JA Magazine | Outubro 2011

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MAGAZINE PARTE INTEGRANTE DA EDIÇÃO N.º 2848 DE 27 DE OUTUBRO DE 2011 DO JORNAL DO ALGARVE E NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

ORÇAMENTO DE ESTADO Municípios recebem menos 3,1 milhões



3 Nélson Ramiro

Xavier Rodrigues

João Pedro

Délio Vaz Velho

Pop e rock em português com Uns & Outros Banda vila-realense foi criada há oito anos e percorre a região com reportório baseado nos sucessos nacionais das décadas de 1980 e 1990. As suas atuações incluem ainda alguns temas mais recentes, mas sempre em português

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hama-se Uns & Outros, nasceu em Vila Real de Santo António em 2003 e é uma banda de covers que se dedica quase exclusivamente às versões de temas pop e rock portugueses das décadas de 1980 e 1990. Durante estes oito anos têm percorrido toda a região algarvia, tocando em bares e nas festas de diversas localidades, sempre com sons portugueses. “O nosso objetivo foi sempre tocar temas em português, temas que as pessoas já conhecem, mas dando-lhes uma sonoridade própria da banda. E não abdicamos disso”, diz Nélson Ramiro, guitarra e voz e único dos fundadores dos Uns & Outros que ainda se mantém na banda. Atualmente, Délio Vaz Velho (baixo), João Pedro (teclas) e Xavier Rodrigues (bateria) completam o quarteto que forma os Uns & Outros. Por um lado, para muitos, assistir a um es-petáculo desta banda é recordar temas que foram grandes sucessos em Portugal pela mão dos Xutos & Pontapés, Taxi, Trabalhadores do Comércio, Grupo de Baile, GNR, Jorge

Palma, Resistência, Rui Veloso, entre outros. Por outro lado, para muito do público mais jovem, representa conhecer aquilo que foi a realidade da área pop e rock no nosso país há mais de 20 anos. E para que estes últimos possam também recordar, surgem outros temas no reportório da banda que incidem nos grupos e nos intérpretes que fizeram sucesso na década de 1990. Pelo meio, vão surgindo temas mais atuais, tudo cantado em português. “Sentimos que as pessoas já têm um certo carinho pela banda e gostam de ouvir o que tocamos. Muitas das música já nem se ouvem na rádio e poucos são os que ainda guardam aqueles discos mais antigos. Sentimos que as pessoas gostam e que se divertem”, conta Nélson Ramiro, o único dos membros dos Uns & Outros que se dedica profissionalmente à música, pois leciona Expressão Musical nas escolas do 1.º ciclo e é formador em cursos de guitarra. Tal como qualquer banda que se dedica a levar a cabo as suas atuações num circuito

quase semiprofissional, neste caso na região algarvia e, esporadicamente, no Alentejo, os Uns & Outros também já começaram a sentir a crise. “Perante a atual situação, os bares recusam-se cada vez mais a apostar na música ao vivo. Também temos menos espetáculos em festas. A grande quebra começou no inverno passado, no verão não se sentiu tanto, mas de aqui para a frente já sabemos que vai ser pior”, comenta Nélson Ramiro. Mas como há males que vêm por bem, menos espetácu-los poderá significar para os Uns & Ouros mais tempo para um projeto que já tem vários anos, o de se dedicarem aos temas originais, e que, para avançar, continua à espera de uma maior disponibilidade dos membros da banda. “Este projeto só não avançou ainda por falta de tempo, pois temos a nossa vida profissional bastante preenchida. O tempo livre, além de escasso, é praticamente todo usado nos espetáculos e na sua preparação. É um projeto que continua na gaveta mas

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que não está esquecido”, garante Nélson Ramiro. Inicialmente foram apenas os bares, depois começaram os espetáculos nas festas de diversas localidades e atualmente já contam com atuações em várias primeiras partes de nomes consagrados da música portuguesa. Agora, devido à crise, o número de atuações começa a ficar mais reduzido, mas, curiosamente, os Uns & Outros começam a receber cada vez mais propostas para atuar fora da região. “As nossa atuações têm sido quase exclusivamente no Algarve, à exceção de algumas no Alentejo, mas já temos várias propostas do centro e do norte do país. Claro que gostaríamos de viver exclusivamente dos espetáculos da banda, mas isso é muito difícil... vamos ver como podemos articular alguns destes espetáculos, porque ainda não há condições para deixar as nossas atuais vidas profissionais”, refere o fundador dos Uns & Outros. Domingos Viegas


