Jornal coletivo sÓ - segunda edição, primeira em papel e com o conceito de jornal - maio de 2008

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só What, a procura da essência

almejamos a vanguarda, que um certo mestre nos mostrou, com a falta de notas e lisergias jurássicas, concretizadas em sopros, batidas e musicalidade voraz/sentimental

ó!

Nosso objetivo é buscar o espírito dos sebos de discos, das casas dos músicos, dos clubes perdidos e de progressistas que pintam, escrevem e sonham.

Revolucionários que não esperam, dinossauros não estacionados: reciclados. Tentaremos reportar a você as histórias que construíram a nostalgia, que não negamos existir, mas que alicerçaram cabeças e formas de pensar o mundo. Buscamos a compreensão da “mocidade do nosso temporal”*, pertencemos a um não-tempo real. Acreditamos ainda construir e contribuir com “um novo amanhecer”*. Queremos “botar pra fora nossa dor poluída pelo século do desespero”*. Esse é o motor que nos move à doação: para alguns, audições “eternas que não duram mais que um dia”*, pra outros, tocar, desenvolver canções abruptas, “ser bicho do mato”*.

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Estamos abertos a intervenções diversas. Queremos possuir a chave que “tranca, lacra o peito”*, para abri-lo e socializar as vísceras. Assim gostaríamos de apresentar as novas amálgamas e torná-las palpáveis. Agregar os que estão conosco.

SSomos omos só, só,, agora definitivos, depois de só abstrações e uma criação prolífica. Sonhamos muito, talvez ambiciosos. Ficamos

satisfeitos com a edição púrpura, mas o desejo agora é trabalhar em cima do aparente simples, um tablóide em preto e branco. Um simples a ser superado por uma cultura obscura, de todos. Por isso uma publicação gratuita, distribuída aos quatro ventos com o objetivo de continuar a ser vanguarda. Trabalharemos para desconstruir os padrões. Um não-jornalismo será pintado com formatos atonais e escrita dodecafônicas. Os asteriscos(*), são referência ao Som Nosso de Cada Dia e ao mítico Snegs de só - para viajarmos juntos ao estúdio Sonima Biufrais, aqui degustado, bebido num gole só e saber o que aconteceu ali em maio de 74. Músicos esquecidos da Cantareira, colegiais transviados; independentes únicos, Grupo Um, vanguarda paulistana; o calor das válvulas de um outro “Tremendão”.

esta edição é dedicada à memória de Pedrinho, músico que com um par de baquetas espantava e encantava.

equipe só

andré mainardi (reportagem, textos, comercial), camila antonelli, chuck “dedo amarelo” (capa e arte), leonardo “onça”, lucas rodrigues de campos (reportagem, textos, edição, diagramação, arte, comercial), tatiane klein (edição, diagramação, arte) agradecimento: pedro baldanza, gráfica: pana, contato: so.contato@gmail.com


e x p e r i m e n t o s

caminhos do Grupo Um

Músicos “hermetistas” (aqueles que acompanharam Hermeto Pascoal) são, por excelência, munidos de liberdade. Tocar com aquele que quebrou as regras da música foi o berço do Grupo Um. Improvisação e passos advindos do jazz fazem a trajetória dos músicos que compuseram o “Grupo” no fim da década de 70, e deram seqüência à revolução sonora no cenário brasileiro a partir dos pilares “hermetistas”. Lelo Nazário, pianista do grupo, comenta: “Tocar com Hermeto é sempre uma experiência única. [É] um músico que já havia passado por toda a música que aconteceu aqui desde a década de 60, sempre criativo e original em todas as fases”. Entrevistado pelo polêmico Zeca Jagger em 1975, para o Jornal de Música e Som, o multi-instrumentista e referência mundial na música, anunciava os meninos que traziam um frescor especial a suas apresentações e “que acabaram com aquele preconceito de

cada um tocar determinado gênero”, destacando “Toninho Horta, Novelli, Raul Mascarenhas, o Nivaldo Ornelas, o Lelo (17 anos) e Zé Eduardo (‘ótimo baterista e percussionista’)”. Dois anos depois de serem profetizados, Lelo Nazário, Zé Eduardo Nazário (bateria, percussão, tabla), mais Zeca Assumpção (baixo eletrônico, piano, percussão), recém-saídos da câmara musical de Hermeto, apresentaram-se no Parque do Morumbi, em março de 1977. Estavam acompanhados de Carlinhos Gonçalves, na percussão, e que veio a compor a banda como membro fixo, Roberto Sion no sax, apareceu mais vezes junto ao “Um”, Márcio Montarroyos no trompete, Luiz Roberto de Oliveira no sintetizador, Fátima e Sima nos vocais e Dom Bira também na percussão. Com um jazzrockbatuquezappistacanterburiano – acidulados –, não havia definição para a “vanguarda una” quando nos palcos ou dentro dos estúdios

