Revista Medusa

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DISTRIBUIÇÃO GRATUITA julho de 2019

Exploração sexual infantil: A ferida que Londrina nunca fechou Mais de 10 anos após a Operação Publicano, Londrina ainda enfrenta casos de exploração sexual infantil. P. 28


EDITORIAL Freepik

U

ma sacerdotisa compecomo símbolo de nossa revista com tente e leal desempenhava o propósito de subverter a imagem suas funções no templo. negativa da personagem, que é tida Um dia, um deus arrogancomo o símbolo da raiva feminina. te e bruto, que pensava as mulheres Busca-se defender a ideia de que ela como propriedade, entra no templo foi, na verdade, injustiçada, vítima e a estupra. O homem, então, é pudo julgamento incisivo e sem comnido por seu crime, certo? Errado. A paixão da sociedade - como muitas sacerdotisa é exilada e condenada a mulheres ainda o são. viver sem que ninguém jamais possa O intuito da nossa revista é queolhar para ela – brar paradigmas qualquer um que que pairam soAinda que a verdade o fizer, vira pedra. bre as mulheres e seja contundente e Medusa é feito fazer com que o pária, depois vilã. petrifique quem a recebe público olhe para Assim como no Medusa, isto é, mito de Medusa, no mundo atual preste atenção às mulheres para as muitas mulheres são marginalizadas quais a sociedade mantém os olhos e invisibilizadas. Elas têm suas pafechados. Que se possa ouvir, com lavras e histórias desprezadas. Suas respeito, a versão daquelas que viversões são encaradas como mero veram o que estão contando. Ainda descarte. Mas as consequências que que a verdade seja contundente e sofrem são duradouras. petrifique quem a recebe. Nossos Em uma corrente contrária a profundos agradecimentos. Desejaessa exclusão, adotamos a Medusa mos uma boa leitura!

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REVISTA MEDUSA Revista-laboratório produzida pelos alunos do terceiro ano matutino do curso de Jornalismo, para as disciplinas 6NIC184 - Práticas Laboratoriais em Jornalismo Impresso III e 6NIC179 - Práticas Laboratoriais em Diagramação. CECA - Centro de Educação, Comunicação e Artes. Universidade Estadual de Londrina (UEL). Docentes Responsáveis: Profª. Drª. Márcia Neme Buzalaf, Prof. Me. Thiago Henrique Ramari e Prof. Me. Erick Lopes de Almeida. Produção: Bruna Miyuki, Cristye Vilas Boas, Débora Mantovani, Giovana Borghesi e Victória Vischi Símbolo do logo: Ronnan Moraes Ilustrações e ícones: Freepik

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Descubra o que significa e conheça a história de pessoas que são assexuais para entender mais sobre.

Mulheres travestis e transsexuais tem muitos direitos negados e os que existem decorrem de muita luta.

o que é assexualidade?

a vida trans em londrina

SUMÁ

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A série da HBO Big Little Lies aborda a importância da sororidade na luta pelos direitos das mulheres.

No perfil de Bruna Miyuki Akamatsu, a história de militância de Elza Correia contra a ditadura militar.

resenha

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elza contra a ditadura


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Na seção de crônicas da revista, acompanhe Crônica de uma morte anunciada de Bruna Miyuki Akamatsu.

Reportagem sobre a exploração sexual infantil em Londrina e a violação dos direitos das vítimas.

Crônica

uma tatuagem na alma

ÁRIO 54

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Experiências de diferentes mulheres no esporte apontam que o meio ainda é duro e desigual para elas.

Matéria de Débora Mantovani conta sobre o que é e quais os benefícios da ginecologia natural.

MULheres no esporte

ginecologia natural

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A sexualidade invisível Porque pensar sobre diferentes tipos de atração e a possibilidade de ausência de atração sexual é necessário VICTÓRIA VISCHI DA CRUZ

A

atração sexual é muitas vezes considerada um fato da realidade humana. Ninguém costuma apresentar a possibilidade da ausência de atração sexual. Assim, a assexualidade passa despercebida para a maioria das pessoas. “A nossa invisibilidade é muito maior do que a dos outros grupos, também por causa de uma certa estigmatização que é a questão do sexo espartano; sexo é vida, sexo é saúde” explicou Cláudia Cruz Machado, 24, que se define como assexual (ace), uma pessoa que não sente atração sexual, e aromântica (aro), que não sente atração romântica. “A ideia de que podem existir pessoas que não sentem atração sexual por outras e que não incorporam a prática sexual no seu reportório íntimo é considerada estranha ou impossível” explica Rita Alcaire, da Universidade de Coimbra em Portugal, cuja tese de doutorado foi “A Revolução Assexual: discutindo os direitos humanos pela lente da assexualidade em Portugal”. Parte das pessoas reluta em aceitar a assexualidade como uma orientação sexual. “Ser considerada uma orientação sexual de pleno direito, ao lado de outras que lutam pelo reconhecimento da sua atração por pessoas do mesmo sexo ou por pessoas de sexos/gêneros diferentes, simultaneamente, é

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difícil de aceitar. Especialmente quando aquilo que as pessoas assexuais pedem é reconhecimento, visibilidade e aceitação (e não reivindicações legais expressas)” complementa Alcaire. A assexualidade é compreendida como um espectro ou termo guarda-chuva, por englobar um conjunto de orientações sexuais. Essas orientações sob o guarda-chuva assexual são a demissexualidade, referente a pessoas que apenas sentem atração sexual por pessoas com as quais já formaram uma ligação emocional; gray-assexual, que se identificam com um espaço intermediário entre a alosexualidade (alo) - pessoas que sentem atração sexual - e a assexualidade, pessoas que não sentem atração sexual. SE DESCOBRINDO ASSEXUAL - Sendo a sociedade heteronormativa, toda pessoa que foge desse perfil, passa por uma experiência diferente de entendimento pessoal. Nesse sentido, a invisibilidade da assexualidade se apresenta como mais uma barreira para a identificação das pessoas com o termo. Como explica Ana Cristina Guerra, 21, “Quando as pessoas não falam muito sobre, você meio que não sabe, então leva um tempo para você saber que é assexual”. A distância da assexualidade dificultou o processo de aceitação de Claudia Cruz Machado. Na época, ela conhecia


Tipos de atração Enquanto a assexualidade é definida como a ausência de atração sexual, é necessário deixar claro que existem outros tipos de atração. A Asexual Visibility and Education Network (AVEN), classifica os tipos de atração como: Sexual: atração sexual e vontade de agir sexualmente em relação a pessoas por quem se sente atraída Romântica: desejo de estar em um relacionamento romântico Estética: apreço pela aparência de outra pessoa Sensual: desejo de interação sensual, mas não sexual, com as

pessoas pelas quais se sente atraída, interações sensuais envolvem coisas como abraços e beijos Desse modo, ainda que uma pessoa seja definida como assexual, algumas pessoas se identificam de forma diferente entre os tipos de atração, por exemplo, uma pessoa pode ser assexual e aromântica, não apresentando desejo de envolver-se tanto sexualmente quanto romanticamente com outras pessoas, mas uma pessoa assexual pode, também, identificar-se como hetero, homo, bi, de acordo com sua atração romântica. (V.V.C.)

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Fotos: Arquivo Pessoal

Ana Cristina Guerra 21 anos Assexual e Aromântica

Claudia Cruz Machado 24 anos Assexual e Aromântica

Carolina Rodriguez Teixeira 27 anos Demissexual

apenas uma pessoa – virtualmente que se declarava assexual. Além disso, o estereótipo sobre assexualidade a influenciou, uma vez que “Eu sempre tive libido muito alta, então pensava ‘como sou assexual se eu tenho libido?’ Mas ela não é direcionada, então demorou um tempo. Foi meio uma tentativa de me encaixar na norma, eu procurava justificativas que me fizessem parte de um grupo maior de pessoas, mas era tudo furada, não foi dando certo”. A aceitação da assexualidade para Machado veio da impossibilidade de continuar fingindo, “Percebi que não tinha como fugir disso mais, eu tinha 8 | julho | MEDUSA

que me aceitar porque não tinha outra forma, não tinha como continuar vivendo desse jeito, tentando me encaixar em uma coisa que não era real”. Ana Cristina Guerra, que se identifica como aromântica, assexual - devido à forte atração estética e sensorial que sente por pessoas de ambos os sexos, ela considera mais fácil dizer que é bi para a maioria das pessoas- também teve um lento processo de aceitação. Embora não acreditasse que a assexualidade influenciava negativamente outras pessoas, quando relacionado à ela passava a associar com solidão e ausência da experiência de amor. “Ano


Mayara Fidalgo Pereira de Barros 26 anos Demissexual e Demirromântica

Letícia Dornelas 19 anos Demissexual

passado comecei a ficar mais confortável com o fato de que não sinto essas coisas e tudo bem não sentir essas coisas, eu amo pessoas de outras formas e se eu nunca experienciar amor romântico para mim tudo bem. Gostaria? Sim, mas se não rolar suave, tenho amor de outras formas na minha vida”. Para Mayara Fidalgo Pereira de Barros, 26, a aceitação da demissexualide veio logo que teve contato com o termo. “Até encontrar o termo e ter um nome para falar das minhas experiências eu era a estranha do grupo que não entendia as piadas que as pessoas estavam fazendo e quando

perguntavam se eu gostava de alguém, eu inventava… Até o ensino médio eu efetivamente inventava. Só fui perceber que inventava depois de me descobrir demissexual, porque antes me convencia mesmo de que gostava das pessoas. Mas falava que gostava de alguém só para me encaixar”, conta. No caso de Carolina Rodriguez Teixeira, 27, a possibilidade de não sentir atração sexual nunca lhe tinha ocorrido, ela acreditava que apenas romantizava demais o sexo. “Pensava que não tinha encontrado a pessoa certa. Mas nos meus 24 anos eu tinha um grupo de amigas que já conheciam os termos e uma delas MEDUSA | julho | 9


A bandeira assexual é formada pelas cores preto, cinza, branco e roxo, que representam, respectivamente, assexualidade, gray-assexual, allossexuais e a comunidade assexual

soltou aro-ace em uma das conversas. Perguntei o que significava e fui atrás, pesquisei, li sobre e aí descobri que me encaixava naquilo. Sou demissexual e está tudo bem”. “Eu ficava sem saber se era realmente assexual, se estava me reprimindo por alguma coisa ou se eu só não tinha tido algum tipo de oportunidade de ficar com alguém”, conta Letícia Dornelas, 19, demissexual e biromântica. Ela teve seu primeiro contato com o termo demissexualidade aos 15 anos, mas apesar de ter adotado o termo demissexual alguns meses depois, só ficou realmente confortável com a identificação quando entrou na faculdade. “Eu conheci muita gente e tive a oportunidade de ver que não estou me reprimindo, estou fazendo as coisas do jeito que queria fazer e continuo não sentindo atração sexual por outras pessoas”, explica Dornelas. 10 | julho | MEDUSA

ASSEXUALIDADE NÃO É CELIBATO, NEM PATOLOGIA - “Celibato, abstinência, frigidez (nas mulheres), desejo hipoativo… Existem muitas formas de interpretar a assexualidade e de tentar enquadrá-la”, explica Rita Alcaire. Isso acontece porque vivemos em uma sociedade onde a atração sexual é compreendida como norma. Essa interpretação faz com que a assexualidade seja muitas vezes vista como escolha. Letícia Dornelas conta que sua demora para compreender que era demissexual estava relacionada à religião. Ela tinha receio de estar confundindo com uma repressão gerada por alguma expectativa religiosa de ter que se guardar sexualmente. “Na época em que eu conheci o termo eu participava de igreja, essas coisas, ficava pensando ‘nossa será que estou me reprimindo em algum aspec-


to?’, mas aí descobri que não”, relembra. Apesar de ser comum a associação de aspectos religiosos celibatários com a assexualidade, Alcaire explica que “A crença mais generalizada é a de que se trata de uma questão patológica, consequentemente dando total autoridade aos profissionais de saúde para impor diagnóstico e tratamento. Os danos do ‘não sexo’ são então comercializados pelas indústrias de terapia de sexo e farmacêutica como curáveis”. Mayara de Barros teve contato com essa visão medicalizada. Sua irmã mais nova é estudante de medicina e teve dificuldade em compreender principalmente a questão do demiromântismo e do aromantismo. Barros disse que a reação da irmã foi dizer “Pode ser problema de hormônio, podem ser várias coisas, você tem que ir no médico ver isso”. A falta de conhecimento sobre o espectro assexual pode gerar reações como essas. Nesse caso Barros explica que não se tratava de preconceito. “Eu sei que foi porque ela estava preocupada, não porque ela tem preconceito. É só porque ela não entende e isso gera uma preocupação, entendo isso, mas é chato, aí só não conversei mais”. A não aceitação da assexualidade como uma orientação sexual válida é parte da visão de uma sociedade que é sexualmente liberal, mas não sexualmente libertada. “Vivemos sob a falsa ideia de que estamos a tirar partido de um momento pós revolução sexual e, consequentemente, de total liberdade em que cada pessoa pode viver o

tipo de sexualidade, família, relacionamento, parentalidade que desejar”, conta Alcaire. Porém ela relembra que “Se fosse uma sociedade sexualmente liberada, todas as possibilidades de sexualidade seriam consideradas identidades e possibilidades sexuais válidas”. O estudo de doutorado de Alcaire é um dos que buscam auxiliar a transformar essa realidade. “Fazer investigação sobre a assexualidade em Portugal é também uma oportunidade para abordar as lutas pela dignidade e reconhecimento com que os indivíduos assexuais lidam, a importância da existência de pessoas assexuais nas comunidades LGBTQI+, conhecer o seu ativismo, e lançar luz sobre as suas narrativas, contribuindo para que suas vozes sejam consideradas sempre que novas políticas sociais relevantes sejam introduzidas ou discutidas, ou as existentes sejam repensadas”, conta. UMA PAUTA FEMINISTA - “A liberdade sexual e os direitos humanos não podem ser verdadeiramente cumpridos até que cada pessoa esteja livre para ser (alo)sexual ou não. Assexuais (e o ativismo assexual) vislumbram um mundo onde as pessoas sejam livres para explorar sua sexualidade em seus próprios termos e no seu próprio tempo, independentemente de se sentirem atraídas ou não por alguém”, explica Alcaire. Assim, a aceitação da assexualidade é vista como uma luta essencialmente feminista, uma vez que a liberdade sexual é uma das pautas essenciais para o feminismo.