4 Orçamento de Estado para 2012 agrava situação difícil das contas municipais

Municípios algarvios recebem menos 3,1 milhões de euros Os municípios da região do Algarve vão ter de se governar com menos 3,1 milhões de euros em 2012. É essa a diferença entre o valor que vai ser transferido no próximo ano e o que foi transferido no orçamento deste ano. Apenas Lagos e Loulé recebem mais dinheiro. Todos os outros municípios sofrem cortes e perdem verbas

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á todos esperavam cortes, pois a medida - a redução global nas transferências do Orçamento de Estado para autarquias e regiões - está inscrita no memorando de entendimento que o Governo assinou com a troika. No total, os 16 municípios do Algarve receberão 82,7 milhões de euros em 2012, contra os 85,8 milhões que receberam este ano (menos 3,1 milhões de euros, ou seja, menos 3,6 por cento). A nível regional, apenas duas das dezasseis autarquias vão receber mais verbas do que em 2011 através das transferências do Orçamento de Estado, que estabelece que as câmaras vão perder no próximo ano, em média, 4,7 por cento. Em 2012, Lagos e Loulé são os únicos municípios algarvios que escapam aos cortes nas verbas a transferir pelo Estado, sendo que a nível nacional apenas mais quatro das 308 autarquias vão receber mais dinheiro (Mirandela, Nazaré, Sintra e Trofa). Lagos vai receber no próximo ano 3,6 milhões de euros, mais 158 mil euros do que em 2011, um aumento de 4,3 por cento. Já Loulé recebe mais 416 mil euros (mais 4,5 por cento), num total que ascende a 9,2 milhões de euros.

Todos os outros municípios perdem verbas Entre os municípios que sofrerão os maiores cortes no orçamento do próximo ano encontram-se Silves, com menos 414 mil euros, seguindo-se Faro (menos 350 mil), Olhão (menos 342 mil), Tavira (menos 339 mil), Monchi-que (menos 322 mil) e Alcoutim (menos 308 mil). A lista continua com os municípios de Albufeira (menos 277 mil euros), Portimão (menos 256 mil) e Aljezur (menos 229 mil). As câmaras de Lagoa (menos 193 mil euros), São Brás de Alportel (menos 187 mil), Castro Marim (menos 178 mil), Vila do Bispo (menos 163 mil) e Vila Real de Santo António (menos 148 mil) também sofrerão cortes em 2012. Para a maioria das autarquias algarvias, que já lidam com quebras de receitas superiores a 40 por cento, esta diminuição de verbas em 2012 pode trazer ainda mais problemas, pre-

Loulé é mais uma vez o município que recebe a maior fatia, mais de 9,2 milhões

vendo-se mesmo um aumento do número de municípios a pedirem saneamento e reequilíbrio financeiro, para fazerem face à situação difícil das contas municipais.

Transferências para cada município Do total dos 82,7 milhões de euros para o Algarve, Loulé é novamente o município que recebe a maior fatia, mais de 9,2 milhões. Em segundo lugar no mapa de transferências do Orçamento de Estado para 2012 surge Silves, que, apesar de sofrer o maior corte de

verbas em toda a região, continua a ser um dos que mais recebe, com perto de oito milhões de euros. Entre os que recebem entre seis e sete milhões de euros estão Faro (6,7 milhões), Olhão (6,5 milhões), Tavira (6,4 milhões) e Monchique (6,1 milhões). A primeira metade da tabela das verbas a transferir pelo Estado termina com os municípios de Alcoutim, com 5,7 milhões de euros, e Portimão, com 4,9 milhões. Já as câmaras municipais que vão receber menos de cinco milhões de euros no total são Aljezur (4,4 milhões), Albufeira (4,3 milhões), Lagoa (3,7 milhões), Lagos (3,6 milhões), São

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Brás de Alportel (3,5 milhões), Castro Marim (3,4 milhões), Vila do Bispo (3,1 milhões) e Vila Real de Santo António (2,8 milhões).