de onde brotaram nos anos de 1979, 81, 82 as experimentações analógicas: Marcha Sobre a Cidade, Reflexões sobre a Crise do Desejo e A Flor de Plástico Incinerada. Apesar de algumas similaridades com o Rock in Oposittion e o Canterburry (diferentes vertentes do rock progressivo), a influência, contudo, era nenhuma. Lelo explica:“Nessa época eu só estudava música erudita, jazz e música brasileira/latina (Bossa Nova/Salsa), não conhecia nada de rock”. Quatro anos: a carreira do “Um” foi curta. Tempo suficiente para que a inventividade de cada músico fluísse em composições arrojadas, distribuídas nos três discos e em shows memoráveis. Vale destacar que a época da projeção jazz/ vanguardista vivida naquele Brasil não condizia com a abertura política “lenta, gradual e segura”, apregoada pelos milicos. “Na época do regime militar, todas as pessoas que tinham um mínimo de consciência política se revoltavam com a

por lucas rodrigues de campos

situação e procuravam atuar para que o Brasil se redemocratizasse. Muitos artistas se envolveram nesse processo, principalmente os da vanguarda, e alguns pagaram caro pelo seu posicionamento político”, recorda o músico. A “massificação” do estilo veio através da TV aberta, mais precisamente através da Rede Cultura, que apresentava uma revolução musical, até então presa aos estigmas tropicalistas. Festivais de jazz com o apoio da emissora eram transmitidos, e bandas como a Academia de Danças, projeto de Egberto Gismonti, o próprio Grupo Um e a Divina Encrenca tinham trânsito livre nos auditórios e estúdios da TV pública. “A TV Cultura sempre teve recursos limitados e gravava seus programas na medida dessa possibilidade. Uma de suas funções [era e ainda] é registrar os acontecimentos culturais que acontecem. Ao gravar os concertos da vanguarda paulistana ou qualquer outro evento cultural da época,


não fizeram nada além de sua obrigação”, destrincha Lelo, que considera os festivais “uma boa maneira de dar uma visão geral do jazz”. Mas, segundo ele, “existem os que são montados principalmente pelo lucro e para agradar uma parte da burguesia que quer parecer culta. E existem aqueles que sintetizam o que existe de importante a um custo razoável, e com ingressos mais acessíveis, a um número maior de pessoas. Eu prefiro o segundo tipo”. O “Grupo” também foi palco para músicos do quilate de Felix Wagner, alemão e especialista em piano, clarinete alto e vibrafone, e Rodolfo Stroeter, ambos ex-membros da Divina, que substi-

tuiu Zeca Assumpção no contrabaixo. A partir de 80, a banda desponta no cenário internacional e executa diversos concertos na Europa. Todos prolíficos, os músicos continuaram a produzir música de qualidade. Um belo exemplo foi o Pau Brasil, que reuniu Stroeter e os Nazário. Para os que acharam que nunca teriam a oportunidade de sentir o choque musical do Grupo Um, já que seus discos são preciosidades – Marcha Sobre a Cidade foi lançado e produzido com financiamento dos próprios integrantes, tornando-se um marco no cenário mu-

sical brasileiro como o primeiro disco instrumental independente – tem de agradecer ao selo Éditio Princeps, especializado em relançamentos que giram em torno do jazz e do rock, focados em bandas que desenvolveram sua trajetória longe das grandes produtoras. “A Éditio Princeps é uma pequena gravadora cuja intenção inicial era reeditar as primeiras edições de obras já esgotadas. Assim foi com o Grupo Um, a Divina Increnca, o Pé Ante Pé e vários outros”, emenda o pianista. O selo

