21 minute read

INCLUSÃO INVISÍVEL

Next Article
PAIXÃO INVISÍVEL

PAIXÃO INVISÍVEL

"A inclusão é a oportunidade do olhar

respeitoso e amoroso na sociedade."

- Ana Cláudia Peixoto

INCLUSÃO: ALÉM DO QUE SE PODE VER, SENTIR E TOCAR. Por Henrique Pizzatto e Weverton Kamphorst

Imagem/Reprodução: Arquivo pessoal de Marcelo de Oliveira

Marcelo de Oliveira tem 28 anos e trabalha com Tecnologia da Informação em uma das empresas de maior renome na América Latina, o Mercado Livre. Enquanto essa reportagem foi produzida, a rotina do paulista no emprego consistia em um treinamento, já que foi efetivado recentemente. Emprego que parecia impossível de ser encontrado, afinal, nem toda empresa estava preparada para receber um funcionário como ele.

Você sabe o que são PCDs? Segundo a ONU, considera-se pessoa com deficiência "aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, que pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas". Um conceito muito abrangente que, para quem não está familiarizado, torna-se de difícil compreensão.

Se compreender já é complicado, criar uma consciência e cultura de inclusão é ainda mais. Mas não deveria ser. Segundo o último censo do IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, em 2019, 17,3 milhões de pessoas vivem com algum tipo de deficiência no Brasil. Sendo que, 67,6% não possuem o ensino fundamental completo ou nenhum grau de instrução. Sendo assim, apenas 28,3% estão na força de trabalho.

Quando falamos em inclusão o que vem a nossa mente? A resposta pode parecer óbvia. Mas a inclusão na prática é muito mais complicada, ainda mais por ser um debate que não faz parte da agenda da população no geral e, em momentos de crise,

passa ainda mais despercebida. É um ambiente hostil, mas, como vamos esmiuçar em breve, não precisa e não deveria ser.

O que nós temos a ver com isso? Tudo. A inclusão é um processo, não acontece do dia para a noite. A equidade se alcança através das oportunidades. Como essa que Marcelo recebeu neste ano.

A eficiência da diversidade

A esquizofrenia faz parte da vida de Marcelo desde a sua infância. Uma condição mental que ainda é pouco compreendida pela sociedade, mas que não o impede de realizar o seu trabalho de maneira efetiva. Êxito que vem sendo alcançado graças ao trabalho de muitas pessoas. Mas, principalmente, de sua força de vontade e competência.

O rapaz cursou quatro anos da faculdade de tecnologia da informação, chegando até os últimos semestres, mas, na reta final encontrou dificuldades para conciliar o trabalho e os estudos. Empecilho que se tornou ainda maior pelas pressões advindas da empresa que trabalhava no passado. Chegando o momento em que teve que optar entre a empresa e os estudos.

Marcelo escolheu o emprego. Mas não foi reconhecido por isso. A empresa acabou por contratar outro time de maneira terceirizada, tirando o rapaz de sua área e o colocando para realizar alguns serviços de contabilidade. Além dessa situação, o ambiente de trabalho mostrava-se um pouco hostil para ele, que sentia dificuldade em lidar com a pressão.

"Eu tinha questões da minha vida pessoal um pouco bagunçadas, por eu ter a deficiência mental, esquizofrenia, eu era um cara paranoico, não fazia muitas amizades e era um círculo vicioso, eu me sentia frustrado, não conseguia produzir e não produzindo, eu não tinha o respeito das pessoas e isso me deixava mal" conta o rapaz.

Círculo vicioso que, viria a ser quebrado, graças a uma empresa de Recursos Humanos focada na inserção de pessoas com deficiência no mercado de trabalho, a Egalitê. Marcelo conta que a empresa fez o meio de campo de forma gratuita para que ele fosse, enfim, admitido em uma companhia que possibilitasse o seu pleno desenvolvimento.

Hoje, trabalhando no Mercado Livre, ele conta como o ambiente de trabalho faz toda a diferença para a sua qualidade de vida. Detalha que sua rotina no trabalho não tem nada a ver com aquele velho modelo de trabalhar, principalmente por não ter

protocolos muito rígidos. "Eles valorizam a liberdade, o protagonismo das pessoas tomarem as decisões e correr seus riscos".

