FOC@ o humano em destaque
FOC@ 3 REVISTA FOC@
VESTIBULAR AGENDADO FACULDADE MARINGÁ ADMINISTRAÇÃO CIÊNCIAS CONTÁBEIS DIREITO JORNALISMO PUBLICIDADE E PROPAGANDA
Inscreva-se (44) 3027-1100
COORDENAÇÃO: RONALDO NEZO
Sumário
EDITORA-CHEFE: Ana Laura Silva EDITORAS ESPECIAIS: Ana Laura Silva, Andreia Silva e Suellen Rodrigues
5 - Entrevista: Climaxxx: “o despertar feminino é uma construção”
DIRETORA DE ARTE: Ana Laura Silva AUXILIAR DE ARTE: Camila Jane REVISORES: Ana Laura Silva e Ronaldo
10 - Crônica: Amor além das curvas
Nezo COLABORADORES: Gilson Ferreira, Lorena
13 - Capa: Transição Capilar
Betiati e Tatiane Gonçalves REPÓRTERES: Ana Santos, Ana Laura
20 - Além dos lençóis
Silva, Andreia Silva, Camila Jane, Isabela Emerim, Jéssica Lisboa, Marcos Diego,
22 - Foto: O que significa a sua tatuagem?
Natália Theodoro, Nathália Santos e Suellen Rodrigues.
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26 - Especial: O humano em destaque 28 - 4.6: O start para uma nova vida 30 - Bonecas também engravidam 32 - Do amor à dor 34 - Mães de verdade 35 - À espera: filhos que deixam as mães 38 - Sem emprego para trans 40 - À espera de um milagre 42 - A velhice que não ouvimos 43 - A mudança de um destino 44 - Na horta, a cura da depressão 46 - Viajar, reconectar e crescer 50 - Cultura: Escolha das editoras
22
Faculdade Maringá 2017
Climaxxx
FOC@ 5
“o despertar sexual feminino é construção”
Em entrevista, Clariana Leal fala sobre a primeira loja voltada exclusivamente ao prazer da mulher e do seu trabalho como educadora sexual Ana Laura Silva “A mulher que está segura com o seu corpo e reconhece o seu poder geralmente assusta os homens”. Entonada com uma mistura de sotaque cearense e gaúcho, a frase de Clariana Leal marcou o início da conversa a respeito da fundação Climaxxx, primeira loja voltada ao prazer feminino, e sua atuação como educadora sexual de mulheres. Ela tenta mostrar às suas clientes e ouvintes que o despertar da sexualidade acontece quando há o conhecimento do próprio corpo. Por isso, em suas vendas, ensina como usar os produtos eróticos para ter mais prazer, além de levar imagens da anatomia da vulva para explicar, buraco-por-buraco, como funciona tudo nessa região “riquísReprodução @Climaxxx
sima”- como ela própria gosta de qualificar.
FOC@ 7
Quando começamos (em 2016, em Porto
A iniciativa da loja tem maior apelo co-
Alegre) pesquisei muito para saber se eu e
mercial ou você gosta de pensar como uma
minha sócia éramos as primeiras no ramo
forma de resistência ou luta?
aqui no país. Até eu me assustei com isso.
Acho que quando a gente trata do prazer
Acho que esse campo não é explorado por-
feminino é sempre um ato político. Não tem
que a mulher que está segura com o seu cor-
como não ser. Por mais que não seja escra-
po, que gosta de se masturbar e reconhece o
chado, tem sempre uma coisinha que a gente
seu poder, que é surreal de enorme, se torna
tá tentando mudar no sistema. Quando se
uma figura “ameaçadora”.
trata da venda de produtos eróticos para mulheres, nunca é só uma venda.
Reprodução @Climaxxx
Como começou a Climaxxx?
importante. Meu pai é caladão, não falou Qual o seu público alvo? É possível traçar
nada demais, mas sei que ele fica orgu-
um perfil das clientes?
lhosinho quando sai alguma coisa sobre.
Eu tento sair da bolha porque sei que
Mas a resposta da minha mãe foi legal
muitas meninas da nossa faixa (20 anos)
e surpreendente. Ela inclusive me liga e
já estão abrindo mais a cabeça. Isso é
pede dicas...
fantástico, mas a ideia é ir além e vender
“
quando a gente trata do prazer feminino é sempre um ato político.
para terceira idade, pessoas religiosas,
...então a loja promoveu uma mudança
grupos que -acho- que sofrem mais a re-
profissional e pessoal.
pressão sexual. O perfil da Climaxxx tem
Completamente. Mexeu com todas as rela-
muita menina jovem, mas a ideia é atingir
ções, inclusive a relação comigo mesma.
todo mundo que tenha uma vulva e fazer
A minha vida sexual mudou bastante. As
essas pessoas amarem essa vulva, inclusi-
pessoas acham que eu comecei a transar
ve homens trans(sexuais).
muito, na verdade, depois da Climaxxx, faço menos sexo, mas melhor. Rola quan-
“
Arquivo Pessoal
Como foi a reação das pessoas mais pró-
do eu tô a fim de verdade e se eu quero
ximas quando você decidiu atuar nesse
parar ou não quero mais, eu tenho consci-
segmento?
ência e respeito o meu corpo. Por mais que
Foi engraçado, porque minha mãe, quan-
já fosse feminista e ciente de várias coisas,
do eu era mais nova, nunca conversou
eu tinha um pouco essa ideia de agradar,
comigo sobre sexo. Quando contei que eu
porque o pensamento que existe em geral
tinha a loja ela adorou e se tornou minha
é que a mulher está sempre aí para agra-
cliente (risos). Temos muitas conversas,
dar. Isso mudou bem.
ela achou incrível, um trabalho super
FOC@ 9 E seu trabalho como educadora sexual?
produtos, rodas de conversa e performances,
A minha primeira palestra não tem tanto tempo, eu
tudo com apelo mais sensível e sem objetificar
demorei um tempinho para criar coragem de falar
a mulher. Estou perdendo o sono, mas otimis-
em público com tantas mulheres, porque é um assun-
ta.
to muito sério. Todo mundo tem suas nóias e suas neuras sobre a sexualidade e acho que lidar com isso
Tem alguma consideração, algo que gostaria
é uma responsabilidade absurda.
de falar para as mulheres que vão ler essa entrevista? Estou muito feliz, eu gosto de conversar sobre
A gente tem o projeto “Se Toca”. Dentro disso, o
essas coisas. Mas o que eu tenho pra dizer é
primeiro encontro foi sobre pompoarismo, então a
que cada um tem o seu tempo para se desco-
gente abordou a anatomia, várias técnicas de mas-
brir, se conhecer e se amar. Não precisa ter
turbação, exercício para estimular a região, etc. O
pressa, o despertar sexual é uma construção,
segundo foi sobre as neuras da vagina, da vulva. Eu
a cada dia você vai aumentando um pouco
Reprodução
Como é a dinâmica durante as palestras?
sempre tento passar a anatomia por primeiro, levo cil saber qual coisa é qual. São vários buraquinhos, é uma estrutura riquíssima. Rola um “aulão” de biologia onde a gente fala sobre as zonas erógenas, pontos de de prazer... eu gosto de destrinchar ao máximo o clitóris, poderia fazer uma palestra só sobre o clitóris. Depois, a gente vai entrando num posto mais psicológico, sobre desejo, fantasia, essas coisas que são mais na nossa cabeça que no físico.
se respeitar, não ter pressa, não exigir mais
“
do que o seu corpo pode dar. Ir com calma
Todo mundo tem suas nóias e suas neuras sobre a sexualidade e acho que lidar com isso é uma responsabilidade absurda.
“
imagens e tudo mais, porque realmente não é tão fá-
isso (o conhecimento). O principal é se ouvir,
E como é a recepção das mulheres?
nesse caminho é uma das coisas mais valio-
É muito boa. A gente acaba sempre como um
sas para você não largar na metade e se frus-
grupo de amigas. Nós sempre queremos levar
trar.
a conversa à diante, então vamos para algum lugar conversar mais sobre isso. As mulheres sempre se abrem, relatam, enfim, o que elas dividem durante os encontros é o que eu mais gosto. A troca é sempre o mais legal. Você acha que esse cenário (da educação sexual para mulheres) vai expandir? Se sente otimista? Eu tô bem animada e otimista agora. Vou fazer uma feira erótica para mulheres em novembro, vai ter pintura, bordado, os meus
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amor além das curvas
FOC@ 11
Ou sozinha daquelas piadas na internet. Você
mais tesão. Esquecer? Impossível. Mas nin-
passa a cuidar mais de si mesma. Não, não
guém parece perceber. Então você segue.
estou falando de alisar os cabelos para agra-
Camila Jane
da-los. Mas sim agradar a VOCÊ. É você. Você Mas é na calada da noite que o seu verda-
tenta usar aquela blusa mais coladinha. E
V
deiro eu vem à tona, não é mesmo? É quan-
alguém te elogia por isso. Focar nas coisas boas
ocê se olha no espelho, e uma vida
do você encosta no travesseiro que a dor do
lembra? Então você segue.
repassa diante dos seus olhos. Você
dia vem. E ela nunca vem só. Ela traz con-
O tempo vai passando. E você vai se tornando
ainda consegue sentir os olhares
sigo a angústia, a solidão, o vazio. Uma orgia
mais confiante. A mulher que antes se escon-
de reprovação. As vozes também estão ali.
de sentimentos que resulta em lágrimas,
dia atrás de roupas largas por se achar gordi-
“Você deveria emagrecer”, “Já pensou em
em desespero. Seu coração aperta. Seu ar
nha, agora esbanja confiança em um cropped.
alisar o cabelo?”, “Nossa, mas uma menina
esvai. Você reza para que isso vá embora.