Distrito de Faro é dos que recebe menos do Estado Comparando os 18 distritos portugueses e as duas regiões autónomas, Faro é o quinto a receber menos verbas do Estado no próximo ano (82,7 milhões de euros), apenas ultrapassado por Évora (79,6 milhões), Viana do


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Lagos e Loulé foram os únicos municípios que viram os seus orçamentos crescer este ano

Castelo (78,8 milhões), Portalegre (72,9 milhões) e Madeira (63 milhões). Do total dos 82,7 milhões de euros que os municípios algarvios recebem, 63,4 milhões de euros são relativos ao Fundo de Equilíbrio Financeiro (FEF), 6,5 milhões relativos ao Fundo Social Municipal (FSM) e 12,5 milhões de euros das transferências de comparticipações no IRS a que têm direito.

Vila Real de Santo António receberá a menor transferência da região

Todas as freguesias sofrem cortes do OE 2012 Também as freguesias que recebem do Orçamento de Estado terão menos dinheiro. O Fundo de Financiamento das Freguesias será de 6,5 milhões de euros em 2012, 342 mil euros a menos do que este ano. Segundo o Orçamento de Estado para 2012, as 84 freguesias da região do Algarve vão perder verbas.

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TRANSFERÊNCIAS 2012

Alcoutim

Aljezur

Monchique

Castro Marim Silves Loulé

Portimão Lagos

Lagoa

Vila do Bispo

S. Brás Alportel

Tavira Vila Real Santo António

Albufeira

Nuno Couto

Olhão Faro

Transferências por distrito Municípios

Transferências 2012

1 - Lisboa 2 - Porto 3 - Braga 4 - Viseu 5 - Aveiro 6 - Santarém 7 - Setúbal 8 - Coimbra 9 - Beja 10 - Leiria 11 - Guarda 12 - Vila Real 13 - Açores 14 - Bragança 15 - Castelo Branco 16 - Faro 17 - Évora 18 - Viana do Castelo 19 - Portalegre 20 - Madeira

238,4 milhões 233,3 milhões 158,3 milhões 143,1 milhões 136,0 milhões 127,5 milhões 112,4 milhões 107,0 milhões 97,0 milhões 95,1 milhões 94,5 milhões 94,0 milhões 92,1 milhões 90,6 milhões 86,6 milhões 82,7 milhões 79,6 milhões 78,8 milhões 72,9 milhões 63 milhões

Transferências para municípios Municípios

238,4milhões - 63milhões

Transferências 2011

Transferências 2012

Albufeira Alcoutim Aljezur Castro Marim Faro Lagoa Lagos Loulé Monchique Olhão Portimão S.B. Alportel Silves Tavira Vila do Bispo VRSA

4.605.413 6.071.243 4.618.893 3.591.430 7.066.93 3.882.270 3.465.792 8.795.167 6.497.933 6.893.153 5.173.863 3.763.475 8.351.433 6.837.240 3.271.181 2.990.817

4.328.296 5.763.681 4.389.879 3.413.360 6.716.543 3.689.779 3.623.651 9.211.495 6.175.753 6.551.377 4.917.333 3.576.874 7.937.352 6.498.236 3.108.989 2.842.536

TOTAL (distrito)

85.876.239

82.745.124

Faro

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6 Sítio das Fontes volta a acolher projetos musicais de grande qualidade

Rota do Petisco vira atração turística em Portimão Ao longo dos 30 dias em que decorreu a primeira edição da Rota do Petisco de Portimão, foram servidos cerca de 8000 petiscos e quase 2000 doces regionais, em 31 espaços de restauração. Face ao êxito da iniciativa, a organização pretende fazer desta rota uma atração turística de Portimão

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Estabelecimentos ganham novos clientes Ainda de acordo com a organização, o impacto económico direto da Rota do Petisco de

