3 minute read
Uma obra sem fiscal, um jornalismo sem registros
Por Zezinho Nascimento de Jesus e Lívia Salles
“Do alto de um mirante, Seu Zezinho enxerga um futuro a definir. No reassentamento não consegue imaginar o lugar onde, por tantos anos, viveu uma vida tranquila, ordenhando suas vacas e plantando no quintal. Enquanto casas coloridas são erguidas, há uma espera que já dura mais de sete anos. De tijolo por tijolo, havia construído uma vida no território de origem. “Muitas das casas que foram embora no Bento vieram da minha mão. A escola e o ginásio que permaneceram de pé, eu que ajudei a construir”, conta. “Deixa o Zezinho dividir as crianças no recreio, ele já sabe”, dizia Dona Iná, a diretora da pré-escola onde estudou. Sem medo de falar o que pensa e com espírito altruísta, aprendeu a ser um bom líder. As habilidades o fizeram presidente da Associação Comunitária de Bento Rodrigues, como ele diz, e se tornou fiscal do reassentamento. Agora o trabalho é dobrado, não pode mais pôr a mão na massa como gostaria, mas o trabalho exaustivo é garantir que os direitos de toda a comunidade sejam assegurados.
Advertisement
Seu Zezinho costumava visitar o reassentamento semanalmente, antes de ser impedido de fazer isso. Entrava, fotografava, verificava as calhas. Percebia cada trinca na parede e registrava. Sabe que a telha de sua casa na rua Raimundo Muniz, no território de origem, era colonial e seu portão não era de alumínio, como a Renova queria lhe oferecer. Orientava cada morador, durante as visitas: “A casa quem vai morar é você, não é a Renova; se não concorda com o andamento da obra, pede para refazer.” É exigente como deve ser um fiscal, nenhum detalhe passa despercebido. E, quando chega ao canteiro de obras, cumprimentos vêm de todos os lados. “Passa lá na minha caminhonete que eu tenho um queijo para você”, diz para os funcionários que lhe desejam “boa tarde”.
Zezinho denuncia que há nove meses está impedido de entrar no reassentamento. “Nós tinha o direito de visitar a obra duas vezes ao mês, isso não acontece.” Esse direito é estabelecido pelo Termo de Ajustamento de Conduta assinado pela Renova e, como muitos outros, não é respeitado. Quando chega na entrada do distrito onde será sua casa, é barrado no credenciamento. Pode entrar somente aos domingos, nas celebrações religiosas tradicionais para a comunidade de Bento Rodrigues. “A Renova deve ter medo de mim pra me proibir de fiscalizar, devem achar que, se eu continuar indo, vou só atrasar a obra, aí me barram.”
Zezinho está cansado da negligência que sente por parte da Renova. “Pra eles, se ficarem construindo por 80 anos, é bom. Pra gente, não. Estamos esperando voltar antes que morra todo mundo.” Ele conta que tudo que precisa ser resolvido só é feito quando convém à organização. “Se eles não apanhassem água no Gualaxo para fazer obra, nem a estrada até o Bento origem tinha.
Maio de 2023
No caminho que leva até ao reassentamento, um caminhão com a frase “tudo no tempo de Deus” no parachoque leva materiais para a obra. Para entrar no “Novo Bento”, como a Renova chama, preciso informar meu nome completo e documentos. O que seria uma visita a um distrito em construção se torna uma burocracia por questões de segurança, me dizem. A rua Raimundo Muniz está logo à frente. A casa onde seu Zezinho espera morar em breve está quase pronta, diz a Renova. Ali eu vejo uma casa bege de portão marrom; ele vê uma reparação que ainda não chegou. Muitos funcionários trabalham sem parar, o barulho da obra é constante. Preciso desviar de buracos nas calçadas, me pego pensando o que o fiscal do reassentamento diria dessas falhas em uma rua ainda sem habitantes. As casas são bonitas e seguem o modelo escolhido pelas famílias, em um projeto inovador de participação popular proposto pela organização, me dizem. A fala institucional é de que todas as moradoras e todos os moradores visitam as casas com regularidade e podem apontar para os defeitos. Questiono se a população vai poder plantar como sempre fez. A resposta é que sim, mas os terrenos íngremes, com pouco espaço no quintal e a falta de água bruta preocupam Seu Zezinho. Minha ida ao reassentamento é uma visita guiada. “O ‘Novo Bento’ terá a primeira estação de tratamento de água e esgoto de Mariana” e
“estamos mobilizando uma central da polícia e uma Unidade Básica de Saúde para os moradores” são afirmações que ouço. Enquanto o “tour” acontece, sou avisada que não posso fotografar tudo e que irão me levar aos locais onde conseguirei fazer as melhores imagens. Encontro Seu Zezinho em um sábado e ele me informa que está proibido de entrar no reassentamento. Me leva até ao mirante para que eu possa ver, fotografar e aprender o caminho para quando quiser voltar. Enquanto o rádio toca boas modas de viola, relembra a calmaria da vida rural e diz: “torço para que a
Renova vá embora logo e a Samarco assuma a obra. Quem causou o mal que deve reparar”. “O senhor vê Bento quando olha daqui?”, pergunto quando chegamos. Ele olha para o horizonte tentando vislumbrar o “Bento paraíso” que guarda com tanto carinho na memória. (Livia Salles)