cabelo. No final dos anos 90, a chapinha se tornou muito popular e, depois dela, diversos processos de alisamento começaram a invadir os salões. Produtos à base de guanidina e formol fizeram, literalmente, a cabeça de muita gente. Na mídia, propagandas ofereciam desde alternativas para abaixar o volume até as que alisavam definitivamente. Mas, nos últimos anos, muitas pessoas têm escolhido assumir os cabelos como são. Quando alguém decide parar de alisar o cabelo e a raiz começa a crescer, os fios ficam com duas texturas diferentes. Esse momento é chamado de transição capilar, um termo muito usado na internet e por cabeleireiros. Existe também o grande corte, que é quando corta-se toda a parte alisada. O retorno dos cabelos cacheados e crespos é

14

um movimento que está cada vez maior: um dos grupos que aborda o tema no Facebook tem cerca de 120 mil membros. Gabriela Costa, 25 anos, alisou os cabelos pela primeira vez aos sete anos. Ia ao salão a cada quatro meses para fazer relaxamento na raiz e, às vezes, fazia escova. Mas ela afirma que nunca se sentiu confortável com o processo. “Demorava horas, o produto coçava e eu era só uma criança”, lembra. Ela tomou a decisão de manter os cabelos cacheados quando terminou o ensino médio. “Desde pequena eu queria usar o meu cabelo natural, só demorei por causa da sociedade e do preconceito que existe em torno do cabelo crespo”, ressalta. Durante a transição capilar, ela usou permanente afro, mas os fios começaram a quebrar e, depois de um tempo, resolveu fazer o grande corte. Mas afirma que foi

uma difícil decisão, porque não queria perder o comprimento do cabelo. “Dá muito trabalho manter o cabelo nessa fase. Foi mais fácil cortar e jogar fora todo aquele passado que não me pertencia mais”, relata. Cada pessoa tem uma motivação diferente quando decide assumir o cabelo. No caso de Débora Luz, 26 anos, foi um episódio de injúria racial que sofreu na faculdade: “Decidi assumir minhas raízes, a identidade do meu povo”. Para ela, o cabelo representa personalidade e parar de alisá-lo foi o momento em que descobriu que ser ela mesma é a forma mais autêntica de ser bela. “Foi um processo de descobrimento de quem sou, incluindo meu cabelo, estatura e cor de pele”, afirma. A jovem começou a alisar os cabelos com 11 anos. Aos 22, quando decidiu parar, criou um canal no Youtube para falar sobre o assunto: “As meninas da faculdade me perguntavam a história do meu cabelo, como eu cuidava dele e os penteados que usava”. No canal, que já tem quase 38 mil inscritos, ela também posta vídeos sobre maquiagem e cuidados de beleza. Deixar os cabelos naturais é um movimento que também envolve homens. Paulo Rocha, 25 anos, usava o cabelo raspado durante a adolescência, mas, hoje em dia, exibe o cabelo crespo, um lindo blackpower. “Muita gente fica curiosa, pedem para tocar e percebem que é macio e bem cuidado. Isso é importante para desmitificar a ideia de que cabelo crespo é maltratado”, enfatiza. Muito ligado em moda e cultura negra, ele gosta de variar o visual, e às vezes, também usa trança raiz.


Em 2014, a Associação Brasileira de Estudos Negros (ABPN) publicou um artigo intitulado Vício cacheado: estéticas afro diaspóricas, das autoras Ivanilde Guedes e Aline Silva. Segundo o texto, voltar a usar o cabelo cacheado ou crespo é um ato político. Para as autoras, assumir o cabelo não é só estética — é uma questão de resistência, porque transmite ancestralidade, e luta, pois vai contra o preconceito. E é o que aconteceu com Gisele Dias, 22 anos.Ela afirma que muitas pessoas alisam o cabelo para se adaptar à sociedade e que usar seu cabelo crespo é uma resistência pela sua negritude. “O problema não está no meu cabelo, e sim no preconceito das pessoas. Quando ele começou a crescer e vi

que é bonito, isso me empoderou”, conta. Gisele acredita que muita coisa já mudou: “Antigamente, se você ia para uma entrevista de emprego com um cabelo crespo volumoso, achavam que ele estava bagunçado. Hoje em dia, vou para entrevistas com o meu cabelo natural e passo, tenho emprego”. Paulo Rocha nunca teve problema para encontrar trabalho e nem passou por uma situação em que precisasse cortar o cabelo para ir a uma entrevista. “Nesse ponto, não me atrapalha, principalmente na minha área, sou publicitário. Meu cabelo passa uma boa impressão, de que sou uma pessoa criativa, que não estou preso a padrões e disposto a inovar”, comenta. Mas o jovem afirma que sofre preconceito por causa do seu cabelo e da sua cor. “Eu sou

um homem negro de 1,90m que usa um super blackpower, então sempre vai ter uma senhora colocando a bolsa para perto do corpo e um segurança que vai me acompanhar mais de perto. São situações que acontecem até hoje, infelizmente”, ressalta. A antropóloga, Denise Costa, é doutoranda em Antropologia Social e faz uma ressalva quanto ao sucesso profissional de Gisele e Paulo: “Em algumas profissões o cabelo crespo pode ser visto como algo positivo, bonito, mas em muitas outras ele ainda é rejeitado”. Ela afirma que o preconceito capilar ainda está muito presente na sociedade, mesmo com a onda positiva de homens e mulheres começando a usar o cabelo crespo como ícone político.