Não porque está na moda, mas porque você
tão bonita, você deveria se arrumar mais”,
Será que alguém te ouve? E de tanto chorar
gostou. Você não se sente mais indesejada só
“Essa roupa não está muito curta?”, “Você
você adormece. Então você segue.
porque o crush não te notou, ou não te quis.
não deveria escutar esse tipo de música”,
Você até tenta conversar com alguém, mas
Como dizem, segue o baile. Agora você batalha
“Esporte? Isso é coisa de menino. Você tem
todos dizem o mesmo. “É só uma fase”,
pelo que quer. E não leva desaforo pra casa.
que fazer academia.”. Deveria. Deveria.
“Isso passa”. Mas no fundo não é bem assim,
Você sabe seu valor. Então você segue.
Isso ecoa na sua mente. Por que você
não é mesmo? Esse sentimento, esse vazio,
Sabe o famoso mulherão da porra? É você.
por si só não é o suficiente? Mas, quanto
essa solidão, eles nunca vão embora. Você
Sempre foi. Sempre esteve ai. Sabe ser sensu-
mais você olha, mais você acredita. Afinal,
percebe que é melhor guardar isso apenas
al. Tem capacidade. É guerreira. Luta pelo que
essas pessoas não falariam isso atoa, não
para você. Então você segue.
quer. É brilhante. Encantadora. Hipnotizante.
insuportáveis. Você já não tem mais animo
Você sempre segue. E um dia você bate de
O que você descobriu? Que nada disso é
pra nada. O que te fazia feliz, hoje tanto
frente com o muro da verdade. Você volta
verdade. Que nessa vida de solidão, você não
faz. Você se afasta de seus amigos. Recua
ao espelho. Dói. Mas começa a pensar em
precisa de ninguém para te fazer feliz. Nada
no trabalho. Acata e aceita tudo de cabeça
todas as vezes que seguiu em frente. Todas
além de si mesma. Sabe o que você faz, com
baixa. Então você segue.
as vezes que se esforçou para conseguir
todas essas lembranças? Todas essas dores?
finalizar aquele trabalho. Todas as vezes
Guarda. “Como assim guarda? Eu não deveria
Todos os dias você tem que colocar essa
que batalhou para conseguir se manter
esquecer?” Não. Use isso como combustível
mascara para disfarçar a dor. Ninguém
no emprego. Todas as vezes que mesmo
para brilhar ainda mais forte. E cale. Cale todos
ligaria. Todos tem seus próprios problemas,
querendo desabar, você se levantou. E
aquele que duvidaram. Que não apoiaram. Que
por que alguém te ouviria? Ou te entende-
conseguiu. E seguiu.
viraram as costas. Você controla sua vida, e não a depressão, a
ria? Então você segue. Você até tenta sair com amigos. Se divertir.
“Talvez eu devesse focar nas coisas boas”,
bipolaridade, raiva, ou qualquer outro trans-
Beber. Dançar. Transar. Esquecer. Mas nada
você diz a si mesma. E processo começa.
torno que você possa ter. Você é a dona da sua
disso te satisfaz mais não é mesmo? A
É uma batalha. Mas nessa guerra você vai
vida, da sua história, e não o contrário. Um dia
diversão é monótona. Beber não te ajuda
ganhar umas, e perder outras. Você pensa
você percebe tudo isso. E sabe o que você faz?
mais. Você está muito cansada para dançar.
em todas as vezes que riu com os amigos.
Então você segue.
Transar então nem se fale, você não tem
“La Libertad”, de Egon Schiele
é mesmo? Lentamente, os dias se tornam
Transição Capilar
Fotos: Ana Laura Silva Modelos: Ana Santos, Jéssica Lisboa e Gabriela Produção: Camila Jane
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Ana Santos, à direita, relata como voltar ao natural mudou sua vida e relações pessoais. ao lado, Jéssica Lisboa, que passou pela transição em 2015.
FOC@ 15
“
M
e chamo Ana Claudia dos Santos, 22, mulher, negra, feminista. O negro, apesar de constituir 53% da população no Brasil, ainda é considerado exótico. Irônico ou não, essa é a realidade no nosso país. O preconceito é tão grande a ponto que nos fizeram mudar as nossas caracterizas físicas. Isso para agradar uma sociedade que quer nos embranquecer e alisar nosso cabelo, apesar de acharem bonitinho. Eu passei a infância inteira com a minha mãe trançando o meu cabelo para eu poder ir para a creche com ele “arrumadinho”. Todos os
sábados. O cabelo crespo não é fácil de cuidar como algumas pessoas pensam - é difícil e é caro. Quando cheguei à adolescência, entrei na fase de alisamento. Tudo o que diziam ser bom, que alisava, dava brilho, eu pedia para a minha mãe comprar. Tudo isso para ser aceita em uma sociedade que diz que o belo é ter o cabelo liso. ssa fase durou quase 10 anos. Quase uma década de química forte a cada três meses e diversas tentativas de hidratação todos os sábado, além, é claro, da inseparável chapinha. A chapinha foi a minha companheira durante toda a minha adolescência. Muitas vezes eu ia para festas em chácaras com os meus amigos e não entrava na piscina porque não queria “estragar” o meu cabelo, molhar minha capinha. Eu não poderia ficar feia perto deles.
[...] não entrava na piscina porque não queria “estragar” o meu cabelo, molhar minha chapinha. Eu não poderia ficar feia perto deles.
O cabelo da mulher negra é, principalmente, uma identidade. Não é moda. É história, orgulho de um povo que lutou muito para ter seus direitos.
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Em terra de chapinha, quem tem cacho é rainha
Quando decidi passar pela transição, trabalhava em uma empresa tradicional. Em 2014, surgiu uma propagando de Confesso que o medo da reação do meu cosméticos que dizia “Em terra de chapinha, chefe foi constante na minha cabeça por quem tem cacho é rainha”. Comecei a algum tempo, mas eu não desisti. Hoje pensar e repensar os meus conceitos sobre tenho meu cabelo natural é lindo - como o alisamento. Decidi começar meu processo ele sempre foi. de transição capilar. Eu sou uma mulher negra, de classe Para começar a transição, é necessário que o cabelo tenha a menor quantidade de social baixa e estou na faculdade. São poucas mulheres negras que têm essa química possível. Existem várias maneiras oportunidade, então, nesse cabelo armado de começar essa etapa e eu escolhi o e chamativo, eu reflito toda história de um processo que incluía fazer permanente e povo escravo que lutou, e luta até hoje, por esperar que a química saísse aos poucos – liberdade. uma mudança difícil e radical para o cabelo. Mas não somente para o cabelo.
“
Em 2012, Jéssica Lisboa, estudante, passou por um procedimento de alisamento do cabelo e o manteve assim com o auxílio da chapinha e do secador até o ano de sua transição, em 2015. Pouco antes da sessão exclusiva para a Foc@, ela usava tranças, também simbolo de resistência da população negra.
Gabriela Silva, estudante e trancista, contou à Foc@ que seu processo foi mais difícil. Após anos de química, uma queda fez com que o seu cabelo ficasse num comprimento a poucos centrímetos da raiz. Atualmente, ela cuida do próprio cabelo, com procedimentos que vão desde ao trançado até a aplicação de fio (modelo que está na foto)
Uma história de Anas, Jéssicas, Gabrielas e milhares de outros nomes
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“A Revolução dos Cachos” é o nome de uma pesquisa da GoogleBrand Lab, de 2017, que levantou números do interesse pelo cabelo afro na internet. Nos últimos dois anos, as buscas com as palavras chaves subiram 309% e, pela primeira vez na história do site, as pesquisas sobre cabelos cacheados superaram as de cabelos lisos. A busca por “transição capilar” no site de buscas aumentou 55% no último biênio e 24% das mulheres entre 18 e 24 anos, reconhecem o cabelo como cacheado.