Além de ter autonomia sobre seu trabalho, um fator que faz o rapaz sentir-se muito bem acolhido no ambiente de trabalho é a diversidade. "Existe uma prioridade da empresa cumprir com toda a agenda a questão dos PCDs, inclusão das mulheres e LGBTs em melhores condições de trabalho".

A possibilidade de encontrar um ambiente favorável para seu pleno desenvolvimento ainda é utópico para uma boa parte das pessoas com deficiência, mas o futuro reserva dias melhores para elas. E um vislumbre desse futuro existe graças a ajuda de muitas pessoas.

A inclusão nos pequenos detalhes

Marcéli é coordenadora de RH e conta da dificuldade de grandes corporações em fazerem essa inclusão. Formada em psicologia, atua há mais de 10 anos com gestão de pessoas e, hoje em dia, dentro de uma consultoria especializada em recrutamento e seleção de pessoas com deficiência. Trabalhando arduamente junto com coordenadores, para que a inclusão não seja apenas uma legislação a ser seguida.

Ela também reforça que esse estereótipo é perpetuado culturalmente, e que a inclusão deve acontecer desde os anos base da nossa vida. “Eu acho que quanto mais a gente tiver pessoas do nosso convívio com deficiência, seja lá qual for a diversidade dessa pessoa, mais habituados nós vamos estar e menores vão ser os preconceitos que todos nós temos”.

A gestora comenta que hoje já existem muitas empresas dispostas a fazer essa inclusão, mas outras, nem tanto. O que mais se vê são empresas querendo que a pessoa se adapte ao ambiente, sendo que deveria acontecer ao contrário. “É aceitar que a pessoa com deficiência não precisa se adequar ao ambiente, somos nós e o ambiente que precisam se adequar a elas. Nós não temos limitações, pessoas não PCDs não tem limitações”.

No Brasil essas pessoas estão asseguradas através da Lei Nº 13.146, de 6 de Julho de 2015, que diz em seu Art. 1º “É instituída a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), destinada a assegurar e promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania.”

Legislação que vem sendo levada cada vez mais a sério pelas empresas. Como pudemos acompanhar na rotina de Marcelo, a conscientização está fazendo parte do ambiente corporativo. Os tempos estão mudando e as empresas precisam acompanhar essa evolução se ainda quiserem continuar no jogo, vista com bons olhos pela população que está cada vez mais atenta.

Imagem/Reprodução: Arquivo pessoal de Marcéli

UM OLHAR DE SENSIBILIDADE: A TRAJETÓRIA DE UM PROFESSOR DEFICIENTE VISUAL

E SEUS DESAFIOS DURANTE A PANDEMIA

Um professor fora da curva com uma caminhada única, Allan Cocenski narra sua história de vida e mostra o que há de mais bonito em sua profissão: o amor por lecionar.

Por Ariel Aires e Mariana Haubert

Imagem/Reprodução: Prefeitura Municipal de Sapiranga

“Quando a gente vai perdendo alguma coisa aos poucos, a gente não percebe”. Allan Cocenski, professor alfabetizador e psicopedagogo de 33 anos e residente da cidade de Sapiranga no Rio Grande do Sul, conta, com uma disponibilidade e uma abertura enorme, um pouco sobre a sua história de vida – desde a influência que a educação tem para ele desde jovem, até como ele perdeu grande parte de sua visão e onde ele se encontra hoje, um professor alfabetizador na cidade em que reside.

A realidade que as pessoas ao redor do mundo vêm enfrentando é completamente nova: um cenário de pandemia que, a passos lentos, parece se aproximar do seu fim. Cada pessoa possui uma realidade própria, enfrentando seus desafios pessoais e diários, os quais, para muitos, foram intensificados e modificados devido a pandemia da Covid-19. Assim como para muitas pessoas, a pandemia também foi muito desafiadora para o Professor Allan. Contudo, ele enfrenta um desafio em dobro: ser professor e também deficiente visual em um momento tão delicado.

Com uma mãe que, hoje aposentada, também já foi professora, ele conta que o mundo da educação, dos cadernos e dos livros sempre esteve muito presente

em sua vida, o que o levou a ter uma trajetória muito acadêmica e voltada para a educação. Allan conta sobre seu caminho e a formação de sua carreira como professor, bem como sobre a influência que sua deficiência visual teve em todo esse contexto.