Diagramação: Ana Povoa e Webert da Cruz

Um ato político

Autoestima bem fazendo isso. É o caso da Valéria Duarte, 23 anos, que passa chapinha no cabelo desde os 15 anos e não pretende parar: “Já usei o cabelo cacheado algumas vezes, mas não gosto”. Além disso, ela já pintou as madeixas de vermelho e fez luzes. “Adoro mudar meu visual, e como meu alisamento não é definitivo, posso parar um dia. Mas, por enquanto, não pretendo fazer isso. Gosto de mim assim”, conclui.

Foto: Jordania Correia

Para Gisele, assumir o cabelo crespo mudou completamente a confiança que ela tinha em si mesma. “Quando você começa a aceitar aquilo que lutava contra, percebe que você é bonita por inteiro. Adoro o volume do meu cabelo”. Para ela, os fios crespos exigem cuidado, mas o trabalho que tinha quando alisava era bem maior. “Eu gosto de cuidar dele, não tem nada melhor do que a liberdade de usar meu cabelo natural”, revela. A autoestima de Paulo também mudou completamente depois que deixou seu cabelo crescer. “Eu era muito mais suscetível a críticas do que hoje. Sou mais feliz e realizado, tranquilo comigo mesmo. Quando olho no espelho gosto muito do que eu vejo”, afirma. Para ele, é importante fugir do padrão que homem negro tem que ser careca, como se o cabelo fosse feio ou maltratado. Para a antropóloga Denise é muito importante o processo de assumir uma estética que foi ensinada a ser desprezada. Ela cita Bell Hooks, uma escritora norteamericana que possui diversos livros e artigos sobre questões de raça, classe e gênero. “Cada pessoa possui uma experiência com seu corpo e cabelo, mas não deixa de ser notório, no processo de transição capilar, aquilo que Hooks chama de amor interior, que é o amor pelo seu corpo, pela sua estética”, enfatiza. Mas é necessário ressaltar que muitas pessoas gostam de alisar o cabelo e se sentem

Gabriela Costa: usar o cabelo natural pode ajudar no empoderamento de outras mulheres e ser referência para crianças negras

1515


CULTURA Só no gogó

Quando a arte se reinventa

Prática essencialmente vocal, o canto a capella volta ao cenário artístico. Dessa vez com representantes do gênero Pop

Diagramação: Tatiane Alice

Juliana Procópio

16

Som. Ritmo. Harmonia. Imagine reconhecer o som de batuques e instrumentos de corda sem nenhum instrumento ou aparato tecnológico que o produza. De início, é comum supor que existe uma trilha musical de fundo que forneça suporte às vozes, pois como uma pessoa poderia reproduzir o som de um instrumento? É possível? Sim, com voz e muito talento. Artistas técnicos e habilidosos reproduzem músicas famosas apenas com as cordas vocais e sons de batida musical produzidos pela boca. Passos marcados no chão e dedos estalando para acompanhar o compasso da música também fazem parte do show. E, assim, o trabalho da voz seguindo um ritmo, com movimento e habilidade faz do silêncio seu espetáculo. ♪ Dó, Ré, Mi, Fá, Sol, Lá, Si ♫ A escala musical é composta de notas ordenadas da mais grave à mais aguda. Já os personagens aqui apresentados são ordenados de forma aleatória. São profissionais de ramos variados que se reúnem com um objetivo comum: o canto a capela. São confeiteiros, servidores públicos e músicos que compõem o grupo Setblack formado por Ana Barreto, Ana Félix, Claudia Lima, Priscila Martins, David Reis, Wellington Fagundes, Dairo Junior e Paulo Santos.Idealizado por Paulo Santos e Ana Barreto, o grupo começou as atividades em setembro de 2014. Neste ano, conquistaram a segunda colocação no Concurso Nacional Brasil Vocal de Novos Grupo Vocais 2014, promovido pelo CCBB do Rio de Janeiro. Eles foram os terceiros colocados no reality show brasileiro – A Capella – promovido pela Rede Globo e 16

apresentado no Domingão do Faustão. Com sorriso de nostalgia, Paulo conta como o grupo surgiu: “Nós tinhamos outros projetos e a ideia de nos mudarmos para São Paulo, mas por vários motivos isso não deu certo. Então montamos um novo grupo aqui em Brasília, chamamos o pessoal que a gente conhecia e gostava desse trabalho e criamos o SetBlack”. O grupo brasiliense faz apresentações dinâmicas, coreografadas, e o público participa do show, ora cantando, ora fazendo o papel de backing vocal – vocal de apoio que canta em segundo plano acompanhando o solista. Eles pautam seu repertório na música negra de várias partes do mundo, e em seus shows o público pode ouvir arranjos músicais de artistas famosos como Pharrell Williams e Sandra de Sá.