Portimão rondou cerca dos 23.400 euros, mas o impacto indireto terá sido bem superior, tendo em conta “a oportunidade de promoção que todos os estabelecimentos tiveram, para além dos consumos paralelos efetuados pelos participantes nos locais aderentes”. “Vários estabelecimentos participantes já confessaram terem ganho novos clientes com a Rota do Petisco de Portimão, que se tornou numa opor-

tunidade de fidelização de novos consumidores”, frisa a direção da Associação Teia d'Impulsos, numa nota enviada à nossa redação. Após esta primeira edição, a Teia d’Impulsos, em conjunto com os vários parceiros da iniciativa, já garantiram a realização da segunda edição da Rota do Petisco de Portimão em 2012. “Em breve serão divulgadas as linhas ge-

fotos: João Porfírio

Rota do Petisco de Portimão, o primeiro projeto de cariz cultural e recreativo realizado pela Associação Teia d’Impulsos, em parceria com o município de Portimão, decorreu entre 3 de setembro e 2 de outubro. Este roteiro gastronómico incluiu um total de 31 espaços de restauração do centro de Portimão e da Praia da Rocha, onde os participantes puderam degustar 31 propostas de ementas, desde os petiscos aos doces regionais. “Consideramos que os objetivos propostos para a Rota do Petisco de Portimão foram amplamente atingidos, nomeadamente o contributo para a divulgação da gastronomia algarvia, a promoção dos espaços de restauração aderentes, o impulso à animação social do centro da localidade e o incentivo à circulação pedonal dos participantes entre os diversos espaços”, adiantou a Associação Teia d'Impulsos Em jeito de balanço, a organização divulgou alguns números que refletem o impacto da Rota do Petisco de Portimão. Assim, ao longo dos 30 dias da rota, foram vendidas um total de 9.723 ementas, o que resultou numa média diária de 324 ementas. “Do total, foram servidos 7.932 petiscos (82%) e 1.791 doces regionais (18%). Verificou-se uma distribuição equitativa ao longo das quatro semanas da Rota, com destaque para os fins de semana, em que foram vendidas 57 por cento do total das ementas”, salientaram os responsáveis.

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rais desta segunda edição, bem como as novidades que lhe estão reservadas”, revelou a organização, sublinhando que a divulgação da iniciativa será estendida a todo o país. “Acreditamos que a rota tem potencialidade de se tornar numa atração turística de Portimão, capaz de trazer novos visitantes à cidade”, remataram os responsáveis. N.C.


Lançamento da primeira pedra do lar residencial do NECI marca Dia do Município

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Construção de "hotel" para deficientes arranca em Lagos O lançamento da primeira pedra do lar residencial do Núcleo Educacional da Criança Inadaptada (NECI), nos Montinhos da Luz, que tem lugar esta quinta-feira, é um dos pontos altos das comemorações do Dia do Município de Lagos. O projeto vai alojar 24 "hóspedes" com deficiência grave, preenchendo uma das lacunas da região. A obra deverá estar concluída dentro de um ano

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á pelo menos uma década que Eduarda Oliveira Santos, presidente da direção da NECI - instituição que atende cerca de 80 pessoas, abrangendo os concelhos de Lagos, Aljezur, Vila do Bispo e Portimão - aguardava por este dia. Hoje, às 17h00, tem lugar a cerimónia de lançamento da primeira pedra do futuro lar residencial, nos Montinhos da Luz, naquele que será um dos momentos mais altos das comemorações do Dia do Município de Lagos. “É um sonho que está cada vez mais perto de se tornar uma realidade”, refere ao JA a presidente do NECI, prometendo para esta tarde “uma cerimónia memorável”, com a participação de dezenas de jovens e mui-

ta alegria. A obra, que estará concluída no prazo de um ano, representa um investimento de cerca de um milhão de euros, dos quais 60 por cento serão financiados pelo Estado, através das verbas do PIDDAC. E Eduarda Oliveira Santos não tem quaisquer dúvidas: “Este é um projeto muito valioso para o Algarve, uma região que precisa de mais instituições viradas para a deficiência.” Segundo apurou o JA, o futuro lar residencial terá capacidade para 24 utentes que sofrem de deficiência mental grave, residentes nos concelhos de Lagos, Vila do Bispo, Aljezur e Portimão. Para além dos quartos, o projeto inclui uma

piscina terapêutica e um pequeno ginásio de reabilitação, assim como enfermaria, farmácia, refeitório, lavandaria e gabinetes técnicos.

Sem apoio das famílias O lar residencial dos Montinhos da Luz vai alojar jovens ou adultos (maiores de 16 anos) com grave deficiência e que estão impossibilitados de viver com as suas famílias, uma necessidade antiga da instituição para fazer face à situação de utentes sem família, explicou ao JA a presidente do NECI. “Temos casos onde o suporte direto das

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famílias deixou de existir”, revelou por sua vez o vice-presidente da instituição, José Manuel Campos, salientando que “o NECI é, para muitos «clientes», a única casa onde que têm carinho e amor”. Desta forma, o projeto do lar surge assim como uma forma de “dar uma resposta social a jovens e adultos portadores de deficiência”. Através deste novo serviço, que vai criar 28 postos de trabalho, o NECI pretende colmatar necessidades a nível de “alimentação, higiene pessoal, limpeza de instalações, tratamentos de roupas e afins, tratamentos de saúde e de apoio afetivo e emocional”. Nuno Couto


8 Aos ciclistas do Algarve B

icicleta. Velocípede de duas rodas, substantivo austero ainda que feminino da nossa língua, com a sílaba tónica a malograr a senda de ternura que as anteriores parecem propor-se percorrer. Tive uma em criança, sem pedais, nem selim, nem roda pedaleira. Só guiador. Um guiador feiticeiro, varinha de zambujeiro, ramo bravo que por um poder sideral só ao meu arbítrio obedecendo, levava as minhas mãos a quantos sonhos quisesse, quantas glórias, quantos feitos. Se bem que o poder obedecia à minha vontade, a esta domava-a a fantasia, para que se me inclinava a alma estroina de cachopo, capaz de agarrar com a mão a cauda de um cometa, calhando este em pôr-se a jeito. E como acredito que não era coisa do acaso a escolha do rebento de zambujo e que era antes um certo encantamento dele que me atraía, eis como todas as folganças as tinha de mão beijada, regaladas por esse poderoso guiador que uma soberania oculta fazia meu. Vai porém a vida sempre andando e a cada passo vai mudando os roteiros e as vontades. Quando, já mais crescidote, tive acesso a uma bicicleta verdadeira, não se me revelou a dita tão liberal e mágica quanto a do guiador pimpolho se mostrava. E, na gravilha de caminhos e terreiros, restos da minha pele de pernas e cotovelos lá ficaram atestando como era esquiva a montada ou aselha o estagiário. Quando lhe apanhei o jeito, mesmo que com algum tombo avulso, estabeleci com as duas rodas um trato de grande estima, então já mais focado em estrondosos desempenhos de que me julgava capaz, mas que o desmancha-prazeres do futuro inapelavelmente negou. Nas voltas do mundo frustrou-me, pois, a adolescência as glórias que a infância tão prodigamente prenunciara. Mas o gosto por cá ficou e o futuro redimiu-se da maldade proporcionando o surgimento na cidade de ciclistas de eleição, para quem transferi essas minhas ânsias de dar aos outros uns bigodes. Jorge Corvo, Sérgio Páscoa, João Bárbara, punham-me o peito em apertos muitas vezes, mas também em outras tantas me deixavam alegre a alma no mais festivo arraial. Por esses tempos, creio que sentia a coisa como o triunfo do meu Algarve aldeão, humilde mas inteiriço, e poeta, e cantador, sobre os bárbaros de lá de cima, em que incluía o Benfica e o Sangalhos, o Porto e o Alpiarça. Descontando o Alentejo, que era nosso irmão, o resto era doutra lei, que a meu ver nos desprezava e bem merecia uma lição. Quando entrei na idade adulta tinha ganho algumas letras, tornei-me pequeno-burguês e a minha alma campesina foi um pouco suplantada por troca com o estilo urbano. Mas a mudança quedou-se, a bem do que é genuíno, mais pelos ramos de fora, aqueles que apanham mais vento. Quanto ao fuste e à raiz, aí ficaram até hoje as marcas duma cultura que prefere o constante ao evanescente, o engenho à artimanha, a luz do sol ao holofote. E ainda hoje me indignam coisas como por exemplo uma música duns rapazotes citadinos, creio que de Beja, que editaram em disco (e engulo a humilhação do êxito de tal baboseira) uma