v i n t a g e

giannini tremendÃo t3 Pano de fundo que se estendeu da Jovem Guarda à Tropicália. Os Incríveis, Loupha, Roberto, Erasmo, Novos Baianos, Gil, Os Brazões e Caetano aproveitaram da tremenda potência desse cast. Um detalhe: a montagem artesanal, do tipo “ponto a ponto”, na placa principal propicia o timbre. Release Técnico| Cabeçote com dimensão de 242 x 250 x 715 mm, 20,3 Kg Valvulado (quatro válvulas 12AX7 Sovtek, mais duas 12AT7 Electro-Harmonix no pré-amplificador e quatro 6L6GC Sovtek na potência), potência de 85W RMS Dois canais independentes com duas entradas cada Unidade de reverb de mola e tremolo valvulado Impedância de 4 e 8 Onms Acompanha pedal footswich Caixas acústicas: quatro alto-falantes de 12”Giannini Vintage 70 (4x12” GV70), painéis frontais angulados, traseira semi-aberta, potência máxima de 320W RMS e impedância de 8 Ohms, dimensões: são 300 x 713 x 902 mm, 29,6 kg “Usei nos anos 80 um cabeçote ‘Tremendão’ com uma caixa de baixo por um tempo. Uma cacetada! Usei um Thundersound de baixo com o Joelho, mas ele tinha um som mais para o agudo, do tipo do ‘Tremendão’. O que se fazia muito nos anos 70 era usá-lo para contrabaixo, alguns usavam Thundersounds para guitarra pelo grave, mais voltado para o jazz.” Rodolfo Aires Braga, “El Capitain” Terreno Baldio, Joelho de Porco e U.S.-Mail.

trata com muito carinho seus relançamentos exclusivos (sempre inéditos em CD), reproduzindo os encartes originais, adicionados de fotos e declarações inéditas dos músicos. “Agora, em 2008, já estamos preparando o lançamento do Poema da Gota Serena, do Zé Eduardo Nazário e, em seguida, do terceiro disco do Grupo Um, que se chama A Flor de Plástico Incinerada”.


fotos: pedro baldanza e grace lagoa

Direto de uma noite de trabalho, regada a doses cavalares de cafeína, chegamos a uma USP erma, mergulhada em fog londrino, clima perfeito para uma viagem em Biufrais. O objetivo da visita à Cidade Universitária: encontrar Pedro Baldanza, parte da santíssima trindade que compôs o álbum Snegs. Hoje o baixista auto-intitulado “roadie de luxo” trabalha na Orquestra Sinfônica da USP. Desde 1994, quando se apresentou pela última vez com a formação clássica do Som Nosso de Cada Dia (SNCD), Baldanza ensaiou com Sérgio Dias e até serviu café em estúdio, buscando o anonimato. Com base em uma conversa de pouco mais de uma hora com Pedrão, e consultando materiais da década de 70, reconstruímos a história desta grande banda. Dividida em momentos cronológicos, a matéria é uma homenagem a todos que fizeram parte do mítico grupo. Essa edição é dedicada aos anos pré-Som Nosso até a composição do álbum Snegs. A seguinte completará a história da banda, destrichando o fim da década de 70 e trazendo uma cobertura completa do retorno da banda no último dia 26 de abril. Antigos Baianos 1970 Botafoguense vindo do Rio Grande do Sul, Pedrão chegou em São Paulo com

um Fender Jazz Bass 61. Antes possuía um Apolo Giannini semi-acústico, comprado com a grana de muito sapato engraxado, uma máquina de escrever e uma preciosa coleção de gibis do Cavaleiro Negro, até então completa. Já com o Jazz Bass, compôs um conjunto de baile em Ribeirão Pires, chamado Enigma, pedra fundamental para o nascimento dos Novos Baianos. Era um trio: Pedrão, Jean e Odair [Cabeça de Poeta]. Com shows itinerantes para recolher uma grana, foram parar, em um dia abençoado, num boliche em Ubatuba – “e aí apareceram três caras mais uma moça: Paulinho [Boca de Cantor], João, Morais [Moreira] e a Baby”, quando ai-

tricampeonato mundial no México pela seleção brasileira e construíram uma arquibancada dentro da própria casa; arrojo que depois veio em forma de música. No pequeno período em que estiveram juntos, Pedrão e a turma da Bahia lançaram, pela RGE, o que é hoje o souvenir mais raro dos Novos Baianos: um compacto duplo com as músicas “Psiu”, “29 Beijos”, “Globo da Morte” e “Mini Planeta Íris”, todas com participação do futuro baixista do SNCD. “Quando [Pepeu, Morais, Baby e Paulinho] foram pro Rio eu estava um pouco cansado, de saco cheio daquela doidera, e tinha também alguns problemas familiares. Cheguei a ir ao Rio, mas desisti.Ti-

nda eram Novos só na idade. Pepeu Gomes estava na Bahia, no grupo Minus. “Depois que conheci a galera, o Morais arranjou de tocarmos juntos e me informou que Pepeu ficaria um ano por aqui e gostaria de tocar também. A gente fazia umas ‘domingueiras’, com muito Cream, Hendrix, Led”, recorda Pedrão, revelando um capítulo importante na história do rock tupiniquim. O protótipo dos Novos Baianos passou um ano e meio pra lá de lunático; juntos, numa casa no bairro do Imirim, Zona Norte de São Paulo, e guardados por “uma medusa esculpida no portal de entrada, maravilhosa, uma doidera”. Naquele ano, 1970, assistiram juntos a conquista do