Sua trajetória como professor teve início através do curso de pedagogia, mas a prática aconteceu mesmo em 2008: Allan assumiu como professor de um projeto de música. Ele conta que sempre teve uma conexão grande com a música, uma familiaridade e um conhecimento com o violão – combinando isso com seu curso de

pedagogia, ele começou então um projeto de violão. Por cerca de oito a nove anos, ele foi professor de música, atendendo seus alunos no contraturno e os ensinando a tocar o instrumento.

Ao contar sobre os anos como professor de música, Allan carrega consigo uma fala repleta de carinho e de gratidão, demonstrando o seu enorme apreço pela música. Ele conta que, após os anos lecionando nesta área, decidiu entrar em um concurso de Sapiranga para ser professor de séries iniciais. Ao contar um pouco sobre esse momento de sua vida, Allan traz em sua fala como sua deficiência visual influenciou no processo, abordando a questão das cotas para deficientes e trazendo à tona a constante falta de entendimento e o preconceito que grande parte das pessoas ainda possui com relação a esse assunto.

“Como eu tenho algumas restrições, quando eu entrei no concurso eu entrei pelas cotas né, as famosas cotas. E, ao contrário do que as pessoas pensam, as pessoas pensam “ah, entrou pelas cotas, só deu o nome lá e entrou”. A gente tem que fazer uma prova como todos os outros candidatos, não tem nada de diferente, é tudo igual. A única coisa que muda é a dificuldade que a gente tem por enxergar pouco, né.”

Atualmente, ele atende um máximo de seis alunos em sala de aula, devido à restrição que possui em sua visão. Há cinco anos sua função é de professor do reforço escolar, onde ele trabalha com alfabetização, atendendo alunos do primeiro ao quinto ano que tem dificuldade de aprendizagem.

Convivendo com a deficiência visual

Na atual sociedade em que vivemos, é extremamente fácil e rápido julgar o outro sem ter conhecimento de sua realidade. Saber e entender como funciona o dia-a-dia

de uma pessoa com deficiência visual é algo que, geralmente, está fora do conhecimento de quem não compartilha das mesmas condições. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), é estimado que a deficiência visual afeta aproximadamente 39 milhões de pessoas ao redor do mundo, e que 246 milhões

de pessoas sofrem perda severa ou moderada da visão. Com essas estimativas em mente, perguntou-se ao professor a origem de sua deficiência visual e como ocorreu. O alfabetizador respondeu contando que foi justamente na educação onde começou “toda essa história de visão”, cita.

Allan relata que o primeiro sintoma de que algo estava errado foi quando seu rendimento escolar diminuiu muito. Por ser filho de professora, ele conta que sempre havia uma certa pressão a mais para que fosse bem no ambiente acadêmico. “Quando a gente vai perdendo alguma coisa aos poucos, a gente não percebe”, afirma Allan enquanto conta que começou, aos poucos, enxergar menos que o de costume. Ele próprio não sabia que não enxergava, e então se iniciou uma fase muito difícil de sua vida, onde Allan decaiu muito nos seus estudos. Acompanhar as matérias, o professor, escrever, tudo isso já não estava mais sendo possível e acabou surgindo um Allan que tentava disfarçar as suas dificuldades, o que, muitas vezes, acabou gerando conflitos com professores.

Por volta dos seus 11 e 12 anos, idade que tinha quando os problemas de visão começaram a aparecer, Allan começou a frequentar diversos oftalmologistas da região para investigar seu problema, e muitos dos médicos especialistas relacionavam a sua falta de visão com um possível quadro de depressão. O seu problema visual é na retina do olho, e não no grau do mesmo, o que significa que, além de um óculos não ser capaz de “consertar” a situação, os médicos não tinham esse diagnóstico logo nos primeiros exames – e foi aí que a possibilidade de uma depressão apareceu pois, segundo os médicos, poderia ser uma tentativa de Allan de “chamar a atenção”. Mais tarde, como o professor comenta brevemente, ele de fato veio a ter depressão ao se ver forçado a lidar com sua nova condição na adolescência. Contudo, conta que ficou claro que o problema era realmente sua visão no dia em que sua mãe intercedeu na situação. “Um dia a minha mãe pegou um livro e ela me mostrou longe assim “ah esse livro aqui, como é que é o título?” e eu não consegui ler. Aí que se percebeu que era a visão mesmo”, cita.