FOC@ 21 plo, sempre sentiu que apenas o sexo convencional, conhecido como baunilha, não o satisfazia. Estava em seus 37 quando leu uma reportagem na revista Playboy sobre fetichismo e decidiu investir nas pesquisas. Os sites o levaram a uma das vertentes do fetichismo, o BDSM. E ali se redescobriu. “Deixei de me sentir como um patinho feio pois até então eu achava que eu era a única pessoa no mundo que fantasiava viver coisas diferentes da maioria das pessoas que conhecia”
Reprodução
SIÓÇNEL SOD MÉLA
ALÉM DOS LENÇÓIS
Os prazeres (e verdades) de um mundo cercado por tabus
R
oupas no chão. O suor dos corpos. A sincronia entre os amantes. As palavras nada puritanas. Sexo é um dos poucos prazeres que conseguimos levar a outro mundo. Mas se falar dele em seu ato já é um tabu, imagine se perder nos labirintos do que ele esconde. Cordas. Chicotes. Mordaças. Uma vida levada, literalmente, entre tapas e beijos. Se você é daqueles que gosta disso pra mais, preciso lhe dizer: é bem provável que você seja adepto do BDSM. Sim, o nome lhe é familiar. No fundo você conhece.Mas antes, pegue a minha mão. Vamos nos despir do que conhecemos superficialmente desse mundo. Vamos juntos nos entrelaçar no que ele tem a nos oferecer e, talvez, quem sabe, nos deliciarmos com isso.
Não conseguirei te mostrar tudo o que esse estilo de vida abrange. Ele é vasto. Mas te mostrarei o essencial para aproveitar o passeio. Antes, preciso do seu aval para continuarmos. Você está ok com isso? Você aguenta? Até onde você acha que consegue ir? Não se intimide. Esse é apenas um dos pilares do BDSM, o chamado SSC: São. Seguro. Consensual. Não, não é igual nos filmes onde os tapas começam do nada. Tudo é discutido. Tudo é negociado. Tudo é consensual. Nada que foge as regras do SSC pode ser considerado BDSM. Neste universo, tudo gira em torno do prazer de ambos. Como se adentra nisso? Bom, du rante o sexo, muitos gostam de tapas, puxões de cabelo, vendas, algemas, enfim, inúmeros adereços. Tudo isso está presente no BDSM. Mestre K (como gosta de ser chamado), por exem-
Mas afinal, o que é esse BDSM? O que ele tem de diferente? Sente-se. Você ainda é iniciante, então vamos com calma. BDSM vem de Bondage (limitação com cordas), Dominação e Submissão, Sadismo e Masoquismo. E assim como tudo nesta vida tem dois lados, aqui, nós também temos. Vamos dividir em grupos: o que vive as relações DS (dominação/submissão) e SM (sadismo/masoquismo). Não quero te assustar. Vamos devagar? Você topa? “A relação DS são erotizadas pelo poder/controle. Nestas relações você tem a figura de quem manda (dominador) e quem obedece (submisso). A essência dessas relações é o controle. Ao contrário do que muitos pensam, não está relacionada diretamente ao sexo. Isso é uma coincidência que pode ou não acontecer”. Mestre K Bom, o lado dominador foi fácil de entender. E o submisso? Sara* (nome fictício) iniciou nesse mundo quase como Mestre K. Sempre soube que precisava de algo mais, até encontrar seu parceiro. Os puxões de cabelo tornaram-se cintadas. E a relação nunca mais foi à mesma. “Antes de tudo é uma escolha. Para mim, libertadora. Ser submissa é deixar se levar pelo dominador. Você confia nele cegamente, pois sabe que ele irá cuidar de você. Tem algo sedutor, quase intoxicante, em se render”. Você está bem? Não foi tão ruim não é? Podemos continuar? Vamos retornar um pouco. Lembra das relações SM? Pois bem. Então guarde bem sua safeword (palavra de segurança),
porque agora nós vamos pegar pesado. Vamos começar com os sádicos. Os chicotes, mordaças, tapas, é aqui que eles entram. Um sádico é aquele(a) que sente prazer em causar humilhação, sofrimento (físico ou psicológico) ou dor durante o sexo. O SSC é muito importante nesta relação. Tudo deve ser conversado, pois, um deslize pode causar dores extremas a(o) parceira(o). “Ser sádico ainda é um tabu forte. Geralmente as pessoas pensam que somos psicopatas, mas não é assim. É questão de gosto. De prazer. Vai além de poder e controle. Pra mim, nada se compara a endorfina liberada por causar dor a minha companheira. Tudo, claro, dentro do que ela aguenta e concorda”. Douglas* (nome fictício) Você já deve ter percebido o jogo, não? Oh, você está ficando bom nisso. Se sádico é o causador da dor, masoquista é seu antônimo. É considerado masoquista aquele que sente o prazer em ser humilhado e/ou em sentir dor durante o sexo. E o que faz uma pessoa gostar disso? Nenhum fator altera isso. É sua libido. É o que vocês gostam. O que eles gostam. Assim como milhares preferem do convencional, a outra porcentagem goza com o excêntrico. “Quando estamos em uma sessão, tudo é consensual. E se eu não aguentar, é só dizer a safeword combinada e ele para. Não é uma relação de abuso, é importante ressaltar isso. Ele tem minha permissão, essa é a diferença. Em relação ao prazer, só gostando pra entender. Todos os sentidos ficam aguçados. A pele fica sensível ao toque. Tudo se intensifica. Nada que eu tenha tentado antes nunca me satisfez tanto quanto a prática BDSM”. Ana* (Nome fictício. Companheira de Douglas) Uma prática além dos lençóis. Um estilo de vida oferecido àqueles que estão dispostos a experimentar os outros tipos de prazer que o sexo tem a oferecer. E então, foi bom pra você?
FOC@ 23 “É a Constelação de Áries, representa o meu sentimento pelo meu avô”
O que significa a sua tatuagem?
“Não podemos deixar os sentimentos presos para sempre, precisamos deixar ir”
“Gostei da rosa, por isso tatuei. O significado é estético” “É a data do nascimento da minha filha. O coração é um simbolo do meu amor por ela”
“Esse é o símbolo do Slipknot”
“O latim da área que decidi estudar. Estudo Jornalismo” “A âncora é a representação da minha noiva, que é sempre segura, firme””
Foto: Ana Laura Silva; Modelos: Arthur Rosner, Camila Jane, Daniele Ferreira Lima, Jéssica Euflausin, Natália Theodoro, Rafaela Sitko, Taise Ivanaga, Thais Ribeiro Dias e Thalys Fernandes; Suporte Técnico:Camila Jane e Jéssica Lisboa; Produção: Ana Santos e Marcos Diego
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quero ficar no teu corpo
FOC@ 25
“Esse estilo é o Maori. Fiz por uma questão estética, de gosto”
Rosa e mandala “Gostei e fiz”
“A motivação dessa foi estética”
“Além do Pac Man ser um jogo da minha infânica, foi meu pai quem desenhou”
“Fiz pelo signifcado da frase em si Home is wherever I’m with you”. Parte da música Home, do grupo Edward Sharpe and the Magnetic Zeros
“Fiz em homenagem á minha família, eles me chamam de florzinha”
feito tatuagem
“Representa a paixão pelo meu time” Símbolo do Corinthians
“Tanto o pássaro, quanto a flor de lótus têm apelo estético. Eu gostei e fiz”
“Vim, vi, amei: essa frase tem um significado sentimental para mim”
“Nós fizemos a tatuagem por amor ao vinho. Quando nos abraçamos, nossas taças brindam”
o humano em destaque “Reportagem exige um primeiro movimento radical: atravessar a larga rua de si mesmo. Esse talvez o ato mais profundo e também o mais difícil. Não exige apenas suor, exige alteridade. O movimento da reportagem implica desabitar-se de si para habitar o outro, o mundo que é o outro.” Eliane Brum, no posfácio de “O olho da rua”
Resultado do desafio de entrar no mundo de alguém para retratá-lo a muitos outros, o especial Humano em Destaque conta a história de pessoas que viveram, aprenderam e decidiram que era hora de compartilhar.
FOC@ 27
Igual-Desigual Carlos Drummond de Andrade, in 'A Paixão Medida'
Eu desconfiava: todas as histórias em quadrinho são iguais. Todos os filmes norte-americanos são iguais. Todos os filmes de todos os países são iguais. Todos os best-sellers são iguais Todos os campeonatos nacionais e internacionais de futebol são iguais. Todos os partidos políticos são iguais. Todas as mulheres que andam na moda são iguais. Todos os sonetos, gazéis, virelais, sextinas e rondós são iguais e todos, todos os poemas em verso livre são enfadonhamente iguais. Todas as guerras do mundo são iguais. Todas as fomes são iguais. Todos os amores, iguais iguais iguais. Iguais todos os rompimentos. A morte é igualíssima. Todas as criações da natureza são iguais. Todas as acções, cruéis, piedosas ou indiferentes, são iguais. Contudo, o homem não é igual a nenhum outro homem, bicho ou [coisa. Ninguém é igual a ninguém. Todo o ser humano é um estranho ímpar.