cantiga de escárnio sobre as trabalhadoras dos arrozais do Sado, cantiga cujos versos as apresentam como uns atrasos de vida broncos, porcos e lascivos. Ou a diatribe do anglolustroso Miguel Esteves Cardoso, que em recente crónica num diário taxava a Volta a Portugal de «ridícula corrida» por ter sido obrigado a parar o carro, na zona de Sintra no decorrer de uma etapa. É a cultura camponesa a indignar-se. O ciclismo é um dos desportos mais exigentes em matéria do esforço, capacidade de sofrimento, tenacidade, que requer aos seus praticantes. E as compensações que proporciona, mesmo aos atletas de topo, são pouco mais que ninharias quando comparadas com as de outras modalidades muito menos exigentes. Mas talvez não haja outro que mobilize tais paixões e crie tanta emoção quer àqueles que o praticam, quer a quem apenas gosta. Não sei de outro qualquer que crie as fortes amizades e solidariedades que entre os ciclistas se desenvolvem, e que ainda não há muito pude testemunhar em difícil circunstância. No princípio de 1999, o jovem corredor do Clube de Ciclismo de Tavira Élio Leal perdeu a vida num acidente na portagem de Palmela com o autocarro em que seguia para um estágio da seleção nacional para que fora convocado. Encarregado pelos pais intervim como seu advogado na ação de indemnização cujo julgamento teve lugar no Tribunal de Setúbal cerca de quatro anos depois, tendo como uma das testemunhas um rapaz que até então só conhecia de nome, o Nelson Vitorino, moço também daqui destes lados de Olhão, como o seu malogrado colega, e gente dos torrões do barrocal, os dois. Pedindo-lhe que falasse, na audiência pública, sobre o Élio, como ele era, como se dava com os colegas, o Nelson tardou-me na resposta. Baixou a cabeça, ficou a olhar para o chão, e durante um tempo imenso que também a mim doeu não articulou palavra. Chorava, o admirável rapaz. Esse corredor de talento e fibra ímpares, que a televisão nos mostra afrontando os demónios da montanha com o seu estilo discreto e elegante mas tenaz como um guerreiro da fé, sentiu-se ali abatido por intensa comoção que só podia provir da nostalgia que uma alma sensível e afetuosa conservava na lembrança pelo jovem colega tão tragicamente morto. E o episódio, que inopinadamente até em mim deixou um breve nó na garganta, veio a consolidar a convicção em que já me achava de que a união entre esse pessoal do ciclismo, é de força e duração como noutros não haverá. Por tudo isso, vibrei como um brasileiro quando a canarinha marca, com a vitória na Volta dos cachopos do Tavira. Não era o Souto de Moura ou o Álvaro Siza Vieira a receberem o Pritzker, nem o Nobel da Literatura a ser ganho pelo Saramago, nem a Elvira Fortunato ou o Sobrinho Simões, nem O erro de Descartes a dar a mais um portuga destaque nas páginas do mundo. Eram moços dos meus sítios, cujos suor e cansaço naquela luta obstinada os sentimos como nossos, como se cada um de nós gritasse a um qualquer deus arbitrário que nos quer na obscuridade que ao menos por essa vez vencemos o nosso destino. Foram obreiros desse feito, primeiro que todos o Mestre, Ricardo de seu nome próprio, que no monte da Cortelha, ali para Castro Marim mas já bem dentro da serra, a mãe pôs um dia no mundo, o Nelson de que atrás falei e ainda o André Cardoso e o David Livramento, apelido que associo a

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Rogério Silva

gentes da borda d’água, e mais o Samuel Caldeira e outros de que não gravei os nomes e disso lhes peço desculpa. Assisti às etapas principais, aquelas que tudo decidem, a mítica Senhora da Graça, a demolidora Estrela, e o tira-teimas a solo que é o contrarrelógio. E, como se passados por joeira, onde mais se empinava a estrada lá ficavam num grupinho cada vez mais reduzido, Ricardo, Nelson e André, à cabeça do cortejo, nos olhos a pertinácia, nos músculos o sacrifício, nos corações em tumulto talvez uma prece aos Céus. Lembro-me da etapa da Torre quando o Nelson Vitorino, que foi quem mais trabalhou, a metros da linha da meta fez um gesto de celebração de quem ganhou o que queria: que um colega ganhasse. São poucos os disto capazes. E dando mais sumo às vitórias apreciei o recato, a reserva, a humildade destes gajos, que fervendo de euforia a remetiam para dentro, escapavam-se dos jornais e das TVs e, se não havia remédio, se referiam ao clube, ao médico, a dirigentes vivos e falecidos (louvando em especial o eng. Brito da Mana), mas acerca deles próprios aforrando nas palavras tudo aquilo que podiam. Estes moços fazem do ciclismo profissão. E mostram que vivem o ofício com ardência e dedicação que só nas paixões se vêem. Não têm nome no Mundo, o país é uma comarca e o Algarve uma aldeia com ruas com o mar ao fundo, sem nomes e sem números nas portas, ruas só conhecidas de poetas como o António Pereira, que disse que o mar é que é poeta. Mas pode-se tomar a sua paixão pelo que fazem e o superior talento com que o fazem como motivos de versos. Convoquemos, para isso, o trovador mais virtuoso. Vamos pedir ao mar que escreva nas suas ondas em letras desmesuradas os nomes destes patrícios, o do Ricardo Mestre, o do Nelson Vitorino, o do André Cardoso e os de todos os colegas, (que ninguém se faz sozinho), e também o do clube de Tavira, para que os veja o mundo e saiba que são campeões e saiba que são do Algarve, onde, do barlavento ao levante, de Aljezur a Alcoutim, desde a serra à baixa-mar, todos nos orgulhamos com os seus feitos, que sentimos não como de uns nossos vagos conterrâneos, mas de uns parentes, de uns primos, de uns compadres, pessoas das nossas casas, pessoas das nossas famílias que, como era de uso antigo, aqui sempre assim nos achamos.



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Música I Cinema

Fernando Proença

LITERATURA INCLUSA

Número vinte e quatro Um - Li há uns tempos uma entrevista para a revista Esquire, dada por Michael Jordan, o antigo basquetebolista prodígio dos Chicago Bulls, hoje retirado. Agora que a NBA está em lock out porque os jogadores que ganham milhões não se entendem com o patronato, que pensa estar a pagar demais. Lembrei-me da visão de Jordan sobre os tempos que correm: descontando o aspeto geral da chamada dor de cotovelo perante a ascensão dos novos astros, Jordan dizia a certa altura que lhe faz muita confusão que os melhores jogadores queiram hoje estar na mesma equipa. Para ele não foi uma boa ideia a saída de Lebron James de Cleveland para Miami. Para Jordan, a necessidade que os melhores sentem atualmente de jogarem na mesma equipa (no caso vertente, os Miami Heat) é a antítese do que é a verdadeira competição. Para Jordan, o verdadeiro campeonato fazia-se quando os outros grandes jogadores – que não ele – jogavam noutras equipas. E a ideia final era ganhar-lhes. Para Jordan, esta nova forma de se escudarem uns e outros tem mais a ver (da maneira como eu interpreto a coisa) com o princípio da ascensão de um suposto funcionalismo público na NBA: ou seja, querem garantias, não competição. Mais: desejam competir, mas preferem saber que com o mesmo esforço terão menos dias maus ao longo de um

campeonato. Querem garantias que no final, tudo esteja muito controlado. Mais isso que o puro prazer do jogo pelo jogo, de quem não gostava de perder nem a feijões. Dois – A revista Única (Expresso), de há uns fins de semana, tinha como ideia de fundo iluminar criticamente o último livro de António Lobo Antunes, “Comissão das Lágrimas”. O que vou escrever não ultrapassa o reino da suposição. Não tenho nenhuma prova de que as coisas se tenham passado como vou descrever. Seja, estará quem olhar para o meu artigo a espreitar o que posso chamar ficção pura. Má ficção, mas pura. Mais: não li o livro e não espero lê-lo. Sei que nunca se pode dizer deste livro não lerei, mas arrisco. Se bem percebi, trata-se de uma obra em que os jornalistas quando têm pouco espaço, gostam de sublinhar “que se trata de mais um livro de António Lobo Antunes que mantém todas as características que o fazem um dos melhores escritores portugueses de sempre”. Os críticos, esses, assumem discursos mais complexos por que uma obra não se esgota num comentário de duas linhas. O que tento decifrar é o que terá passado pela cabeça do editor de literatura da Única, quando resolveu pedir a cinco críticos que escrevessem sobre o livro de Lobo Antunes e não por exemplo um ou dois, como é prática da casa. Pois a minha teoria é a seguinte: já existiam antecedentes com um livro de Lídia Jorge, em que uma crítica menos favorável (não me lembro se no Expresso. De qualquer forma foi público e notório) terá levado a um pedido de desculpas por parte do editor, depois de uma carta da autora em causa ter prometido uns açoites ao crítico, se não fosse feito um ato

de contrição. Pois penso que terá sido uma razão muito parecida a motivar a escolha não de um, nem de dois mas de cinco críticos para opinar sobre o mais recente livro de Lobo Antunes. Na eventualidade de algum dos textos não ser completamente laudatório para o escritor e não fosse o diabo tecê-las, nada melhor que juntar pessoas com opiniões diferentes. Uma mão lava a outra, ou mais prosaicamente a boa opinião de um jornalista pode obscurecer outra, menos radiante, porventura menos atenta à manutenção do status quo. Porque a verdade é que o escritor em causa não é capaz de escrever mal mesmo que queira. Isso independentemente do resto das merdas, se o livro vale ou não a pena, se aquilo é um romance, etc. Não sei se consegui mostrar o paralelismo da crítica a Lobo Antunes no Expresso, com a crítica de Jordan aos ajuntamentos dos melhores jogadores, apenas em duas ou três equipas. Se não consegui, retiro dez pontos e baixo o rating. O Disco – EDWYN COLLINS - "Losing Sleep" - CD - Heavenly Records - 2010 Edwin Collins iluminou uma parte substancial da minha adolescência, como compositor dos Orange Juice. Com o fim dessa bóia de sinalização da pop/new wave, tomou nas mãos uma carreira a solo, menos inspirada, mas nunca medíocre. Há algum tempo atrás atravessou um período muito difícil com um duplo derrame cerebral, que o deixou muito afetado. Losing Sleep é pois o testemunho da sua recuperação parcial (teve que reaprender a falar, cantar, escrever. No entanto o lado direito de corpo não respondeu da mesma forma positiva), para o mundo da música. E o que mais espanta em Collins é que aqui estou hoje, a escrever

sobre se voltou a ser ou não capaz, sem um pingo de condescendência e paternalismo. Losing Sleep é um disco sem experiências nem procura de novos caminhos. Esteticamente não impressiona: talvez por isso precise de algumas audições, para separar as águas, percebendo melhor de que madeira é feito este pop perfeccionista. Depois tudo rola nos carris, se calhar porque os convidados Johnny Marr, Rody Frame dos Aztec Camera; Alex Capranos dos Franz Ferdinand ou os The Drums, vindos de cantos diversos do mesmo universo, criam uma sonoridade ao mesmo tempo, ligada e variada. O disco é pois uma coleção de singles, que viaja das zonas mais negras da música popular ao soul de marca Al Green, não demasiadamente interessantes do ponto de vista de uma contribuição para uma nova forma de ouvir a canção urbana, mas mais dependentes do poder de contágio da energia e atitude. Uma fórmula rara de se encontrar nos dias de hoje. Nota: O autor não escreveu o artigo ao abrigo do novo Acordo Ortográfico

Apontamento de Vídeo Cópia Certificada "Esta é uma história do encontro entre um homem e uma mulher, numa pequena aldeia no sul da Toscana. O homem é um autor britânico que acabou de apresentar o seu último livro. A mulher, francesa, é dona de uma galeria de arte. Esta é uma história comum que podia acontecer a qualquer pessoa. Em qualquer lugar". No Festival de Cannes obteve o prémio de Melhor Actriz pela interpretação de Juliette Binoche em Ela. Um filme muito emotivo num jogo intenso entre o real e o imaginário. Edição em DVD. Realização e Argumento original: Abbas Kiasrostami. Com: Juliette Binoche, William Shimell, entre outros. Distribuição: Atalanta Filmes.

Rectificação JA Magazine de Setembro Vítor Cardoso

No Apontamento de Cinema publicado onde se lê o título "A Poeira do Tempo" deve ler-se "Séraphine", editado em DVD. Aos nossos leitores, as nossas desculpas.

JORNAL DO ALGARVE MAGAZINE - OUTUBRO/2011




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