Após todas as consultas não se tinha chegado a nenhuma conclusão ainda. Se tornou possível identificar seu quadro apenas com médicos da capital: era um problema na retina. A princípio, ele teria sua visão por apenas três meses, e, após, a perderia totalmente. Segundo o próprio Allan, a única alternativa que restava era se conformar ir para casa, sentar e chorar. Contudo, após uma série de tratamentos mais naturais com argila e álcool vegetal, uma esperança apareceu novamente, mostrando que nem tudo estava perdido: ele conseguiu atingir a porcentagem de visão que tem até hoje, aproximadamente 8% em um olho, e 9% no outro. Ou, como ele mesmo gosta de arredondar, 10%.

Logo quando questionado sobre sua vida acadêmica e o início de sua carreira, Allan comenta sobre a grande voracidade que acompanha a faculdade, o sistema e o mercado de trabalho para deficientes visuais. Ele fala sobre como não é apenas algo voraz, mas, de certa forma, sem inclusão também.

"Vocês são do jornalismo e isso funciona muito bem, mas teoricamente e visualmente. Na prática mesmo ele é muito complicado, é um mercado muito voraz. Tu sabe fazer tu sabe, tu não sabe fazer tu não sabe. Tu consegue fazer tu vai, tu não consegue fazer tu não vai.”

Ele relata que foi tranquilo lidar com sua faculdade. Junto com os livros eram ofertados DVDs, o que facilitou muito seu aprendizado. Contudo, infelizmente, percebe-se que a inclusão retratada ainda sim era muito superficial e não totalmente preparada como deveria. Allan conta que, na faculdade, reprovou em uma ou duas cadeiras por não conseguir acompanhar o conteúdo. Segundo ele, os vídeos eram apenas resumos das aulas, e não as aulas em si, o que dificultava na hora da realização das provas, sendo isso algo que, por vezes, era negligenciado e se ouvia frases como “ai, a gente esqueceu, mas tu consegue fazer assim né?”.

Quando a educação e a paixão por lecionar se encontram

Com a fala de um professor completamente apaixonado pelo que faz, Allan conta um pouco sobre como a pandemia afetou não só as aulas dele, mas também os alunos. Ele nos conta que, inicialmente, antes de virar sistema híbrido, ele produzia vídeos caseiros. Com sua esposa também sendo professora, os dois encontraram um no outro pontos de apoio: ele a gravava, ela o gravava, e juntos iam montando cenários para os vídeos e criando um esquema de trabalho completamente novo e diferente.

Diferente, porém muito trabalhoso. Gravar vídeos e encontrar uma forma de transmitir o aprendizado aos alunos à distância foi um desafio que muitos professores encontraram pelo caminho. Como comentado por Allan, apesar de o produto final ficar muito interessante, todo o esforço e o trabalho por trás são muito maiores do que se possa imaginar. Porém, tudo com o objetivo de poder assessorar os alunos da melhor maneira possível, mesmo que de longe. Alunos esses que, segundo o professor, sofreram muito com o ensino a distância também. Com um olhar extremamente sensível, Allan relata sobre as dificuldades encontradas pelas crianças não apenas no ensino, mas principalmente emocionalmente.

“Acho que, emocionalmente, os alunos foram muito afetados também. Teve alunos que tu consegue ver um abismo de aprendizagem, provavelmente o ano

de pandemia que teve, o ano passado e um pouco desse ano, não aconteceu para eles como deveria acontecer, tanto na questão de aprendizagem quanto na questão emocional.”

Um professor que, levando em conta toda a sua experiência e trajetória durante seus anos de escola quando novo, tem um ponto de vista diferenciado sobre os alunos: um ponto de vista extremamente humano e sensível, o qual se coloca no lugar das crianças, com uma preocupação grande com o bem-estar emocional dos alunos e com seu aprendizado. A história de Allan é, com certeza, carregada de muita luta e muita superação, e, definitivamente, sem tristeza e mágoas. Com uma fala e uma atitude extremamente bem esclarecidas perante a vida e toda a sua trajetória, Allan nos conta sua história com leveza, com paixão e com doses de realidade.