O humano em destaque
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Foram quatorze anos de espera. Dor, sofrimento, angústia, aflição na esperança por um transplante. Dorival Stabile, 47, em 2003, foi diagnosticado com Hepatite C. O que parecia ser um problema dermatológico se tornou em frustação e sofrimento, por um longo período. Por meio de um gastrolgista, as consultas e medicações com substâncias extremamente fortes iniciaram. Foi um percurso intenso que incluiu de dois a três tratamentos durante anos, sem apresentar melhora. Diante esse cenário, resolveu procurou ajuda em outras cidades, custeado pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A cada mês, Dorival tinha que se deslocar ao Hospital de Infectologia Emílio Ribas, em São Paulo, para pegar os medicamentos. Por falta de sorte, não houve melhora no tratamento da hepatite. O medicamento tinha chance de 64% de promover cura, mas Dorival ficou
Etapa Vencida
na taxa dos 36% que resiste aos efeitos da medicação. Dois anos depois - período marcado por baterias de exames, consultas e medicamentos - ele retornou a São Paulo para dar sequência ao tratamento, que novamente falhou. O motivo foi o organismo de Dorival, que não teve condições de suportar o procedimento. O médico pediu para ele não perder as esperanças, pois um novo remédio estava sendo estudado e em breve chegaria ao mercado mundial - o que poderia pôr um fim em todo esse sofrimento. Em dezembro de 2015, o medicamento chegou ao Paraná. Por três meses, Dorival se tratou com a droga. O exame quantitativo da carga viral, feito após 90 dias, mostrou que a medicação havia funcionado: a carga viral era negativa. Finalmente, houve uma pausa depois de tantos anos de angústia.
“É desesperador, os pensamentos ‘eu quero’ e ‘o que vai acontecer comigo?’ são frequentes”
Nessas idas e vindas tomando medicamentos cada vez mais fortes, o organismo de Dorival sofreu danos, dentre os quais, uma cirrose. O fígado estava necrosado e ele começou a perder a função hepática. Mesmo com o resultado de eliminação do vírus, Dorival necessitava de um transplante. Logo, entrou na fila para a espera para receber um fígado. Na espera por um transplante, Dorival se sentiu sem expectativa, pois não tem hora, dia, mês ou ano para ser atendido. Ele só tinha que aguardar na fila e acompanhar a sua posição, o que foi possível com um login da Secretaria de Saúde do Estado do Paraná. “É desesperador, os pensamentos ‘eu quero’ e ‘o que vai acontecer comigo?’ são frequentes”. Diz Dorival.
Na madrugada de um domingo, dia 28 de Agosto de 2016, a ligação que esperava por seis meses e que trariam esperança após quatorze anos lutando pela sua saúde, aconteceu. Era do Hospital Angelina Caron, de Curitiba. Dorival recebeu a notícia de um fígado, vindo de um paciente que teve morte cerebral e tinha sangue compatível. Ao chegar no hospital, na capital do estado, Dorival foi direto para o centro cirúrgico. Sete horas depois, ele já tinha o novo órgão em seu corpo.
Arquivo Pessoal
Marcos Diego Rodrigues Pires
Arquivo Pessoal
4.6: O start para uma nova vida
Reestabelecimento Antes do transplante, o dia do seu aniversário, das suas bodas e do nascimento dos filhos, eram datas psicologicamente dramáticas para ele. Cada dia de vida para Dorival era uma comemoração, pois não tinha certeza do que estava próximo a acontecer. Para o físico as reações e condições eram até toleráveis, mas os efeitos psicológicos eram preocupantes. O apoio da família, amigos e colegas de trabalho foi fundamental no processo de reestabelecimento. Hoje, Dorival realiza suas atividades normalmente, com um corpo totalmente estável. Sua história de vida e conquista é levada para outras pessoas que querem salvar vidas, por meio da doação de órgãos. Pela mente passou medo, desespero, alegria... Mas, acima de tudo, a esperança de uma vida nova - não só para Dorival, mas para todos que conviveram diariamente com ele.
Bonecas também engravidam E se perguntam: e agora?
REPRODUÇÃO
O humano em destaque
FOC@ 31
Isabela Emerim
E
ra um final de tarde bonito. Céu limpo, poucas nuvens e o sol ia caindo no meio das árvores que atrapalhavam a luz fraca tocar o chão. Eu estava sentada com Ana Júlia Siqueira (nome fictício), 49 anos, secretária; uma mulher jovem, que não conseguia encarar algumas lembranças que vinham em mente com solidez e calmaria.O olhar dela se encheu de lágrimas e a pele do rosto avermelhou por várias vezes. A voz, uma vez ou outra, quase não saía, engasgada. Retomava o ar e falava em pausas, escolhendo as palavras. Ana viveu um relacionamento conturbado há pouco mais de 23 anos. Engravidou jovem, pelo menos para as crenças da família, assustando a todos com a novidade. Ninguém esperava uma gravidez.“Eles achavam que eu era um bibelôzinho, uma bonequinha de porcelana, intocável”. O pai ficou três dias sem falar com ela e a reação de choque tomou conta de toda a família. Por receio da atitude dos pais, a
garota escondeu a gravidez por alguns meses. Gravidez que havia descoberto um pouco mais tarde que o normal.“No primeiro mês, eu ainda menstruei... Fui descobrir um pouquinho mais tarde”. Apesar do pasmo inicial, posteriormente, a notícia desta chegada repentina alegrou a família, transformando a nova integrante na menina dos olhos dos avós, tios e primos. Mas até que este sentimento brotasse, Ana encarou um impasse dentro de si. A jovem não fez absolutamente nada para provocar o aborto. Somente pensou no assunto e, apoiada por uma amiga que já havia feito dois abortos, foram em uma clínica clandestina. A amiga de Ana acompanhou e a encora ou.Mas ela conseguiu.
“Não sei se resolve muito, porque não sei como fica a consciência depois. Eu acho que hoje a minha consciência não estaria em paz se tivesse acontecido algo com a minha filha”,
A amiga dizia para Ana que a ajudaria a resolver o “problema” da gravidez. Porém, ajovem grávida percebeu que o aborto não seria bem resolver um problema.“Não sei se resolve muito, porque não sei como fica a consciência depois. Eu acho que hoje a minha consciência não estaria em paz se tivesse acontecido algo com a minha filha”, afirma e complementa:“não é vida que segue. A consciência fica pesada, você fica pensando! Não é a mesma vida”. Ocorreu então uma situação que a fez desistir de vez da iniciativa de abortar. Ana tinha uma amiga que, estruturada economicamente e que não conseguia manter a gravidez, somente levava até o segundo mês, gastava muito dinheiro para segurar a criança. Nunca havia dado certo. Um dia encontrou-a por acaso. Sabendo dos pensamentos da amiga em abortar, acidamente disse: “- Eu tentando engravidar e você querendo tirar!”. Por meio de outros amigos que aconselharam a seguir com a gra-
videz, recebeu cuidado e respeito. Alguns se dispuseram a assumir a criança, caso Ana tivesse algum problema em casa ao contar para a família. Com o tempo, as pessoas em volta dela começaram a aceitar e acostumar-se com a ideia da gravidez e, apesar de ter que enfrentar uma gestação sozinha, sem a presença do pai, decidiu-se por ter a filha. “O arrependimento bateu logo depois quando vi a barriga crescendo... Eu ia tentar tirar um ser!”, diz, pasma. Após o nascimento, Ana cuidava do bebê com pesar. Chorava dias a fio. O arrependimento não lhe saía da memória. Perdeu várias noites de sono. Tinha pesadelos. A culpa de ter pensado no aborto a fazia estremecer por dentro, “Apesar de ser um embriãozinho, estava ali! Era muito angustiante! A cada conquista, a gente vai olhando mês a mês e pensa como é que eu pude pensar em tirar?”, os olhos avermelharam e uma lágrima quase desceu bochecha abaixo. Ana dormia com a filha agarrada ao corpo, pois tinha medo de perdê-la. Acreditando que este sentimento
de perda tenha sido transferido para o feto durante a gestação, diz que a filha passou por uma fase na infância em que tinha medo de perder tudo. Os avós, a mãe, os tios. A ideia de “eu ia matar um ser” assombra Ana até os dias de hoje. Falar sobre o assunto é como recordar os detalhes de uma mistura de sentimentos que tomou conta dela no momento da gravidez. 25 anos depois “Já chorei muito. Poxa, eu ia tentar matar um ser e está ali, perfeita, linda, capaz! O pior é a consciência. Ela tem 25 anos e eu me culpo até hoje. Ainda me culpo mais porque cheguei a procurar a clínica”. A dor de falar sobre ter pensado em abortar se apodera das linhas do rosto enquanto fala. O sorriso se esboça tímido e trêmulo. Ana deixou-se tomar por uma faísca de felicidade quando se lembrou do momento que teve a oportunidade de entregar para a filha o certificado de conclusão de curso.“Hoje não me imaginaria sem minha filha. Minha vida é per-
feita, mas com ela. Sem ela, não seria feliz”. A conscientização sobre o aborto, segundo Ana, deveria ocorrer nas escolas. Desde pequenas, as crianças devem receber orientação sexual. Para ela, nem mesmo em casos especiais deve-se fazer o aborto sem conscientizar a mãe dos possíveis danos. “Mesmo em caso de estupro, precisaconscientizar que esta mãe pode sofrer. Mesmo sendo de motivos alheios, tem que ter a conscientização, porque a consequência futura é muito grande”. Neste ponto da entrevista, Ana Júlia soltava as palavras sem receio. Eu percebia que ela queria convencer o mundo todo da necessidade da conscientização antes de qualquer prática abortiva. Fizemos uma pausa e ela se recompôs. Passou então por meus neurônios: - E se hoje esta situação acontecesse com a sua filha Ana e ela pedisse sua opinião em relação a manter ou não a gravidez, qual seria seu posicionamento? Ela foi direta nas palavras: - Eu não aconselharia.