“uma sociedade que é sexualmente liberal, não sexualmente libertada”

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Embora o feminismo “sex-positive” seja contrário ao julgamento do outro “pela sua orientação sexual, comportamento, identidade ou expressão de género”, Alcaire relata que “Tanto na comunidade assexual em geral, como nos testemunhos de alguns/algumas participantes da minha investigação de doutoramento, encontrei críticas ao feminismo sex-positive e a alguns espaços associados a esta corrente (on-line e off-line) como desconsiderando os assexuais e a assexualidade”.

EXPECTATIVAS SOCIAIS DIFERENTES: UM RECORTE DE COR - Todas as muRita Alcaire Pesquisadora da Universidade de Coimbra

Angela Silva Leonardo Integrante do Coletivo Feminista Marxista Marielle Franco

lheres sofrem opressões. Angela Silva Leonardo, integrante do Coletivo Feminista Marxista Marielle Franco, ressalta a importância de compreender que “a opressão da mulher branca é diferente da opressão da mulher negra periférica, da mulher trans, da mulher lésbica”. As expectativas sociais de comportamento da mulher são muito diferentes entre mulheres brancas e negras. “A mulher negra é oprimida tanto pela sociedade, quanto por outras mulheres e também em casa pela vivência e pelo coletivo onde ela está”, explica Silva. Compreender essas diferenças é necessário para compreender a violência histórica contra a mulher negra. A exposição e sexualização do corpo da mulher negra são resultantes do processo histórico racista que foi construído. “A gente ouve até hoje o pessoal falar ‘a mulher tal é por prazer, a mulher tal é para o casamento’, então tem essa divisão que vem historicamente. O corpo da mulher preta é por prazer, então a mulher branca tem que ser casta, tem que ser pura e é moldada para isso” explicou Silva.


Para Ana Cristina Guerra o fator racial foi agravante em sua dificuldade no processo de aceitação da própria assexualidade. Sendo uma mulher negra, as expectativas sociais criadas pelo estereótipo racista se somaram ao “Fato de você ser uma pessoa que não sente atração sexual e, no meu caso específico, não ter a libido tão alta assim. É um pouco complexo e um pouco conflitante, porque você passa sua vida inteira ouvindo que você deve ser uma coisa e você é uma coisa completamente oposta àquilo”. Guerra ressalta ainda que as expectativas sociais de uma mulher negra hiperssexualizada também não são verdadeiras “Caso de muitas mulheres negras alo que eu conheço”. O que configura outra forma de violência simbólica contra as mulheres negras, uma vez que “Se você não é o que eles querem que você seja, você vai sempre ser a pessoa que está deslocada… O que você é se não um estereótipo? Sabe. Se você não serve para ser esse estereótipo, você não serve para mais nada”, relata Guerra.

Ela não conseguia entender o que estava acontecendo, “nesse ponto eu já estava atraída romanticamente por ele, mas ainda não sexualmente”. Sem conhecer a possibilidade de ser demissexual, “a gente conversava e não ia a lugar nenhum porque eu não sabia o que estava acontecendo”, relembra. Assim a invisibilidade da demissexualidade, foi parte do problema para a formação do relacionamento deles. A partir do momento em que Barros conheceu o termo demissexualidade foi mais fácil conversar, “quando eu achei o termo ele foi a primeira pessoa para quem eu falei e a gente começou a conversar mais ainda para resolver esses problemas que a gente estava tendo”. Entretanto, nem sempre as pessoas têm facilidade em entender a possibilidade de uma pessoa demissexual estar envolvida em um relacionamento romântico, como foi o caso dos pais de Barros, “para os meus pais não faz sentido, não encaixa, eu acho que eles aceitaram, mas não entenderam”. Claudia Cruz Machado, chama atenção para a importância de não generalizar “Muitas vezes quando as pessoas explicam assexualidade elas falam ‘pessoas assexuais também se apaixonam’ Uau, mas não eu. Então as pessoas às vezes fazem um recorte meio errado. E uma coisa que sempre foi mais fácil para mim de entender foi essa questão arromântica porque fez sentido mais rápido”. Com 15 anos, antes de ter ouvido o termo arromântica, Machado estava

“Se você não serve para ser esse estereótipo, você não serve para mais nada”

EXISTEM ASSEXUAIS QUE SE APAIXONAM, MAS NÃO TODOS - No ensino médio, Mayara de Barros ainda não conhecia o termo demissexual. Nesse momento, ela já se encontrava em um relacionamento romântico, com seu namorado atual, mas estava tendo problemas no relacionamento, “Ele é bem alossexual e eu estava meio sem saber porque que eu estava tão travada”.

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fazendo terapia, quando teve seu primeiro confronto com a psicóloga, devido ao seu desinteresse amoroso “Ela ficou tipo ‘Como assim? Porque eu tenho a teoria de que todas as pessoas têm que ter isso desenvolvido, porque se não para onde você está canalizando sua energia sexual?’ Eu fiquei ‘gente estou fazendo 16 anos, o que eu estou fazendo aqui’. Foi muito incômodo”.

O MUNDO NÃO É UMA COMÉDIA ROMÂNTICA DE HOLLYWOOD - Essa pressão

A carta A do baralho, em inglês chamada “ace”, é usada como um símbolo assexual 14 | julho | MEDUSA

social para o desenvolvimento de relacionamentos românticos, faz com que a maioria das pessoas crie a expectativa de que uma história de amor como a das comédias românticas aconteça em sua vida pessoal. Machado conta que por muito tempo quando desenvolvia uma amizade mais intensa pensava “Será que é agora que vai acontecer?”. Tendo criado em sua mente o modelo de pessoa por quem se apaixonaria, Machado conheceu alguém que se encaixava em todas as características, mas “Eu ainda não estava apaixonada. Foi uma pessoa que eu amava muito, mas não era romance. Então eu pensei pronto, não tem pessoa no mundo que vai preencher esse espaço para mim, porque não tem esse espaço, já está preenchido com outras coisas”. Carolina conta que muitos de seus amigos e familiares esperam que ela se envolva em relacionamentos românticos, principalmente por ser mulher. Ideias reforçadas pela sociedade e por produtos culturais. “Quando eu era pequena, sempre assisti muitos filme de princesas, até hoje adoro, mas pensava que iria crescer e ser salva pelo meu príncipe”, ela explicou ainda o papel da pressão social em sua saúde mental “Esse foi um dos motivos pelos quais


eu adquiri alguns transtornos psicológicos, como a depressão. Minha autoestima também era horrível, pautada na frase ‘ele nunca vai me querer’”. Ana Cristina Guerra disse que nunca sentiu as pressões sobre relacionamentos românticos de forma muito forte. Contudo, o fato de essas expectativas criadas socialmente envolverem atração sexual ou romântica, fizeram com que existissem dúvidas em sua cabeça. “Sinto que nunca vou ser capaz de ser recíproca com uma pessoa no mesmo nível e você é levado a acreditar nisso firmemente (pela sociedade), eu estou desconstruindo esse pensamento agora. Levemente, mas estou”, comenta. MAS É CLARO, TEMOS A INTERNET - A internet representa para a assexualidade um papel importante. Durante as entrevistas, as referências a redes sociais como fonte de informação ou espaço de socialização foram presença quase constante. Essa perspectiva foi confirmada pela experiência de Rita Alcaire, “Há uma brincadeira que se costuma fazer que é muito certeira: a internet é a melhor amiga da assexualidade”. Foi a internet que possibilitou a organização do movimento assexual e a construção do conceito e é ela uma das principais formas de contato com informações sobre a assexualidade, onde pessoas assexuais costumam encontrar outras pessoas que têm experiências e sentimentos parecidos. “Se não fosse a internet, eu não sei o que eu ia estar fazendo da minha vida agora. Realmente, eu não sei onde estaria o meu entendimento”, comenta Claudia Cruz Machado. A internet funciona, ainda, como um espaço expositivo, o qual permite que pessoas com as quais não se tem muita

intimidade tenham acesso a informações pessoais. Essa outra face dos ambientes virtuais fez com que Machado demorasse para postar algo referente a sua sexualidade no Facebook. Diferente de redes sociais como Twitter e Tumblr, a grande presença de conhecidos entre os amigos do Facebook torna esse espaço mais público. Essas características fizeram com que Machado sentisse que era “Como se você estivesse falando para o mundo que está ok todo mundo saber disso a partir de agora”. Por esse motivo, ela só postou algo depois de conseguir o apoio de sua mãe. Quando soube da vontade de Machado de fazer essa publicação, ela pediu para que pensasse bem, mas chegou em um momento em que “Ela falou ‘não, eu acho que você tem de ir lá e falar mesmo porque não é bom ficar vivendo assim, você está muito ansiosa, muito nervosa. Então vai lá, fala e se as pessoas não gostarem, você não precisa ficar perto delas também’ eu fiquei emocionada, foi um momento muito importante para mim”, relembra.

SAIBA MAIS - sobreocinza.wordpress.com - blog escrito por uma mulher demissexual com suas opiniões e perspectivas. theasexual.com - plataforma independente, the asexual é um espaço para publicação de textos de escritores assexuais, agender e/ou aromânticos. Fundado em outubro de 2016, por Michael Paramo, The Asexual publica uma revista trimestral em seu site. https://www.asexuality.org/ - The Asexual Visibility and Education Network (AVEN) é a maior comunidade assexual da internet e possui diversos arquivos de pesquisas. MEDUSA | julho | 15


Comunidade T Londrinense A organização do movimento Transsexual, Travesti e Transgênero em Londrina e a vivência de mulheres travestis na cidade VICTÓRIA VISCHI DA CRUZ Enquanto a expectativa de vida no Brasil é de 76 anos - segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 2017 -, para pessoas trans (transsexuais, travestis e trangênero) esse número cai para 35 anos. O Brasil segue como o país que mais mata transexuais, segundo o ranking da ONG Transgender Europe, divulgado em novembro de 2018. Ainda que seja difícil assegurar que esses dados estejam completos - a contabilização não atinge todos os crimes -, o preconceito contra transsexuais e travestis no Brasil continua expressivo. De acordo com um levantamento realizado pela ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), os estados que mais mataram transexuais 16 | julho | MEDUSA

e travestis em 2017 foram Minas Gerais, Bahia e São Paulo. Segundo esse mesmo levantamento, 90% de Travestis e Transexuais usam a prostituição como fonte de renda e, em média, aos 13 anos são expulsas de casa. Nesse cenário de preconceito “é um suicídio social mesmo se entender enquanto pessoa trans”, conta Mel Campus, porta-voz oficial das travestis de Londrina. Quebrar com as imposições sociais para poder viver de forma fiel com a própria identidade não é um processo fácil. Apesar de todas as dificuldades que a sociedade lhe impôs, simplesmente por ser quem é, Mel Campus explica que “Às vezes fico pensando na minha vida, nas coisas que vivi, em tudo que passei e no sofri-


Bianca Brito

Mel Campus, ativista e militante por direitos humanos e na área da saúde, atriz e produtora cultural

mento, inclusive nas pessoas que magoei para ser quem eu sou hoje, mas acabo entendendo que tudo isso é necessário na vida de uma pessoa trans”. SE DESCOBRINDO TRANSSEXUAL - “Se descobrir uma pessoa trans é muito singular, é algo muito particular e é algo também do seu próprio tempo”, conta Mel. No caso dela, ela nunca se identificou com o gênero biológico. Tendo desejado sempre coisas entendidas socialmente como femininas, ela explica que “desde criança entendi

o não como uma forma de existência”. A ausência de conhecimento inicial, de uma criança sobre as construções sociais de gênero junto com o processo de descobrimento da identidade e a imaturidade, são fatores que podem contribuir para a demora em compreender a própria transsexualidade. No caso de Campus, como de outras pessoas trans que nunca se identificam com o gênero de nascimento, embora ainda não compreendam o que são, compreendem muitas vezes o que não MEDUSA | julho | 17