Imagem/Reprodução: Facebook

MULHERES QUE RESISTEM: A HISTÓRIA DAS PERSONAGENS QUE ESTÃO A FRENTE DA LUTA POR DIREITOS INDÍGENAS

O olhar de uma especialista e de uma indígena sobre as consequências da possível aprovação do Marco Temporal no Brasil

Por Claudia Vilemar e Melany Vidal

Imagem/Reprodução: Arquivo pessoal de Raquel Kubeo

Duas mulheres: uma indígena, mestra em educação, e a outra professora universitária, especialista em direitos indígenas. Raquel Kubeo e Kellyana Veloso, separadas por 739 quilômetros de distância, mas ambas com um objetivo em comum: usarem seu espaço para resistência na luta dos povos originários, sobretudo a partir do seu amor pela educação e suas narrativas de superação.

Nascida no Amazonas e descendente do povo Tukano, Raquel Kubeo é mestre em Educação pela UFRGS e atualmente professora da rede municipal de ensino de Porto Alegre. A indígena pertence à etnia Kubeo e é filha de uma mãe solo, objeto de seu mestrado, e declara que cresceu “pertencendo a essa identidade, não apenas no fenótipo”. Atualmente, faz parte da Comunidade Indígena multiétnica localizada no Centro de Referência Indígena-Afro, no Rio Grande do Sul.

Enquanto cursava Direito, Kellyana começou a estudar sobre as cotas raciais no ano de 2012, até chegar nos estudos acerca de direitos de povos indígenas, após perceber que o assunto quase não era discutido dentro do curso. “Aquilo me incomodou

demais, porque às vezes a gente perde muito tempo em ordem econômica, propriedade privada, mas quando foi a questão dos indígenas, foi assim... passou.”

Duas histórias distintas, mas com um objetivo em comum: a busca por direitos dos povos originários. Kellyana, vinda de Rondônia para o Paraná, a fim de realizar sua graduação em Direito, curso no qual ela encontrou interesse em se especializar nas legislações indígenas; e Raquel, vinda do Amazonas, que encontrou espaço para trabalhar a resistência, educação e arte indígena no Rio Grande do Sul.

Uma visão histórica e legislativa sobre o marco temporal

O Marco Temporal se trata de uma tese jurídica que define que povos indígenas só podem reivindicar seus direitos sobre terras em que efetivamente estavam quando da promulgação da Constituição Federal, em 5 de Outubro de 1988. O que acaba gerando uma grande discussão judiciária, entre os povos indígenas e a sociedade.

Raquel acredita que a possível aprovação da tese do marco temporal afetará não só um povo, já que essas brechas podem causar violação das leis e dos direitos indígenas. A educadora relata que a demarcação de terras deveria ter ocorrido na década de 1980, pois a questão do marco temporal é sobre direitos humanos e direitos indígenas, os quais são necessários reconhecer a existência das aldeias e das associações indígenas presentes em todo o Brasil. “São mais de 200 línguas, então, pela Constituição, todos esses direitos que falam da nossa cultura, da valorização de nós como pessoas e cidadãos com especificidades, vêm sendo discutido.”, destaca Kubeo.

O artigo 231 da Constituição Federal dispõe que são reconhecidos aos povos indígenas sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, determinando à União a competência para demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. O texto constitucional não traz qualquer tipo de marco temporal que define a partir de quando os indígenas poderiam reivindicar essas terras.

Por isso, a professora universitária Kellyana Veloso, docente do curso de Direito no Centro Universitário São Lucas, em Ji-Paraná, Rondônia, acredita que o Marco temporal é inconstitucional e imoral. Pois conforme a mesma, não é correto exigirem demarcar terras num período muito posterior ao qual elas foram tomadas dos indígenas pelos colonizadores, já em 1500.

De acordo com Kellyana, “são reconhecidos aos indígenas a terra onde eles tradicionalmente ocupam, e isso, para o Direito, significa o quê? Está reconhecido que, no passado, antes da existência de Estado, da lei, da Constituição, eles já estavam aqui.

Se eles já estavam aqui, a terra é deles. Então o Estado não está dando terra indígena, nem está criando direito a partir de 1988, ele está reconhecendo um direito que já existia em 1492.”

Raquel corrobora essa visão, ressaltando que, enquanto pode-se dizer que o Brasil, como país, tem 521 anos, existem registros arqueológicos que mostram a existência de povos indígenas nesse território entre dois mil e cinco mil anos atrás. Já a professora universitária, Kellyana, explica ainda que usa como referência o ano de 1492, quando os europeus chegaram à América, ao invés de 1500, que define como uma “data colonial”, dizendo que “se for estabelecer um marco, é 1492, né? Não 1988.”