O humano em destaque
FOC@ 33
Do amor à dor
Mães que sofrem de depressão pós-parto e passam do céu ao martírio
Natália Theodoro
A
experiência de gerar uma nova vida, na maioria das vezes, vem acompanhada de alegria e surpresas boas. Uma gravidez planejada ou aguardada enche a família de luz e os corações de amor. Durante os nove meses de gestação, os preparativos para a chegada do bebê dão início ao maior processo de ansiedade e espera que talvez uma mulher possa passar em sua vida, e isso é dividido com todos os que se fazem presentes na vida da nova mamãe. No entanto, gerar um bebê enquanto se é muito jovem pode não trazer tantas experiências boas assim. Cristina, 42, engravidou aos 14 anos e ganhou bebê ao acabar de completar 15. Ela e o até então namorado, estavam juntos há pouco tempo, porém, a notícia fez com que fossem morar juntos e logo depois casassem. As responsabilidades que recaíram sobre ela a partir da notícia da gravidez aumentaram imediatamente após o resultado “positivo”. O marido, dez anos mais velho, trabalhava durante o dia para poder pagar as despesas da casa e Cristina passou a ajudá-lo com o pouco que ganhava trabalhando em algumas casas de família, ao menos para que conseguissem pagar as consultas do pré-natal. A gravidez foi tranqüila, porém no sexto mês aconteceu o inesperado. Um descolamento de placenta obrigou o médico que a acompanhava a fazer o parto de emergência, mesmo com o risco da criança não sobreviver. Sem forças para viver, o bebê recém-nascido foi liberado pelos médicos para passar as últimas horas junto com a família, em casa.
O chão daquela mãe desabou. Ela saiu do hospital ainda com os pontos na barriga e machucada no coração. Ao ouvir as palavras do médico, Cristina conta, disfarçando o nó na garganta, que não pensou em outra coisa a não ser salvar a vida de seu pequenino filho. “Ele nasceu com 1,2kg. Cabia na mão do pai dele. Eu olhava pro meu filho e só pensava em vê-lo grande, sadio, sorrindo.” A solução que encontrou no momento do desespero foi levá-lo do hospital para a igreja, pedir a benção do padre para que, se seu filho morresse, fosse abençoado. Cristina, religiosa desde a infância, suplicou para que o padre de sua paróquia o batizasse mesmo que ela e o marido não tivessem o sacramento do matrimônio. Vendo o desespero daquela menina que já havia despertado o instinto materno, o padre conseguiu autorização do bispo da igreja para realizar o batismo de emergência. O batismo aconteceu com o bebê numa situação crítica. Os médicos ficaram surpresos com a vida, dia a após dia, do bebê prematuro. Mas apareceu um segundo problema: Cristina não tinha leite materno, em consequência do parto forçado. O organismo não liberou o leite, crucial para fortalecer o bebê naquele momento. Mais uma vez a menina mãe entregou seus pedidos à fé que trazia no coração e, por meio de
promessas, pediu a Deus que se tivesse leite para amamentar ela só o alimentaria com o terço na mão, até que ele completasse um ano de vida. E assim se fez. Os dias foram passando e, como por um milagre, ela se tornou fonte de vida para seu filho, que aos poucos foi ganhando peso e crescendo. “Eu era muito nova. Ainda estudava à noite e, de duas em duas horas, saía da escola e corria em casa que ficava a duas quadras dali, só pra amamentá-lo.” A vida de Cristina de um dia pro outro tomou novos rumos, chegaram novas preocupações e seu coraçaõ passou a sofrer, torcendo, de minuto em minuto, pra que tudo desse certo. Depressão Com o passar dos dias, ela começou a se sentir mal - consigo mesma e com seu marido. Foi um sentimento de angustia nunca sentido antes. Ela conta que se culpava por tudo e que não tinha ânimo de levantar da cama quando seu bebê chorava pedindo por ela. O coração estava em pedaços e a alegria de ter o filho vivo foi substituída por uma tristeza assustadora, que passou a destruí-la dia após dia.
lia e amigos durante a gravidez e após o parto; estresse inesperado como um recém nascido doente; violência doméstica e relacionamentos abusivos. Casos dessa doença são comuns e muitas mulheres passam pelo problema sem ao menos receberem um diagnóstico preciso. Eliane, 31, foi mãe recentemente e diz ter sorte por ter sido diagnosticada logo nos primeiros sintomas do transtorno psicológico pós-parto. “Agradeço ao meu médico que com o resultado imediato de meus exames pôde me dar o diagnóstico e me ajudar a entender e evitar que o caso se agravasse.” Para Eliane, a doença é silenciosa e, quando se percebe que algo está errado, é porque ela já está ali. “Ele me explicou tudo, tirou todas as minhas dúvidas. Eu tive uma queda drástica nos hormônios estrogênio e progesterona e, para ele, este foi o principal fator de tudo o que estou passando.” As lágrimas caem, as mãos tremem, mas ela continua. “Só Deus sabe o quanto desejei ser mãe e, quando eu olhava pro meu bebê e não sentia o amor que eu esperava sentir, me considerava um monstro, não entendia como era possível. Mas com o problema identificado consegui me enxergar novamente, e saber que eu ainda estava ali, a depressão só estava me impedindo de ser eu mesma.”
Uma em cada quatro mulheres brasileiras apresenta ou já apresentou sintomas de depressão pós-parto.
A falta de sono e o estresse diário deram a Cristina a uma carga psicológica negativa muito grande. Sua autoestima, confiança com o marido e até mesmo com o filho foram embora pouco a pouco, em reflexo à depressão pós-parto. Uma pesquisa realizada recentemente pela Escola Nacional de Saúde Pública, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), mostrou que uma em cada quatro mulheres brasileiras apresenta ou já apresentou sintomas de depressão pós-parto. Os sinais variam e podem ser de desespero e tristeza constantes, até perda e ganho de peso excessivos, além de cansaço. Em casos mais acentuados, há tentativa de suicídio. Alguns fatores de risco podem contribuir para este diagnóstico, como a falta de apoio da famí-
Cristina, Eliane e tantas outras mulheres que são julgadas ou até mesmo julgam a si mesmas sofrem sozinhas, sem entender o que tem acontecido em suas vidas e porque se transformaram tanto. Identificar o problema o quanto antes é de fundamental importância para uma qualidade de vida melhor - tanto para mãe quanto para bebê. A pedido, os nomes das personagens desta reportagem são fictícios.