Quem é a ANTRA? Fundada no ano 2000, a Associação Nacional de Travestis e Transsexuais (ANTRA) tem como missão “Identificar, Mobilizar, Organizar, Aproximar, Empoderar e Formar Travestis e Transexuais das cinco regiões do país para construção de um quadro político nacional a fim de representar nossa população na busca da cidadania plena e isonomia de direitos.” (Assembléia da ANTRA, Teresina-PI/ Maio 2009). A Associação atua em nível nacional, somando 127 instituições que realizam ações em favor de promover a cidadania para Travestis e Transsexuais, devido a ausência de garantia dos direitos humanos para esse grupo. Nesse sentido, suas linhas de atuação concentram-se principalmente

na promoção de campanhas informativas com o objetivo de dar visibilidade a pessoas transsexuais e travestis; na denúncia de qualquer caso de discriminação e preconceito devido a identidade de gênero e orientação sexual; em realizar trabalhos em conjunto com outras redes que se dedicam à promoção da saúde, educação, segurança pública e direitos humanos; apoiar ações para prevenção de HIV/Aids, hepatites virais e outras doenças sexualmente transmissíveis, bem como ações que buscam melhorar a qualidade de vida das pessoas transsexuais e travestis que vivem com HIV/Aides; no fomento de congressos e encontros de pessoas transsexuais e travestis. (V.V.C.)

são. “A gente sabe dizer aquilo que nós não somos. Então, quando era criança, eu dizia ‘olha, eu não entendo muito bem isso que to sentindo, mas sei que isso aí não sou eu, por esse caminho eu não quero ir, eu não sei qual caminho vou seguir, mas esse não é o meu caminho.’ Isso a gente sabe dizer. Quando a gente encontra o acolhimento necessário a gente desabrocha e quando não encontra a gente morre né”. Vicky Reale, primeira travesti funcionária pública de Londrina, só foi se descobrir transsexual na vida adulta. Até então, ela se identificava como um homem bissexual. “Eu sempre fui aquele menino bicha, que tinha jeitinho de bicha, mas disfarçava mui18 | julho | MEDUSA

to bem, que andava só com meninas e namorava menina também. Então aquilo era muito estranho para as pessoas, porque eu sempre me apaixonei por mulheres, todos os homens com quem eu me relacionei foram só sexo”, conta Reale. Seu processo de descobrimento como mulher trans começou durante a terapia, quando ela se identificou como uma pessoa trans, mas sem saber ainda se era uma mulher trans. “Eu demorei para descobrir isso, porque no começo eu passei a me apresentar, inclusive, como uma pessoa trans não-binária e mantive meu nome como Victor”, relembra ela. Assumir uma identidade não-biná-


Arquivo Pessoal

Vicky Reale, a primeira funcionária pública travesti de Londrina

ria, foi difícil para ela, principalmente devido à dificuldade das pessoas de compreenderem. “O problema é que trans não-binário é uma identidade política pós-moderna demais e a galera não consegue assimilar isso de jeito nenhum, porque acha que é uma coisa individualizada, só sua, que não existem categorias de pessoas que têm essa vivência e era uma coisa que não me contemplava politicamente também”, disse. O primeiro momento em que Vicky Reale se compreendeu como mulher trans foi durante uma viagem que realizou com sua esposa - com a qual estava em um relacionamento romântico desde antes do processo de des-

cobrimento como pessoa trans. Nessa ocasião, elas foram para Curitiba, onde Vicky se apresentou com nome feminino e passou toda a viagem assumindo a identidade travesti. Ela disse a sua esposa “‘Eu não quero mais ir no banheiro masculino ou só me vestir de mulher para sair, eu quero ir mesmo do começo ao fim da viagem e que se foda o que que a galera vai pensar na rodoviária. Que se foda tudo. Eu quero ir assim e a gente foi.’ Foi muito empoderador”. A volta dessa viagem, foi muito triste para Reale devido a um choque de realidade. No dia seguinte ao seu retorno, ela recebeu a notícia do assassinato da travesti Scarlett, na avenida Leste-OesMEDUSA | julho | 19


Arquivo Pessoal

A ativista Mel Campus em uma de suas viagens

te. O crime ocorreu na madrugada do dia 10 de dezembro de 2018. “Aquilo foi uma facada no coração porque eu vi o quão privilegiada eu sou de ser servidora pública, de ter a minha casa própria, de ser casada com uma médica, entendeu. Eu tenho milhares de privilégios que um monte de travestis nem sonham com isso”, conta Reale. PROSTITUIÇÃO - O preconceito da sociedade brasileira faz com que não exista espaço no mercado de trabalho para as travestis. “Então a rua acaba se 20 | julho | MEDUSA

tornando um campo onde você se desenvolve mesmo e você tem que saber viver isso”, explica Campus. Mel Campus saiu de casa aos 18 anos, após ter passado 2 anos internada em uma clínica de recuperação, onde seus pais a internaram, porque a igreja a considerava doente. Foi a partir desse momento que ela passou a viver de prostituição. “O desejo de transitar me levou a me prostituir. Era aí que eu queria chegar. Eu precisava de dinheiro, de uma


Alma Londrina Rádio Web

É Babado, Kyrida! O programa “É Babado, Kyrida!” é uma revista eletrônica de web rádio, em uma parceria do Coletivo ElityTrans com o projeto de extensão “Plataformas Digitais – A Produção Comunitária de Novas Narrativas Alternativas ao Discurso Hegemônico como Dispositivo de Produção de Novos Sentidos” da Universidade Estadual de Londrina (UEL), coordenado pelo professor e pesquisador Reginaldo Moreira. A veiculação é feita através da Alma Londrina Rádio Web e o programa permanece disponível para acesso gratuito no site. A apresentação do “Babado”, apelido dos colaboradores para o programa, fica por conta de Melissa Campus, Linaê Mello e Herbert Proença. O programa tem como objetivo divulgar a perspectiva de pessoas travestis e transsexuais sobre diversas temáticas que interessam à comu-

nidade LGBT+, como uma forma de lutar contra o preconceito da sociedade brasileira com pessoas trans. A importância do Babado é “a difusão de informação pela ótica legítima da pessoa trans, bem como para a criação de novas narrativas contra-hegemônicas. Eu acho que existe um discurso (normativo) que está sendo difundido repetido, repassado, reproduzido e nós temos que ter discursos que contrapõem essa normativa”, destaca Campus. Não encontrando espaços prontos para difundir a perspectiva trans, havia a necessidade de criar um espaço para potencializar o alcance das perspectivas T. Campus diz ainda que Babado é o programa mais ouvido da Alma Londrina Rádio Web. A produção do programa retomou as atividades em abril, mas ainda não há uma data para retorno das publicações. (V.V.C.) MEDUSA | julho | 21


A legitimidade política Travesti A palavra travesti foi usada historicamente como xingamento. Embora seja uma situação que se repete atualmente, a palavra vem sendo ressignificada como um nome de luta político. “Antes de transgênero, antes de transsexual, todas eram travestis e essas (outras) nomenclaturas elas foram inseridas pelo universo acadêmico, a partir da criação de materiais didáticos, literários, de estudos científicos. Então, o que é original e legítimo nosso é a travesti, é isso que eu passo para as meninas”, explica Mel Campus. Vicky Reale conta que “Travesti é uma identidade política que tem todo um histórico de organização e que foi assim responsável por ser pioneira na militância LGBT”, mas também é uma identidade cercada por estigmas, “a travesti ela não é tão palatável quanto a mulher trans. Travesti é uma identidade que está muito associada ainda a

identidade e de um espaço para isso. Eu precisava de uma independência financeira, de remédios. Precisava de uma série de direitos que eu não tinha, que são esses direitos básicos de habitação, alimentação, lazer, cultura, arte, educação, mas isso é só para gente de bem no nosso país, né”, conta. Dessa vivência, para Campus a par-

prostituição, a mulher hiperssexualizada, a rua e a criminalização”. Nem toda mulher trans aceita a identidade travesti, devido a esses estigmas que cercam o nome. “É mais bonito sim quando eu me digo que eu sou uma mulher trans, porque isso é mais limpo, mais aceitável, mais modismo, mas ninguém quer ser travesti”, explica Mel Campus. Ela foi eleita para ser representante das travestis de Londrina, devido ao seu conhecimento histórico e por ter sido preparada pelas travestis mais velhas para isso. Uma vez que é uma identidade política “ser travesti é radical e é uma forma de ir de encontro às estruturas sociais, as estruturas de aceitação e isso é uma atitude que tira as pessoas da sua zona de conforto, que traz uma certa reflexão para as pessoas sobre essa questão de gênero e as transições”, complementa Campus. (V.V.C.)

te mais fácil foi “ter uma independência financeira, uma construção física e corporal a partir da prostituição foi muito fácil. O universo da prostituição me acolheu muito bem, me deu lucro”. Campus acredita que soube viver essa situação, bem como saber colocar limites ao negar drogas oferecidas por seus clientes. “Me causou muitos mo-


mentos ruins e acho que a gente tem que saber viver tudo isso. Acho que isso é uma coisa boa, a gente aprende a viver de verdade e se sobrevive ali, a gente sobrevive a qualquer coisa”. Apesar das dificuldades enfrentadas nessa situação, Mel conta que “Não foi algo pejorativo a prostituição na minha vida. Porque foi dali que tudo começou. Eu sou quem sou hoje a partir daquela massa, daquela situação de vida que eu vivi lá atrás. Toda a minha sabedoria parte de uma sabedoria que a gente aprende, não na escola, nem na universidade. Mas é uma sabedoria de sobrevivência, uma sabedoria da vida”.

Arquivo Pessoal

Vicky Reale em posição que remete ao movimento feminista

LUTA PELOS DIREITOS DA POPULAÇÃO T (TRANSSEXUAL, TRAVESTI E TRANSGÊNERO) - Um marco na luta por direitos da população T de Londrina, foi a Lei Nº 8812 de de 13 de junho de 2002, que estabelece penas para os estabelecimentos que discriminarem pessoas devido a sua orientação sexual, no município. Apesar da lei não falar sobre identidade de gênero, ela também atendeu aos direitos das pessoas trans. “Até na década de 90 as travestis precisavam de uma mulher para ir comprar uma calcinha, uma roupa feminina, um acessório, porque quando a gente entrava nas lojas as pessoas nos expulsavam”, conta Mel Campus. Nesse período era importante que as Travestis se arrumassem de forma a passar por mulheres cisgênero, usando do artifício da passabilidade. “A passabilidade era fundamental para a gente andar na rua sem ser apedrejada, poder comprar uma calcinha, poder comprar uma roupa”, explica Campus. Atualmente, a luta pelos direitos das pessoas trans é forte em Londrina. Há uma grande organização de coletivos

*Entre o processo de produção e a publicação desta reportagem Victor Reale destransitou. Ele autorizou a publicação da reportagem, pois esse é um capítulo de sua história.


que realizam ações para melhorias nas condições de vida das pessoas marginalizadas, além da organização manifestações, que buscam melhorias políticas e a visibilidade na mídia, e de ações educacionais. Mel Campus conta que na luta T em Londrina “tudo gira em torno da ElityTrans amiga, todos os coletivos de travestis de londrina, todos os trabalhos, o ambulatório, todos os trabalhos de teatro, as parcerias com o MARL, o abrigo trans que está acontecendo agora em londrina, tudo isso gira com a consultoria da ElityTrans”. AMBULATÓRIO E ABRIGO - Outras duas conquistas da militância T em Londrina são o Ambulatório Trans e o abrigo para travestis. Segundo Vicky Reale, o Ambulatório está atendendo a mais de 100 pessoas trans e é um dos maiores do Paraná. O Ambulatório Trans funciona a pouco mais de 1 ano e é uma iniciativa não governamental, “Quem está mantendo são os próprios profissionais e são todos ativistas de direitos humanos” conta. O Ambulatório atende aos domingos e as consultas podem ser agendadas com Enzo Lopes. A casa/abrigo para travestis é uma conquista ainda mais recente, que partiu do trabalho do assistente social Eliezer, do centro POP, que é uma unidade de proteção social especial e atende pessoas em situação de rua. O encaminhamento de travestis em situação de rua para esse abrigo acontece através do centro POP. Um abrigo específico para travestis foi necessário “porque as travestis não estavam, por exemplo, se dando bem nos abrigos masculinos. Os caras estavam estuprando as travestis, e no abri24 | julho | MEDUSA

go feminino tinha muita mulher que se sentia desconfortável, então elas não se sentiam acolhidas em um abrigo sabe” explica Vicky Reale. O COLETIVO ELITYTRANS - O coletivo ElityTrans foi criado em abril de 2012. Durante seus sete anos de existência, o coletivo, se fortaleceu como movimento social. Ele dialoga com outros movimentos sociais, auxiliando o surgimento de tantos grupos e vertentes na cidade de Londrina. “Essas vertentes foram impulsionadas pela ElityTrans porque o que a gente deseja é protagonismo e cada um que protagonize em seu lugar de fala”, explica Mel Campus. Segundo ela quando existe o discurso, da parte do município, de não saber como realizar políticas públicas que atendam a população T, eles tomam a iniciativa. “Você não quer fazer municipio? A gente faz, mostra para você como é que faz, depois você continua fazendo, ok. Porque muitas vezes a desculpa da negação a gente não pode deixar terminar nisso. Precisamos de tratamento adequado? Não temos profissionais qualificados? A gente arruma, a gente qualifica”, conta Campus. A organização do grupo de homens trans de Londrina também nasceu em contato com o ElityTrans. Mel Campus explica que, embora seja parte do ElityTrans, a demanda de discussões sobre masculinidades não cabia dentro desse coletivo. Assim, quando homens trans de Londrina procuraram o ElityTrans ela explicou que “mulher trans não vão falar de masculinidades, vocês tem que falar de masculinidades, então o elyte trans acolhe, dá o suporte, faz os contatos, as referências, faz a mediação se necessário, mas quem vai falar sobre isso são vocês”.