A pesquisadora, Kellyana, conta que se dedica à área da pesquisa de Direito, acerca dos direitos indígenas, desde 2012 e que se preocupa com a decisão sobre o marco temporal. Segundo ela, os indígenas têm uma ligação muito forte com a terra, pois além da mesma representar moradia, representa fonte espiritual e alimentícia.

“Por ser minoria, é um povo que historicamente sofreu repressão, opressão, violências, e é um povo que não está representado na sociedade, especialmente nos poderes - judiciário, executivo, legislativo, então eles não têm representação política para fazer valer seus direitos.”, afirma Kellyana. Segundo a mesma, para que os indígenas se tornem mais visíveis em nossa sociedade são necessárias iniciativas do Estado e da FUNAI (Fundação Nacional do Índio), pois esses povos necessitam de proteção e de terem seus direitos reconhecidos.

Raquel explica que o Brasil tem em torno de 365 povos indígenas, sem contar os considerados isolados, que não têm contato direto com a dinâmica de sociedade apresentada no país, além de uma gigante variedade linguística, com mais de 200 línguas registradas. “Pela Constituição”, explica a professora, “todos esses direitos que falam da nossa cultura, da valorização de nós como pessoas e cidadãos com especificidades, vêm sendo discutidos. Então são várias brechas que a gente pode dizer de violação das leis, e de violação dos nossos direitos. A gente tá falando de direitos humanos e de direitos indígenas.”

A resistência indígena por meio da continuidade

Quanto à sua própria história, Raquel relembra que sua família não é toda brasileira, já que sua etnia também vem da Colômbia. “São trajetos milenares, que têm pelo menos 5 mil anos”, conta a artista. “Porque o Brasil, se a gente for contar, tem 521 anos. O meu povo, por exemplo, tem entre 2 mil e 5 mil anos; tem povos

que têm registros arqueológicos de 2 mil anos, 5 mil anos de existência, nesse território que chamam de América Latina.”

“Não tem como eu falar de mim sem falar da história antes de mim”, destaca a indígena. A ancestralidade, conceito que os povos originários têm muito respeito e seguem muito, foi retratada na tese de mestrado de Raquel, que destaca a importância das mulheres na luta indígena, mesmo que, na maioria das vezes, não haja o reconhecimento merecido, “muito da resistência hoje no Brasil também é fruto da luta dessas mulheres, que agem muitas vezes de maneira silenciosa.”

É por meio da educação que a indígena Kubeo acredita que os direitos dos povos originários possam ser reconhecidos. “Acredito que um primeiro passo é um currículo antirracista mais efetivo em relação às culturas indígenas no Brasil”, afirma ela. Além disso, Raquel cita que para a manutenção da cultura indígena é necessário que ocorra uma criação e uma aplicabilidade de leis, segundo a mesma “acredito que isso seja mais no sentido de leis orgânicas, de prefeituras, de municípios principalmente, de valorização desde o artesanato às expressões culturais. Porque, na verdade, os artesanatos são expressões culturais, a gente vê muito precarizado ainda o tratamento das leis orgânicas dos Municípios em relação a população indígena”.

Raquel destaca a coragem e a ousadia como marcas que gostaria de deixar para o mundo. Enquanto mulher indígena, a professora explica que, apesar dos riscos, não se deve ter medo, mas sim determinação de ser e estar. “Eu tenho muito essa determinação de, mesmo que as portas estejam fechadas, a gente dá um jeito. Eu falo muito do chute na porta, que às vezes não é o preferível, mas que muitas vezes a gente tem que fazer.”

Tem interesse em saber mais sobre a temática indígena?

Livros: Ideias para adiar o fim do mundo - Ailton Krenak; Direitos dos povos indígenas em disputa no STF - Manuela Carneiro da Cunha e Samuel Barbosa; A Queda do Céu: Palavras de um xamã yanomami - Bruce Albert e Davi Kopenawa.

Lideranças indígenas: Márcia Kambeba, Sonia Guajajara, Ailton Krenak, Daniel Munduruku, Denilson Baniwa, Raoni, Davi Kopenawa.

Trabalho de Resistência Indígena: Corpo Terra, Manifesto das Retomadas (documentário disponível no canal Oderiê no Youtube).

Imagem/Reprodução: Arquivo pessoal de Kellyana Veloso

This article is from: