Revista .principium

Page 1

.principium

Edição 1 - Ano 1 - Noo 1 | julho de 2019 Distribuição Gratuita

A VIDA NA RUA O O processo processo de de recuperação recuperação de de moradores moradores de de rua rua em em situação situação de de fragilidade fragilidade social social se se dá dá por por etapas. etapas. As As dificuldades, dificuldades, os os vícios vícios e e aa política política são são paradigmas paradigmas estabalecidos. estabalecidos.

jul 2019 .principium 1


.principium Revista-laboratório produzida pelos alunos do terceiro ano matutino do curso de Jornalismo, para as disciplinas 6NIC184 - Práticas Laboratoriais em Jornalismo Impresso III e 6NIC179 - Práticas Laboratoriais em Diagramação. CECA - Centro de Educação, Comunicação e Artes. Universidade Estadual de Londrina (UEL). Docentes Responsáveis: Profª. Drª. Márcia Neme Buzalaf, Prof. Me. Thiago Henrique Ramari e Prof. Me. Erick Lopes de Almeida. Edição (conjunta dos estudantes): Bruno Codogno, Laura Kamiji, Leonardo Bueno e Tiago Bernardino. Redação: Bruno Codogno, Laura Kamiji, Leonardo Bueno e Tiago Bernardino. Fotografia: Bruno Codogno e Laura Kamiji. Artes: Laura Kamiji Diagramadora-chefe: Laura Kamiji Diagramação: Bruno Codogno, Laura Kamiji, Leonardo Bueno e Tiago Bernardino. Projeto gráfico: Bruno Codogno, Laura Kamiji, Leonardo Bueno e Tiago Bernardino. Agradecimento a Lunartty Souta, Isael Pinheiro, Eric Vilas, Adilson Willian, Jonatas Oliveira, Nyara Tamarozzi e Adilson Willian que cederam suas imagens para uso na revista. 2 .principium jul 2019


.editorial

O invisível sob a luz do farol

E

m meio ao contexto caótico em que o Brasil se insere, os direitos humanos se fazem fundamentais e tornam a ficar em voga 34 anos após a ditadura militar. Esse fato se dá pela ascensão das classes conservadoras e reacionárias ao poder. Mais que isso, pela eleição de um homem que homenageia torturadores em discursos públicos. A revista .principium nasce como uma necessidade dos tempos em que vivemos e como uma porta-voz de pessoas em situações calamitosas, que clamam por direitos humanos. Assim, todas as reportagens e artigos encontrados aqui buscam quebrar estigmas, exaltar a diversidade, mostrar saídas para situações de fragilidade e, principalmente, dar luz à humanidade de pessoas que por vezes a perderam. Inspirada pelo trabalho de repórteres envolvidos com assuntos ligados aos direitos humanos e em revistas como a Revista Ocas, pretendemos tratar de assuntos com cunho social com uma linguagem voltada para jovens, em forma e conteúdo. A produção desse material se deu por pessoas engajadas e que se identificam com algumas das situações relatadas nesta edição, de forma a proporcionar uma imersão em assuntos que são majoritariamente naturalizados pela mídia tradicional brasileira, que reproduz o senso comum. Assim, buscamos mapear os problemas sociais e apontar possíveis soluções, a fim de elucidar pessoas que estejam em uma situação semelhante às retratadas.

jul 2019 .principium 3


.sumário

18 .rua

Moradores de rua buscam superar as dificuldades e os vícios para reestruturar suas vidas

6 .notitium 9 .quem disse 16 .observatorium Direitos Humanos são ameaçados no governo Bolsonaro

34 .ensaio Terceira idade pode ser período de emancipação por meio da arte

51 .resenha A repressão militar pelo ponto de vista infantil

70 .crônica “Vidro Trincado” um texto de Bruno Codogno 4 .principium jul 2019


10 .indígenas

46 .negros

Educação escolar indígena é destaque no norte do Paraná; combate à evasão é o objetivo

Dramas dos jovens negros no Brasil, um parâmetro das cotas na Universidade Estadual de Londrina

54 .mulheres

64 .lgbt+

Mulheres se unem em grupos após casos de violência sexual e de gênero no ambiente universitário

Os desafios dos grupos LGBT e o enfrentamento ao preconceito na voz do Turismólogo Ruan Lucas Marciano jul 2019 .principium 5


.notitium Tumisu/Pixabay

O Paraná registrou 922 denúncias de estrupro nos dois meses do ano

Aumenta número de denúncias de estupros no Paraná

O

número de denúncias de estupro aumentou no estado desde 2015 segundo dados divulgados pelo Ministério da Justiça publicados no Sinesp (Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública, Prisionais, de Rastreabilidade de Armas e Munições, de Material Genético, de Digitais e de Drogas). Em 2015, houve 4.333 ocorrências, em 2018 o número cresceu para 6.182. Ano passado, o país registrou 48.321 denúncias no total contra 40.876 em 2015, aumento de cerca de 18%. O Paraná teve o segundo maior

6 .principium jul 2019

número de denúncias em janeiro deste ano, porém é o quinto estado em número de habitantes. Neste período, foi registrado 495 ocorrências. São Paulo, estado mais populoso do Brasil, teve maior número de registros com 1.071 denúncias. Em fevereiro, nosso estado registrou 427 casos, novamente atrás de São Paulo com 946 casos. Ao contrário do estado, os números nacionais tiveram queda de 7%. Em janeiro e fevereiro deste ano, foram registadas 7.284 denúncias contra 7.834 no mesmo período de 2018.


Uma aula sobre o golpe

Vaticano é #LulaLivre

Tem que respeitar!

Movimento consolidado

Uma mochileira

Disque 100 em 2018

Netflix lança seu novo documentário: Democracia em Vertigem. O filme é uma obra de Petra Costa, a cineasta que ficou conhecida por contar a história sobre o suicídio de sua irmã no longa intitulado Elena (2012). Democracia em Vertigem se destaca por transmitir a evolução do Brasil no período pós-Ditadura Militar, a ascensão e crise do governo PT, a fragilidade do sistema democrático brasileiro e a volta da direita no poder.

Além de São Paulo, que realiza no dia 23/06 a Parada LGBT, várias cidades pelo mundo também promovem eventos do tipo no mesmo final de semana. Junho é o mês do orgulho LGBT. Pela Europa, cidades como Nápoles, na Itália, Tessalônica, na Grécia, e Bucareste, na Romênia, também realizaram, no sábado, marchas do Orgulho Gay, onde milhares de pessoas pediram pelos direitos dos homossexuais.

Um documentário está em produção para retratar a viagem de uma mulher trans. Natasha Roxy saiu do Rio de Janeiro em 2017 com cinco reais e uma mochila nas costas. Daí surgiu uma oportunidade de projeto que busca retratar a vida de uma mulher trans negra na América do Sul. O documentário “Transnômade” retrata desde a partida, o trabalho em hostel e a integração com outras pessoas no percurso.

Papa Francisco enviou uma carta ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, na qual afirma que” o bem vencerá o mal, a verdade vencerá a mentira e a salvação vencerá a condenação”. A mensagem, divulgada na manhã do dia 29, é resultado de uma conversa entre os dois. No ano passado, Lula recebera um rosário abençoado do Vaticano. Em agradecimento, redigiu carta para Francisco em março.

Junho marca os 50 anos da Revolta de Stonewall. O marco foi um conflito entre a polícia e os frequentadores de um bar gay em Nova York, no ano de 1969. A reação do público se deu com uma marcha e enfrentamento à polícia aos gritos de “gay power”. O fato desencadeou uma série de protestos que durou seis dias e é considerado o marco zero das reivindicações do movimento LGBT no mundo todo.

Relatório apresentado pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos aponta que o Disque 100 fechou 2018 com 889 denúncias de violações aos direitos de pessoas em situação de rua. Entre as denúncias, destaca-se a negligência (673), violência psicológica (183) - como xingamentos, hostilização, humilhação, violência institucional (161) e violência física (116).Em 2017 foram registradas 996 denúncias. jul 2019 .principium 7


.notitium Em Londrina

Programa Cisternas

Arte Gerando Renda

Ações em Londrina

Pabllo na ONU

Nome Social

Londrina sediou na quarta-feira dia 19, o I Fórum de Direitos Humanos e Refugiados do Núcleo de Direitos Humanos da PUCPR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná). O evento promovido pela PUCPR campus Londrina contou com convidados refugiados e apresentou uma reflexão crítica para a promoção dos Direitos Humanos lembrando o 20 de junho, Dia do Refugiado.

A ONG Favela Mundo vai destinar 10% das vagas de oficinas profissionalizantes gratuitas para pessoas trans a partir de julho. As vagas fazem parte do projeto A Arte Gerando Renda que propõe cursos rápidos de empreendedorismo e capacitação para o mundo do samba com foco no carnaval de 2020. As aulas serão realizadas na Cidade de Deus e em Coelho Neto, comunidades no Rio de Janeiro.

A drag queen brasileira Pabllo Vittar se a apresentou em um evento fechado da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York, no dia 18 de junho. O tema do encontro era igualdade e inclusão e comemorava os 93 anos da rainha Elizabeth II da Inglaterra. Entre as músicas que Pabllo cantou está “Corpo Sensual”, “Disk Me” e “Indestrutível”. No Instagram, a cantora comemorou o feito: “Vai ter viado na ONU, sim!”. 8 .principium jul 2019

As instalações do Programa Cisternas, que garantem o armazenamento de água em comunidades carentes, vão começar em julho deste ano. As primeiras moradias atendidas são da comunidade quilombola Kalunga, em Goiás. O anúncio foi feito pela Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

A Prefeitura de Londrina intensifica ações para atender à população em situação de rua, durante o mês de julho, em abordagens solicitadas pela comunidade em geral, quanto nas abordagens programadas em conjunto com as secretarias municipais de Defesa Social, Saúde e CMTU. O Serviço Social atende de segunda a sexta feira, das 8h às 22h30, podendo ser acionado pelos telefones (43) 9996-3497.

A Secretaria de Saúde de Londrina regularizou o uso de nome social. Um novo campo de informação foi acrescentado ao cadastro digital de pessoas travestis e transexuais. A iniciativa busca a humanização do atendimento e é uma forma de respeitar a identidade de gênero reconhecida pelos usuários. A reivindicação dos profissionais da saúde para a mudança no sistema saúde online era antiga.


.quem disse U.S. Department of State

DESTAQUE

“O mundo só tem uma fronteira, se chama humanidade” Nadia Murad, ex-escrava sexual do Estádo Islâmico, vencedora do prêmio Nobel da Paz de 2018 ao ser nomeada embaixadora da ONU

“Se o Estado usa a violência policial para solucionar problemas, há a mensagem de que a violência também pode ser usada para resolver problemas em outras esferas como os relacionamentos” Angela Davis, em sua sexta visita ao Brasil em 2017 na Universidade Federal da Bahia (UFBA), em Salvador

“É uma boa coisa exigir liberdade para nós mesmos e para aqueles que concordam conosco; mas, é uma coisa ainda melhor e mais rara dar liberdade a outros que discordam de nós.” Franklin Roosevelt, discurso de posse do 32º presidente do Estados Unidos da América

“O desenvolvimento humano só existirá se a sociedade civil afirmar cinco pontos fundamentais: igualdade, diversidade, participação, solidariedade e liberdade” Herbert José de Sousa, sociológo brasileiro e ativistas do direitos humanos, dedicou-se em questões contra fome e miséria

“Eu tenho um sonho, de que meus quatro filhos viverão um dia em uma nação onde não serão julgados pela cor de sua pele, mas pelo teor de seu caráter” Martin Luther King, em seu discurso pelos direitos civis na Marcha de Washington por Empregos e Liberdade, nos EUA, em 1963 jul 2019 .principium 9


.indígenas Bruno Codogno

Estudantes indígenas da UEL no curso do Ciclo Intercultural

NHANDEREKO:

Nosso modo de viver

Há 20 anos educação escolar indígena proporciona educação como forma de luta

O

s povos indígenas lutam todos os dias para que sejam garantidos à eles direitos humanos. Hoje há aproximadamente 900 mil indígenas no Brasil, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Es10 .principium jul 2019

Texto por Leonardo Bueno tatística). No paraná somam 13,3 mil, sendo 70% caingangue e 30% guarani. Eles lutam para ter acesso à educação básica e superior, lutam para que sua cultura não seja discriminada, lutam por saúde de qualidade, lutam


por suas terras. Acima de tudo lutam pelo direito à vida, que lhes é negado por uma agenda voltada aos ruralistas brasileiros. Essa série de lutas resulta em um povo que, cada vez mais, busca por conhecimento, seja ele básico, científico ou político. A constituição de 1988 foi fundamental nesse processo de luta, pois ela permitiu que os povos indígenas fossem considerados cidadãos. Por meio dela há o reconhecimento de seus territórios, de suas línguas e o direito de desenvolver processos próprios de aprendizagem. Segundo o artigo 231 do capítulo VIII, “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, Paulo crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Para fiscalizar e efetivar políticas públicas indigenistas existe a FUNAI (Fundação Nacional do Índio). PRECARIZAÇÃO Desde o governo de Michel Temer vem acontecendo o sucateamento da FUNAI, com a falta de repasse de

verbas e de contratações. Assim, a qualidade dos profissionais e das políticas voltadas aos povos indígenas, bem como a fiscalização dessas políticas passa a não ser efetivada. Já no governo Bolsonaro a FUNAI que antes era vinculada ao Ministério da Justiça e segurança pública passa a ser vinculada ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos e a demarcação de terras para o Ministério da Agricultura. Todas essas mudanças dificultam o desenvolvimento desses povos. A educação aparece como o principal pilar para que a juventude indígena tenha plena consciência dos seus direitos e assim possa se articular. EntretanFreire to não é qualquer modelo de educação que é adequado aos povos indígenas, por isso surgiu a educação escolar indígena. Antes desse conceito, a FUNAI e o SPI (Serviço de Proteção Indígena) eram responsáveis pela educação e saúde nas aldeias. Entretanto a educação não era feito para os indígenas em si, era um modelo integracionista de educação: nesse modelo, ao invés da escola ter que se adequar ao aluno, o aluno é que deve adequar-

“Não há saber mais ou saber menos. Há saberes diferentes”

jul 2019 .principium 11


.indígenas

“A escola é uma fronteira do saber, a gente precisa do conhecimento indígena por uma questão de identidade cultural mas a gente também precisa do conhecimento não indígena para entender o mundo real” Alexandro Silva

12 .principium jul 2019

-se à escola. Segundo o estudante Guarani-Kaiowá de ciências sociais da UEL (Universidade Estadual de Londrina), Alexandro Silva, não se podia nem falar a língua do indígena. “Tudo que era cultural, os saberes dos mais velhos, língua, reforço da identidade, não era levada para esse polo. Não havia uma escola comunitária, havia uma escola do estado”, diz. A partir disso, desde a década de 1970, o movimento indígena luta com as bandeiras de educação, saúde e território. Quando o processo de construir uma nova constituição entrou em vigor, surgiu o movimento “índios na constituição” que levaram suas demandas para as assembleias. Assim, conquistaram que a educação indígena fosse feita à maneira dos indígenas. Em 1996 a LDB (lei de diretrizes e bases da educação nacional) reconhece a educação escolar indígena como modalidade, e em apenas 1999 foi emitido o primeiro documento legal que reconhece a escola indígena. Ele reconhece os cinco eixos da educação escolar indígena: diferenciada, bilíngue, multicultural, específica e comunitária. Ficou decidido que cada estado seria encarregado da manutenção das escolas indígenas. No Paraná, o governo de Roberto Requião efetivou a secretaria de estado da educação, assim, garantiu estrutura, formou um currículo e contratou professores. No período de 2005 à 2010, houve a construção de muitas escolas indíge-


Bruno Codogno

Alexandro Silva, estudante Guarani-Kaiowá de Ciências Sociais da UEL, fala sobre a importância da educação escolar indígena

nas no estado, sempre em articulação com as lideranças das aldeias, os caciques. Em 2011, o então governador Beto Richa, se ausenta da educação. Não houve investimentos significativos na manutenção das escolas indígenas, fazendo com que a dimensão coletiva dessa luta se fragmentasse. HOJE Hoje existem 39 escolas indígenas no Paraná, todas estaduais. A diferença é que o cacique e a comunidade definem os diretores e professores. Segundo Wagner Amaral, coordenador da CUIA - UEL (Comissão Universidade para os Índios da UEL), em todas, as escolas a maiorias dos professores são temporários, o que impossibilita um processo de aprendizagem efetivo. Além disso, essas

escolas só podem ser construídas em terras demarcadas, o que faz com que muitas comunidades ainda não possuam acesso à esse tipo de educação. “Ser indígena demanda ter um território”, fala. Amaral conta que a CUIA atua como um espaço de encontro entre os indígenas da universidade, reforçando sua cultura e identidade. No planejamento estratégico feito pela CUIA em seu início no ano de 2012, ficou decidido que primeiro iria se construir um diagnóstico das escolas do paraná, depois articular e fortaleceras ações dos professores indígenas para assim, desenvolver oficinas e encontros na universidade. Atualmente o projeto está na sua fase de produção de documentários e vídeos jul 2019 .principium 13


.indígenas que dêem uma visibilidade das escolas indígenas a partir da ótica deles próprios. Questões culturais específicas das etnias ainda não estão no currículo escolar dessas escolas, assim os professores tem que intervir nas atividades para inserir questões culturais. Para Alexandro da Silva, “Hoje, o que está acontecendo é um movimento dos professores indígenas, porque muitos professores já se formaram. Já tem diretor de escola indígena com mestrado, então passaram a conhecer esses direitos que a escola indígena tem e a cobrar isso do Estado”.

14 .principium jul 2019

Colégio Indígena Cacique Cofélia, localizado nas terras indígenas de São Jerônimo, norte do Paraná. Fotos: Isael Pinheiro


A

AGORA É A VEZ DELES

UEL (Universidade Estadual de Londrina) está há alguns anos conseguindo melhorar a permanência estudantil indígena em seu câmpus. A permanência sempre foi questionável, já que a maioria dos indígenas que entravam na universidade ficava muito tempo no curso de escolha ou desistiam dele. Isso se dava por diversos motivos, dentre eles a não assimilação do conteúdo e a exclusão por parte dos colegas de sala. Levando isso em consideração, a CUIA, desenvolveu em 2014 o Ciclo intercultural. Segundo a professora e coordenadora do Ciclo intercultural, Inês Ota, ele é um curso de

graduação anterior ao curso de graduação comum da universidade. Ele tem dois semestres de duração e tem como principais objetivos fazer o estudante indígena conhecer a universidade, promover a integração com outros estudantes indígenas e com os demais estudantes da UEL, e contextualizar o ensino com suas próprias realidades. O currículo desse curso de graduação é dividido entre Língua Portuguesa, Matemática e Ciências da Natureza. Ao longo do ano também são desenvolvidos quatro eixos: terra e identidade, ciência e saúde, cidadania e sustentabilidade e cotidiano acadêmico. jul 2019 .principium 15


.OBSERVATORIUM

“V

BOLSONARO E OS DIREITOS DE QUEM?

amos defender a família e os verdadeiros direitos humanos”. A fala de Jair Bolsonaro no Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, parece atraente aos olhos de um cidadão comum, mas na verdade esconde um grande perigo. Esse foi o primeiro discurso do presidente ao mundo, em um fórum econômico. A frase apresenta dois pontos importantes. O primeiro é a que tipo de família Bolsonaro se refere. O segundo é a afirmação da existência de falsos direitos humanos. Tais afirmações mostram o caráter excludente do governo, entretanto, a segunda afirmação é fundamental para entender como ele e seus eleitores pensam. A ideia principal que vigorou durante a campanha do presidente foi a de que direitos humanos só serviam para legitimar e defender um determinado grupo: os bandidos. Mas não qualquer bandido, mais precisamente aqueles cuja origem é a favela, a cor é preta e a situação é a de pobreza. Os direitos humanos também dão, segundo a linha de pensamento do governo vigente, vantagens aos homossexuais, indígenas e à ameaça suprema do estado, os comunistas. Esse viés da campanha, que incitava defensores dos direitos humanos à adotarem bandidos e pregava a pena de morte, parece mais uma ex16 .principium jul jul 2019 2019

tensão do princípio de justiça da Lei do Talião, que compõe o código de Hamurabi, “olho por olho, dente por dente”. A linha de pensamento da alta cúpula do governo perpassa um código do século 18 antes de Cristo. Segundo a pesquisa “Human Rights in 2018 - Global Advisor” feita pela Ipsos - terceira maior empresa de pesquisa e de inteligência de mercado - em 28 países e divulgada em maio de 2018, a cada dez pessoas no mundo, quatro conhecem pouco ou nada sobre os direitos humanos. Segundo a mesma pesquisa, seis em cada dez entrevistados brasileiros acreditam na afirmação de que os únicos beneficiados pelos direitos humanos são aqueles que “não os merecem”. Ou seja, uma média de 60% dos brasileiros, incluindo o líder da nação, não sabem o que são e para quem são os direitos humanos. As bases da Declaração Universal dos direitos humanos, proclamada na Assembleia Geral da ONU (Organização das Nações Unidas) no dia 10 de dezembro de 1948, são simples. Direito à vida, à liberdade e à igualdade. Essa declaração foi um pacto entre as nações do mundo inteiro como consequência das duas guerras mundiais, que juntas mataram mais de 50 milhões de pessoas. A declaração parte do pressuposto de que todos os seres humanos são iguais


Sebastião Moreira (EFE)

e tem como valor primordial e universal guida voltou atrás dada o seu absurdo, a a defesa da dignidade humana. Como transferência da Funai do ministério da mostra a pesquisa da Ipsos, a maioria justiça para o ministério da agricultura. dos brasileiros não conhece a declara- Se essa ação fosse mesmo tomada geração dos direitos humanos, o que carac- ria um conflito por terras maior do que teriza essas pessoas como alienadas em já existe entre ruralistas e indígenas, relação aos seus próprios direitos. As- onde os últimos, que já não tem seus sim, essas pessoas se deixam levar por direitos plenamente efetivados, seriam um discurso de ódio impregnado nas severamente prejudicados. A imprensa ações do presidente. Ações essas que já também vem sendo atacada pelo preprejudicaram muitos grupos e minorias sidente desde sua candidatura. Houve nesses 100 dias de governo. retaliação por parte dele em relação Uma de suas primeiras ações con- às reportagens que criticavam seu gotrovérsias foi a nomeação de Damares verno ou denunciavam ações corrupAlves, uma pastora antifeminista, como tivas. No caso da jornalista Constança ministra da mulher, da Rezende, do jornal O família e dos direitos Estado de S. Paulo, em humanos. Por mais que que a jornalista denun“A cada dez essa ação não tenha ciou as supostas moviuma relação direta com pessoas no mundo, mentações bancárias quatro conhecem do motorista de Flávio o descumprimento dos direitos humanos, DaBolsonaro, Fabrício pouco ou nada mares já demonstrou Queiroz, o presidente sobre direitos através de seus disdesqualificou seu trahumanos” cursos que vai de conbalho e compartilhou tramão à Declaração Fake News contra a Universal dos Direijornalista em sua conta tos Humanos. Outra ação perigosa de no Twitter. A presidente da Fenaj (FeBolsonaro foi a assinatura do decreto deração Nacional dos Jornalistas), Maque facilita a burocracia para posse de ria José Braga, afirmou que o ataque de armas no país. Ele não discutiu esse de- Bolsonaro foi um atentado à liberdade creto com a sociedade ou com o con- de imprensa e uma tentativa de desgresso e foi extremamente desonesto qualificar a profissão. no texto do documento, que libera Em 100 dias de governo, Jair Mesa posse de arma para as pessoas que sias Bolsonaro e seus aliados no govermoram em uma região com dez ho- no já feriram a Declaração Universal de micídios para cada 100 mil habitantes, Direitos Humanos diversas vezes. Em ou seja, todo o país. O líder do governo um mandato de quatro anos, sobrará também tomou uma atitude que em se- direitos para quem? jul 2019 .principium 17


.rua

E eu espero...

Texto por Bruno Codogno Fotos por Lunartty Souta 18 18 .principium .principium jul jul 2019 2019


sem você Moradores de rua lutam pela vida dentro de um sistema; reestruturação da vida é o objetivo da maioria

Para pessoas desabrigadas, a rua se torna o campo de repouso jul 2019 .principium 19


.rua

C

antarolava “Com ou sem você” (originalmente With or Without You), música da banda irlandesa U2. Disse dedicar a música para a namorada, Carla. Apertava uma mão com a outra, demonstração de tensão. Alexandre começou a cantar mais alto, em inglês, a letra original da música. No pátio estávamos apenas eu e ele naquele momento. Ninguém mais viu a cena. Casa do Bom Samaritano. Terça-feira. Três e meia da tarde. A visita, antes mediada por uma assistente social, se tornou entrevista. Eram quatro pessoas para falar comigo. Alexandre, Fernando, Értos e Maria. Cada qual com uma história. Munido de dados, eu fazia perguntas sobre o presente, mas insistiram em falar do passado. Súplica de quem gostaria de simplesmente ser ouvido. O local é um abrigo para pessoas em estado de vulnerabilidade, em situação de rua. “Quero que aqui seja a minha passagem para a independência”, começou a conversa Alexandre. Os outros se olhavam fixamente. A parte mais difícil foi entender a dor de cada um. Alexandre e Fernando estavam mais abertos para falar. Értos

permanecia em silêncio. Maria levou um tempo para confiar na intenção, mas logo se abriu. Alexandre, ex-radialista, foi quem ditou o ritmo da conversa. Fernando não conseguia segurar o sorriso. O primeiro chegara no abrigo pela manhã, saído da rua, enquanto o segundo estava de saída no dia, conseguiu alugar um quarto para tocar os próprios planos. Értos estava abatido, mas insistiu em permanecer em nossa presença. Queria falar. Maria logo demonstrou felicidade pela recuperação de Fernando. Londrina possui, em média, 930 pessoas em situação de rua. Os dados foram apurados pelo estudo “Pesquisa POP Rua”, realizado em conjunto pelo Ministério Público, Defensoria Pública, Universidade Estadual de Londrina e Unopar. Dentre eles, aproximadamente 70% não nasceram em Londrina. É o caso de Alexandre e Fernando, que foram trazidos para a cidade em carros de despache. Ambos disseram ter gostado de Londrina e que planejam permanecer. “Nunca vi uma cidade tão bonita quanto essa. Vim de cidades pequenas e não conhecia algo tão grande”, refor-

“Quero que aqui seja a minha passagem para a independência”

20 .principium jul 2019


A visão sobre os grupos na rua pode parecer de conciliação çou Alexandre. Pensar na recuperação o deixa entusiasmado. Ele disse querer desfrutar das atrações da cidade e que está empenhado para atingir esse objetivo. Já Fernando está encaminhado para um trabalho e disse que pretende curtir aos poucos. Értos e Maria são londrinenses. Ambos disseram ter se afastado de suas famílias, mas que pretendem retomar o contato assim que conquistarem a independência. Maria pretende retomar o relacionamento com a mãe, enquanto Értos deseja ser um pai presente e acompanhar o crescimento das filhas de perto. “Acredito que nós dois estamos tão perto de nossas famílias, mas ao mesmo tempo tão longes”, refletiu Maria. RUA Diferentes origens. Idades distintas. Experiências diversas. Mas mui-

to em comum. Aqueles quatro concordavam enquanto falavam de seus passados. Um se apropriava do relato do outro. Talvez seja esse o ponto de intersecção de humanidade entre as pessoas. A empatia, proporcionada pela experiência. “A rua une, mas separa ao mesmo tempo”, ilustrou Alexandre, ao classificar o ambiente como hostil, apesar das companhias. Além daquele pessoal, em processo de reestruturação, tive contato com um grupo de rua. Se estabeleceram na praça Dom Pedro I. Lá, pude observar a organização, os anseios de muitos e, principalmente, as dificuldades. Estive lá na companhia de Lunartty Souta, publicitário e fotógrafo. Ele frequenta o espaço desde 2015 e documenta o cotidiano dos moradores do local. Ao retratar a figura de “Dé”, morajul 2019 .principium 21


.rua dor de rua com quem teve o primeiro contato, Lunartty assimilou um conceito para a situação de rua. “O Dé sempre me diz que é fácil tirar um morador de rua da rua, o difícil é tirar a rua do morador. E é exatamente isso, o Dé está na rua há 16 anos, ela o absorveu, as regalias e as malandragens que a rua proporciona. Eu vejo isso como uma relação humana”, politizou Lunartty. Os motivos para a vida na rua são diversos e complexos. Ainda segundo a pesquisa “POP Rua”, 42,3% dessa população foram para as ruas pelo consumo de substâncias psicoativas; 30,9% dos casos surgiram por conflitos familiares enquanto 25,5% têm como motivo principal o desemprego, dentre outras situações. HIERARQUIA Alexandre contou friamente sobre o período em que esteve na rua. Para ele, um dos piores aspectos é “tentar fugir de um sistema e cair em outro”. Além dos riscos externos à vida, segundo ele o que mais preocupa o morador de rua é a ameaça interna ao grupo. “Tem que dormir com um olho aberto. Alguns grupos aqui em Londrina são muito perigosos e não se pode baixar a guarda. Quem chega antes manda, faz o que quer e não tem consequências”. Durante a minha presença com o grupo na rua, houveram desavenças entre os moradores. A coletividade, como em qualquer outro meio, envolve interação entre pessoas de diferen22 .principium jul 2019

O convívio nas ruas é hierárquico e político

tes mentalidades. “Na rua, existe organização. Quem chega primeiro manda no lugar. Os outros obedecem a isso ou se dão por troca de produto”, explicou Antunes, artesão e morador de rua. Segundo ele, os grupos de moradores de rua são puramente políticos. “Assim como em todo setor, as pessoas são movidas por interesses. Se vive por status, por aprovação. É difícil viver sozinho, sem estar no meio da politicagem das pessoas”, acrescentou Antunes, em tom de desaprovação. Ele disse que tenta depender o mínimo de outros moradores de rua, a fim de evitar qualquer troca ou débito.


Ao longo dos anos de interação, Lunartty pôde observar como essas noções funcionam em um grupo. “Existe uma forma de poder entre eles, estão todos na mesma situação, mas eles acabam servindo a uma pessoa naquele grupo”, explicou enquanto exprimiu a indignação que surgiu após o segundo ano de frequência. Quando estávamos na praça, foi possível detectar aquele que é tido como líder através das atitudes. Por ser um fenômeno social não pautado em códigos legais, existem muitas variações de organização entre os grupos, mas a submissão e ex-

“A vida na rua em si é uma escravidão. Não há liberdade” jul 2019 .principium 23


.rua ploração são geralmente marcantes em ambientes dessa natureza. “Muitas das vezes existem conflitos diários por pessoas que não se submetem a ser exploradas, e essa exploração começa sobre o vício, você serve alguém com a droga e ela fica te devendo”, completou Lunartty. A ex-moradora de rua Rafaella levantou a noção de falsa-liberdade. Segundo ela, além da obsessão por neutralizar os anseios psicofisiológicos, a submissão a outras pessoas caracteriza a morada na rua como algo perigoso. “A vida na rua em si é uma escravidão. Não há liberdade. Viver em prol do crack, da bebida, te impossibilita de ter perspectiva. Eu não conseguia ver meu futuro, enxergar meu amanhã”, revelou Rafaella. MANGUEIO Pedir esmola na rua não é simples. Superar a discriminação e o preconceito são fundamentais para garantir a sobrevivência dessas pessoas. O mangueio (pedir esmola) se define como um trabalho. Muitas vezes são vendas ou apresentações e se mostra como uma alternativa a roubar. “O morador de rua deve ter atitude, não pode ficar esperando senão morre de fome”, contou Alexandre, ao relembrar das maiores dificuldades que passou na rua. Os moradores de rua devem desenvolver habilidades ou utilizar as que eles já têm para conseguir o seu ganha-pão do dia. “Eu fazia malabares, já fiz com garrafa, com faca, muitas coisas, para conseguir dinheiro. Mesmo assim vinha pouco”, complementou 24 .principium jul 2019

Alexandre, enquanto mostrava uma cicatriz no braço. Ele se machucou em um malabarismo com facas. Além da dificuldade individual, o mangueio é coletivo. Os moradores de rua se organizam em quais semáforos cada um vai ficar, fazendo o que, o horário, dentre outras características. Nesse momento de organização é quando são expostos os maiores picos de interesse daqueles que se proclamam os donos dos espaços. “É quando você recebe a ordem, anda para o semáforo enquanto pensa se deve fazer isso ou não para quem manda. É uma humilhação que te envolve quando você não espera”, relembrou Fernando, da época que ainda praticava mangueio. Quando estive na praça, era feriado do Dia do Trabalho. Mas o trabalho não cessa para eles. O problema para eles eram o comércio fechado, a pouca circulação de pessoas na rua e, consequentemente, a baixa arrecadação. Era um fim de tarde e muitos estavam em picos de estresse por não conseguir nada. Além da abstinência, que acaba por servir como uma tortura. O morador de rua A. se morde quando está em abstinência e isso eleva o grau de estresse do grupo todo. O fotógrafo Lunartty classificou o mangueio como trabalho. “O mangueio é a dignidade do morador de rua. Só existem duas maneiras de se sobreviver na rua, a esmola ou o roubo, se tratando de um instinto de sobrevivência, roubar é mais fácil, você pega aquilo sem permissão, ou muitas


Crédito de imagem

vezes oprime alguém para poder roubar. Mas aquelas pessoas vivem tentando driblar o preconceito sobre elas de forma digna e civilizada.” Isso serve como mais um argumento sobre a humanidade da moradia na rua. Lunartty não apenas observou durante os anos, mas experimentou o mangueio em um dia. “Já no mangueio o carão e a vergonha te consome. Um certo dia me desafiaram a ir no semáforo manguear, não tive coragem de recusar e fui, acredito que não consegui ficar dois minutos naquele semáforo, pois pessoas erguendo o vidro sem sequer olhar na minha cara, aquela rejeição me fez querer sair dali na hora”, lamentou Lunartty, relembrando a dificuldade a que foi submetido.

O clima é um dos fatores que dificultam o mangueio

O ideal, como defendido por ex-moradores de rua, é não dar esmola se não for dar oportunidade. “É transformador quando a pessoa cede algo que possa realmente mudar a vida daquelas pessoas. Uma roupa, um calçado, um cobertor. Isso é uma esmola humanizada”, defende o ex-morador de rua Róbson. É importante ser solidário com bens duráveis e não de consumo imediato, como dinheiro. Assim como a banda U2, humanitária e preferida de Alexandre, Londrina apresenta uma rede de opções para a recepção de doações. O Centro POP (uma iniciativa da Secretaria Municipal de Assistência Social), a Casa do Bom Samaritano, o abrigo Morada de Deus, a Casa da Sopa (projeto do jul 2019 .principium 25


.rua grupo Remar), dentre diversos outros pontos recebem doações. Recolhem roupas, produtos de higiene, alimentação para aplicar a assistência de forma direta e efetiva aos grupos necessitados. Com essa perspectiva, uma revista que circula em São Paulo e Rio de Janeiro serve como exemplo. Trata-se da “Ocas’’, parte de um projeto social voltado a desempregados. Ela serve o propósito de gerar renda para pessoas que a vendem no semáforo, que a compram por três reais e a vendem pelo preço de capa, sete ereais. A diferença, quatro reais, fica com o vendedor. A oportunidade vem com o treinamento dos vendedores, que assinam um código de conduta e são credenciados. Ainda, os beneficiados são incentivados a participarem de atividades formativas e oficinas, realizadas pela própria revista. Oportunidades como essa são transformadoras na base dos moradores de rua. Com uma renda maior, conseguem começar a se reestruturar com maior garantia. Além de evitarem um mangueio injusto, com ganhos direcionados às lideranças do grupo. “É uma decepção ter que dar tudo o que conseguiu nas mãos de poucos que

não trabalham. Realmente é possível fazer diversas relações com a dinâmica capitalista e o mundo do trabalho”, concordou comigo Róbson, enquanto demonstrou tristeza com o tipo de prática colocada em vigor pelos grupos de moradores de rua. VÍCIOS Assim como o aprisionamento em um sistema de privilégio social de poucos em detrimento da maioria, com a ausência de um lar surgem meios de neutralizar a sensibilidade. Acabar com a dor, fome, frio, geralmente são os motivos para a adesão ou consumo regular de drogas ilícitas e bebidas alcóolicas em excesso. Mais que simplesmente um vício, se torna um objetivo de vida comprar e consumir. Os quatro integrantes da Casa do Bom Samaritano se recuperam de momentos de fragilidade em que caíram nos vícios. Alexandre se tornou alcóolatra nas ruas. “É para esquecer os problemas e não sentir mais nada, a bebida em quantidade alta serve para acabar com tudo imediatamente”, abriu a discussão Alexandre. Para ele, o vício é o maior bloqueio para a recuperação. Fernando foi usuário de crack por

“A bebida em quantidade alta serve para acabar com tudo imediatamente”

26 .principium jul 2019


A situação de rua provoca a exposição a diversos tipos de vícios

alguns meses e também cedeu à bebida alcóolica. “Comecei a usar crack porque a bebida já não dava conta de acabar com a fome, com as dores. Precisei de algo mais pesado”, lamentou Fernando, enquanto fazia sinal de desaprovação com a cabeça. Disse que se sente recuperado dos vícios e pronto para reiniciar uma vida não baseada nesses consumos. Dentre os casos do abrigo, o mais agravado é o de Értos. Ainda está vivenciando um combate intenso contra a bebida. Mas sente a abstinência tomar conta de si praticamente todos os dias. “Foram 12 anos parado no tempo, perdi família, amigos, uma vida estruturada por conta da bebida. Eu só queria beber e mais nada”, contou Értos com intenso pesar. Além dos depoimentos do abrigo, Rafaella, que está em estágio estável de reconstrução da vida, contou sua

experiência com o crack, motivo pelo qual ela foi parar às ruas. “Conheci o crack em 2009. Usei até 2010. Parei por conta da primeira gravidez. Voltei a usar em 2013, quando abandonei minha casa e acabei sendo internada. Em 2014, o segundo internamento. 2015 voltei para a rua, até me reestruturar sozinha após ter quase morrido. 2016 voltei a usar até conseguir finalmente parar de vez”. Para Rafaella, o crack foi o motivo da perda de toda sua independência (financeira e social). Ela abandonou uma faculdade e trabalho bem-remunerado por conta do consumo de crack. “Falei para mim que aquilo não dava mais. Eu estava com catorze ou quinze pedras de crack, larguei isso no chão e voltei para minha casa. Estou aqui até hoje”. Ela contou ainda em que a lembrança é a pior dificuldade para se manter distante do crack. jul 2019 .principium 27


.rua

28 .principium jul 2019


Um dos motivos de conflito entre os moradores de rua Ê a disposição dos rejeitos jul 2019 .principium 29


.rua

As fotografias de Lunartty servem como uma forma de elevar a autoestima

Na praça Dom Pedro I, presenciei o uso, a busca pelo dinheiro para a compra do crack e a saída para obtenção de mais da droga. Como atestou Rafaella, “a pessoa passa a viver em prol do crack e nada mais”. As relações sociais, a própria hierarquia entre os moradores de rua e a estabilidade emocional são pautados estritamente pelo consumo do crack. Não há perspectiva sobre outros temas da vida senão uma busca frenética por mais droga. AUTOESTIMA Uma das primeiras manifestações da rua sobre o indivíduo é a queda da autoestima. Sentir-se incapaz, perdido pelo consumo e fisicamente limitado é um sentimento comum dentre essas pessoas. “Você geralmente não se vê enquanto está na rua. Evita olhar para o próprio reflexo, para não sofrer. 30 .principium jul 2019

Se reconhecer naquele corpo é uma das coisas mais difíceis”, relembrou Alexandre, que já se sente muito melhor após o primeiro dia de cuidados. Esse sentimento é generalizado dentre os moradores de rua. A situação se agrava quando vão fazer o mangueio. A rejeição se acumula e tende a pesar ainda mais na autoestima. Quem falou sobre isso foi o ex-morador de rua Róbson, hoje voluntário do Projeto Remar (organização de voluntariado para promoção social). “Ser rejeitado é o ápice da desmoralização. É nesse momento que a pessoa já não se considera mais pessoa, mas passa a naturalizar um sentimento de inferioridade”. Pude presenciar a instabilidade com a própria imagem na praça. Foi no momento em que Lunartty gravou


o beatbox de M.C., que tocava a música “Negro Drama”, dos Racionais Mc’s. M.C. olhou para a gravação na câmera e logo se emocionou. “Olha só como eu estou. Meu deus”, repetiu o rapaz. Ele é um dos moradores de rua da praça e já estava emocionado por ter tido contato com sua família no dia. Para a ex-moradora de rua Rafaella, a autoestima foi uma das maiores mudanças ao longo de seus estágios de dependência química até a recuperação. “A autoestima realmente vai no chão. Piora quando você percebe que cheira mal. É bem complicado”, relembra. A mudança para ela, porém, também foi positiva conforme ela se reestruturava. “Quando começa a se recuperar e vê que está ficando bem, nossa, é muito bom. Dá um ânimo”, exalta a retomada da auto aceitação. Essa foi uma das percepções de Lunartty com o seu trabalho fotográfico. Ele percebeu ao longo do segundo ano de contato que eles se sentiam bem conforme apareciam em conjunto nas fotos. “Desde que comecei o projeto, minha maior preocupação era como ajudar essas pessoas com a fotografia. Percebi que já estava mu-

dando a vida daquelas pessoas, indo lá quase todos os dias, dando atenção para elas e ainda fotografando, proporcionando aquele momento de ter um registro, deles se verem em uma foto”, relembra Lunartty. O efeito positivo para ele é quando os moradores de rua resolvem ter para si uma cópia impressa da foto. “Até que eles revelam suas fotos, pagam por elas, às vezes deixam de comprar a droga para poder revelar. A fotografia e o vídeo mudam completamente a autoestima deles”, completa Lunartty. Para concluir o assunto, Róbson testemunhou que o primeiro passo para a busca pela recuperação é a valorização de si próprio. Segundo experiência própria, ele afirma que a mente se transforma quando se considera que o estado físico pode ser recuperado e transformado com o devido tratamento. “Ao desnaturalizar a rejeição, entender que a existência dela é um problema social e não sua própria compostura, o morador de rua passa a compreender a situação de uma forma na qual existe a possibilidade de escolha. A valorização própria prevê a consciência para a recuperação”, conclui com propriedade.

“Ser rejeitado é o ápice da desmoralização”

jul 2019 .principium 31


.rua RECUPERAÇÃO Nem todos se sentem na necessidade de recuperar-se. Alguns gostam da vida como ela é nas ruas e não se vê mais inserido em outros modelos de vida. Porém, como apurou o estudo “Pesquisa POP Rua”, aproximadamente 81% dos moradores de rua desejam sair dessa situação e ter uma casa própria. É clara a situação desfavorável em relação a grandes contingentes de pessoas que vivem nas ruas de Londrina. Rafaella conseguiu se recuperar por conta própria sob a motivação de voltar para o filho. “Eu sentia muita falta do meu filho, sabia o mal que estava fazendo a ele. Só pensava em me restaurar por conta dele. Larguei tudo e voltei pra casa, estou aqui até hoje tocando a minha vida. Vi que aquilo ali não era vida para mim”, atestou ela. O processo de reintegração à sociedade proporciona, sobretudo, grandes mudanças na personalidade da pessoa. No caso de Rafaella, ela considera ter saído das ruas para a melhor versão de si. “Hoje dou valor nas pessoas. Eu era uma pessoa muito esnobe e arrogante. Desperdiçava alimento. Hoje não desperdiço nada. Valorizo amizades mais simples e aprendi a discernir pessoas bem-intencionadas e pessoas mal-intencionadas”, diagnostica Rafaella sobre o seu estado de percepção. Largar uma faculdade, um emprego de boa remuneração e o apartamento próprio custou muito a ela. “Não recuperei nem a metade do que 32 .principium jul 2019

eu perdi com a droga, não consegui independência financeira total ainda. Para perder é muito fácil, recuperar é muito difícil. Mas não desanimo, eu ainda vou conseguir recuperar tudo.” Futuramente, Rafaella deseja voltar a cursar o ensino superior. Ela almeja o curso de Assistência Social, para trabalhar em prol das pessoas em situação de rua. “Sei que o que eu vivi e aprendi na rua posso passar para outras pessoas como um lado bom da vida. Que tudo tem conserto e pode ser modificado. Acredito que tenho muito a oferecer pelo que eu já vivi”, planeja Rafaella, como um prosseguimento do seu estado de recuperação. No abrigo, quem fazia projeções era Alexandre. O ex-radialista pretende voltar a trabalhar em rádios comunitárias além de aperfeiçoar o inglês e a música. Ele toca violão e guitarra. Para ele, ter condições para alugar um quarto e poder dar início aos seus projetos pessoais é o que importa para si. “Quero arrumar meus documentos, procurar trabalho e consertar meus dentes. Ser independente. Para assim poder fazer coisas que valem à pena viver”. Ainda, Alexandre se pressiona para sair o quanto antes da posição em que se encontra. “O pior de tudo é cair na repetição de tentar recomeçar. A cada tentativa fracassada, o tempo de ação para conseguir e desfrutar é menor na próxima.” Ou seja, quanto menos tempo durar a recuperação, melhor, como ele mesmo concordou. A questão, segundo Alexandre, é ter foco no que a vida independente pode voltar a ser.


jul 2019 .principium 33


.ensaio

LABORATÓRIO DE

LIA

Artista de 76 anos vive a intensa demanda intelectual de criação artística Texto e fotos por Bruno Codogno

T

erceira idade não é sinônimo de inatividade para Lia Salvany. Para ela a arte significa a atualização do conhecimento e o principal meio de permanecer em atividade. Para a artista de setenta e seis anos, a terceira idade é a fase da vida para dedicar tempo para atividades emancipadoras. No caso dela, que é formada em pedagogia, a arte continua a orientar o cotidiano e as demandas de produção. 34 .principium jul 2019

Lia realiza exposições de suas obras, vende pinturas e esculturas, além disso, também é poeta. A artista transformou a casa em obra, estúdio e ambiente de paz. A graduação veio aos setenta anos. Além dos estudos, a dedicação com as obras ocupa praticamente o dia todo de Lia: – Pesquisar e produzir na terceira idade é libertador, estimula todos os sentidos – atesta a artista.


Lia trabalha no prĂłprio apartamento, em cĂ´modos separados jul 2019 .principium 35


.ensaio Lia decorou o apartamento com a prรณpria arte

36 .principium jul 2019


A iluminação do apartamento é decisiva para o processo de criação

jul 2019 .principium 37


.ensaio

38 .principium jul 2019


As obras de maior tempo dedicado são as ilustraçþes com bico de pena jul 2019 .principium 39


.ensaio

40 40 .principium .principium jul jul 2019 2019


A técnica de bico de pena é um dos principais domínios de Lia

jul 2019 .principium 41


.ensaio

42 .principium .principium jul jul 2019 2019 42


Obras da última exposição de Lia privilegiam cores e formas redondas

jul 2019 .principium 43


.ensaio

44 .principium jul 2019


Lia cedeu uma escultura afro para o NĂşcleo de Estudos Afro-brasileiros da Universidade Estadual de Londrina

jul 2019 .principium 45


.negros

TODO CAMBURÃO TEM UM POUCO DE NAVIO Negreiro

Eric Vilas

Texto Texto por por Tiago Tiago Bernardino Bernardino

46 .principium jul 2019

Segundo o relatório divulgado pela Proplan (Pró-reitoria de planejamento) da Universidade Estadual de Londrina, atualmente 1.200 negros fazem parte da comunidade cotista, o que representa 6,3 % da totalidade da universidade. Na porcentagem 33,6% pertencem aos candidatos cotistas que vem de escolas públicas e 57,3% ingressam pelo sistema universal de vagas.


Adilson Willian

E

m 2019, a Lei de Cotas vai completar sete anos de existência e, atualmente, é considerada uma das maiores políticas de ações afirmativas para auxiliar grupos marginalizados no Brasil. As ações afirmativas são políticas de reparação, que visam diminuir e enfrentar grandes dificuldades no País, nesse caso, as raciais. O Brasil é reconhecido como um dos países mais desiguais do planeta, e uma das dimensões dessa desigualdade é racial. Com o passar do tempo e dessas ações afirmativa e as diversas contestações sobre os programas de cotas, em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que as cotas raciais são constitucionais e totalmente necessá-

rias para amenizar o que a escravidão causou ao País, gerando danos irreparáveis a população negra. Um artigo publicado pelo Núcleo de estudos Afro-brasileiros, NEAB da Universidade Estadual de Londrina, contextualizou que a inclusão de Negros na Universidade é importante para uma sociedade menos desigual. O Sociólogo Alex Eleotério, concluiu a graduação em Ciências Sociais pelo sistema de cotas. Ele acredita que a universidade precisa se reconstruir e alerta que a instituição deve estar atenta as novas demandas, não somente quantitativas, mas qualitativa. “A maior parte dos educadores entendem que o campo da educação é um campo de promoção, mas também um campo jul 2019 .principium 47


QUADRO DE Nyara Tamarozzi / Divulgação Adilson Willian

.negros

48 .principium jul 2019


Jonatas Oliveira/Divulgação.

que interfere na mudança social, uma transformação na vida do indivíduo, hábitos, na estrutura dessas pessoas, porque é a partir da educação que é possível ter um emprego melhor, uma vida financeira estruturada, e mais importante ainda é ter acesso à cidadania e ao entendimento de quais são os seus direitos e deveres na sociedade” O estudante de engenharia Civil, Jonatas Oliveira, se mostrou otimista em relação ao avanço das cotas no brasil, no entanto criticou a sua organização “ Eu acredito que o avanço das cotas no Brasil melhorou, mas a forma como ele se organiza ainda não está adequada, não é pelo fato de ter cotas que a dívida com a escravidão está paga, as pessoas precisam conscientizar, entender o conceito das cotas precisam se aceitar como negras” enfatizou. O estudante do curso de Psicologia, Adison William, acredita que a universidade deve ser um suporte para quem vem de outras cidades, além do direito

a permanência. Ele revela sua inspiração de vida da universidade. “Acredito que não é somente o direito as cotas, pedimos mais, o direito a permanência, precisamos de subsídio como moradia, comida, lazer e bem-estar” relembrou “não foi nada fácil pra mim. a minha inspiração veio de um amigo, o Juarez Barbosa, que é negro, gay e pobre. São pessoas assim que inspiram a permanecer e isto faz com que eu esteja aqui, me motiva a vencer” sorriu… “Estar na universidade hoje em dia, enquanto preto, é sofrer racismo institucional, invisibilidade e violências simbólicas, embora as pessoas não falem o racismo é implícito”. É sobreviver todo dia a um espaço que você sente que não é bem-vindo, lidar com docentes racistas e com grades curriculares que não são inclusivas, muitos precisam estudar e trabalhar, isto não é fácil, é pesado, muitos não conseguem enfrentar e acabam desistindo”, aponta o estudante de Psicologia, Adilson. jul 2019 .principium 49


.negros Mangueira, tira a poeira dos porões Ô, abre alas pros teus heróis de barracões Dos Brasis que se faz um país de Lecis, jamelões São verde e rosa, as multidões Mangueira, tira a poeira dos porões Ô, abre alas pros teus heróis de barracões Dos Brasis que se faz um país de Lecis, jamelões São verde e rosa, as multidões Brasil, meu nego Deixa eu te contar A história que a história não conta O avesso do mesmo lugar Na luta é que a gente se encontra Brasil, meu dengo A Mangueira chegou Com versos que o livro apagou Desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento Tem sangue retinto pisado Atrás do herói emoldurado Mulheres, tamoios, mulatos Eu quero um país que não está no retrato Brasil, o teu nome é Dandara E a tua cara é de cariri Não veio do céu Nem das mãos de Isabel A liberdade é um dragão no mar de Aracati Salve os caboclos de julho Quem foi de aço nos anos de 48 .principium jul 2019 50 .principium jul 2019

chumbo Brasil, chegou a vez De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês Todo camburão tem um pouco de navio negreiro (O Rappa) Tudo começou quando a gente conversava Naquela esquina alí De frente àquela praça Veio os homens E nos pararam Documento por favor Então a gente apresentou Mas eles não paravam Qual é negão? qual é negão? O que que tá pegando? Qual é negão? qual é negão? É mole de ver Que em qualquer dura O tempo passa mais lento pro negão Quem segurava com força a chibata Agora usa farda Engatilha a macaca Escolhe sempre o primeiro Negro pra passar na revista Pra passar na revistamenubuscar Opções Tudo começou quando a gente conversava Naquela esquina alí De frente àquela praça Veio os homens


.resenha Divulgação

Mauro (Michel Joelsas) é deixado em São Paulo na casa de seu avó durante às “férias” dos pais

Aos olhos de uma criança “O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias” mostra a vida de um filho de ativistas políticos durante a ditadura militar

“S

em querer ou nem entender direito, eu acabei virando uma coisa chamado exilado”. Com essa frase se encerra a história de Mauro (Michel Joelsas), um menino mineiro que foi levado à São Paulo para viver com avô enquanto os pais “saem de férias” (ou seja, fugem da repressão). Para azar do menino, o avô morre e o vizinho Shlomo (Germano Haiut), um judeu idoso, o

Texto por Laura Kamiji acolhe. A vizinhança dá ao menino o apelido “Moshe” (Moisés em hebraico), por ter sido deixado na porta do senhor. Moshe foi quem conduziu o povo hebraico de volta a sua terra, porém Mauro termina indo para longe de casa. Em 2006, Cao Hamburger dirigiu o seu segundo longa: “O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias”. Ele também foi roteirista, junto com Claujul 2019 .principium 51


.resenha Divulgação

Ficha técnica: Título Original: O ano em que meus pais saíram de férias (Brasil) Gênero: Drama Tempo de Duração: 110 minutos Ano de Lançamento: 2006 Estúdio: Gullane Filmes, Caos Produções Cinematográficas, Miravista, Globo Filmes Distribuição: Buena Vista International Direção: Cao Hamburger Roteiro: Cláudio Galperin, Bráulio Mantovani, Anna Muylaert e Cao Hamburger, baseado em história original de Cláudio Galperin e Cao Hamburger Produção: Caio Gullane, Cao Hamburger e Fabiano Gullane Música: Beto Villares Fotografia: Adriano Goldman Direção de Arte: Cássio Amarante Figurino: Cristina Camargo Edição: Daniel Rezende

No filme, Shlomo (Germano Haiut) cuida do protagonista Mauro (Michel Joelsas) durante as “férias” dos pais do garoto dio Galperin, Bráulio Mantovani e Anna Muylaert. A obra foi escolhida para representar o Brasil no Oscar de 2008, mas não ficou entre os finalistas e está entre os 100 melhores filmes brasileiros segundo a Associação Brasileira de Críticos de Cinema. A produção se passa no ano de 1970, no bairro do Bom Retiro na capital paulista. Naquela época, o local era lar de muitos imigrantes de origem judaica e italiana. Tem como pano de fundo a Copa do Mundo do México e a ditadura militar. Alterna entre os momentos cotidianos, a alegria da Copa e a repressão. Mesmo com um contexto histórico tão rico, não há 52 .principium jul 2019

dúvidas o filme é sobre Mauro e como esses fatos se cruzam com ele. O filme faz uso de reflexos como no cartaz do filme. Não fica aparente se foi uma escolha estética do diretor ou se há algum simbolismo por trás. Algo interessante é que na tradição judaica se deve cobrir os espelhos durante uma semana quando um parente morre, o que é feito por Shlomo logo após a morte do avô de Mauro. Quando os espelhos não estão mais cobertos, indica que já passou um tempo. Um grande personagem da obra é o futebol, ele aparece do início ao fim. Os momentos de paixão durante os jogos da Copa são as partes mais


divertidas do filme. É um alento em meio a um período tão difícil. O esporte também aparece no dia a dia de Mauro, com os jogos de futebol de botão ou no ato de jogar bola com outras crianças. O amadurecimento de Mauro acontece ao longo da trama. Por exemplo, ele se recusa a comer o café da manhã judeu no começo, mas depois chega a oferecer para Ítalo (Caio Blat), o que mostra a sua aceitação daquela cultura. O protagonista cresce, mas ainda espera os pais. Isso motiva Shlomo a buscá-los. Percebemos a visão infantil de Mauro nessas cenas, que muitas vezes não compreende o que está acontecendo, mas sabe que existe algo. São os detalhes que contam sobre a ditadura. No cenário, há pichos escritos “abaixo a ditadura” e “liberdade”. Há uma cena que Mauro liga para sua casa, na primeira vez, está tudo no lugar, na segunda, revirado. Ou até mesmo no fato que os pais não dão notícias. Mas ela também aparece em momentos marcantes como quando os militares invadem uma universidade. “O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias” nos ensina nas sutilezas como a ditadura militar foi cruel. Mauro era apenas um menino que foi separado de seus pais e não conseguia entender o que estava a sua volta. Porém, Mauro tinha os olhos de uma criança. Hoje, há pessoas que mesmo adultas viveram no período militar e não conseguiram compreender a desumanidade que aconteceu.

.mini resenha

“15 filhos”: Um curta atemporal As lembranças de infância são as protagonistas no curta-metragem documental “15 filhos”. O curta estreou em 1996, porém é mais atual do que nunca. A obra de Marta Nehring e Maria Oliveira conta a história de 15 filhos de militantes de esquerda na ditadura militar. Se constrói nas falas destes filhos que relembram os momentos daquela época. O documentário filmado em preto e branco, também usa recursos musicais que dão emoção a fala dos entrevistados. A câmera se concentra em mostrar os rostos dos filhos, o que deixa os sentimentos mais transparentes ao espectador. As histórias dos 15 filhos se entrelaçam e é possível reparar nas semelhanças. As lembranças de crianças são muitas vezes simples e confusas, porém brutais. As diretoras Marta Nehring e Maria Oliveira também são personagens no filme e contam as suas visões sobre a própria infância. “15 filhos” é um filme rápido de cerca de 20 minutos, porém preciso em mostrar o horror da ditadura militar e seu impacto na vida dos protagonistas. jul 2019 .principium 53


.mulheres

-

O ASSEDIO ASSEDIO EM COMUM

Casos de violência de gênero e sexual no ambiente universitário são fatores para criação de comissão, projeto e coletivos de mulheres na UEL Texto e Imagens por Laura Kamiji

Muitos casos de assédio não vem a público, pois as vítimas tem medo de denunciar 54 .principium jul 2019


A

maioria dos estudantes universitários de graduação são mulheres. Segundo o Censo do Ensino Superior de 2016 produzido pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), cerca de 57% dos estudantes matriculados no ensino superior são mulheres. Em 2015, o Instituto Avon fez uma pesquisa sobre a violência contra a mulher no ambiente universitário. Nesta pesquisa, foi constatado que 10% das mulheres admitem espontaneamente terem sofrido assédio. Porém, quando são apresentadas aos comportamentos listados como violência contra mulher, esse número sobre para 67%. 36% das estudantes deixaram de fazer alguma atividade por medo da violência. Como no caso de Mariana Ornelas, estudante de Jornalismo da Universidade Estadual de Londrina (UEL), que foi perseguida por um servidor. Ano passado, Mariana recebeu uma mensagem de um perfil falso do Facebook, que falava “bom dia” e que “estava linda”. A universitária pediu para o perfil parar de conversar com ela, pois não o conhecia.

Um dia, a estudante cumprimentou um servidor na escada do departamento de comunicação. Depois, Mariana recebeu uma mensagem do perfil que pedia para “dar bom dia pessoalmente”, ela negou. Mas o perfil afirmou que ele já havia dado “bom dia” a ela na escada do departamento de comunicação no mesmo dia. Assim, Mariana percebeu quem a estava perseguindo. Ela ficou com medo, pois ele sabia onde ela estudava e onde fazia estágio, então começou a faltar suas aulas. Mariana decidiu buscar ajuda com a Comissão de Prevenção à Violência do Centro de Letras e Ciências Humanas (CLCH) da UEL. Ela se orientou com os diretores do seu centro e abriu um processo administrativo na ouvidoria da universidade com as mensagens. A estudante tentou uma medida protetiva para manter o servidor longe, porém ele não recebeu a procuração. No final, o servidor saiu da universidade e nunca mais a procurou. Como ele não trabalha mais na instituição, a UEL não tem como tomar medidas sobre o caso. Ela descobriu que o servidor também fez o mesmo com estudantes de

67% das estudantes universitárias já relataram que sofreram assédio

jul 2019 .principium 55


.mulheres outros cursos, mas foi a única que denunciou. Mariana conta que muitas pessoas desconfiaram de suas palavras, porque o servidor era influente e tinha uma boa imagem. “O que mais me deixa chateada é que não abriu esse processo e ele esteja fazendo isso com outras meninas em outros lugares”, afirma. A jovem sentiu muita raiva durante a experiência, pois queria distância do servidor, mas também encontrou apoio. “MICROCOSMO” No final de 2016, o colegiado do curso de História da UEL recebeu um e-mail de alunas no Centro Acadêmico do curso. O e-mail tinha como conteúdo um caso de uma estudante de outro curso que foi assediada por um estudante de História e sobre os leilões de calouros. Este último, carregava todo o simbolismo da época escravidão e de tratar a mulher como um objeto, pois o valor dado a uma ca-

56 .principium jul 2019

loura era estabelecido segundo o padrão de beleza vigente. Além do colegiado, a professora Edméia Ribeiro, que dava aula de História e Gênero no período, recebeu o e-mail. Para lidar com esse problema, o colegiado de História se reuniu com as estudantes e criou uma comissão. A professora foi a primeira a liderar a atual Comissão de Prevenção à Violência do CLCH da UEL, que começou no colegiado de História e agora atende todo o centro. O papel da comissão é de acolher, encaminhar e acompanhar as vítimas de violência sexual e de gênero. Além de mulheres, eles atendem pessoas LGBTs. Como não existe uma ouvidoria própria da comissão, eles recebem mensagens através da página do Facebook do projeto ou em contato pessoal com os integrantes. Para dar suporte às vítimas, há uma psicóloga do Serviço de Bem-Es-


tar à Comunidade (SEBEC). A comissão sempre irá respeitar a vontade da vítima e vai mostrar o que ela pode fazer na sua situação, por exemplo, denunciar o agressor ou preferir não expor o caso. A professora afirma que “a universidade é um microcosmo”, os problemas de assédio e violência de gênero no ambiente universitário são reflexo da nossa sociedade. O projeto percebeu que há uma carência muito grande da UEL em lidar com estes problemas. “A gente não tem pernas suficientes para acolher todo mundo”, afirma Edméia ao explicar que alunas, professoras e servidoras de outros centros procuram a comissão. Com a experiência da comissão, as integrantes conversaram com o reitor Sérgio Carvalho que criou um grupo de trabalho para estudar o problema. O grupo vai ter seis meses para apresentar uma proposta de como implementar políticas em relação à violência de gênero e sexual na UEL. ‘MIETTINHAS’ “Eu não posso falar certas coisas na sala mais, porque agora tem um monte de ‘Miettinha’”, foi uma frase dita por um professor do curso de direito da UEL durante um dos primeiros dois anos do Coletivo Feminista Mietta Santiago. O coletivo foi criado após o contato de algumas alunas de direito da UEL com coletivos de outras universidades no Encontro Nacional de Estadantes de Direito (ENED) em 2014. No começo, as integrantes do coletivo sofreram muitas represálias,

“A gente não tem pernas suficientes para acolher todo mundo”

jul 2019 .principium 57


.mulheres A pressão para manter o silêncio sobre os casos partem de várias pessoas como colegas e servidores

como ameaças violentas e até mesmo ameaças de estupro. Uma das maiores lutas do coletivo foi a extinção do “Miss Moedinha”. Um trote em que as calouras deviam pegar moedas com as bocas sem auxilias das mãos e sem dobrar os joelhos. Por fim, veteranos julgavam os corpos delas durante a tentativa de “pegar” a moeda e determinavam quanyo a caloura valia. A menina com nota mais alta era a “Miss Moedinha”. Trote violentos são proibidos pela UEL, segundo a Resolução CEPE/CA Nº 177/2008 e a Resolução CU Nº 161/2008, o que colaborou para o fim da prática. Hemilly Freitas, estudante de direito e integrante do coletivo, conta que o grupo recebe muitos relatos de casos de assédio, não só do curso de direito como de outros cursos. A intenção do coletivo é sempre proteger 58 .principium jul 2019

as vítimas e respeitar a suas vontades. Porém, muitos casos não são denunciados pelas vítimas devido ao medo de retaliação. Há muitos casos que não são levados adiante, pois há o envolvimento de docentes. Alguns possuem cargos de influência, o que causa mais receio as vítimas. “Querendo ou não, a estrutura da universidade é muito fechada e não acolhe as mulheres”, disse Hemilly. “NÃO FICO QUIETA” Nove de junho de 2018 foi o dia que Giovana Rossi levou dois socos numa festa universitária, pois defendeu sua amiga que estava sendo assedia pelo agressor. “Eu apanhei, porque eu não fico quieta”, mas ela não perdeu o medo, ficou com raiva, pois acredita que as coisas não deveriam ser assim. O dia foi escolhido para dar nome ao Coletivo 9 de Junho de Farmá-


O que fazem as outras universidades?

N

ão há políticas públicas nacioCampanhas de conscientização nais para os casos de assédios contra o assédio também são promonas universidades brasileiras. vidas pela Universidade Federal de O Ministério da Educação (MEC) não Pelotas (UFPel), que tem suas ações tem nenhuma diretriz sobre o assunto. comandadas pelo Núcleo de Gênero Além disso, muitos casos são abafados e Diversidade Sexual e o Núcleo Psie não vêm a público. Porém, algumas copedagógico de Apoio ao Discente da universidades promovem políticas in- Pró-reitora de Assuntos Estudantis. A ternas. Universidade FedeComo a Unicamp ral de Alagoas (UFA) que começou a implelançou em dezembro Não há mentar políticas de uma cartilha de comprevenção e combate bate ao assédio moral políticas ao assédio e à violêne sexual. A medida faz públicas cia sexual. Em junho parte de uma série de de 2018, o grupo de ações que pretendem nacionais para trabalho que estudou melhor a qualidade de os assédios nas o problema aprevida dos estudantes universidades sentou ao Conselho promovida pela gesUniversitário um retão da universidade. brasileiras latório com proposAno passado, a tas para enfrentar o Universidade Esassédio e a violência tadual de Maringá sexual. A política da proposta tem três (UEM) puniu dois professores com pontos principais: a não tolerância repreensão ( falta disciplinar de nadestes atos por parte da Unicamp, a tureza leve) e suspensão por assédio definição de um protocolo de acolhi- sexual contra alunas. Ambos são do mento e o encaminhamento das de- Departamento de História da univernúncias, além do desenvolvimento de sidade. Itamar Flávio da Silveira teve programas de conscientização, edu- uma pena de repreensão e Moacir cação e treinamento para toda comu- José da Silva teve uma suspensão de nidade universitária. 90 dias sem remuneração. jul 2019 .principium 59


.mulheres cia UEL, curso de Giovana. Hoje, ela é uma das fundadoras e faz parte do coletivo, uma vontade que tinha desde antes da agressão. O coletivo ainda é jovem, as reuniões são com uma roda de conversa. Começa com o nome e uma qualidade da participante para promover um empoderamento pessoal. Ao contrário do Coletivo Mietta Santiago, não há procura de meninas para relatar casos mais graves, mesmo assim os assuntos tocam o assédio no cotidiano. Algo importante para Giovana é o coletivo cultivar a empatia entre mulheres. Giovana conta que na próxima festa do curso de farmácia o coletivo vai trabalhar com a comissão para lidar com os assédios. A preocupação dela é grande, pois não teve suporte da comissão quando foi agredida. Comenta que normalmente as festas de farmácia são tranquilas. CARTA ANÔNIMA Em 2017, uma carta anônima foi o que motivou algumas alunas do curso de Arquitetura e Urbanismo da UEL a criarem o coletivo Hermanas. A carta denunciava o abuso de autoridade de professores do curso, além de atos sexistas cometidos por eles. A autoria

é desconhecida até hoje e colegiado não levou a carta a sério por causa do anonimato, alguns professores chegaram até a debochar da carta em sala de aula. As integrantes do coletivo costumavam se encontrar uma vez por semana, mas devido ao curso com uma carga horária pesada, os encontros estão difíceis de serem realizados. Eles não tinham tema específico, mas entrava em assunto com uma carga emocional grande. Muitos dos relatos das reuniões eram relacionados a coisas que aconteciam no próprio curso. Porém, não há nenhuma denúncia, pois as estudantes sentem medo e a retaliação por parte dos professores é grande. “Eles acabam tratando as meninas do coletivo como as ‘monstras’”, comenta Isabelle de Lima Santos, estudante de Arquitetura e Urbanismo da UEL e integrante do coletivo. Tanto que muitas alunas que fazem parte do grupo evitam comentar que participam. A integrante do coletivo e estudante de Arquitetura e Urbanismo da UEL Heloisa Bataier conta que o coletivo já fez um questionário online para receber denúncias anônimas de casos de assédio no curso. A ideia é reunir vá-

“Eu apanhei, porque eu não fico quieta”

60 .principium jul 2019


Giovana Rossi foi agredida em uma festa universitรกria jul 2019 .principium 61


.mulheres Como denunciar?

N

a UEL, não há uma ouvidoria específica para caso de violência de gênero e sexual. Para fazer denuncias destes casos, é preciso usar a ouvidoria da universidade. A denúncia pode ser feita de maneira anônima e pela internet. Existe também a possibilidade de registrar um boletim de ocorrência na Delegacia da Mulher. Caso você ainda tenha receio em denunciar, você pode entrar em contato com a Comissão de Prevenção à Violência do Centro de Letras e Ciências Humanas (CLCH) da UEL. A comissão faz serviço de acolhimento e orientação. SERVIÇO: Ouvidoria da UEL Acesse a página aqui. Delegacia da Mulher de Londrina (43) 3322-1633 e (43) 3336-3529 Rua Marcílio Dias, 232 Vila Fujita - Londrina dpmulherlondrina@pc.pr.gov.br Comissão de Prevenção à Violência do Centro de Letras e Ciências Humanas (CLCH) da UEL Acesse a Página do Facebook aqui. Se você não estuda na UEL, você pode procurar a ouvidoria da sua universidade.

62 .principium jul 2019

rios relatos e levar ao colegiado. O coletivo fez um grupo no Whatsapp com as calouras no curso este ano para mostrar que existe apoio feminino no curso, algo que Isabelle e Heloisa sentiram falta durante os primeiros anos de graduação. As estudantes do coletivo se reuniram no ano passado para lidar com o assédio em uma festa do curso de Arquitetura e Urbanismo da UEL. Na festa, um homem mascarado assediou uma jovem, quando a comissão foi atrás dele, tirou a máscara e negou. A situação causou muito estresse em Isabela Nakamura, estudante de Arquitetura e Urbanismo e integrante do coletivo, que participou da comissão de organização. Ela conta que houve a preocupação em contatar mais seguranças mulheres, porém os seguranças homens não estavam preparados. O caso não foi em frente, após ameaçarem levar o homem a delegacia e ele dizer que “estava tudo certo”. “Foi um choque, o coletivo não esperava ter essa experiência em uma festa de Arquitetura que é uma festa muito tranquila”, afirma Larissa Nogueira Agenelo, estudante de Arquitetura e Urbanismo e integrante do coletivo. “ELES SE ASSUSTARAM” Katherine Johnson foi uma mulher negra pioneira na ciência espacial e computação. Ela é física, cientista espacial e matemática. Seu trabalho contribui para várias viagens espaciais da NASA (National Aeronautics and Space Administration ou Administração Nacional da Aeronáutica e Espa-


ço), entre elas a ida do homem à Lua em 1969. Entre as várias mulheres na ciência, Katherine Johnson foi a homenageada por um projeto de apoio às mulheres de ciências exatas da UEL. O projeto Katherine Johnson foi iniciativa de estudantes de engenharia elétrica que se sentiam intimidadas por professores nos laboratórios do curso. Eles afirmavam que elas não eram capazes de fazer certas atividades e precisavam de homem para ajudá-las. Essas estudantes entraram em contato com colegas do curso de física e o projeto se espalhou pelas ciências exatas da universidade. Há poucas mulheres nas turmas, geralmente uma ou duas. “Quando eu entrei no curso não tinha a referência de veteranas”, conta Driele Pimenta Silva, estudante de física. A ideia é que

o projeto una as alunas e que seja um canal de ouvidoria, que as mulheres de exatas sintam-se seguras para contar seus relatos. O projeto recebe algumas denúncias envolvendo homens dos próprios departamentos ou casos das estudantes de exatas envolvendo homens de fora dos departamentos. Elas também oferecem monitorias exclusiva para mulheres a fim de ter um ambiente mais seguro e confortável as estudantes. Recentemente, um professor do departamento de física fez apologia ao estupro em sala. Oito mulheres do projeto fizeram um ato contra a fala. Isso repercutiu mal no departamento, que é predominantemente masculino. Driele comenta: “eu acho que eles se assustaram, não estão acostumados a ver a nossa reação”.

Vítimas de assédio encontram apoio em grupos formados por outras mulheres

jul 2019 .principium 63


.lgbt+ Ruan Lucas Marcinao cursou Turismo e hoje trabalha vendendo seus produtos

(Metamorfose A arte de se transformar

O Turismólogo, Ruan Lucas Marciano, conta como foi seu despertar para a sexualidade, os conflitos durante a infância e o relacionamento com a família e amigos Texto por Tiago Bernardino Fotos por Laura Kamiji 64 .principium jul 2019


D

edicado, bem-humorado e sagaz, o turismólogo, hoteleiro, libriano e feminino, fala sobre sua vida, em tempos de intolerância de gênero e como foi seu despertar para a sexualidade. Ruan Lucas Marciano abre as portas da sua casa, principalmente a do seu guarda roupa, exibindo suas botas em vários tons, bolsas, perfumes e seus cosméticos de uso diário. Comenta sobre o processo de auto aceitação, tanto da mãe, quanto de si mesmo em relação ao mundo. Era pouco mais que duas horas da tarde quando nos esperava no portão da sua casa para a entrevista. Um pouco nervoso no começo, foi se soltando conforme conversamos. A mãe e o irmão mais velhos se sentiam à vontade pela casa enquanto caminhávamos em direção ao quarto. Nas mãos, unhas pintadas de alaranjado e amarelo fluorescente chamavam a atenção. Pegou um dos bancos que estava a sua frente e, descendo muitas caixas, colocava sobre a cama uma a uma, botas brancas, pretas e vermelhas, saltos vermelhos escarlates que dariam inveja a qualquer mulher...

“Ser andrógeno é uma transição entre o masculino e o feminino, acentuado e diferenciado apenas pelo vestuário”

jul 2019 .principium 65


.lgbt+

O conselho que eu dou é que cada um pode ser como quiser sem precisar da crítica ou do comentário do outro, você precisa acreditar que é capaz, que é empoderado, como dizia a música das mamonas assassinas gay também é gente. Gosto muito da cor amarela, ela ilumina, é irradiante, é o sol.”

66 .principium jul 2019


Ser andrógeno é uma transição entre o masculino e o feminino, acentuado e diferenciado apenas por aspectos como vestuário, cabelo e maquiagem. Sempre tive a vitrine do mundo gay em minhas mãos, no entanto, quando entrei na faculdade de turismo precisei moldar o meu lado feminino, sempre tinham as visitas técnicas e eu sabia que a sociedade não aceitaria daquela forma. A auto aceitação veio totalmente quando trabalhava com cosméticos, pois assim, vendia os produtos experimentando no meu corpo. Me sinto empoderado quando me visto como uma mulher, e acredite, ninguém é obrigado a gostar de mim por ser gay, prevalece o respeito”

Eu aceitei minha orientação sexual em 2009, porém, somente dois anos depois comprei meu primeiro salto, isto foi possível porque pela primeira vez, quando completei a maior idade, vi um personagem montado em uma das baladas da cidade e isto inspirou, foi então, que criei o meu personagem, a Nick, ou melhor dizendo, Nicole, mas esta personagem não se veste sempre, apenas duas vezes por ano. Quando entro em uma loja o primeiro lugar a visitar é o lado feminino, é o que me encanta, as pessoas não imaginam me presenteado com a representação do universo masculino, e isto é se descobrir, e o importante é voê saber o seu lugar no mundo ”

jul 2019 .principium 67


.lgbt+

Olha eu nunca falei pra minha mãe, sou gay! Ela perguntou se eu era, fiz de desentendido, na época eu disse não, fiquei com medo de ser expulso de casa. Nunca tive a imagem do meu pai em casa, então a gente sempre ouve aquela desculpa, esse só pode ser assim porque não teve pai. Muitas vezes as pessoas me olhavam de uma maneira diferente, mas aprendi a não me importar, se eu for pensar no que as pessoas pensam sobre mim, não saio de casa”

68 .principium jul 2019


Por volta dos dezessete, dezoito anos, não gosta de me olhar no espelho, tinha pêlos pelo corpo, nunca me senti menino, mas quando completei maior idade conquistei minha independência financeira, com meu trabalho comprava tudo o que eu queria, não precisava mais do dinheiro da minha mãe, era independente. Eu sempre gostei de ser assim. Quando eu pesso nas ruas as pessoas me olham, e eu não me importo, sigo em diante”

jul 2019 .principium 69


.crônica

Vidro trincado

Texto por Bruno Codogno

F

oram dois dias de entrevistas. Consecutivos. Um na casa de alimentação para pessoas fragilizadas. Outro no décimo sexto andar da elite vítrea. Um na baixada. Outro na alteza. Rogo, pois, que não pretendo destratar a posição de ninguém. Problematizar. Talvez. Quero não só contar. Miremos além de mera narração descomprometida. Recado dado. Prossigamos. Sexta-feira. Uma penca de cansaço. O calor era de evaporar a essência da íris. Entrei naquele lugarzinho apertado que citei. Umas quarenta e tantas pessoas. Sentadas. Esperavam pela refeição. O volume de prosa era profundo e nítido. – Que fome, meu amigo – puxou assunto Roberto, rapaz trabalhadeiro, conversador. Muito bem-humorado. Eu esperava por Marcelino, minha fonte para uma reportagem. Enquanto isso, Leandro tratava de arranjar cadeiras para uns recém-chegados e eu. Comi, por insistência da casa. Refresco à vontade. Cenouras. Feijão. Chegou a revigorar. Me perguntaram da faculdade, de onde eu vinha, se estava a gostar. Roberto fazia piadas. Eu estava tímido. Mas minha presença não os importunava de modo algum. Enfim me estabeleci no ambiente. Mas me chamaram. Marcelino chegou. Era hora de deixar a mesa para a entrevista. 70 .principium jul 2019

Fui despedido por todos. Não me apresento como o hipócrita que preferiria estar ali a qualquer outro lugar. Mas o fim daquela interação me deixou com gosto de quero-mais. E não mais comida. A coletividade era orgânica. Natural. Destoava de qualquer outra paragem da grande cidade. Individualista, essa. Antagonizava principalmente ao baluarte. Cercado. Protegido do sol.Sábado. Clima nubloso. Cheguei ao apartamento. Parecia uma amostra grátis de mansão. Residência grandiosa. Umas dez e tantas pessoas. Sentadas. Esperavam pela entrega da refeição. Magnatas e um figurão falavam como a bíblia. Me ignoraram até o fim da bagaceira. Só no vinho. Cerrou-se a exegese financeira. Silêncio triste de ecoar as últimas palavras. Reverberaram por até dois segundos nas paredes geladas. Fui notado e recepcionado. – É da imprensa? – gracejou Norival, anoso mandão, conservador. Tentou ser bem-humorado. Eu esperei por Andressa, minha fonte para uma reportagem. Enquanto isso, Henrique buscou uma cadeira para mim. Olhei às graciosidades de puro plástico e pose. Pensei em Roberto. Morador de rua. Dependente químico. Bom anfitrião. Brincador. Me acolheu como um dos seus. Em entrevista, falou sobre perspectiva, esperança e redenção. Já Norival, advogado.


#doesangue /DoeSangueMS /DoeSangueMS

JUNHO/2018

/MinSaudeBR

DÁRIO. GRAÇAS À DOAÇÃO DE SANGUE, REALIZOU SEU SONHO DE DAR A VOLTA AO MUNDO.

TEM SEMPRE ALGUÉM PRECISANDO DE VOCÊ. Procure o hemocentro mais próximo e seja um doador regular. Acesse saude.gov.br/doesangue e saiba mais.

jul 2019 .principium 71


TOSSE POR TRÊS SEMANAS OU MAIS É O PRINCIPAL SINTOMA.

Com mais de 70 MIL NOVOS CASOS por ano, a tuberculose é uma doença que ainda existe e tem cura se o tratamento for feito até o final.

#BRASILSEMTUBERCULOSE

Saiba mais em: saude.gov.br/tuberculose

72 .principium jul 2019

Fique atento aos sintomas. PROCURE UMA UNIDADE DE SAÚDE.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.