Alteração do Registro CiviL O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu reconhecer a possibilidade da alteração de nome e gênero, mesmo para pessoas que não fizeram cirurgia de redesignação de sexo e sem ser necessária a autorização judicial prévia. A decisão do STF foi regulamentada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) por meio do provimento n. 73/2018. A alteração é realizada em qualquer cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais (RCPN) através de ofício que deve ser encaminhado para a averbação pela Central de Informações do Registro Civil (CRC). A decisão permite a alteração dos seguintes dados: nome; agnomes indicativos de gênero; gênero nas certidões de nascimento e casamento, no último caso é necessária a autorização do cônjuge. O valor das taxas para o procedimento varia de acordo com cada Tribunal de Justiça. É possível solicitar a isenção das taxas, em caso de impossibilidade de arcar com os valores. Os cartórios não po-

COLETIVO SCARLETT O’HARA - O coletivo Scarlett O’hara ainda está em processo de criação, ele surgiu a partir de uma dissidência da setorial LGBT do PSOL de Londrina. O nome do coletivo é uma homenagem à travesti londrinense Scarlett O’hara “Foi uma militante política muito assídua, artista de rua, candomblecista”, conta Vicky Re-

dem se recusar a realizar o alteração, nem alegar não conhecer a decisão do STF ou o provimento do CNJ. Em caso de recusa, a pessoa deve denunciar o cartório aos órgãos responsáveis: corregedorias dos tribunais de justiça, Conselho Nacional de Justiça e a Defensoria Pública. Para auxiliar no processo, a ANTRA desenvolveu uma cartilha em conjunto com o Instituto Prios de Políticas Públicas e Direitos Humanos. Esse projeto é nomeado “Eu Existo – alteração do registro civil para pessoas trans”. Nesta cartilha estão reunidas as informações básicas para a alteração do registro civil, além de, em anexo, apresentar uma sugestão de modelo para o pedido de gratuidade das taxas pagas ao cartório. A cartilha está disponível no site da ANTRA. O projeto também possui o email euexisto@prios.org. br para esclarecer dúvidas e auxiliar processos de denúncias. (V.V.C.)

ale, parte da organização do coletivo. O foco do coletivo é, em 2020, lançar uma candidatura coletiva para o cargo de vereadora em Londrina. Essa candidatura teria como base uma posição “Anticapitalista, anti-fascista, com a ideia de que o nosso norte é a travesti preta periférica, ela que vai ter o protagonismo de fala dentro do coletivo”, explica Vicky. MEDUSA | julho | 25


Crônica

Crônica de uma morte anunciada BRUNA AKAMATSU A vida irrompe cedo no centro da cidade, prédios abrem as portas, vendedores lançam suas tendas para cima, descarrilhando os ferros em um ruído agudo. Ela é uma das primeiras figuras a se colocar neste cenário, sempre pontual. Segura a vassoura ou mangueira, limpando o chão da galeria. Quando passamos, pouco antes de virar a esquina, ela sempre nos olha e cumprimenta com um sorriso. Lava as escadas batidas com a distração adormecida que as sete horas da manhã provocam. Nessas escadas nunca tropecei, seus degraus são mais largos que os de casa. Mas em casa cheguei a cair todos os dias. Derrubei pratos, rolei por quatro degraus, desci deslizando de costas. O hábito renitente me rendeu até fama dentro da família e acabou se tornando uma piada interna. Semana passada, minha mãe estava prestes a virar a esquina quando a viu. O bom dia habitual foi interrompido pela percepção da carne arrebentada, hematomas roxos despontando sob o uniforme marrom. -O que aconteceu com você? Ela mirou o chão limpo com uma atenção indevida, como se houvesse uma mancha impossível ali. -Eu caí da escada. A resposta caricata parecia piada diante da mentira óbvia. Na semana seguinte, lhe faltava um dente. Faz meses que não caio da escada, mas minha memória reconhece que estas quedas não causam 26 | julho | MEDUSA

isso. Não há medo em mim, como há medo nela. Se me perguntam sobre meus roxos, eu digo olhando nos olhos do outro e rindo, pois não há constrangimento. Não há violência. Escadas não provocam constrangimentos, nem violências. Eu nunca conheci de perto uma mulher que tenha sofrido violência doméstica e falasse abertamente sobre isso. Mas eu nunca conheci uma mulher que não tenha sofrido violência de gênero. Todas passamos por situações de preconceito estrutural, violência verbal, física, algumas de nós por violência sexual. E temo em dizer que se ainda não passaram, um dia passarão se caminharmos assim. Minhas quedas da escada eram cotidianas, mas eram acidentes. A violência contra mulher não. É a repetitiva engrenagem que mói nossos corpos e nos desumaniza, todos os dias. Ela conseguiu sair da situação de violência, hoje mora em outra cidade com seus dois filhos e vive bem, embora esteja se recuperando das consequências de um relacionamento como esse. Eu gostaria de terminar assim, lembrando que lhe foi dado todo amparo. Mas não sei. Minha mãe pondera o que fazer sob a sensação de impotência que a dor silenciosa do outro nos causa. Mesmo a denúncia às vezes é insuficiente. E na hipótese cruel que flutua sobre nós rezo para que esta não seja a crônica de uma morte anunciada.


Local atual: Oberes Belvedere Crédito de fotografia/fonte: The Yorck Project (2002) 10.000 Meisterwerke der Malerei (DVD-ROM), distributed by DIRECTMEDIA Publishing GmbH. ISBN: 3936122202 Domínio Público

Quadro A morte e a moça (Tod und Mädchen) de Egon Schiele

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GRANDE REPORTAGEM

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Uma tatuagem na alma: a exploração sexual infantil em Londrina BRUNA AKAMATSU GIOVANA BORGHESI Foto de abertura: starozitna babika

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esde a época de ouro da cidade, quando as fazendas cafeeiras ainda não haviam sido destruídas pelos ventos frios da geada negra, a vida boêmia dos colonizadores e novos moradores da Pequena Londres era tragada nos grandes bordéis. João Antonio desfere um retrato feroz sobre a cidade em que a famosa Buate Diana fretou um avião exclusivo para trazer vinte prostitutas. Londrina exibia suas novidades. Mulheres que seguiam a última moda em beleza e porte e cujas imagens atraíam os homens mais ricos do estado. O ‘balaio das putas’, como era conhecido, tratava-se de uma prática descrita por alguns jornalistas da época como Marinósio Filho e Edison Maschio. “Homens iam para o aeroporto dar uma olhada no novo lote de São Paulo ou do Rio, e à noite davam lances, como se fosse um leilão de gado, para dormir com uma das prostitutas que desembarcava por aqui”, narra o historiador londrinense Tony Hara. Governadores e outros políticos, cafeicultores, coronéis e grandes fazendeiros, a elite londrinense estava reunida nos grandes bordéis. Mas por trás da glamurosa história que Londrina parece carregar, uma frase específica de João Antonio grita em seu texto “Os anos loucos de Londrina”. “Chacoalharam um pé de prostitutas no Rio de Janeiro e até as que estavam verdes caíram aqui”. Quase 60 anos depois, engana-se quem pensa que uma cidade construída em cima da exploração sexual de mulheres - das mais variadas idades - foi capaz de superá-la.

OPERAÇÃO PUBLICANO: A FERIDA QUE LONDRINA NUNCA FECHOU - Desde outubro de 2010, Susana de Lacerda lida 30 | julho | MEDUSA

com os casos de exploração sexual infantil da Operação Publicano. A promotora da Vara Maria da Penha, que também cuida dos casos de abuso e exploração sexual infantil em Londrina, relembra que apesar do número alto de vítimas - quase 40 - as investigações não parecem ter surtido grande impacto na cidade. “Não sei se as pessoas se incomodam muito. Muitas das uniões e casamentos das figuras públicas envolvidas foram mantidas. Essas pessoas continuam sendo figuras ilibadas. Eu tenho réus que foram condenados por esses processos a 20 anos e até agora não consegui que fossem expedidos mandados de prisão contra eles”, conta. Os primeiros indícios do esquema de exploração sexual apareceram em uma ligação de um dos investigados pela Operação Publicano, a qual apurava desvio de verbas e lavagem de dinheiro na Receita Federal. “Foi percebida uma conversa de um dos envolvidos em que ele negociava um programa com uma adolescente. E é uma regra, quando a gente está acompanhando uma interceptação telefônica, você não vai deixar acontecer um crime”, relata Lacerda. A partir dessa evidência, foi organizada uma operação para identificar envolvidos e vítimas de exploração sexual infantil em Londrina. Em janeiro de 2015, o auditor fiscal Luiz Antônio de Souza foi preso em flagrante com uma adolescente de 15 anos em um motel da cidade. As investigações culminaram na descoberta de quase 40 vítimas de um esquema que ocorria há 12 anos em Londrina. As rodovias, onde está localizada a maioria dos motéis, são as áreas de maior vulnerabilidade para a exploração sexual infantil no Paraná, de acordo com dados da Polícia Rodoviária Federal.


Segundo a promotora de justiça, Susana de Lacerda, foram feitos termos de ajuste com os motéis a partir da Operação Publicano “para a proibição da entrada de adolescentes, o que já era previsto em lei. O relato das meninas era de que entravam e ninguém pedia (documentos).” Dentre os envolvidos no esquema de exploração, estavam ex-vereadores, auditores da receita fiscal, advogados e figuras públicas conhecidas da elite londrinense. Realidade que contrapunha a das vítimas, a maioria meninas de regiões periféricas da cidade. “O perfil era de meninas de famílias desestruturadas ou que ficavam muito tempo não monitoradas, isto é, adolescentes que passam o dia inteiro sozinhas. A realidade de famílias pobres, em que as mães trabalham fora e as crianças não têm uma atividade de contraturno. Dificilmente se pode pagar uma atividade extracurricular e essa adolescente fica ociosa. Uma ia trocando com a outra o telefone dos homens”, conta Lacerda. Além do contato entre as próprias meninas, os homens também tinham acesso às vítimas sondando escolas estaduais e municipais. Segundo Lacerda, algumas delas estavam na mesma faixa etária das filhas dos condenados na operação. Dentre o total de vítimas, Lacerda teve notícia de apenas três que “conseguiram efetivamente sair desse lugar e ter uma vida bacana”, lamenta.

são de escolha não permite que as meninas se reconheçam como vítimas na maioria dos casos de exploração sexual infantil. “Há uma falta de autoestima e um tamanho desvalor pelo corpo. De modo que no momento do programa, enquanto ela é valorizada como uma mulher bonita e ouve um elogio, ela se sente alguém, sem a percepção de que no momento seguinte ela é descartável”, explica Susana de Lacerda, promotora que trabalha há quase uma década com casos de exploração sexual e abuso sexual infantil. A psicóloga Cristina Fukumori reafirma a proposição de Lacerda. Segundo ela, para as vítimas, o fato de ter “consentido” e obter remuneração as retira dessa condição. “Mas consideramos que adolescentes e crianças ainda não têm consentimento válido por conta do desenvolvimento deles, pela imaturidade para fazer esse tipo de escolha”, ressalta Fukumori. Além dessa desconexão, as vítimas também são reprimidas pela própria sociedade. Enquanto o comportamento dos abusadores é no geral socialmente aceito, as vítimas são vistas como culpadas. Segundo Susana, os abusadores se relacionam com meninas de baixa condição socioeconômica e financeira, e que são, muitas vezes, seduzidas por “um mega hair, pelo pagamento de um curso de inglês ou computação, por carinho e até pela possibilidade de acharem que são notadas e queridas”. A relação de desigualdade e violência estrutural também contribui para

“Não sei se as pessoas se incomodam muito.”

CRIANÇAS E ADOLESCENTES NÃO TÊM CONSENTIMENTO VÁLIDO - A ilu-

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Charisse Kenion

que crianças e adolescentes se encontrem em uma situação de exploração sexual. Algumas vezes, o incentivo para praticar atos como esses vem da própria família. “Eu ouvi relatos de vítimas dizendo ‘Pelo menos agora eu estou ganhando’. Isso no sentido de ter sido explorada sexualmente pelo pai durante toda a infância, ter fugido de casa e então pelo menos agora ter uma relação de troca, em que ela recebe algo. É esse tipo de violência que nós vemos. Não dá para simplesmente julgar ‘ela sabe o que ela faz’”, explica a psicóloga. A maioria dos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes ocorre em casa e contra mulheres, segundo dados divulgados pelo Ministério da Saúde em 2018. Com relação às crianças, 74,2% são do sexo feminino. Já nos casos de violência sexual contra adolescentes do sexo feminino, o número cresce para 92,4%. O mesmo levantamento também mostrou que os homens representam 81,6% dos agressores contra crianças e 92,4% contra adolescentes. Para Susana, o alto número de casos de abuso sexual infantil é reflexo de uma realidade desigual entre os gêneros. “Fica evidente que estamos numa sociedade em que ainda não há igualdade entre homens e mulheres”, afirma.

sores e pedagogos.

O PAPEL DAS ESCOLAS NA PROTEÇÃO Crianças muito pequenas não relaDAS VÍTIMAS - Um dos casos de explo- tam prontamente o que está aconteração sexual infantil que mais repercutiu em Londrina, o do ex-assessor da Câmara de Vereadores, Marcos Colli, foi investigado a partir da denúncia de uma das vítimas na escola. Quando algo está errado, crianças e adolescentes demonstram sinais diferentes e que pedem um olhar de cuidado de profes-

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cendo, segundo a psicóloga Cristina Fukumori. “O que podemos apontar como sinal é a mudança súbita de comportamento sem uma justificativa, não houve nada, nenhum contexto. Uma criança que era extremamente alegre, comunicativa, se torna apática, agressiva, retraída. E não há nenhuma ou-


tra justificativa. Essas mudanças de comportamento podem ser um sinal”, explica. A curiosidade extrema no âmbito da sexualidade e a introdução de objetos nas partes íntimas também são outros sinais que devem ser levados em conta. A professora da rede municipal de Londrina Maria*, está sempre atenta a qualquer sinal que indique um possível caso de abuso sexual infantil. “Quando

sei que existe tal possibilidade, mesmo não sendo aluno meu, pego escondidos os dados da ficha e faço denúncia anônima. Sem sequer notificar a direção ou a professora”, conta. Um dos casos de que Maria se recorda envolveu duas irmãs. Uma delas, uma menina de dois anos, chorava muito durante o momento da troca de fralda, fechando as pernas e gritando. A irmã, de cinco anos, era exMEDUSA | julho | 33


Stock Snap

tremamente reservada. Apesar de haver suspeitas na escola, nenhuma medida era tomada, segundo Maria. “Eu entrei escondida na sala da diretora, tirei foto da ficha da menina e liguei no disque denúncia. Eles fizeram a visita, as avaliações e foi constatado que o próprio pai, usuário de droga, abusava da menina e que ele já havia abusado da outra de cinco anos. Daí o juiz ordenou que esse pai fosse tirado de dentro da casa e não tivesse mais contato com essas crianças”, recorda. Quando criança, Maria sofreu violência sexual. Hoje, reconhece em muitas crianças comportamentos que ela mesma desenvolveu em consequência do abuso. “As vítimas apresentam baixo rendimento, dificuldade de aprendizagem, baixa autoestima, o que as leva a fazer bullying com os demais, à agressividade. Eu apresentei a agressividade. Mas como na época meus pais estavam morando em casas separadas, minha mãe pensou que isso fosse o motivo”, explica. O artigo 70 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelece que “É dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação de direitos da criança e do adolescente”. Ainda, o artigo 245 individualiza “o médico, o professor e o responsável por estabelecimento de atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche como responsáveis pela denúncia”. Das quatro professoras entrevistadas pela reportagem, metade relatou dificuldades em denunciar por conta da resistência da própria escola. Todas as entrevistadas declararam ter tido contato com casos de abuso sexual, dois deles denunciados pela própria crian34 | julho | MEDUSA


ça e outros dois observados por meio de atividades realizadas no dia-a-dia. A promotora Susana de Lacerda destaca que a denúncia desses casos não acontece, em sua maioria, nas escolas privadas. “Percebe-se muita omissão porque a escola não quer perder o aluno. A maioria dos abusos são intrafamiliares, então você vai perder o aluno porque está denunciando o pagador da mensalidade, por via de regra”, salienta. Segundo a psicóloga Cristina Fukumori, cada criança reage de uma maneira ao abuso e dependendo da idade aparecerão consequências a curto, médio e longo prazo. Em crianças muito pequenas, o resultado é um comportamento sexual atípico ao seu desenvolvimento. A vergonha ou receio do abusador ou figuras que assemelham a ele são sintomas que aparecem em crianças um pouco mais velhas, que já tem compreensão das partes privadas do corpo e noções de moralidade. Já crianças no início da adolescência, podem apresentar “de comportamentos de automutilação até transtornos de depressão, estresse pós-traumático”, afirma Fukumori. Susana de Lacerda relembra que mesmo após a recuperação, as marcas do abuso sexual permanecem nas vítimas. “Uma psicóloga disse em um livro que ‘Abuso sexual é uma tatuagem na alma de meninos e meninas’. É uma expressão perfeita. Uma tatuagem se você não quiser mais você pode passar laser, mas algum registro dela ainda estará lá”, ressalta ela.

O ENFRENTAMENTO DAS DIFICULDADES ESTRUTURAIS - O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) determina a função de cada órgão no combate e prevenMEDUSA | julho | 35


ção ao abuso e exploração sexual infantil. O Núcleo de Proteção à Criança e ao Adolescente Vítimas de Crimes (Nucria) tem como função primordial investigar crimes de maior gravidade praticados contra crianças ou adolescentes e preparar elementos para que o Ministério Público possa interpor a ação e aplicar medidas de proteção previstas no. As situações de risco são analisadas pelo Juíz da Infância e da Juventude, também responsável por aplicar as medidas protetivas, que por sua vez são realizadas pelo Conselho Tutelar, como por exemplo, afastar a criança do abusador. O Nucria de Londrina possui mais de mil procedimentos investigativos em curso, mas opera com somente uma equipe. A delegada Lívia Pini é a responsável por coordenar o órgão na cidade, ela conta sobre as dificuldades estruturais enfrentadas. “O número insuficiente de servidores faz com que seja necessária a aplicação de critérios para escolha de quais investigações deverão receber tramitação preferencial. Os principais critérios adotados são: a gravidade do crime, o risco atual à vítima e a multiplicidade de vítimas de um mesmo autor”, afirma. Entretanto, ela relembra que esse não é o cenário ideal de atuação, pois toda violência por menor que seja deve ser combatida de modo eficiente. “Por essa razão, temos sistematicamente tentado sensibilizar a população e os poderes constituídos na necessidade de maiores investimentos em recursos humanos e tecnologia para otimização da atividade investigativa”, conta Pini. Apesar dos incentivos à notificação dos casos de abuso e exploração sexual infantil, a falta de estrutura dos órgãos competentes prejudica a apuração dos casos. “Falta estrutura de perícia, tanto de Instituto Médico Legal, quanto técnica. Também falta 36 | julho | MEDUSA

estrutura humana: investigador, escrivão, etc. Hoje se uma criança é estuprada à noite, por exemplo, não tem plantão”, lamenta a promotora Susana de Lacerda O cenário é confirmado pela psicóloga Cristina Fukumori, responsável por realizar a escuta especializada que colhe os depoimentos das vítimas no Núcleo de Proteção à Criança e ao Adolescente Vítimas de Crimes (Nucria). Segundo ela, a falta de profissionais e estrutura atrasa o atendimento das vítimas. Além disso, Fukumori ressalta a ausência de mais políticas de acompanhamento psicológico das vítimas. “Temos uma dificuldade de encaminhamento das vítimas para psicoterapia. Muitas delas possuem consequências gravíssimas em relação à violência e precisam de forma sistemática, até semanal, de tratamento”. Em 2017, foi realizada uma audiência pública na Câmara dos Vereadores de Londrina, para debater abuso e exploração sexual infantil e as propostas de enfrentamento do tema. Para Susana de Lacerda, a discussão resultou em poucos resultados. “Estamos no mesmo patamar, não saímos do lugar. Precisamos de estrutura. Segurança pública custa dinheiro. Não se faz segurança pública sem investimento. Não tem mágica”, ressalta Susana. Em 2018, foi realizado um pedido de ampliação do espaço físico do Nucria, cujo objetivo era “firmar convênios com outros serviços da rede para atuação centralizada, em um mesmo lugar. Essa sistemática otimiza os recursos humanos e, principalmente, garante um atendimento mais rápido e eficiente para as vítimas e familiares”, relembra a delegada Lívia Pini. Até o momento de finalização da reportagem, o pedido ainda estava em tramitação. Por mês, o Nucria


A PORNOGRAFIA INFANTIL

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m 2013, o ex-assessor da Câmara dos Vereadores e ex-presidente do Partido Verde, Marcos Colli, foi preso em Londrina por estupro de vulnerável e armazenamento de pornografia infantil. Colli percorria regiões pobres de Londrina em época de campanha na busca de famílias que precisassem de trabalho e lhes oferecia o serviço de braço eleitoral. Ele era conhecido nos bairros periféricos por sua ligação com meninas menores de 15 anos. Após conquistar a confiança das famílias, ele aliciava crianças para programas em troca de presentes, muitas vezes sem o conhecimento dos pais. O esquema descoberto chocou pelo próprio material que Colli detinha. “A questão das imagens e da idade das crianças, com crianças de 5 anos, é muito chocante. Me deu a absoluta certeza de que as crianças não narram nem 1/10 daquilo que acontece com elas numa situação de abuso. Porque elas não tem nem compreensão de que tudo que está acontecendo com elas é abuso. Elas encaram parte do abuso como brincadeira, é muito pesado”, relembra a promotora Susana de Lacerda, que conduziu as investigações contra o ex-assessor. A psicóloga Cristina Fukumori aponta essa como uma das principais dificuldades da escuta especializada de crianças vítimas de

violações sexuais. “Quanto menor a criança, é mais difícil acessar a memória dela sem uma indutiva, ou seja, sem sugestionar a criança. Porque às vezes a criança pequena não entendeu aquele ato como abusivo. Como eu vou conseguir perguntar sobre o que aconteceu sem induzi-la? Quanto menor a criança, menor a possibilidade de realizar uma narrativa com maiores detalhes”, ela relata. Vale lembrar que os depoimentos das vítimas são tidos como essenciais no julgamento de casos de abuso sexual e a coleta dos depoimentos segue protocolos específicos que buscam não sugestionar a criança e sempre protegê-la.

LONDRINA E A PORNOGRAFIA INFANTIL - Levantamentos na área da pornografica cibernética apontam Londrina como um dos principais locais do Paraná na pornografia infantil. Em março deste ano, foram expedidos dois mandados de busca na cidade por armazenamento de pornografia infantil pela Operação Luz na Infância. Entretanto, a operação era a nível federal. Mesmo diante do conhecimento do mapeamento de Londrina como um foco da pornografia infantil, não é possível realizar uma investigação local por falta de estrutura pública. “Isso é apavorante. Temos uma alta quantidade de pornografia cibernética em Londrina sem investigação”, alerta Lacerda. (B.A) MEDUSA | julho | 37


Esteban Lopez

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“Estamos no mesmo patamar, não saímos do lugar”

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A EXPLORAÇÃO E O ABUSO SEXUAL INFANTIL NO BRASIL

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psicóloga Cristina Fukumori, especialista em violência doméstica contra crianças e adolescentes, explica a diferença entre exploração e abuso sexual infantil. “A exploração sexual está remetendo à questão financeira. O abuso sexual ocorre com qualquer pessoa intra ou extrafamiliar e não há uma troca ou remuneração”, explica ela. No início de 2019, foi divulgado o estudo Out of the Shadows pela revista britânica The Economist. O estudo trata de quatro segmentos: ambiente, panorama legal, comprometimento e capacidade do governo e engajamento da indústria, sociedade civil e mídia. Dentre os 40 países analisados, o Brasil é o décimo primeiro no ranking de combate a abuso e exploração sexual infantil. Ainda há avanços imprescindíveis para o combate e a prevenção dos casos de exploração e abuso sexual infantil no país. O estudo da The Economist apontou que as principais falhas no Brasil se encontravam na coleta de dados sobre a prevalência de violência sexual contra crianças. A ausência de dados precisos impossibilita traçar um panorama nacional. A outra área de fragilidade do 40 | julho | MEDUSA

Brasil é a ausência de um programa de prevenção a agressões sexuais, sejam elas abusos ou explorações. A questão é preocupante ao se considerar a dificuldade de reversão das consequências da agressão sexual nas vítimas. A promotora de justiça da Vara Maria da Penha de Londrina, Susana de Lacerda, reforça a necessidade de prevenção. “Eu acho que as pessoas têm condições de retomar a vida (depois de sofrerem abuso), mas com muito acompanhamento e tratamento. Eu acredito que o trabalho que a gente tem que fazer é para não acontecer, depois que acontece é muito árduo”, relata ela. Embora a pesquisa Out of the Shadows exalte a existência de leis específicas no Brasil que promovem proteção para ambos os gêneros contra abuso e exploração sexual infantil, incluindo agressões sexuais, estupro e casos de pornografia, ainda é possível discutir a eficiência dessas leis em certos casos, como é o caso da pornografia infantil. “Eu já recebi denúncias de pessoas que tem mais de 1000 imagens armazenadas de pornografia infantil. Nesse caso, o Brasil é muito benevolente. Nos EUA, você tem um acréscimo de pena para cada imagem. O Brasil você tem um pequeno acréscimo de pena em razão do número de fotos. Armazenar imagens é reclusão de 1 a 4 anos”, relembra Lacerda. (B.A)


"Eu jĂĄ recebi denĂşncias de pessoas que tem mais de 1000 imagens armazenadas de pornografia infantil"

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resenha Divulgação HBO

Pequenas grandes mentiras sobre as mulheres Série da HBO retrata a importância da união feminina na luta pelo fim das injustiças e violências contra a mulher DÉBORA MANTOVANI 42 | julho | MEDUSA


As ondas rebentam na praia com toda a força da maré noturna. Não muito longe, uma morte misteriosa interrompe a festa na qual se encontravam as principais personalidades da pequena cidade de Monterey, na Califórnia. Acidente ou assassinato? A investigação tem início. A polícia interroga a todos que estavam presentes no evento. Dos depoimentos, entretanto, começa a se descortinar uma trama que vai muito além da investigação do estranho acontecimento. As explicações serão encontradas somente por quem conseguir enxergar entre as ondas dos depoimentos de cinco mulheres. Assim tem início a série televisiva Big Little Lies, estreada no canal HBO em 2017. Abordando temas como relacionamento abusivo, maternidade e, principalmente, sororidade, Big Little Lies, que significa “pequenas grandes mentiras”, conta a história de cinco mães, interpretadas pelas atrizes Shailene Woodley, Nicole Kidman, Reese Whiterspoon, Zoe Kravitz e Laura Dern. Tendo como cenário a baía de Monterey, o oceano também se torna personagem da série. Também as ondas parecem indignar-se com as injustiças sofridas pelas mulheres da cidade, que ao levarem vidas aparentemente comuns, vivem sob o medo causado por segredos que as ameaçam. As cenas nas quais os conflitos das personagens se desenrolam são entremeadas por cenas da rebentação,

cujas camadas sobrepostas de água lembram as profundezas nas quais se ocultam os segredos. Com um final surpreendente, as pequenas mentiras revelam-se enormes, culminando num tsunami simbólico que trará, por fim, a justiça para os abusos sofridos pelas mulheres de Monterey. A principal importância de abordar essas histórias em séries televisivas é mostrar o poder da sororidade, a união entre as mulheres no combate às desigualdades. Big Little Lies ganhou quatro troféus no Globo de Ouro de 2018 e a premiação Emmy de melhor atriz para Nicole Kidman e de melhor ator para Alexander Skarsgård. O par interpreta o casal Celeste e Perry Wright, que, na série, vivem um relacionamento abusivo que trará imensas repercussões para a trama. A principal esperança para a personagem de Nicole Kidman, bem como para as outras personagens femininas, será encontrada na amizade entre elas. Diferentemente das muitas produções cinematográficas que exploram a competição feminina e colocam as mulheres umas contra as outras, a série mostra que é na união e apoio mútuo, que as mulheres conseguem mais poder para combater as injustiças. As pequenas grandes mentiras que criaram, na sociedade, dentre elas a própria competição feminina, são quebradas, na série, pela sororidade, como as ondas que ao quebrarem-se na rebentação passam a mover-se juntas.

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A ditadura que Elza viveu na carne Militante e filha de comunistas, Elza Correia conta sobre sua vida durante a ditadura militar BRUNA AKAMATSU Fotos: arquivo pessoal

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e por um lado o apartamento na região central permite à Elza Correia vislumbrar a beleza verde das árvores do bosque de Londrina, por outro brotam desgostos da localização próxima ao lar dos pombos da cidade. Ainda que os dias de chuva espalhem o odor desagradável das fezes das aves, o que mais incomoda Elza no momento são as comemorações da ditadura militar. Sentada em uma cadeira alva perto da janela, ela relembra os carros de som que passaram por ali no dia primeiro de março, talvez seja preciso ressaltar, de 2019. Embora discorde em absoluto das manifestações, ela desabafa “Faz parte da democracia e foi por ela que lutamos”. Isso não retira, entretanto, o impacto que o cenário atual tem sobre Elza. “Isso tudo mexe muito comigo”, ela confessa olhando para a porta da sala onde borboletas coloridas repousam em longas linhas de miçanga. Ela conta de forma firme sobre o que viveu na luta contra a ditadura e as experiências anteriores que a moldaram como militante, mas seu ânimo se inflama diante do pronome “nós”. NÓS NÃO DESISTÍAMOS - Sentada na cadeira ao lado de uma mesa repleta de livros, ela conta sem sobressaltos sobre o golpe militar de 1964. Elza não recorda o que fazia no dia, mas relembra que o golpe não foi uma surpresa. “Os sinais já estavam todos colocados”, afirma. Na época, ela era militante clandestina do Partido

Comunista Brasileiro (PCB), do movimento estudantil e do movimento cultural, além de filha de comunistas. A oposição ao regime militar colocava Elza em uma situação de constante medo. “A gente acordava e ia dormir com medo, eu achava que todo mundo me espionava”, conta ela. Quando foram tornadas públicas as fichas do Dops (Departamento de Ordem Política e Social) do Paraná em 2013, ela descobriu que de fato era espionada. Nas fichas, havia informações sobre com quem ela falava e o que ela dizia. “É chocante, sabiam todos os meus posicionamentos e pronunciamentos...”, ela diz olhando para o teto como se fisgasse referências da época. Na ficha não constava o nome das pessoas que a haviam delatado, mas sim “Fundação Estadual de Londrina”, atual Universidade Estadual de Londrina. O cenário era de tensão era constante. Os estudantes tinham conhecimento de professores e alunos que militavam na Tradição, Família e Propriedade, organização de direita que apoiou o golpe militar. Além disso, policiais disfarçados assistiam às aulas ou até mesmo fingiam ser professores. O faro treinado pelo teatro fazia com que Elza reconhecesse, muitas vezes, quem eram essas pessoas infiltradas devido a gestos ou comportamentos estranhos. Mas muitos militantes sequer desconfiavam. Folheando o livro “Memória e recordação” de sua amiga Nitis Jacon, Elza suspira “O tea-

A gente acordava e ia dormir com medo, eu achava que todo mundo me espionava

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Elza Correia em uma campanha de conscientização sobre a violência contra a mulher

tro salvou minha vida”. Para ela, sua principal militância foi no movimento cultural. Recorda com carinho dos festivais de música e de teatro. “Em Londrina o movimento cultural sempre foi muito sensível, sempre houve uma juventude muito aguerrida e ligada à resistência na cidade”, conta. Para driblar a censura, eram feitos dois ensaios: um para o censor e outro real. Havia um cuidado intenso com o texto para passar a mensagem que pretendiam. As peças eram apresentadas no teatro Filadélfia e no Ouro Verde, quando lhes era permitido. Mas Elza admite com um sorriso que eles sempre davam um jeito. “A gente driblava os censores direitinho”. Mesmo quando os espetáculos eram proibidos, ela e os companheiros persistiam. “Isso deixava eles loucos”, ri.

DERRUBAMOS A DITADURA E ISSO NÃO É POUCO - A fala sempre rítmica e com 46 | julho | MEDUSA

palavras precisas, falha ao buscar um adjetivo. “Eu não sei como adjetivar isso... Muitas pessoas, até jovens, têm dito que não houve ditadura militar no país”, ela pondera com os olhos estáticos. Confessa que não dormiu bem na noite passada e até hoje tem pesadelos sobre a época. Para ela, não se trata de precisar quanto tempo permaneceu na prisão. “É uma prisão perpétua”, afirma gesticulando com as mãos dobradas, um gesto que lhe aparece nos momentos de maior indignação. “Eu não estou contando algo que alguém me disse, eu vivi isso na carne”, assegura. E não há dúvidas. Elza Correia foi presa em Londrina e levada para o Dops de Apucarana, pois não havia Polícia Militar na cidade. Ela se recorda de ficar em uma cela repleta de mulheres desconhecidas. Até hoje Elza tem dificuldade em re-


MULHERES CONTRA A DITADURA (E O MACHISMO)

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a resistência contra a ditadura militar, as mulheres eram presença forte no movimento estudantil, em partidos políticos, sindicatos, associações de mães e de bairros, na luta pela anistia e em organizações de luta armada. Segundo a Comissão Nacional da Verdade (CNV), no mínimo, uma centena de mulheres participaram de forma direta da luta armada. Muitas foram vítimas da repressão. A CNV publicou em 2010 o livro Luta, substantivo feminino, que retrata a história de 45 mulheres assassinadas pela ditadura militar e de 27 sobreviventes. O livro é um retrato da brutal violência de gênero que o regime incitava. Além das constantes agressões morais e físicas, havia também um recorte específico da tortura contra as mulheres: as agressões sexuais. Outro fator presente nas prisões era o uso da maternidade como fator de ameaça. Há extensivos relatos de filhos obrigados a presenciar violações contra a própria mãe. Também muitas grávidas sofreram abortos em sessões de tortura. Mas mesmo diante do risco e da violência, as mulheres lutaram contra a ditadura. Entretanto, tinham também de enfrentar preconceitos nas atividades cotidianas e de mi-

litância. A atuação das mulheres nas guerrilhas e nos partidos era diferente da dos homens, sendo elas muitas vezes impedidas de ocupar posições de liderança. Em certos casos, as mulheres eram “tarefeiras’’, realizando pequenos serviços para os homens do partido ou desempenhando um papel de ligação com as populações periféricas, por meio de funções como professora e enfermeira - como ocorreu na Guerrilha do Araguaia. Eram elas, muitas vezes, as responsáveis pela discussão das questões da realidade imediata com as populações oprimidas, colocando em foco problemas relativos à qualidade de vida e a exploração da classe trabalhadora. Mesmo diante dos riscos que corriam e da coragem que demonstravam, as mulheres encontravam dificuldades de ocupar cargos altos dentro dos partidos e organizações. Muitas lideranças femininas se formaram, mas a custo de várias lutas. A própria história de resistência das mulheres na ditadura foi ofuscada. Os relatos a respeito da atuação das mulheres contra o regime militar aumentaram a partir da criação da Comissão Nacional da Verdade em 2009. Mas infezlimente ainda há muitas lacunas na história das mulheres que lutaram contra a ditadura no Brasil. (B.a)

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conhecer o que passou como tortura. “O absurdo é tamanho que fica difícil comparar a violência que sofri com a de amigos e amigas meus. Eu tive amigas que tiveram as unhas arrancadas, sofreram choques elétricos... Eu não passei por esse tipo de violência”, ela conta. Mas a violência física era constante, assim como a moral. “O propósito deles era te liquidar. Eles queriam te desumanizar”. Elza recorda que nenhuma vez foi chamada pelo nome. Um dos adjetivos que utilizavam para se referir a ela era terrorista, embora jamais tenha pegado em armas. “Minha atuação não era essa, embora eu entendesse as pessoas que tinham essa posição. Em Londrina mesmo, a atuação maior sempre foi no movimento estudantil e cultural. Nós usávamos o teatro como forma de reflexão, queríamos formar cidadãos críticos que buscassem seus direitos e o regime tinha medo disso”, relembra. “Veja, eles tinham medo de nós. Tinham medo que derrubássemos a ditadura. Eles queriam nos matar antes que conseguíssemos isso. Mas nós conseguimos, nós derrubamos a ditadura e isso não é pouco”, ela afirma orgulhosa. Mas sua voz repassa com seriedade a memória dos companheiros e companheiras de luta que foram mortos. “Eles se abrigavam na minha casa e de repente não apareciam mais. Nunca mais”, afirma com pesar. Não há em Elza a frieza que encara as perdas que a ditadura causou como necessárias, mas sim a humanidade em reconhecê-las irreparáveis. SOBREVIVEMOS À DITADURA - Elza sobreviveu à prisão, mas não sem sequelas. Ela confessa com uma sensação de impotência que seguiu sua 48 | julho | MEDUSA

vida, mas as marcas permaneceram. Olhando para a mesa de centro, ela relembra que saía para trabalhar, mas tinha momentos de esquecimento. “Eu não sabia para onde estava indo, dirigia quilômetros perdida”. Para ela, o cárcere é um grande abismo em sua história, muitas lacunas se abriram em sua memória pelo trauma. Após sair da prisão começaram os pesadelos. Muitos eram relativos à infância, quando os policiais invadiam sua casa e humilhavam sua família por serem comunistas. A infância de Elza permaneceu também como uma marca da violência. Além dos policiais que invadiam e queimavam os livros e avançavam contra ela e os dez irmãos, ela enfrentava a discriminação na escola. “Éramos punidos sem ter feito nada. Alguns professores não permitiam que a gente fizesse as provas, era uma forma de nos deixar com zero”. Elza começou a trabalhar aos catorze anos e tão logo seu pai era preso – Manoel Jacinto Correia era uma liderança do PCB no Paraná e foi preso dezessete vezes antes do golpe militar - ela era demitida ou impedida de trabalhar com registro. “Uma vez fui comprar comida fiado para minha família e o vendedor me disse ‘Se seu pai fosse assassino, eu venderia para você. Mas ele é comunista e para mim, isso é ainda pior’”. Ela recorda que após a prisão na ditadura militar, ela também desenvolveu um medo de espaços pequenos. “Não chegava a ser uma claustrofobia, mas era um medo muito grande, bastava eu entrar em um elevador e já sentia um mal estar”, relembra. Por bastante tempo, Elza também dormia com um quebra-luz, pois não suportava ficar no escuro. Outra sequela foi não ser capaz de


Elza Correia discursando em uma mesa redonda sobre assédio

ouvir o barulho de sirenes sem se assustar. “Eu chegava a me urinar’’, ela conta com firmeza. A visão de pessoas fardadas também lhe causava uma aversão instantânea. O medo constante e internalizado a impediu de procurar terapia, ela não era capaz de falar sobre sua experiência traumática, pois tinha medo de ser perseguida. A recuperação de Elza se deu entre amigos e a família, embora muitos amigos que tenham passado por situações semelhantes não sejam capazes de falar sobre a ditadura até hoje. “Como a ditadura não aconteceu?”, indaga a mulher que sentiu a violência do regime na carne. Embora tenha se recuperado da maioria das sequelas, ainda prevale-

ce uma aversão à violência em Elza. Ela não é capaz de ver cenas de brigas, lutas ou tortura em filmes. “Perdi a conta de quantas vezes saí de salas do cinema ou tampei os olhos quando via filmes em casa”.

UM DIA O PAÍS SERÁ MELHOR E EU ESTAREI LÁ - Ela se define como uma

eterna militante, repleta de energia. Mas o cenário atual ainda lhe causa muita dor. “Eu vejo a democracia doente, deitada em uma maca. E os enfermeiros que cuidam dela hoje são os ditadores de ontem. O que estamos aplicando para fazê-la melhorar é veneno e tem pingado devagar, mas tem pingado e nós estamos assistindo. Já arde nas nossas veias, mas não fazemos nada”, ela lamentou. MEDUSA | julho | 49


Elza Correia foi vereadora de Londrina e deputada estadual

Elza foi vereadora de Londrina por três mandatos e deputada estadual por um. Ela define que essa é a atuação que lhe permite contribuir melhor para o país nesse momento. A catedral de Londrina bate seus sinos a poucos metros da janela e o domingo segue seu ritmo lento. Ela me pergunta sobre o que penso do cenário atual e escuta com atenção. Depois me conta sobre a alavanca que lhe provoca esperança para suportar os desafios diários. “Eu penso assim, um dia lá na frente, alguém vai ver um país melhor. Um país com justiça e igualdade de direitos e oportunidades. Pode ser que sejam meus filhos, minha neta, minha bisneta... Mas algum dia alguém vai ver. E quando isso acontecer, eu estarei lá, eu serei esse alguém. Eu ajudei a plantar a semente dessa sociedade mais igualitária, então por que não posso pensar que também estarei lá quando ela for construída? Essa é minha forma de sobreviver, de ter esperança”, desabafa Elza.

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Maioria minoritária As dificuldades de olhar para os direitos das mulheres quando há apenas uma vereadora na Câmara Municipal de Londrina DÉBORA MANTOVANI “O maior desafio é quando você tem que brigar sozinha, né?”. A fala é da vereadora Daniele Ziober, a única mulher que atualmente ocupa uma cadeira na Câmara Municipal de Londrina. Ela sintetiza uma realidade não somente londrinense, mas de todo o país. De acordo com dados publicados no endereço online do Tribunal Superior Eleitoral a média do Brasil é de menos de 15% de mulheres nas Câmaras Municipais. Com relação a mulheres parlamentares, então, o Brasil aparece em último lugar num ranking em relação a todos os outros países da América do Sul em pesquisa divulgada em 2018 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), somente 10,5% de mulheres na Câmara dos Deputados. OS “30% - Desde 1997 existe uma lei eleitoral que determina que 30% das vagas para candidatos dos partidos sejam de mulheres. Daniele Ziober aponta, porém, que partidos têm a cota no limite mínimo, “só para cumprir a meta. Eles ficam desesperados atrás de mulher. Eles não incentivam, não”. Em 2016 o Ministério Público Eleitoral apurou mais de 14 mil casos de “candidatas laranja”, candidaturas de mulheres que haviam sido forjadas somente para cumprir a cota de 30%. Foi descoberto que muitas mulheres sequer sabiam que eram candidatas. 52 | julho | MEDUSA

Daniele diz, porém, que se não existisse essa lei os partidos teriam muito menos mulheres. “Eles nem colocariam”, afirma. Ela defende que sejam criadas leis para que uma porcentagem mínima de cadeiras seja realmente das mulheres nos cargos públicos. “A quantidade de cadeira de mulher, eu acho que tinha que ser igual, eu acho que tinha que ser 50/50”, sustenta.

“TÁ NA MÃO DO HOMEM E ELE DISTRIBUI CONFORME ELE QUER” - A vereadora

lembra que os recursos partidários para as campanhas não são distribuídos de maneira igualitária. “Existe o fundo, só que existe também pra quem vai, né. Então, isso também não é distribuído igualmente. Tá na mão do homem e ele distribui conforme ele quer.”. Isso demonstra que a mera presença de um número extremamente minoritário de mulheres na política não garante a igualdade. “MAS E TUA FAMÍLIA?” - Apesar de mais da metade da população brasileira ser composta por mulheres (52% segundo o IBGE), os cargos políticos fazem parte das inúmeras áreas e profissões que historicamente foram monopólio masculino. Em toda a história de Londrina, apenas onze dos 148 vereadores que já foram eleitos eram mulheres. Daniele lembra que já foi alvo do julgamento patriarcal que dita que a política não é


Débora Mantovani

um espaço adequado para mulheres. “As pessoas te desestimulam. ‘Ah, porque você não vai dar conta, porque você é mãe, você tem seus filhos, você vai abandonar seus filhos’, tem muito disso, ‘ah, mas e tua família?’.”, relembra. Além de haver pouco incentivo por parte da sociedade, Daniele afirma já ter sido alvo de deboches, tanto por ser mulher quanto por defender a causa animal. Uma das maiores conquistas será a criação da Casa da Mulher Brasileira, que de acordo com a vereadora já está no processo de ser fundada em Londrina. A casa será um abrigo para mulheres em busca de proteção contra a violência doméstica. Ao conhecer a Casa que já existe em Curitiba, Daniele identificou que as principais queixas das mulheres eram com relação à falta de uma unidade do Instituto Médico Legal dentro do complexo, para facilitar as denúncias, e de um “espaço pet”. “As mulheres que saem de casa correndo para se salvar da violência doméstica saem com calopsitas debaixo do braço, elas saem com

uma mão no filho outra mão no cachorro, porque elas que cuidam de tudo isso, e se deixar para trás eles vão sofrer agressão como ela sofria”, aponta. Ela informa que esses espaços farão parte da versão da Casa da Mulher que está para ser construída em Londrina. Daniele afirma também que outra vitória foi ela ter estabelecido “um bom relacionamento com as mulheres do executivo, eu acho que isso é muito importante, porque nenhuma luta se concretiza se a gente não tiver união”. A vereadora conta um dos momentos mais marcantes em que participou da luta pelos direitos femininos e reitera a importância da união entre as mulheres. “Foi muito bonito ver nós todos lá conversando com o desembargador para tentar conseguir a segunda vara Maria da Penha aqui, nós todas fomos lá pedir, essa união foi fenomenal, foi muito bacana, a delegacia da mulher, a extensão da delegacia da mulher, acho que foram duas vitórias assim que eu fico muito, muito, muito feliz”. MEDUSA | julho | 53


Entrada sem credenciais

Histórias de três atletas de alto rendimento em modalidades diferentes sintetizam a realidade da mulher brasileira no esporte CRISTYE VILAS BOAS

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prática de exercícios físicos por mulheres no país é 40% inferior aos homens, segundo o relatório “Movimento é Vida” do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Quando se analisa casos isolados, como as Olímpiadas de 2016, em que 45% dos atletas eram mulheres, pensa-se estar alcançando equidade no esporte. A realidade, contudo, ainda é de significativa disparidade. No final do ano passado, o país recuou para a posição 95º no relatório sobre disparidade de gênero elaborado pelo Fórum Econômico Mundial. E pouco é falado a respeito, mas no período da ditadura militar, esportes como o jiu-jitsu eram proibidos para mulheres: “Art. 54. Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país” (DECRETO-LEI Nº 3.199, DE 14 DE ABRIL DE 1941) 54 | julho | MEDUSA

Já em 1965, o Conselho Nacional de Desportos deliberou: 2. Não é permitida a prática de lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salão, futebol de praia, polo-aquático, pólo, rugby, hanterofilismo e baseball. Mas a história da legislação brasileira é só um dos fatores que contribuem para a diferença no número de atletas mulheres e homens. Vários recortes foram feitos nas pesquisas da Organização das Nações Unidas (ONU) para mapear a prática esportiva no país. Entre eles a renda - quanto menor o recurso financeiro, maior a diferença de participação esportiva por gênero; a cultura de não incentivar as mulheres aos esportes por conta de seu pouco acesso ao lazer devido às tarefas domésticas; a falta de segurança, o preconceito e falta de incentivo e apoio nas escolas, que acabam não oferecendo o mesmo acesso para meninos e meninas. FLORESCER NO ESPORTE - Crescer, em essência do ato, já é complicado. Fazer isso no meio esportivo, então, tem um peso extra. Principalmente se você for mulher. Desde criança, os


Camila Nobre

Mayara Custódio sagra-se campeã brasileira pela terceira vez, em competição em São Paulo, no começo de maio desse ano e comemora junto de sua torcida

meninos são mais incentivados a perseguir os esportes do que as meninas. Ainda assim, existem aquelas que superam essa “seleção natural” e começam na área desde pequenas. “Sempre fui uma criança muito ativa. Para mim praticar esportes era diversão, era brincar”, conta Anna Gois, ex-integrante da seleção brasileira de base de basquete. “Aos nove anos, comecei a praticar o basquete. A minha vontade inicial foi por causa do meu irmão que já treinava. Depois, foi ficando mais sério.” Anna diz que começou na Associação Recreativa Esportiva Londrinense (AREL) pelo lazer. Passou a treinar mais seriamente e competir e por fim acabou se destacando. Foi nos Jogos Escolares da Juventude, competição

organizada pelo Comitê Olímpico Brasileiro em que equipes de colégios de todo o Brasil participam, que Anna foi notada por um clube grande e convidada a treinar em São Paulo. “Na época, eu tinha 14 anos. Decidi me mudar para São Paulo e a partir daí minha vida se tornou apenas o esporte. Quando você se torna um atleta de rendimento, ainda que seja de base (as seleções iniciais), você abre mão de muita coisa. Só de ir para lá, já abri mão da minha família, dos meus amigos, da cidade em que morava. E, uma vez estabelecida, era basquete 24 horas por dia. Abdiquei de toda a minha adolescência pelo esporte.” Depois disso, Anna passou a integrar por vezes a seleção paranaense, vezes MEDUSA | julho | 55


a paulista, até que foi convocada para a seleção brasileira de base – sub14. Mas mesmo em um clube grande, com perspectivas que pareciam muito promissoras, Anna ainda era desestimulada por muitos dos que estavam ao seu redor. “No meio esportivo, só por ser mulher, você já é desvalorizada. E no Brasil mais ainda – pelo menos, foi o que vi no basquete”, ela diz. “Pegando a média salarial, por exemplo, já vi homens que em seu auge recebiam quase 100 mil reais por mês. Enquanto o máximo que vi uma jogadora no topo receber foi dez, treze mil reais. Sem contar que as oportunidades são muito mais limitadas para meninas. A Liga feminina de basquete no Brasil é o máximo a que se pode chegar aqui e não há um retorno, nem estruturas tão grandes. As melhores jogadoras acabam indo para fora do país.” Em levantamento feito pelo Correio, pouco antes das Olimpíadas de 2016, que compara os salários mais altos de cinco esportes, o atleta mais bem pago chega a receber até 234 vezes mais que uma competidora na mesma posição. E o problema acontece no mundo todo, não só no Brasil. Um exemplo de perto, contudo, é a da nossa seleção de vôlei. Na Liga Mundial de Vôlei, também de 2016, a Seleção Masculina do Brasil perdeu para a Seleção da Sérvia e ficou em segundo lugar na categoria. A medalha de Prata rendeu à equipe um prêmio de US$ 500 mil. Já a Seleção Feminina de Vôlei do Brasil, depois de ter derrotado os Es-

tados Unidos na final do Gran Prix, recebeu um prêmio de apenas US$ 200 mil, 60% a menos do que os homens. Além disso, em comparação à premiação do primeiro lugar da categoria masculina da competição, o valor é cinco vezes menor. Ainda, segundo o livro Fábrica de Desilusões, da jornalista Camila Nichetti, os salários pagos às 100 jogadoras que compõem os elencos dos quatro principais times do Campeonato Brasileiro de futebol feminino, custam (somados todos os salários) 188 mil reais, resultando em uma média salarial em torno de 1.880,00 Reais. Já o salário do jogador Neymar Jr. é cerca de 75 vezes maior do que a soma do salário das 100 atletas juntas. Todos esses dados mostram que a mentalidade predominante é a de que homens têm a preferência no meio esportivo e as mulheres são tratadas apenas como coadjuvantes, quase invasoras, sempre às margens de onde está a real ação. Anna conta que ouviu diversas vezes que ela não teria futuro no basquete, que ela devia desistir, parar de empenhar tanta energia e tempo em algo que “não a levaria a lugar nenhum”. “Eu penso que, se eu fosse homem, seria diferente. Aí sim teriam me incentivado, teriam desejado quase tanto quanto eu que desse certo. E eu entendo que isso não é simplesmente pelo preconceito internalizado, pela noção de que mulheres não pertencem a esse meio. É algo estrutural – para mulheres o espaço e retorno é muito menor.”

“Eu penso que se eu fosse homem, seria diferente. Que aí sim, teriam me incentivado”

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Helio A.

Anna Gois defendendo a seleção paulista de basquete

TRIPLA JORNADA - A vida acontece e, principalmente quando se é mulher, não há escapatória a não ser dobrar nas curvas imprevistas que forem se abrindo pelo caminho. Se o meio esportivo já é duro e exigente com qualquer um que tente a sorte, com as mulheres, então, é cruel e cheio de demandas. Pouco se pensa a respeito do que será da mulher adulta no esporte. Talvez, se imagine que durante sua fase de juventude e disposição, ela possa exercer o ofício; até que ela entenda que chegou a hora de preencher seu papel social de mulher, se “aposentar”, casar, ter filhos. Mas, se ser atleta

de alto rendimento é uma profissão como qualquer outra, por que essas duas esferas da vida não podem acontecer concomitantemente? Por que a noção de que ou é um ou outro, sendo que homens “chefiam” famílias ao passo em que compõem times? Tatiana Raquel da Silva é uma fissura nesse paradigma. A atleta integrante da equipe de atletismo de Londrina, do Instituto Paranaense de Esportes e Cultura, venceu a prova 3.000 metros com obstáculos no GP Internacional do Uruguai, disputado em março desse ano, em Montevidéu. Com o feito alcançado, ela obteve ínMEDUSA | julho | 57


Fotos: Rafael Souza

dice nesta modalidade para os Jogos Pan-Americanos 2019. Além disso, ela é o principal nome da prova hoje em território nacional. Tatiana conta que desde sempre queria ser atleta. “Eu não me imaginava fazendo outra coisa, desde criança”, diz com os olhos perdidos na memória. “Participava de competições na escola, ganhava dos meninos, era uma moleca. Tudo o que eu queria era competir de verdade”. Aos 13 anos, Tatiana participou do torneio Escolom de atletismo, em Londrina. Conquistou uma medalha e percebeu que era isso o que queria fazer da vida. Pouco mais de um ano depois já estava competindo a nível Sul - Americano. A surpresa, contudo, veio aos 17 anos, quando Tatiana engravidou. “Na época foi um baque, né, mas me fez crescer muito”, ela fala. A volta de um atleta de alto rendimento, que tenha se afastado por qualquer motivo, não é fácil. Uma gravidez tende a ser ainda mais complicada, uma vez que além da recuperação física, há todo um trabalho emocional envolvido. “Eu não teria conseguido sem o apoio da minha família”, Tatiana diz mais de uma vez. “Você perde tudo, você volta do zero. Não tem como voltar ao que você era. Você está acima do peso, não consegue evoluir, tem a filha pra cuidar.” Tatiana conta que daí para a frente, tudo mudou. Além da força necessária para exercer sua profissão como atleta, ela ainda tem de lidar

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Tatiana na pista de atletismo da UEL, onde realiza parte de seus treinos

com todo o peso de ser mulher. E com toda a cobrança. “Eu viajo bastante, para as competições, treinamentos e sempre escuto o mesmo tipo de coisa. ‘Ah, mas e a sua filha?’ ‘E a sua casa?’ ‘Como o seu marido deixa’ ‘Você não cuida da sua família, não?’”. É interessante quando esse tipo de questionamento é levantado, porque ele se direciona apenas a mulheres – diversos homens supostamente chefiam famílias e vivem do esporte. E isso não gera olhares tortos ou críticas gratuitas. Tarefas domesticas ocupam em média 20,5 horas semanais das mulheres, enquanto os homens gastam 10 horas por semana nas atividades da casa. A maneira como as pessoas reagem ao modo de vida de Tatiana, juntamente a esse dado, expõe que o pensamento ainda é o mesmo de anos atrás: mulheres podem, sim, ir em busca de seus sonhos e espaços, contanto que continuem mulheres. E no país em que vivemos, ser mulher ainda é cuidar da casa, dos filhos e do marido. Tudo o que vier além disso é mero adorno aos olhos de quem vê a mulher apenas como o molde social que nos segura. PAGAR PRA FICAR - Mayara Custódio começou “tarde” no jiu-jitsu. Seu irmão mais novo nasceu com um problema respiratório, que causa o atrofiamento dos músculos e por conta disso a fisioterapeuta indicou o jiu-jitsu. Encarregada de levá-lo e buscá-lo, ela decidiu começar a frequentar

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Mayara comemora vitรณria depois de cinco lutas

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as aulas também, para ocupar aquele tempo intermediário. Logo ficou claro para os treinadores que Mayara tinha jeito para competição e para ela que tinha encontrado sua grande paixão na vida. “Com isso, eu tive que mudar meu estilo de vida”, diz Mayara. “Ajustar dieta, intensificar os treinos, acrescentar treinamento físico... foi uma verdadeira revolução.” Foi em 2015 que ganhou seu primeiro campeonato brasileiro pela CBJJ (Confederação Brasileira de Jiu-jitsu), repetindo a dose em 2016 e agora em 2019. Venceu o Campeonato Europeu pela International Brazilian Jiu-Jitsu Federation (IBJJF) em 2016, o campeonato Sul-Americano em 2016 e 2017 e sagrou-se campeã mundial em 2018. Para chegar até essas competições distantes e caras, Mayara sempre tem de recorrer a alternativas como rifas, sorteios e até mesmo venda de doces no sinal. Ela é uma das maiores atletas de jiu-jitsu do mundo e, ainda assim, sofre fora dos tatames para permanecer dentro deles. “Se os patrocinadores têm como escolher entre um homem e uma mulher, eles ficam com o homem”, ela explica. “Mesmo que o meu currículo seja mais carregado. É assim até mesmo nas competições. As premiações femininas são muito menores do que as masculinas, ainda que seja o mesmo campeonato. Acho isso mais do que apenas retrógrado – é injusto.” A verdade é que as realidades de Mayara, Tatiana e Anna estão entrelaçadas. Foi esse cenário injusto que afastou Anna do que poderia ter sido a carreira de uma vida. Olhar para quem já está no topo e ver que mesmo o topo, para mulheres, é plano e cheio de pedregulhos, ao invés do

pico ensolarado sobre o qual descansam os homens é duro. “Me sinto muito desvalorizada, porque, poxa, a gente batalha igual a eles, às vezes até mais”, desabafa Tatiana sobre o assunto. “Além de todo o esforço dentro do esporte, ainda tem a casa, a filha, tudo isso que ainda recai sobre nós. Mas o reconhecimento não vem igual.” Neste ano de 2019, o foco de Tatiana está no Pan Americano, competição mais importante antes das Olimpíadas. E depois ela é uma das possibilidades para preencher a vaga olímpica. “Ainda assim, a verdade é que eu quero muito isso. E vou sempre fazer o meu melhor.” Mayara também ainda tem o que esperar de 2019 – Campeonato Mundial na categoria Adulto, Campeonato Mundial de Master e o Sul-Americano. “Eu tenho certeza de que é isso que quero para a minha vida. Isso me faz sair na frente. Eu vou continuar buscando, sempre.” Anna conta que hoje cursa nutrição, mas que ainda integra o time adulto de basquete de Londrina. “Eu sentia muita falta, mesmo. Então voltei a jogar, mais por hobbie agora.” Mesmo que por hobbie, sua paixão pelo esporte ajuda a manter vivo um time londrinense. Essa vontade e amor enormes é que quebram a roda. Quando mesmo apesar da falta de apoio, dos comentários depreciativos e desvalorização, mulheres continuam trazendo resultados incríveis, elas empurram um pouco mais a linha invisível que tenta nos barrar de certos espaços. Até que chegará o dia em que meninas de 14 anos na seleção brasileira de base serão comemoradas e incentivadas a se tornarem Tatianas ou Mayaras, e essas terão as condições adequadas e o devido reconhecimento pelas suas conquistas para o esporte brasileiro. MEDUSA | julho | 61


saúde

Para curar o útero e a alma DÉBORA MANTOVANI “Quando estamos reunidas com outras mulheres a gente libera hormônios como a oxitocina, que ajuda a regular o ciclo, a curar feridas”. A fala é da professora de yoga e praticante da ginecologia natural Nathalia Yuri Kawano e exemplifica sob o ponto de vista físico os benefícios da sororidade. A união entre as mulheres na luta contra o patriarcado, além da resistência no âmbito social, tem efeitos orgânicos que podem resultar no aumento da felicidade. A oxitocina, um dos principais hormônios do bem-estar, desponta do amor, do abraço e da união. Na prática da ginecologia natural, que tem como objetivo tratar a mulher de forma aprofundada. Buscando raízes emocionais dos problemas físicos, os grupos de mulheres vêm para trazer a cura em todos os âmbitos. “A gente nunca vai orientar a mulher a não seguir o tratamento tradicional”, aponta Nathalia Kawano. Nathalia é formada no curso Saberes da Mãe Terra, de capacitação em ginecologia natural, e aponta que a busca pelo conhecimento do próprio corpo e das próprias emoções com o objetivo de cura é uma das propostas fundamentais da prática, que pode ser realizada em conjunto com o tratamento médico tradicional. O atendimento procura, porém, priorizar o uso de remédios naturais por meio do resgate de conhecimentos ancestrais de povos indígenas da região andina, no oeste da

América do Sul, evitando que esses saberes sejam suplantados pelo consumo excessivo de hormônios contraceptivos e remédios industrializados. Boa parte dos remédios da ginecologia natural é feita a partir de ervas, que podem ser ministradas por meio de chás, pomadas íntimas, dentre outros, dependendo do objetivo. O conhecimento do próprio corpo ajuda a mulher a lidar com os problemas emocionais que podem causar os problemas de saúde. Nathalia sustenta também que o próprio “ciclo menstrual é uma ferramenta de autoconhecimento. (...) Quando a gente está para menstruar, estamos às vezes em um momento de querer se recolher, e muitas mulheres não entendem o porquê disso e querem ter o mesmo rendimento em todos os dias do ciclo, e isso gera mais sofrimento, gera mais desequilíbrio, que vai ter resultados no próximo ciclo menstrual.” A ginecologia natural é, principalmente, uma prática que busca colocar a mulher no centro, e entender a mulher como um todo, não somente como corpo. O tratamento busca a cura natural para as doenças físicas e para as feridas emocionais, tendo a sororidade como ferramenta para sarar os traumas pessoais e sociais. Acima de tudo, Nathalia lembra que a ginecologia natural propõe que a mulher olhe para o corpo como algo positivo e perceba “o quanto é maravilhoso ser mulher”.


serviços VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: DENUNCIE! Você não precisa ser a vítima para denunciar violência doméstica! Saiba para onde ligar: DISQUE-DENÚNCIA 180 – esse é o disque-denúncia específico para violência contra a mulher. Os funcionários irão prestar orientações às vítimas e encaminhar o caso para o Ministério Público estadual. EMERGÊNCIA 190 – se na sua região não tiver uma Central da Delegacia da Mulher, ligue para a Polícia Militar. Nos casos de flagrante, o agressor deve permanecer preso até a audiência.

CASA DA M U L H E R BRASILEIRA – a mulher que foge da violência doméstica pode recorrer diretamente a esse estabelecimento em sua cidade e lá encontrará serviços especializados, como delegacia, Ministério Público e Defensoria Pública. Ela também receberá orientações e alojamento.

CONHEÇA OS APLICATIVOS PARA DENUNCIAR ASSÉDIO 99 – a empresa de mobilidade urbana “99” lançou um rastreador de comentários que identifica automaticamente denúncias de assédio na plataforma. O serviço já está disponível no Paraná. SOS PEOPLE – o aplicativo serve para denunciar casos de assédio no transporte público e foi desenvolvido por Eduarda Rossi, de 14 anos, e Lara Prado, de apenas 13. Com o auxílio de um botão – que pode ficar dentro do bolso ou na alça do sutiã –, o celular emite um alerta sonoro e ao mesmo tempo avisa parentes e amigos cadastrados com a localização da vítima em tempo real. As pessoas

que presenciarem o assédio também podem denunciar! MALALAI – faz um mapeamento das rotas classificadas como mais perigosas pelas mulheres para que sejam evitadas, além de permitir que parentes e amigos sejam avisados em caso de emergência. O nome é em homenagem a Malala Yousafzai, a ativista pelos direitos das mulheres que foi a pessoa mais nova a ganhar um prêmio Nobel. O aplicativo já se encontra disponível para todo o Brasil e pode ser baixado na PlayStore para Android.



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