nha que cuidar da minha mãe e dos meus irmãos. Só que dois meses depois senhora descolou uma grana da indenização pela morte do meu pai e foi embora pro Sul. Quando aconteceu isso, me deu um branco. Perdi a boca dos Novos Baianos [risos]! Porra bixo, tô aqui na rua em Ribeirão Pires”, relembra Pedrão num misto de lamento e humor. “Eu dormi na casa de um primo pobre à beça, num chão batido. Aí veio o Edson Ribeiro [compositor que teve músicas como ‘Aquele beijo que eu te dei’, gravada por Roberto Carlos] e me trouxe pra São Paulo, onde conheci o Agamenon e o Walter Franco”. Graças à desistência de fazer parte dos Novos

por lucas rodrigues de campos contribuição: andré mainardi

Baianos, fomos brindados com uma das maiores peças experimentais compostas aqui no Brasil: “Aí fiz com ele (Walter) aquela história da Cabeça, surgiu o Perfume, tudo com a galera que conheci num bar da Maria Antônia”. A procura da essência 1971 Como nos versos de Caetano, Pedrão pousou em pleno centro paulista, “sem lenço e sem documento”. Abençoado, encontrou alguns doidos como ele. Agamenon, artista plástico e maluco profissional, assistiu Pedrão quando esse carregava apenas um violão. Ninguém melhor que o próprio Baldanza para esmiuçar esse capítulo da história: “cheguei à Maria Antônia só com um violão debaixo do braço, e pensei: ‘Onde vou dormir? Tenho que dar um jeito. Vou dormir por aqui, encosto numa praça’, aí entrei num bar e me disseram que tinha um pessoal tirando um som ali. Subi as escadas e encontrei o Agamenon tocando junto com a Marcinha (futura vocalista, figurinista do SNCD e esposa de Pedrão).” Agamenon convidou-o para passar uma noite em seu apartamento. Lá conheceu o guitarrista Benvindo, que estava começando o “lance” do Perfume Azul do Sol, banda que ensaiava na “casa de uma mulher chamada Ana Maria, cantora da banda, tocava


piano e tal (...) musa do Juca Chaves naquela música ‘Por quem sonha Ana Maria?/Nesta noite de luar/Já se escuta nostalgia’ [com direito a cantarolada]; Ela era uma peça, figuraça” Logo Pedrão passou a participar do Perfume e a banda se instalou no apartamento de Ana, localizado no Bom Retiro. O músico deu prosseguimento ao trabalho surgido durante os Novos Baianos, desenvolvendo as levadas características dessa banda, “aqueles panrapapan”. Um bom disco lançado [Nascimento pelo selo Chantecler, Ana, voz e piano, Benvindo, voz e violão, Jean, voz e guitarra,Gil, bateria e vocal e Pedrão no baixo] e nenhum show na carreira; esse foi o currículo do Perfume, interrompido bruscamente por problemas pessoais de Ana Maria. Mesmo com empecilhos, a produção musical não parava no Bom Retiro, local de criação frutífera. Cassiano, mais tarde famoso soulman, compôs seu maior sucesso “A lua e eu” - (...), Mais um ano se passou/E nem sequer ouvi falar seu nome” [mais uma palinha de Pedrão] - naquele reduto, quando também recebeu abrigo ao chegar do Rio. O compositor marcou a vida de Baldanza: “Um dia a gente saiu pra ir pra Praça da República, ponto de encontro dos malucos na época e deixamos o Cassiano dormindo. Nós avisamos a ele que tinha uma panela de feijão no forno. Quando chegamos em casa, batemos na porta e o Cassiano não tava. A porra da panela de pressão tinha explodido, tinha feijão pra todo lado. A única coisa que o Cassiano fez foi desligar o fogão e sumiu. Só fui ouvir falar de novo nele quando já tava no Rio”. Boas histórias, um compacto e um disco na bagagem, Baldanza já estava sem esperanças, não conseguia dar rumo consistente à carreira. Logo após a tentativa com o Perfume, ele decide sair do país e apos-tar sua sorte nos EUA, o que até então era impos-

dia seguinte, Pedrão segue ao encontro do ídolo Manito, no Jardim Bonfiglioli. “Quando você faz aquela curva do km 12 da Raposo Tavares, passa naquele pedaço que é a Previdência onde tem um sinal que desce pra Corifeu, seguiu em frente tem uma curva pra esquerda na Raposo, depois pra direita. Na passagem dessa curva tem uma ruazinha no cantinho. É onde nasceu o Som Nosso, no lado direito, atrás da churrascaria”. Nesse endereço Pedrão chegou com seu violão. Pedrinho Batera estava estirado no sofá da sala tirando um cochilo, mas percebendo a presença de Pedrão, logo acordou. O primeiro contato dos charás foi uma conversa sobre o Bloco Cabala, banda de baile baseada em metais, que Manito projetava no final de 1971. Com seu violão, Pedrão mostrou virtudes além das de baixista: vocalista e compositor. Executou composições próprias – entre elas, todas as bases do que em breve viria a ser o SNCD. Durante o pocket show, “Manito chegou à porta e ficou parado, ouvindo a gente tocar. Pedrinho tava curtindo, brincando com as músicas, querendo saber da onde tinha vindo aquela onda (...) Quando o Manito entrou eu até arPensar as coisas eternas repiei. Bixo, o Manito pra mim era um que não duram mais que um cara de sucesso, o artista mais próxima dia de que eu tava chegando. Novos Baiafim de 1971 - abril de 74 nos ainda era lixo, ninguém sabia que existia. O Manito era um cara que eu Pedrão aceita o convite, faz o show e tinha a maior admiração.” consegue um bom dinheiro; o bastante Naquele instante o sentimento de Pepara solicitar os documentos necessários drão tornou-se recíproco. Impressionado para a viagem e comprar as passagens com as composições e levadas, Manito aéreas para sair do Brasil. “No final da começou a trabalhar de imediato em cima noite, a mulher do Roni chegou pra mim das canções. Caía por terra a idéia do baile, e disse: ‘lá perto da minha casa tem um e o Bloco Cabala dava lugar ao Som Noscara que você conhece, o Manito, ele tá so de Cada Dia, nome extraído da commontando um conjunto. Por que você posição homônima. não vai lá conversar? Quem sabe de re- Tida por muitos como a primeira banda pente pode aparecer um trabalho pra genuinamente de rock progressivo do país, você...’, essa mulher foi iluminada”, eter- o título nunca agradou Baldanza e seus namente agradecido pelo conselho, no companheiros. “Não tinha esse nome, não sível, pois mesmo com os dois tra-balhos, não tinha dinheiro e nem os documentos necessários para pensar em sair da cidade. De súbito, um caminho se abriu. A esposa de Ronaldo Duschenes (Roni), arquiteto e amigo pessoal de Pedrão, convida-o para participar de um sarau, cujo organizador era um tal de Marcus Pereira. Aqui valem dois parênteses: Duschenes, profissional na linha de Villanova Artigas (arquiteto comunista) tornou-se histórico ao projetar uma casa no Jardim Europa, estruturada em uma abóbada de concreto. Lá vivia o filósofo Andréas Pavel, que, influenciado por Stockhausen e maravilhado pela acústica proporcionada com o projeto de Ronaldo, sonhou em levar os sons de uma orquestra aos tímpanos do homem – daí foi concebida a idéia do walkman; Marcus Pereira, “mecenas” entusiasta da música brasileira, trabalhava com publicidade, e oferecia sua casa aos músicos da época. Lá gravava as apresentações de forma independente e mais tarde, em 1973, transformou o hobby na Discos Marcus Pereira, gravadora notabilizada por inúmeros lançamentos ligados ao samba.

existia essa conotação em relação ao rock, isso é coisa de subcultura, enquadramento, sempre querem criar um ponto de referência pra comentar, alguma coisa (...); A gente sofria uma pressão grande com as comparações que eram feitas. O pessoal falava que a gente parecia com o ELP, mas não tinha nada a ver, era outro som. A gente fazia som brasileiro. De repente tinha um som de Hammond, um Minimoog parecido. (...) O nosso som é brasileiro, cheio de progressão [gesticula os braços], aí vieram com essa história de progressivo”. Entre o primeiro encontro dos Pedros e Manito, e a gravação do disco, existiu um hiato de dois anos. Em 1972, já com muitos ensaios e músicas formatadas, o SNCD começou “a batalhar lugar pra tocar, aí apareceu na época um cara que era amigo da rapaziada, o Magnólio com uns negócios no Ibirapuera. Na época ele promovia muitos festivais. Outro que deu uma força à banda foi o Dudu Tabacow”. Assim o SNCD começou a despontar (ver Ao Vivo). Os primeiros equipamentos “eram uns amplificadores do Manito encomendados por ele junto à Snake, um órgão Hammond com uma Leslie, um Fender Rhodes, coisas que ele tinha adquirido com a grana que recebeu nos Incríveis”, o salto de qualidade no quesito aparelhagem se deu de forma inesperada. “Conhecemos o João Paulo [João Paulo Ribeiro de Barros] um fazendeiro milionário de Bauru, que pirou, ficou apaixonado pelo nosso som. Ele conhecia o Peninha [Schimidt, produtor do Snegs], os dois pegaram uma grana e foram juntos pra Miami e compraram tudo: dois Moogs, Minimoog, duas Leslies, Honher Clavinet, dois Harpschord (..) esse equipamento continuou com a gente mesmo quando o Manito saiu.O João Paulo ficava ligado a gente o tempo inteiro”, ao relembrar da história Baldanza revelou a vontade de reencontrar um dos personagens fundamentais para o sucesso da banda. Já descobertos por Peninha, o produtor


os levou até a Continental, que naquele período investia pesado no rock’n’roll. Vale destacar que bandas como O Peso, A Bolha e O Terço, além dos já estabelecidos Mutantes, tinham conquistado um público cativo. No final de 73 o SNCD entra no estúdio Sonima e registra o que viria a ser o disco Snegs, engavetado por quase um ano. Na contracapa do disco, a informação é de que foi gravado em maio de 74. Para o início de abril de 1974, Alice Cooper agendou algumas datas no Brasil. As grandes companhias fonográficas enviaram seu casting de artistas à equipe de Alice, pois uma banda seria escolhida para abrir os seis shows da turnê a serem realizados em São Paulo e Rio de Janeiro; entre essas bandas se destacavam O Terço, Os Mutantes e SNCD; A segunda foi selecionada, mas devido às rigorosas exigências feitas, Marcos Lázaro – empresário e organizador do evento – descartou Os Mutantes, abrindo espaço pro Som Nosso. Pedrão explica: “Nós fomos escolhidos pelos managers do Alice, não por causa do nosso som, mas sim porque éramos um trio, então ia ficar mais fácil pra produzir, pela facilidade de trabalhar com poucas pessoas no palco”. Em São Paulo o SNCD tocou para um público de aproximadamente cem mil pessoas - somando os públicos dos shows no palácio de exposições e convenções do Anhembi. Nos shows da capital paulista, principalmente o da “exposições”, a banda foi claramente preterida em relação a qualidade sonora e tiveram que tocar sem volume e com aparelhos que não eram adequados para um espaço amplo como aquele. Depois dessa apresentação em que o Som Nosso não recebeu o devido cuidado dos engenheiros de som, muita coisa se passou. A banda e a equipe técnica do astro se enturmou rapidamente com Manito, Pedrão e Pedrinho, que ficaram a cargo de apresentar as maravilhas das

terras Sulamericanas. Como recompensa tiveram os PA’s mais potentes e o melhor som de suas vidas. “No Rio o tour manager já gostava da gente, estava feliz pra caramba, aí o som veio que veio”, levando os rockers que foram ao Maracanãzinho à loucura: “Acabou o nossso show, começou o Alice Coooper, a gente tava dentro do camarim e o público gritava: Som Nosso, Som Nosso. Não queriam ouvir o Alice, queriam a gente, até hoje me arrepia isso [conta Pedrão estendendo os braços]”. Com o sucesso adquirido após a turnê de Alice Cooper só faltava o lançamento de um disco oficial para a consagração. Sempre muito Snegs de Biufrais maio 1974-75 “Uma cagada”; assim Baldanza definiu a gravação de Snegs. Digamos que foi uma cagada saudável, rápida, sem maiores problemas. A metáfora foi usada para contar que o disco foi gravado em apenas 2 dias, praticamente todo ao vivo. A jóia mal lapidada contou apenas com alguns overdubs: violões, os solos de Manito (violino, sax, Minimoog), vozes e coros, estes executados com a ajuda de Marcinha. Para os mais exigentes o disco não agradou tanto. “O LP não condiz com o trabalho do conjunto (...) eu tenho pena de executar o disco que eles gravaram, porque não está à altura do trabalho deles”; disparou Jaques Gersgorin, lendário radialista, em um programa especial de bandas nacionais, nos idos de 1975. Tecnicamente, Jaques não se equivocou. “A mesa estava quebrada, o disco é todo chapadão, não tinha aquela coisa de jogar o som prum lado e pro outro”, traduzindo Pedrão: o botão de panorâmico (PAN/RL) do mixer do estúdio Sonima – um dos mais renomados da época – ,defeituoso, impossibilitou as jogadas de estéreo, obrigatórias para se obter uma mixagem ideal.

Peninha Schimidt conduziu as gravações, contando com o auxílio dos técnicos Francisco “El Zorro”, Carlos Dutweller e Índio. As músicas já vinham sendo executadas e chegaram ao estúdio já prontas, sem necessidade de alterações por parte da produção. Apesar da excelente equipe o Som Nosso “tocou do jeito que quis, ninguém mexeu em porra nenhuma”. Pedrão deixou claro que as alterações no trabalho não vieram da equipe de Peninha, e sim de fora. O caso lembrado ocorreu com a letra de “Som Nosso de Cada Dia”, a original deveria ser assim “Eu quero botar pra fora minha dor poluída pelo século do desespero pero sí no tienes/COJONES”, e não visiones, a palavra que a gente queria usar era culhão, a mensagem era: se você não tem culhão não apareça,e os caras barraram [referência à censura, instrumentos comumente utilizado pelos repressores do regime militar]”. Entretanto, o disco traz uma excelente sonoridade: totalmente calcada nas bases de Hammond C3 conectados a um par de caixas Leslie e frases melódicas de Minimoog, entrecortadas por uma cozinha que abusa de convenções e compassos ternários e compostos, como se nota na introdução de “O Som Nosso de Cada Dia”. Não há faixa que se destaque. A audição dessa obra de arte deve ser feita na íntegra. Todas as peças foram compostas e executadas com empenho e qualidade, marcas de músicos do calibre de Pedrinho, Manito e Pedrão. Letras belíssimas de autoria de Paulinho Mastrote Machado, poeta que usava o pseudônimo de Capitão Fuguete, contribuem com a mítica dos ritmos. “Snegs de Biufrais é: eu tômuito louco, tô muito doido, sempre muito à vontade, sempre muito abertão pras coisas”, revela Baldanza, que também comenta o trabalho de capa do disco. “Os cogumelos apareceram independente de qualquer coisa, foi loucura do Agamenon. Viajando ele resolveu pintar os cogumelos. Na realidade a capa do disco é inacabada”.

ao vivo

Além dos sempre citados shows de abertura de Alice Cooper, outras apresentações merecem ser lembradas: |Festival Kohoutec, Ibirapuera/São Paulo, 1973: Em homenagem ao cometa que se aproxima e que, garantiam, ia finalmente inaugurar a era de aquarius. Em vez disso inaugurou a carreira do Som Nosso de Cada Dia. (BAHIANA, Ana, Almanaque anos 70) |Festival de Águas Claras, Iacanga/São Paulo, fevereiro de 1975: Épica apresentação em meio a uma pane elétrica. A pouca iluminação que restava no palco, logo foi substituída pelo sol que emergia do oriente. |O Rock da Garoa, Maracanãzinho/RJ, 18 de outubro de 1975: Em sua segunda perna, depois de ter passado por SP,o festival ousou colocar bandas de origem paulistana na terra do samba. Não deu em outra, o Som Nosso quando anunciando foi recebido com uma vaia homérica; Bastou oito compassos para que elas virassem aplausos. |O Maior Show de Todos os Tempos, Estádio do Canindé/São Paulo, 29 de maio 1976: Histórico encontro do Som Nosso com O Terço, Os Mutantes, Joelho de Porco, Sindicato e Humauaca. O tecladista Dino Vicente estreava de forma discreta no SNCD. A péssima qualidade do som prejudicou o espetáculo. |Ginásio do Parque São Jorge SCC, São Paulo/SP, 21 de agosto de 1976: Som em alta fidelidade. Novamente o Som Nosso se uniu aos Mutantes, Terço e Sindicato, dividindo um mesmo palco (com uma subdivisão em três partes) e mesmos equipamentos. Ao final todos lucraram com o som.

Com o disco gravado e com data de lançamento marcada, um detalhe faltava: a arte. Coube a Pedro Baldanza seqüestrar a capa do disco. “Eu cheguei e falei pro Agamenon ‘chega, pára tudo, essa porra era pra tá pronta semana passada’. Ele ficava no quarto dele pirando nos desenhos, e não deixava ninguém ver o que ele tava fazendo. A borboleta do encarte foi idéia nossa e a gente colocou em cima depois, no fotolito, que já era um efeito incrível na época”. não se assuste, a história não acaba aqui! leia mais sobre o SNDC na próxima edição: segunda fase, sábado/domingo, final dos anos 70 e cobertura completa do retorno


CTA – 102

Os pioneiros da Cantareira Cantareira por andré mainardi

Com parcos recursos – empunhando gianninis e del vecchios e enfrentando a chiadeira de seus tremendões e phelpas, The Jet Blacks, The Sparks e The Lovers – agitavam bailes e matinês e influenciavam dezenas a formarem seus grupos. Nos enfumaçados corredores do Colégio Estadual Octávio Mendes, o CEDOM, um dos principais pólos de agitação político-cultural da ZN na segunda metade dos crazy 60’s, surge o CTA-102: “O que nos unia era um interesse comum pela música e uma grande identificação de gostos. Tínhamos muita afinidade quanto a estilos, timbres de guitarras e, principalmente, por arranjos vocais mais elaborados. Daí a nos juntarmos num grupo foi um passo lógico”, lembra Antônio Ozório ex-The Vectors, guitarrista que fundou o CTA-102 com seu parceiro de curso, o baixista e flautista Marco Antônio Faria. Ele e o “Pituca” foram os únicos membros que integraram o grupo do final de 65 até o fim em 75. Uma curiosidade a respeito do nome: CTA-102 não foi uma homenagem ao Byrds, que havia composto uma canção com esse título; foi conseqüência das características atribuídas a um fenômeno astrofísico designado por este nome, um corpo celeste distante do qual teriam sido captadas radiações que pareciam emissões radiofônicas. A primeira formação contou com Benê Braga (guitarra ritmo e voz), Ruy Guerra (voz), Wagner Clini (bateria), Pituca (baixo e flauta) e Ozório (guitarra solo). Ensaios aos domingos e repertório voltado para bailes norteavam o grupo no início.

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Muito antes dos Mutantes abandonarem os lares paternos, atravessarem o Rio Tiête com toda sua “parafernália progressiva”, procurando a liberdade nos confins das “Terras do Barão Ramalho” (Cantareira) numa Zona Norte (ZN) ainda semi-rural e conservadora, germinavam – junto à explosão midiática da Jovem Guarda e do Iê Iê Iê - os primeiros grupos de rock’n’roll. Já nos 70, quando o Tropicalismo propôs uma solução definitiva para a questão Jovem Guarda versus MPB politizada, impulsionando a nossa música popular para um vanguardismo único, o CTA- 102, com novos integrantes, já arriscava suas primeiras composições, uma excitante mistura musical. Choros, sambas e jazz temperados devidamente com as guitarras fuzzadas de Ozório. “Cartas Marcadas”, “Cartaz Menino”, “Explosão”, “Andança”... Aos poucos e com a ajuda de Bento Ferraz e José Santana - compositores da seara “cedoniana” - o grupo ia definindo seu repertório, experimentando descontraidamente novos códigos sonoros, como nos afirma Pituca: “Me lembro do Ozório com o violão, no casarão da Rua Voluntários da Pátria, insistindo pra eu tirar um som com o bocal da flauta enfiada num cano de escapamento todo colorido e psicodélico, que servia de enfeite e era, talvez, o único móvel da sala”. Um fato marcou para sempre a trajetória destes pioneiros do Rock da Cantareira. José Santana se relacionava com o maestro Rogério Duprat, e foi convidado por Tom Zé para participar dos arranjos vocais de seu conceituado disco “Estudando o Samba”, produzido por Heraldo do Monte (Ex-Quarteto Novo e morador da ZN) e gravado nos dois maiores estúdios de gravação do Brasil na época, o Vice-versa e o Sonima. Feras em canto coral, Santana não hesitou em arregimen-

tar o CTA-102 para fazer os coros na gravação deste disco que saiu em 1976; A formação do grupo que figura na ficha técnica como “O Pessoal de Santana” é: Ozório, Vilma, Celso, Wagner, Santana e Pituca. Hoje há muita história pra contar e um registro musical colhido por Ângelo Ferrara, ex-membro do grupo: “Os ensaios ocorriam no início dos anos 70, sempre aos domingos à tarde na casa do Ozório e algumas vezes na casa do Wagner. Eu levava o meu gravador K7 à tira colo, e as músicas eram gravadas no ambiente dos ensaios, sem tratamento acústico. As melhores músicas se perderam no tempo, mas algumas foram recuperadas e as que tinham melhor qualidade sonora, foram salvas e codificadas para o sistema digital e editadas num CD.” Outros grupos que fizeram parte desta grande e frutífera comunidade musical do CEDOM e merecem ser lembrados são: The Vectors, Quarteto Num Tom Só e Oh Marc Up. Seu pioneirismo naqueles anos de chumbo unido à influência do furacão mutante que passou pela Cantareira nos anos 70, já ofereceu fôlego, ânimo e muita munição a três gerações de “malucos beleza” abençoados pelos lírios da Serra.


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