História Considera-se que o canto a capella é originário do Canto Gregoriano, porém, o primeiro doutor em Educação Musical no Brasil pela University of Missouri com ênfase em canto coral, David Junker, explica que a prática é ainda mais antiga: “O termo a capella é originário do canto realizado em capelas, desenvolvido na igreja, mas existe em todo o desenvolvimento da raça humana. Na realidade, música coral existe mesmo na própria Bíblia, antes do canto gregoriano que era próprio dos monges”. O maestro explica que a igreja funcionava como uma espécie de patrocinador do saber e das artes, por isso o canto era exclusivo deste ambiente. Aos poucos o estímulo musical foi

saindo das igrejas, passando para os nobres e, depois, chegou à comunidade como um todo. “Paralelo a isso existiam cantores no norte e sul da França que faziam serenatas. Tudo isso era música a capella”, esclarece.

Renovação Apesar da origem sacra, recentemente o público viu surgir uma nova forma de cantar a capella. A arte que por muito tempo foi vista como puramente religiosa adquiriu um novo formato totalmente pop. Em 2010, o seriado musical Glee apresentou uma versão a capella da música Teenage Dream da cantora americana Katy Perry. Lançada virtualmente, a música vendeu 214 mil cópias digitais nos Estados Unidos em apenas uma semana, mostrando a popularidade que o estilo começava a alcançar O reality show Sing Off, exibido entre 2009 e 2014, e a franquia Pitch Perfect – A Escolha Perfeita, com filmes lançados em 2012 e 2015 e um terceiro programado para 2017, também podem ser indicados como responsáveis por mostrarem ao público que é possível fazer grandes apresentações sem instrumentos, de modo artístico, profissional e divertido. Fora do país, o grupo Pentatonix é reconhecido e realiza apresentações superproduzidas no formato a capella. No Brasil, o carioca Gó gó Boys é um dos que se destaca na música. Composto por cinco músicos de profissão, eles cantam aliando o interesse pela música sem instrumentos com a vontade de fazer humor, fugindo do que era feito tradicionalmente nesse tipo de arte.


Se a intenção era cantar fazendo humor, é certo que o nome do grupo contribuiu para isso, como conta Fabiano Lacombe: “Certa vez tivemos uma confusão, por conta do nosso nome - que faz um trocadilho, trocando “Go-go” por “gogó”: um sujeito chegou no show achando que teria striptease... Acho que ele deve ter ficado um pouco decepcionado com o nosso porte nada atlético”. Apesar das situações descontraídas, os músicos são bastante sérios no que se propõem a fazer. “Muita gente duvida nos shows de que estamos fazendo tudo apenas com as vozes. As pessoas acham que tem uma base por trás, um playback. Mesmo os mais próximos como amigos e família, se confundem e acham que determinado som era feito por um instrumento... Mas isso, pra gente, é o maior elogio que podemos ter”, orgulha-se Fabiano.

Novos talentos A ex-participante de coral e hoje regente do grupo São Vicente a Capella, Patrícia Costa relata que cantava em um coro de 36 vozes que tinha o projeto de unir interpretação teatral ao canto coral. A estratégia tem sido vista nos principais grupos contemporâneos de canto A Capella, como o Pentatonix e o SetBlack, por exemplo. Patrícia relata que desenvolve esta técnica com coro juvenil e que ao longo de 23 anos tem visto o interesse dos jovens crescer. “Acho que esse jeito de fazer música coral com outros recursos tem ajudado a atrair os mais novos, que quase sempre torceram o nariz ou não se sentiam adequados ao coro”, conta. Tanto a regente quanto o maestro David são unânimes em dizer que a popularização

d’a capella é benéfica para a música. Na opinião de Junker, a arte sacra não perdeu espaço, mas sim houve um ganho no gênero musical. Para Patrícia sempre existirá espaço para todas as formas de arte. “Não vejo a ampliação de repertório como uma ameaça aos puristas. É maravilhoso que outros estilos estejam chegando para o canto em grupo”, acrescenta. Ela encerra declarando que a música não é uma arte para poucos e que havendo interesse qualquer pessoa pode fazer parte de um coro. “A arte é inerente ao ser humano, raramente há um caso de alguém que não afina de jeito nenhum. Há facilidades e dificuldades em qualquer área. Uns têm aptidão para exatas, outros para esportes, mas todo mundo dá seu jeito de se desenvolver”, incentiva.

Foto: Beatriz Ferreira

Com repertório variado, grupo brasiliense Setblack atrai o público em apresentações dinâmicas

17


CULTURA Artes visuais

Mulheres se profissionalizam na arte urbana e são inspiração para que o público feminino se empodere. Mesmo com condições desiguais de trabalho, elas se destacam Daniela Martins e Maianna Sousa

Locais movimentados, pessoas indo trabalhar e estudar, buzinas, congestionamentos. Em meio a tanto estresse, uma pessoa se destaca. Ela parece estar calma. Observa o muro atentamente, segura um spray e, aos poucos, solta a criatividade. Aquela parede que era praticamente invisível começa a ganhar forma e cor, por meio da pintura. Os passantes começam a observar, as buzinas diminuem e os passos se tornam a cada vez mais lentos. A todo momento a parede fica mais colorida e chamativa. E o que ela está fazendo ali? Mostrando ao mundo sua arte no grafite. O grafite é uma das formas de expressão da street art. As pinturas realizadas nos muros e em outros espaços da cidade são uma intervenção do artista, independente de autorização legal dos órgãos do patrimônio público. “Não existe essa relação da arte ser legalizada. A consciência e o olhar vêm de quem faz”, opina o jornalista e também grafiteiro Gilmar Satão, que há 24 anos colore os muros de Brasília com o grafite. A street art traz muita adrenalina e também muitos riscos. Esta é uma das razões pela qual a arte urbana tem sido dominada por homens, mas agora as mulheres do grafite começam a chamar a atenção pelo trabalho. A grafiteira Fabrícia Furtado, conhecida como Brixx, conta que as mulheres ainda enfrentam obstáculos no mundo do grafite. Para ela, a arte urbana pode colocar a mulher em uma situação vulnerável. “Se a pessoa estiver sozinha pode ser abordada, como já aconteceu várias vezes comigo, e isso deixa a gente com medo, porque nunca se sabe o 18

18

que pode acontecer”, alerta. A artista plástica Michelle Cunha conta que tem vários relatos de preconceito contra mulheres grafiteiras. “É possível até escrever um livro”, brinca. Um desses acontecimentos foi em um evento organizado por homens. “Foi um festival onde não havia quase nenhuma representatividade feminina. Eram mais de vinte artistas e uma única mulher. Então, é como se não existisse mulheres pintando”, comenta. Fabrícia concorda com isso: “O machismo é uma coisa que está aí para quem quiser ver, e o grafite é um meio predominantemente masculino. Então, para uma grafiteira se manter durante anos, é necessário muito trabalho’’, explica. Mas para a socióloga Vívian Silva, uma das causas dessa situação é a disparidade geral de oportunidades que homens e mulheres encontram na sociedade, e isso acontece desde a infância. “É preciso identificar as relações de desigualdades de sexo e seus reflexos no mercado de trabalho e da arte. Os homens grafiteiros não representam um inimigo comum para as grafiteiras. As relações desiguais entre eles podem refletir uma maior participação dos meninos em projetos sociais e culturais que envolvem o grafite”, esclarece.

Elas no grafite A despeito das dificuldades, as mulheres sempre buscam promover eventos para se encontrar e discutir a cena do grafite na cidade. Em abril deste ano, aconteceu em Valparaíso de Goiás o 1º Encontro de Grafiteiras do Distrito Federal (DF) e Entorno, batizado

de Elas por Elas. A estudante de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (UnB) Raquel Braz, que assina as obras como Bralo, relembra: “Quando comecei com o Ramon — Andrade, grafiteiro de Luziânia — não havia mais ninguém. A gente teve que ter iniciativa. Usamos uma praça que era do pessoal do skate’’, comenta. Daí em diante, foram muitos movimentos, frequentemente voltados para a sensibilização do público feminino. “Resolvemos nos unir para incentivar mais mulheres a grafitar, mas nós estamos presentes em todos os eventos’’, conta a estudante. O interesse em unir mulheres também é central nas escolhas de Brixx, proprietária de uma galeria na 502 Sul do Plano Piloto. “A minha ideia é oferecer um espaço para as mulheres. A galeria é gerida por mim, tem as DJ´s que eu convido para tocar nas aberturas, e eu também quero colocar artistas para mostrar que as mulheres são capazes de fazer coisas maravilhosas”, comemora a artista. Michelle Cunha é outra grafiteira que vem organizando oficinas buscando a participação exclusivamente feminina. “A ideia é compartilhar com outras mulheres o que aprendi na rua e criar um movimento em que elas possam se sentir empoderadas”, diz. Ela explica que essa estratégia de aproximação entre as mulheres faz com que se sintam mais seguras. “Esse estado de empoderamento vem tanto com o domínio de uma técnica, como também do ato de se colocar na rua e ter coragem de estar na rua, o que dá muita força e firmeza”, esclarece Para o grafiteiro Koithi Hamada, essa


Liberdade nas paredes Os desenhos deixados nas paredes também podem ser uma forma de expressão na luta pela aceitação da arte feminina. Mas isso não significa uma alienação em relação aos dilemas da sociedade. Muitas grafiteiras costumam utilizar esse espaço para deixar mensagens que façam as pessoas refletirem sobre o mundo e seus dilemas. Esse é o caso da estudante Lívia Guimarães, que utiliza as paredes e muros da cidade para expor inquietações sobre a realidade. “Eu gosto de desenhar mulheres, trabalhar com frases de empoderamento e palavras de ordem”, relata. Mas não é só Lívia que utiliza o grafite como uma ação política. A estudante Carolina de Lima segue com o mesmo intuito. Ela utiliza o espaço para mostrar temas relevantes para a sociedade. “Eu faço bonecas delicadas, mas que trazem frases sobre o feminismo ou contra a homofobia”, explica. Ambas são iniciantes, mas já buscam levar suas inquietações para os muros. Recentemente, Lívia homenageou a estudante Louise que foi morta pelo exnamorado na Universidade de Brasília (UnB). Ela desenhou um coração e colocou o nome da jovem com a palavra presente. Já Carolina de Lima começou a fazer grafite para desenhar bonecas que fazem críticas a diversos temas, como o racismo.

que uma figura humana é representada a partir da observação de um modelo nu. A prática permitia ao artista desenvolver a técnica para adentrar no mundo da pintura com temas civis, vistos como masculinos. Às mulheres restava a pintura de natureza morta, considerada até hoje com menor valor artístico. “As mulheres eram impedidas de participar das aulas de modelo vivo por isso ser considerado contrário à sua honra, enquanto este curso era essencial para que os homens produzissem as formas mais consagradas de arte’’, explica Patrícia Reinheimer, professora de Antropologia Social na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). As mulheres continuam a discutir e propor novas regras, externando sua visão de mundo através da arte. “Isso se torna notável a partir do modernismo, quando o cânone deixa de ser a cópia da realidade externa e os cursos de modelos vivos deixam de ser uma condição de participação em formas mais consagradas de arte’’, comenta Patrícia. Ela diz que as mulheres do grafite brasileiro têm tudo para manter essa marca: “No Brasil há mais mulheres entre os grandes nomes das artes plásticas que em outros países”.

Foto: Ello Romanin Diagramação: Webert da Cruz

união é uma forma das mulheres verem o outro lado do grafite: “Às vezes as mulheres não adentram o movimento por achar que é muito masculino. Mas no momento em que elas conseguem levantar a banca delas, a autoestima, já podem ter mais confiança para fazer as suas próprias ações”.

Michelle Cunha se expressa nas paredes das cidades com o grafite

Barreiras históricas Mesmo com os obstáculos, elas vêm se superando e encontrando no grafite um canal de libertação expressiva e produtiva. Essa condição de dificuldade para as mulheres nos circuitos das artes plásticas não é exclusiva das grafiteiras. No Brasil, os registros mostram que as mulheres não eram aceitas em diversas escolas de arte no século 19. Na época, o ensino era baseado no desenho de modelo vivo, exercício em 19 19


PERFIL Solidariedade

Sem pedir nada em troca, ele criou uma biblioteca itinerante que percorre todos os cantos do Brasil. A iniciativa permite que o amor pela leitura chegue até crianças quilombolas, ribeirinhas e indígenas

20

Jonas é um sujeito diferente. É daqueles que têm coragem de sair da zona de conforto. Parece ter superpoderes. É desses que inspiram, emocionam e contagiam até mesmo aos corações mais duros, com gestos que fazem renascer a esperança na humanidade. Aos 44 anos, o amapaense foi além do modelo social vigente. Com atitudes concretas, prova que quanto mais dá, mais recebe. Capitaneando um projeto que leva leitura para crianças ribeirinhas, indígenas e quilombolas, ele transforma o amor pela literatura em um sonho a ser realizado: o de que, um dia, todos os pequenos tenham acesso ao encantado universo dos livros. Filho de Jonas e Maria Caetana, ele é o terceiro de quatro irmãos. Nasceu na cidade, mas sempre manteve os dois pés às margens do Rio Amazonas. Passou a infância ligado à vida das comunidades rurais do extremo norte do país. Tudo era muito simples, sem luxo algum. “Cresci navegando por essas águas, me aproveitando da pureza que é estar numa zona rural”, recorda. Quando menino, a diversão de Jonas era tomar banho de rio, comer fruta do pé das árvores e varrer o quintal da avó com uma vassoura de palha - da qual se lembra, em detalhes, até hoje. Entre os presentes que ganhou da vida estão o amor dos familiares e a maior herança: o gosto pela leitura. “Como éramos pobres, a nossa riqueza era estudar. Meus pais sempre nos colocavam no meio dos livros”, diz. E quando o assunto é literatura, uma doce lembrança povoa a mente de Jonas. Ainda criança, ele via a felicidade chegar quando o pai 20

o presenteava com gibis. Ali, de maneira inconsciente, nascia uma fulminante paixão pela leitura. Daí em diante, não parou mais. A cada quinze dias, ele se deliciava com um clássico diferente e se encantava com a possibilidade de viajar para lugares inimagináveis sem o menor esforço físico. “A graça da leitura é que ela nos permite criar a própria história. As paisagens e a forma dos meus personagens são só meus”, destaca. Mas, junto com o fascínio pela literatura, Jonas trazia consigo uma inquietude de tirar a paz. Nunca suportou calado a realidade social posta. A pobreza extrema, a fome, a falta de oportunidades. Para ele, fechar os olhos diante dessas situações nunca foi uma possibilidade. “Vivemos num mundo de exclusões, preconceitos, discriminação e desamor.

Eu sempre achei que reclamar era muito pouco, queria agir”, afirma. E foi num desses momentos de insatisfação, em 2006, que Jonas decidiu transformar todo desejo em ação. Com a vida financeira equilibrada, mas com o coração angustiado, embarcou numa viagem que se tornaria decisiva. Comprou as passagens, arrumou a mochila e partiu para Machu Picchu, no Peru. Em 23 dias de aprendizado e enriquecimento espiritual, ele voltou certo de que daria início a um projeto que o faria retornar às origens. Desde então, foram dois anos matutando sem parar. Ele reduziu gastos e diminuiu o padrão de vida. Juntou forças, dinheiro e coragem. Tirou uma licença do serviço público e se jogou de corpo e alma na recém-nascida Barca das Letras. “Comecei a ajudar esses povos que Foto: Karine Santos

Diagramação: Bruno Barbosa

Hariane Bittencourt

Jonas Banhos sonha: “Eu verei nascer, nessas comunidades, os futuros Chico Mendes que não serão enganados pelos destruidores da floresta. Mas também nascerão poetas, palhaços e cidadãos, que é o principal”.


Foto: Karine Santos

são invisíveis socialmente. Voltei para a minha terra e fui visitando comunidades tradicionais da Amazônia”, explica. A Reserva Extrativista do Rio Cajari, no Amapá, foi a primeira felizarda. Muito humilde e isolado, o local recebeu a Jonas de braços abertos. Com a chegada dos livros, as crianças, tímidas e inocentes, distribuíam os mais sinceros sorrisos. Uma a uma se aproximavam, como quem conhece o que nem sequer existia. Cada exemplar doado foi arrecadado em Brasília e, depois, entregue à população ribeirinha. E o tempo passou veloz. O projeto se expandiu e foi premiado, inclusive, pelo Ministério da Cultura. Em 2011, Jonas regressou à capital do país seguro de que, nas comunidades visitadas, as coisas estariam sob controle. “Em cada local a gente cria um vínculo e deixa pessoas que continuam o trabalho de incentivo à leitura”, conta. Hoje, a certeza de que a escolha por servir ao próximo foi a mais acertada é a garantia de um sono tranquilo para este amapaense. Em oito anos de dedicação, mais de 70 mil livros já foram doados e, pelo menos, 50 municípios foram atingidos por esta onda do bem. Comunidades dos quatro cantos do país já receberam, sempre de bom grado, intervenções da Barca das Letras. E sabe qual o melhor disso tudo? O brilho no olhar de cada um dos pequenos atendidos. “As mães contam que quando os filhos ouvem no rádio que nós vamos chegar, mal dormem. Essas crianças sabem que a gente traz o alimento para a alma, o mundo dos livros”, emociona-se. Um dia, a leitura mudou a vida de Jonas. Agora, ele enxerga a mudança na vida desses meninos e meninas. É bem provável que, sem o projeto, grande parte deles jamais tivesse essa oportunidade. “Eu verei nascer, nessas comunidades, os futuros Chico Mendes que não serão enganados pelos destruidores da floresta. Mas também nascerão poetas, palhaços e cidadãos, que é o principal”, vislumbra. Titio palhaço ribeirinho, como é carinhosamente chamado pelos pupilos, mal sabe o bem que faz. O impacto desse trabalho vai fazer com que, desde já, floresça uma nova e encantadora geração de leitores.

21 21


ECONOMIA Mercado de trabalho

Oportunidade na rede Facebook se torna aliado na divulgação de serviços e produtos entre usuários e amplia alternativas de negócios. Empreendedores se destacam pela criatividade Mayara Dias e Sarah Peres

Afetadas pela crise econômica, pessoas que perderam o emprego procuram alternativas para o acréscimo de renda e abertura do próprio negócio. Para alcançar esse objetivo, as redes sociais têm sido aliadas na relação entre produtor e consumidor, por meio de divulgação e comercialização virtual É o caso da professora, escritora e artesã Janine Carvalho. Buscando complementar o salário mensal, ela fez um curso de cremes artesanais e há dois anos vende seus produtos em feiras e pelo Facebook. Todo o processo de produção, venda e divulgação dos cremes é realizado pela própria profissional.

MEI Cadastro

Pequeno empresário que trabalha por conta própria, geralmente de forma individual. Também há a opção de contratar um empregado que receberá salário mínimo ou piso da categoria.

1. No site do Portal do Empreendedor; 2. Por meio de empresas de contabilidade que optam pelo Simples Nacional.

1. O faturamento anual não pode ultrapassar os R$ 60.000,00; 2. Não é possível a participação em outra empresa como sócio ou títular.

Requisitos

22

“Faço os cremes sozinha em casa. Uso plantas e ervas naturais colhidas no quintal da minha avó, e também na feira de Ceilândia e no Rei das Ervas em Taguatinga. Mas é necessário esperar até 20 dias para que o creme obtenha as propriedades medicinais e princípios ativos das plantas”, explica. Janine começou a fazer kits e receber encomendas de produtos assim que iniciou o negócio. “Como sou escritora e professora e realizo a venda em eventos alternativos, faço uma singela promoção. Na compra de um creme hidratante, o cliente ganha um poema”, diz.

22

Já a confeiteira Juliana Fiche, de 26 anos, há três anos deixou de investir na sua formação em design de interiores para se arriscar no mercado concorrido dos cupcakes. “Como não tenho loja física, minha vitrine é online. Tenho pedidos diários, atendo entre dez e 15 clientes semanalmente, sendo que a maior procura é para eventos aos finais de semana”, conta. Para a divulgação dos produtos, ela também usa o Facebook. Sua página, chamada Cupcakeria Brasil tem mais de 1800 curtidas e centenas de clientes fiéis. Apesar da alta demanda, todo o processo de produção dos cupcakes, até o atendimento aos clientes, é realizado por ela mesma. “Uso muito o Facebook, porque me ajuda bastante. As divulgações acontecem apenas na página. Por ela, tenho meu contato inicial com os clientes”, concluiu Juliana. A imaginação é o diferencial para um mercado em dificuldade econômica, como avalia Cristina Castro-Lucas, professora de Administração da Universidade de Brasília (UnB) e coordenadora do projeto de extensão do Centro de Apoio ao Desenvolvimento Tecnológico e da Escola de Empreendedores. “Em momentos de crise, principalmente, é possível ter um crescimento pela criatividade. Busca de novas oportunidades, essa é a palavrachave”, aconselha. Segundo ela, o planejamento é essencial para a consolidação de uma nova meta. “Isso inclui o planejamento diferenciado, no caso da internet que se dá pelas tecnologias de informação e comunicação. A riqueza agora, do século XXI, está em quem melhor estiver conectado”, explica a especialista.


As tecnologias de informação e comunicação (TIC’s), conforme citado pela docente Cristina, são o conjunto de recursos tecnológicos que, interligados entre si, proporcionam automação e comunicação de vários tipos de processos existentes no negócio. Por isso, redes sociais, como Facebook, são fundamentais na divulgação de novos projetos, devido ao largo alcance das publicações.

Neste panorama, grupos do Distrito Federal são criados no Facebook de acordo com as regiões administrativas, ou mediante interesses em comum, como compra, venda e troca. Qualquer usuário desta rede social tem a possibilidade de criar uma página ou grupo de interesse. Os classificados antes encontrados em jornais impressos, agora adaptam-se a um formato online, possibilitando mais interação entre comerciante e consumidor. Tâmara Mansur é uma das fundadoras do grupo “Mães amigas de Águas Claras”, nesta rede social, criado em 2011. O grupo possui atualmente 31 mil membros. Um dos objetivos é incentivar o empreendedorismo e o relacionamento social entre os participantes. “A venda é livre, sem custos. Temos apenas dias autorizados para vendas e regras básicas para não poluir o visual dos demais membros”, afirma Tâmara. As administradoras organizam feiras para incentivar a venda entre as pessoas que compõem o círculo na rede social. Já foram organizadas onze edições. “Cada uma leva o que faz de melhor e assim é possível conhecer o trabalho de todas. A maioria hoje tem empresa legalizada, estão em fase de crescimento e a feira auxilia bastante na divulgação”, defende Tâmara. O microempreendedorismo individual (MEI) surge como opção para quem deseja regularizar e legalizar os serviços prestados. Entre as vantagens está o registro do Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ), facilitador de transações no banco; segurança jurídica, por meio de regras estáveis; apoio técnico do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), com orientação e assessoria aos empreendedores; e isenção de tributos federais, com pagamento de

Foto: Layla Andrade

Diagramação: Giovana Gomes

Em comum

Há dois anos, a professora e artesã Janine Carvalho vende kits de creme hidratante pelo Facebook

contribuição fixa mensal que possibilita benefícios como aposentadoria. A analista de atendimento individual do Sebrae-DF Kátia Cristina Magalhães, analisa a importância desta modalidade trabalhista. “O empreendedorismo é imprescindível para o desenvolvimento econômico do país, uma que vez gera emprego e renda, bem como valores, especialmente os que impactam o âmbito social, a exemplo das ações de responsabilidade social”, opina Kátia. O sucesso do empresário não se resume mais a um ponto comercial. “Com o advento da tecnologia, a preocupação é a preparação antes de arriscar montar uma empresa, seja ela física ou virtual. É possível utilizar a rede social para vender. Essa é uma ferramenta poderosa dentro do Plano de Marketing”, afirma Kátia. Juliana Doche, administradora da página Doche Artesanato, era pedagoga e resolveu há três anos se aventurar tornando-se

microempreendedora individual. Os direitos garantidos pela regulamentação tranquilizam a pequena empresária. “Continuo pagando meus impostos, então tenho minha aposentadoria garantida, vantagens de empréstimo e crescimento”, assegura Juliana. Seu trabalho baseia-se em personalização de bolsas, carteiras, necessaires, cadernos e outros produtos. Para a artesã, o Facebook é uma ferramenta fundamental para a divulgação e venda de seus produtos, recebendo em média 20 pedidos por mês por meio de sua página. “Eu criei uma carteira com espaço para celular, sendo possível manusear o aparelho sem tirá-lo de dentro. Foi um sucesso e é o produto mais pedido na rede social”, comemora Juliana.

23


CRÔNICA

“Ócios” do ofício

Diagramação: Bruno Barbosa e Webert da Cruz

Dalila Boechat

24

Ele tinha 21 anos, era estagiário e trabalhou 21 horas consecutivas por três dias seguidos. Resultado? Morte. Este foi o capítulo final do alemão Moritz Erhardt, estudante de administração. Prestes a terminar sua última semana no programa de estágio no Bank of América, em Londres. Erhardt morreu por uma crise epiléptica que, segundo relatório médico, poderia ter sido evitada com repouso adequado. A ciência atesta. O corpo demanda. A mente clama. Mas ao longo de nossa rotina, não costumamos dar ouvidos a nenhum deles. Casos como o do estudante alemão não são raros. Todos nós assinamos embaixo. E voltamos a trabalhar, cumprindo, se não, 21, como o estagiário, nossas sagradas oito horas diárias. O ócio: descanso, repouso, folga de trabalho. Frequentemente visto como sinônimo de vergonha e impotência, reivindica lugar espontâneo na rotina de cada ser que estuda, trabalha, vive, pulsa... O cotidiano ocioso, em medida certa, é primordial. O repouso saudável nos possibilita descobrir e cultivar sentimentos – uma vez que nos encontramos tão abafados pela poluição mental e cultural. Podemos assim, enxergar nitidamente nossa condição. Ressalto que não me proponho a descrever o ócio de uma maneira sociológica, que dirá empírica, e, sim, trazendo um quadro do que seria ideal. Elegendo o que deveria ser acessível a todo e qualquer ser humano. O tempore-creare, “tempo criativo”, em expressão latina, vai se estender além das férias programadas e dos limitados fins de semana – que não passam de uma extensão passiva do trabalho. Proponho uma nova maneira de encarar nossa programada realidade. Não excludente, mas flexível. E, quem sabe, inédita em relação ao estigma de cotidiano que se conhece até hoje. 24

Proponho a valorização do repouso, da profusão de calma, da escolha voluntária. Permitiremo-nos o descanso. Caso contrário, seus olhos serão vendados pela lógica da indústria. Seremos, todos, um único vazio, apenas. É agora questão de urgência. Simples e desnorteados, despejamos nossa escassa vida, que pode ser tão plural, em moldes redutores, quiçá fatais. Na busca de um referencial, perdemos nossas próprias raízes. A racionalidade cega tem nos guiado. Almejando um futuro – seja ele representado pelo cargo público do salário mais alto, por exemplo – nascemos fertilizados por uma doutrinação “eficaz”. Doutrinados por uma educação padronizada e parcial, trabalharemos fatigados, porém, sorridentes quando a sacarmos a felicidade no quinto dia útil

do mês. Aptos a construir uma família tão plástica quanto aquela do comercial de margarina dos anos 80. Precisamos assimilar que o ócio traz sentido, reflexão e gozo para o ser. É o momento em que toda e qualquer forma de arte, tão incipiente na rotina geral, pode ser concebida na expressão dos indivíduos. A beleza pode ser contemplada pelo ócio. É pelo ócio que se recupera a saúde. Vivese a criatividade nata. Experimentamos a oportunidade de revitalização, e com ela, adquirimos uma consciência autêntica. Transbordamos as fronteiras do pensamento automático para uma existência diária salutar e espontânea. É esta minha proposta, sem maiores limitações. Bom... Na melhor das hipóteses, adotá-la reduziria os índices de óbito entre estagiários e trabalhadores, concordam?


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.