MÃES DE VERDADE Andreia Silva Andreia Silva Basta ligarmos a TV , entrar em um site de informação , para vermos que a cada dia parece que cresce o número de crianças abandonadas , enquanto algumas mães rejeitam seus filhos , em outras, vemos o drama daquelas que lutam para engravidar, e como a adoação pode ser o caminho para quem quer ser mãe . Aí se vem a questão: o que é ser mãe de verdade ? Crianças que foram deixadas ao acaso, inocentes , a uma realidade cruel e desconhecida, só este ano, em Maringá, seis crianças foram abandonadas pelas mães, no início do ano uma mãe deixou sua filha na escola e assinou um termo dizendo que não queria mais ficar com filha, e logo depois negou tudo , em sua fala trêmula ela diz: “ Eu não abandonei , eu deixei um lugar com uma pessoa pra cuidar, eu não abandonei” vem o choro , as lagrimas o desespero. No inicio do mês passado, um casal de irmãos também foi deixado na escola pela mãe adotiva, um menino de oito anos e uma menina de 9 , ela disse que não voltaria mais para buscar as crianças, o Conselho Tutelar constatou maus tratos e o caso está sendo investigado, um descaso difícil de entender que deixa marcas, mas que não impede os pequenos de andar e sonhar uma nova vida “ Eu sonho em ter uma família, feliz , reunida , eu sonho em ser amada”, diz a menininha , suja , roupas rasgadas, ao lado do seu irmão abandonados na escola pela tia. Se a infância oferece caminhos para concertar um futuro para alguns, para outros, muitas vezes é tarde demais , um recém-nascido no inicio do mês de setembro deste mesmo ano, foi deixado em um saco de lixo num fundo de vale, ainda com o
cordão umbilical, a suspeita é de morte por asfixia e a me ainda não foi encontrada. Histórias assim, tem se tornado cada vez mais freqüente. Em Maringá, crianças e adolescentes vítimas de abandono e maus tratos são encaminhadas para dois abrigos, um recém inaugurado, abriga menores de 0 a 12 anos, um outro mantém adolescentes entre 12 e 18 anos, 23 menores estão internados nessas unidades, tornar esses espaços cada vez mais familiar e minimizar os traumas tem sido o desafio diário de quem esta a frente dos trabalhos. Ederley Alkamin , secretário de Assistencia Social, diz “ Os profissionais recebem treinamento e fazem cursos para cada fez mais receber e dar a essas crianças o amor que não tiveram em casa“. Hoje a lei determina que para as crianças e adolescentes só podem permanecer em abrigos ou lares acolhedores por no máximo dois anos e esse é o tempo que as equipes do Conselho Tutelar do município têm para encontrar uma família adotiva. A dificuldade é que na maioria dos candidatos querem crianças brancas, menores de cinco anos e totalmente saudáveis. O desafio é encontrar casais dispostos somente a amar . Andréia Pinheiro, engenheira agrônoma e Nobili Augusto Jarletti, médico veterinário, decidiram ajudar.Eles têm dois filhos e são voluntários no programa Família Acolhedora. Há pouco mais de um ano, três bebês já passaram pela casa deles e com muita emoção, voz engasgada o casal fala desta oportunidade de dar amor e de ser mãe de verdade.
À espera
Suellen Rodrigues
O humano em destaque
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Filhos que deixam as mães
Suellen Rodrigues “Um dia eles foram embora e nunca mais voltaram”. Essas são palavras e lembranças de Valdice Rodrigues, 81, aposentada, que há 35 anos não vê seus dois filhos homens. Certo dia, abandonaram a família sem deixar pistas de onde poderiam estar. Haroldo Rodrigues, filho homem mais velho, foi o primeiro a abandonar a mãe e os irmãos. Ele tinha 19 anos. Havia acabado de sair do Lar dos Padres, onde morou alguns anos. O dia de se apresentar no Exército foi o último que viu a família. Hoje, Haroldo pode estar com 54 anos. Dona Valdice acredita que ele possa ter mudado o nome, pois já foi procurado nos principais órgãos públicos, mas ninguém o localizou. Heraldo Rodrigues, segundo filho homem, sumiu há 20 anos. O último paradeiro foi no Rio Grande do Sul. De lá, fez a última ligação para a mãe. Hoje pode estar com 53 anos.
Ele trabalhava em uma empresa de descartáveis, era casado e cuidava de um enteado antes de ir para o sul. Foi para outro estado devido à falta de trabalho na cidade onde morava, Maringá. Separou da esposa, visitou Dona Valdice uma semana antes de ir embora, despediu-se da família, combinou de ligar toda semana, mas ligou somente uma vez e nunca mais. No Brasil, o abandono de filho com os pais é bem menos que o inverso, a não ser, casos de idosos, quando os filhos abandonam seus pais nos asilos, mas este não foi o caso de Valdice, até porque ela vive com a filha mais velha, e mantém contato com mais três filhas mulheres. A explicação de seus dois filhos homens terem ido embora é um grande segredo. Ela não sabe dizer.“Eu tive seis filhos. Quando eram crianças, não pude criar eles. Eu me separei quando a mais nova ainda era um bebê e, por falta de condições, cada um foi para um lugar diferente”.
A filha mais velha, Marlene Rodrigues, que hoje mora com a mãe, e a terceira filha Neuza Rodrigues foram para São Paulo naquela época em virtude das dificuldades; moraram com a avó. A segunda, Sônia Rodrigues, ficou em Maringá morando com uma tia. Os meninos, para o Lar dos Padres, que depois, já adultos, reuniram a família. As filhas e o filho Heraldo casaram na mesma época em que o último desapareceu; alguns anos depois, Heraldo também se foi. A dor da aposentada é ter que conviver com este mistério. Na tentativa de encontrá-los, não sabe se morreram ou, se estão vivos, por que não querem contato com a mãe. “Eu penso deles ainda voltarem antes de eu morrer. Peço muito a Deus, eu tenho a esperança de vê-los novamente”.
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INCENSO FOSSE MÚSICA Paulo Leminski
Isto de querer ser exatamente aquilo que a gente é ainda vai nos levar além
Sebastião Salgado - O Sal da Terra
O humano em destaque
Sem emprego para trans
Lorena Betiati
Quando você pensa em transexual, qual a primeira palavra que vem à mente? Caso tenha pensando em prostituição, saiba que você tocou num dos pontos mais delicados e tristes da realidade da maioria.
O preconceito afasta transexuais da escola, reduz oportunidades de trabalho e abre as portas para a prostituição
De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), cerca de 90% da população transexual está se prostituindo neste momento no Brasil. Agora, indo mais além, já parou para se perguntar quantas pessoas você conhece que são transexuais e fazem parte do mercado de trabalho? “Essas pessoas estão marginalizadas, alijadas dos bancos das escolas e universidades, preteridas no mercado de trabalho, sendo forçadas a se prostituírem, tendo o gênero deslegitimado diuturnamente, sendo agredidas por uma sociedade que não nos considera gente, que não vê humanidade em nós”, diz a transexual J.M., de 18 anos. “Ano passado eu cheguei a quase fechar a matrícula do cursinho, faltavam dois meses para acabar e decidi ficar. Ficava mais tempo na sala de estudos do que dentro da sala de aula”, contou ela, que é mulher trans e mora em Maringá. “Quando eu assumia minha condição abertamente, era comum piadas sobre ser ‘menina macho’, ‘traveco’ e coisas do tipo”. A trans conta que o pior preconceito era o que sofria pela direção do colégio particular, que não usava o seu nome social. “É constrangedor quando você está em uma sala de aula rodeado de pessoas e para fazer chamada gritam seu nome de RG. Eu, no ensino médio, nem respondia quando isso acontecia. Conversei com os professores para aceitarem me chamar pelo nome social. No banheiro, não ia por medo de me verem entrando ou saindo de lá”, conta.
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“[...] larguei a faculdade por conta de constrangimentos e preconceito dos alunos na sala. Então sempre ‘estudei’ em casa e não tenho como apresentar nenhum diploma, assim como muitas empresas pedem” A psicóloga Juliana Souza, 24, comenta que a baixa empregabilidade de pessoas trans se deve às dificuldades que a família, a escola e a sociedade no geral impõem. “As travestis e transexuais são rejeitadas pela família, não encontram apoio na escola, não recebem apoio real do Estado e, por consequência, não estão preparadas e capacitadas para enfrentar o mercado de trabalho’’. Sem apoio familiar, com baixa escolaridade e sem experiência, elas ficam à margem dessa sociedade e acabam sendo catapultadas pela cultura e pelo estigma da prostituição”, analisa. A trans ressalta, que não é a prostituição que deve ser combatida, porque essa é uma opção legítima da pessoa trans. “O que deve ser combatido é ter na prostituição a única porta aberta”. Mercado de trabalho Nicole Maria (nome fictício), 20, acredita que a dificuldade para arrumar um emprego se deve à transfobia (aversão sem controle, repugnância, ódio, preconceito de algumas pessoas ou grupos contra pessoas denominados população trans.). “De todas as vezes que fui chamada para a entrevista, diziam que a vaga não estava mais disponível’’. Nicole ainda não mudou seu nome em documentos, e conta que sente o preconceito no momento em que chega para as entrevistas de emprego.
A trans destaca que não é exigente quanto à vaga, apesar de não considerar sua qualificação baixa: “Infelizmente larguei a faculdade por conta de constrangimentos e preconceito dos alunos na sala. Então sempre ‘estudei’ em casa e não tenho como apresentar nenhum diploma, assim como muitas empresas pedem”. Esperança Bárbara Cristina (nome fictício), mora em Maringá e já está há seis meses sem emprego. Seu último trabalho foi como auxiliar de escritório e vendedora, onde ficou apenas dois meses. “O dono me tratava da forma que pedi, no feminino, usava meu nome social, sobre isso não tenho nem do que reclamar, ele foi uma ótima pessoa”, relembra. Apesar de estar desempregada, Barbara tem esperança de que o preconceito contra transexuais diminua. “Espero que depois de tudo o que acontece todos os dias com transexuais e da visibilidade que estamos ganhando, seja negativa ou positiva, que isso toque o coração de outras pessoas e empresários e que eles deem chances para nós’’. Ela conta ainda, que o governo deveria fazer algo para dar assistência a essas travestis e trans expulsas de casa que acabam se prostituindo. ‘’Quero ver as transexuais trabalhando em lojas, como secretárias e que
consigam continuar estudando’’. Num Momento de desabafo, Bárbara diz que as pessoas ridicularizam as trans que se prostituem.‘’Está na hora da gente poder escolher o que quer fazer, seja prostituição, estudo tradicional, ter uma família, ter um emprego formal ou um futuro melhor”. ANTRA A presidente da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil), Cris Stefanny, denuncia a falta de oportunidades no mercado de trabalho: “As transexuais que a todo custo tentam arrumar um emprego conseguem serviços subalternos, como limpar o chão, trabalhar em cozinhas. Muitas têm bom currículo, mas não conseguem emprego”. A Antra funciona justamente para apoiar as pessoas trans que sofrem violência. Apesar de existir uma lei federal que especifica a transfobia e homofobia como crimes, a Constituição preserva a integridade de todos os indivíduos. A associação, formada por ONGs de transgêneros e homossexuais mistas, orienta as vítimas de transfobia a buscar as autoridades competentes e denunciar o caso para dar visibilidade à causa.
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como zeladora em uma escola), ver as crianças correndo de um lado para o outro e limpar as salas. Agora? Volta à cama para dormir.
À espera de um milagre A rotina de uma aposentada em busca da relocação no mercado de trabalho
Jéssica F. Lisboa
Um novo dia se inicia: o despertador de sua filha lhe acorda. São 5h30 da manhã. Há anos ela mantém a rotina de acordar junto com os galos: “Quem cedo madruga, Deus ajuda!”, é o que sempre responde quando lhe perguntam por que acorda tão cedo. Mas um fato que não conta é que não se levanta exatamente nesse horário. Ela fica deitada com seus olhos abertos enquanto espera sua filha se preparar para mais um dia de trabalho. Faz uma longa oração para seu Deus, para que o dia seja abençoado.
Quando a filha sai de casa, ela, enfim, tira seu corpo da cama. Caso a filha saiba que acorda tão cedo, ouvirá reclamações de que deveria estar descansando. “Frescura”, pensa. Maria Aparecida nasceu na roça, “comeu o pão que o diabo amassou”; acordar cedo é o de menos. Vai até a janela da sala, ainda está escuro. Como o tempo passa rápido sem que nos demos conta. Toma seus remédios, prepara seu café, fuma seu cigarro. Nada novo. Antes de se aposentar, a rotina não era nada monótona: preparar o café, acordar a filha, arrumar a casa, se arrumar, ir até seu trabalho (antigamente trabalhava
Jéssica Lisboa
Quando acorda novamente o sol está alto, já passa das 10 horas da manhã. Está na hora de preparar o almoço. Antes disso, vai até a janela do apartamento para ver o movimento da rua e se a zeladora está trabalhando “Na minha época não era assim, não. Hoje esse pessoal só quer mamata. Se meu patrão me visse fofocando ao invés de trabalhar, era olho na rua na certa. Hoje em dia esse pessoal novo reclama de boca cheia”, diz bufando e saindo da janela. Após o horário do almoço, senta-se em frente à tevê à espera dos anúncios de emprego. São boas oportunidades; anota os telefones que a interessam e entra em contato. Mulheres simpáticas quase sempre atendem as ligações, questionam os locais onde já trabalhou. Dizem que tem ótima qualificação profissional, porém, quando lhe perguntam a idade, falam que a vaga é para pessoas com máximo 50 anos ou que já foi preenchida. Isso já não é novidade alguma. Ela vem ouvindo a mesma desculpa há mais de sete anos. Termina os afazeres domésticos, volta a ficar diante da tevê e assim será todo seu período vespertino. Na verdade, queria estar trabalhando fora, limpando chão, fazendo cafézinho, fazendo qualquer coisa, desde que se sentisse útil ao mercado de trabalho novamente. Mas, com a idade somada à condição de aposentada parece fazer com que as oportunidades se tornem escassas. Desde quando se tornou aposentada, os empregos se tornaram mais escassos: “Queria estar trabalhando, mas eles não contratam ‘pessoas de idade’, mas, o que é idade para eles? Trabalhei desde meus sete anos debaixo do sol. Não é porque tenho mais de 60 anos que eu esteja inválida. Trabalho tão bem quanto qualquer pessoa novinha por aí. Por isso fiquei mais de 30 anos limpando chão em meu último emprego”, diz com orgulho. Vinda do Nordeste em um pau de arara, com 13 irmãos; em 1952, criaram raízes em Maringá.
Nos primeiros anos de aposentadoria até que conseguia alguns bicos, porém, quanto mais experiência e idade, menos oportunidades. A novela acaba, está na hora da filha chegar e logo ela sai para ir estudar. Assim como a filha, há um ano voltou para as salas de aula. Dessa vez não era para limpar o chão, mas sim para sentar nas carteiras e aprender. Não queria, mas sua filha acabou a convencendo: “Ela tem uma lábia... Não sei a quem puxou, mas estou gostando de estudar. Ela tem razão, no mundo de hoje quem contrata uma pessoa que não sabe nem escrever o nome? Tenho que me qualificar para conseguir alguma coisa, já que experiência e idade não parecem ter mais utilidade”. Sua filha chega, conversam, jantam juntas e vão estudar. Maria não vê o tempo passar dentro da sala de aula. Ali ela se sente um pouco mais útil, por mais que preferisse estar trabalhando. A aula acaba e ela vai para casa. Neste horário normalmente já estaria dormindo para acordar no outro dia e ir trabalhar, mas ela já não consegue ser recolocada no mercado de trabalho. Depois de conversar um pouco com a filha que acabou de chegar em casa em frente à televisão, vai se deitar. Assim se encerra mais um dia. Assim continua o ciclo. “Sei que uma hora vou conseguir um emprego, onde o que será valorizado é meu trabalho e experiência. Minha idade vai ser o de menos”.
O humano em destaque
FOC@ 43
A velhice que não ouvimos Minhas banalidades não lhes interessam, e dificilmente eu poderia culpá-los por isso. Minhas histórias reais estão defasadas. E daí que eu posso falar em primeira mão da gripe espanhola, do advento do automóvel, das guerras mundiais, das guerras frias, das guerras de guerrilha e do Sputinik? Agora, tudo isso é história antiga. Mas o que mais eu tenho a oferecer? Nada de novo me acontece. Essa é a realidade do envelhecimento, e acho que essa é a questão essencial. Ainda não estou preparado para ser velho. (Jacob Jankowski, 93 anos, In Água para Elefantes de Sara Gruen, 2007)
Tatiane Gonçalves
O trecho acima, extraído de um livro de literatura, serve bem para pensarmos como nossos velhos1 ainda são tratados. Ainda, porque embora muita discussão em torno do envelhecimento venha sendo feita, nossas práticas cotidianas revelam a exclusão a que são destinados muitas pessoas, em nosso país, após completarem sessenta anos. A pessoa velha, especialmente no momento de sua aposentadoria, muitas vezes acaba não encontrando no lar, na família, uma rede de apoio; acaba relegado ao ostracismo, à solidão, à depressão. Uma vida dedicada ao trabalho, seguindo uma dura rotina, implica, para muitos, em afrouxamento dos laços familiares. O resultado, na velhice, é bastante revelador de como nossa sociedade não se prepara para esta fase da vida e como, num mundo cercado por tecnologia, nos esquecemos de sentar e conversar com nossos velhos, resgatar práticas – de saúde, educa-
ção, trabalho – que vão sendo, aos poucos, esquecidas, já que não temos tempo, nem disposição para ouvir essas pessoas. Em suma, deixamos de ouvir uma geração que, ainda que finjamos não saber, tem muito a nos ensinar. Depois de alguns anos trabalhando com idosos, atendendo pessoas em fase de aposentadoria – e que, em diversas situações expõem seus medos sobre o futuro – e após os dois anos de pesquisa para o Mestrado, foi possível perceber que o velho precisa e quer ser ouvido. Que ele tem muito a dizer; que sua fala tem significado e, talvez o mais importante, ele consegue perceber que as pessoas evitam ouvi-lo, evitam dedicar um pouco de seu tempo para “um dedinho de prosa”, como é possível perceber na fala do Sr. José, com quem conversei anos atrás: “Filha, você tem um tempo pra conversar? (...) Eu tenho muitas histórias para contar. O problema de vocês jovens é que nunca querem ouvir o que a gente tem pra dizer. Para vocês, o velho nunca tem nada de bom pra dizer.” Precisamos rever nossa prá-
tica, reincluir os velhos em rodas de conversas, mostrar a eles que aquele saber que eles possuem, que foi acumulado ao longo de uma vida inteira de trocas, de aprendizado, tem valor. Que a pessoa que envelhece tem um papel fundamental na sociedade: o de manter vivas nossas relações com nossa história e com nossas origens, com quem nós somos. E, entre uma olhada e outra nas nossas atualizações virtuais, sentar pra ouvir um bom causo, uma boa história, na grande roda do conhecimento, do aprender e do ensinar, que é a vida. As justificativas sobre a escolha de empregar o termo velho para me referir às pessoas com mais de sessenta anos foram debatidas em minha dissertação de Mestrado, defendida no ano de 2016, da Universidade Estadual de Maringá. Mas adianto que essa escolha se deu pelo fato de crer que é importante haver um resgate do significado da palavra velho e, ainda, porque ela foi a denominação escolhidas por alguns dos meus entrevistados.
A mudança de um destino Nathália Santos
Josefa Santos Passos, nascida em um sítio em Itanhém, Bahia, criada juntamente com seus irmãos à maneira dura da roça, desde muito pequena já pegava na enxada e ajudava no sustento da família, que vivia uma realidade de muita pobreza. “Não me lembro da infância sem ser na roça, se é que aquilo pode ser chamado de infância.” Na adolescência, cansada dos maus tratos do pai, Josefa fugiu de casa e foi morar com uma avó em uma cidade vizinha. Anos mais tarde, tomou a decisão de mudar-se para o Guarujá na grande São Paulo, com o sonho de ter qualidade de vida e melhores condições para construir uma família. Após algum tempo na cidade e de muito procurar, começou a trabalhar no Banco Central e, nas poucas horas vagas, limpava casa de funcionárias. A vida começava a se estabilizar, mas, com a crise de 1999, Josefa acabou perdendo o emprego e ficando apenas com as faxinas que também diminuíram, por consequência da crise. Em alguns meses, ela voltou a trabalhar, dessa vez como empregada doméstica na casa de um casal de médicos e começou a construir uma casa. Com a vida entrando nos eixos, conheceu e se casou com Cícero Gomes, com quem teve cinco filhos. Com seus filhos já adolescentes, o marido construiu um bar, negócio que deu certo e começou a melhorar as condições da família. Com o passar do tempo, devido a algumas dívidas, o estabelecimento foi à falência. Cícero, que já tinha problemas com a bebida, se tornou agressivo com a mulher e os filhos.
Em um episódio narrado pela entrevistada, ele alcoolizado, quase matou a filha com um revólver na boca. “Foi a gota d’ agua para a separação; o próprio pai virou um perigo para os filhos.” Não podendo contar com a ajuda do marido, Josefa trabalhava o dia inteiro para sustentar os cinco filhos, raramente parava em casa. Mesmo com os filhos adultos, a correria permanecia a mesma. Mas agora ela poderia ficar mais tranquila, seus filhos já eram crescidos e trabalhavam. Porém, outras preocupações começaram quando um de seus filhos se envolveu com drogas e praticava roubos. O jovem acabou assassinado em uma rixa com traficantes. Mais tarde, o mesmo ocorreu com outro filho. Alguns anos depois, as drogas e a violência levaram mais um filho e uma nora. O casal deixou um filho recém nascido abandonado em um morro. Josefa foi atrás desse neto na favela. Encontrou a criança machucada e muito doente. Ela o levou para casa e o criou como filho. Dando a ele a chance de ter um desfecho diferente do que tiveram seus tios e pais. Atualmente, o rapaz com 25 anos mora com a esposa em Maringá/PR, trabalha e está construindo uma família, longe da realidade em que viveram os pais.
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Na horta, a cura da depressão
Seu Joel perdeu a esposa e o sentido de viver, mas reencontrou a alegria no cuidado das hortaliças
Ana Santos
Durante 45 anos, seu Joel Rodrigues, 75, foi casado. Mais que viverem uma história de amor, eram parceiros, amigos, cúmplices. A morte dela, porém, deixou-o sem chão. Vítima de um câncer, dona Isaura Silvia faleceu há dois anos e meio. Ainda hoje, ao falar da esposa, conserva um sorriso no rosto e um olhar apaixonado. Mas, até pouco tempo, era difícil vê-lo feliz. A morte da esposa levou-o à depressão. Perdeu o desejo de viver. A recuperação começou quando encontrou uma nova forma de passar os dias. Foi na horta comunitária do Jardim Olímpico que seu Joel reaprendeu a sorrir. A horta do bairro foi inaugurada em julho de 2012. Desde aquela época, seu Joel cultivava hortaliças, mas, apesar de ter um canteiro, pouco visitava. Quando a sua esposa faleceu, o vínculo com a horta cresceu e foi o principalremédio. Seu Joel até que por um tempo tentou se dedicar a outras atividades. Os filhos o incentivaram a ir para o forró, arrumar uma nova companheira, mas respondeu que não tinha mais idade para essas aventuras da juventude. A horta, entretanto, estava lá, esperando por ele. E, aos poucos, o contato com a terra, o manuseio das hortaliças, trouxeram conforto para o seu coração. O aposentado nunca gostou de ir ao médico, muito menos de tomar remédios
controlados. E a depressão? Não existe mais. Hoje, seu Joel se considera a pessoa mais feliz do mundo, uma pessoa com uma ótima saúde, com um canteiro lindo e uma família amada. Seu Joel não é o único que sofre com depressão. A doença afeta 322 milhões de pessoas no mundo, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). No país, 5,8% da população sofre com esse problema, que afeta mais de 11,5 milhões de brasileiros. Normalmente a depressão acontece por situações perturbadoras ou até mesmo estressantes, problemas financeiros, divórcios, traumas emocionais, doenças graves, como demência, ataque cardíaco, HIV ou falecimento, como foi o caso do seu Joel, em virtude da perda da esposa. A depressão é uma doença da mente e, por isso, é fundamental que a pessoa coloque todas as suas forças e pensamento em coisas boas, como atividade física, leitura, escrita, conversas ou, como fez seu Joel, no cuidado de hortaliças.
No Brasil, a depressão atinge 5,8% da populaçã, o que corresponde a 11,5 milhões de pessoas.
Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é Caetano Veloso
FOC@ 47
VIAJAR, RECONECTAR E CRESCER Fotos e texto de Gilson Ferreira
Guatapé, Colômbia
FOC@ 49
“Acredito que será sempre assim, viajando, aprendendo, me reconectando, e voltando planejando a próxima descoberta”
Guatapé, Colômbia
Resgate. Viajar pra mim é isto, um retorno à um estado que é essencial à mim, o da descoberta. Dos olhos de criança frente ao novo, a aquilo que você não entende como funciona, qual à forma correta de pronunciar ou não tem ideia do gosto. Enfim, descobrir. Desde pequeno fui da estrada. Não na prática, porque meus pais não costumavam viajar com frequência, mas de alma eu sempre fui. Qualquer viagem a casa da vó era encarada como uma volta ao mundo. Eu me preparava dias antes, ficava ansioso, sempre ia na janela e não dormia um segundo se quer da viagem. Não via sentido nas pessoas que dormiam, afinal, uma infinidade de coisas novas estava passando lá fora e elas dormindo, tranquilas. Não vejo até hoje!
Medellin, Colômbia
Na primeira oportunidade que tive quis fazer algo que, para a minha realidade, era grande: passar um mês mochilando por três países da América do Sul, sem reservas, sem agências, tudo por minha conta. Foi incrível! Na minha concepção, quando nos deparamos com um choque cultural tão forte, de um modo tão imersivo, algo que não conhecemos e não conseguimos explicar, mas que está ligado a ancestralidade, desperta em nós. Como se nos reconectando com outras pessoas estivéssemos nos reaproximando do que de fato somos, humanos, e não maquinas.
“Como se nos reconectando com outras pessoas estivéssemos nos reaproximando do que de fato somos, humanos, e não maquinas”
Quando voltei senti que precisava de mais. Mais aventura, mais pessoas, mais lugares, e, principalmente, mais tempo de estrada. Foi assim então que fui para o segundo mochilão, desta vez de três meses e cinco países. Acredito que será sempre assim, viajando, aprendendo, me reconectando, e voltando planejando a próxima descoberta. Comumente escuto que as pessoas viajam para fugir dos seus problemas. Discordo. Claro que, cada um pode ter uma motivação singular e não cabe a mim julgar. Porém, falando das minhas motivações, nunca foi por aí. Acredito que quando viajamos e nos colocamos em um estado de maior vulnerabilidade, exposição e desconforto, acabamos por criar ferramentas emocionais inimagináveis, aumentando nosso repertório para enfrentarmos as angustias e as dificuldades do dia a dia.
Viajar é crescer. Quito, Peru
Cultura
FOC@ 51
A GRANDE BELEZA
CULTURA
(LA GRANDE BELEZZA) 2013
ESCOLHA DAS EDITORAS
AS VANTAGENS DE SER INVISÍVEL (THE PERKS OF BEING A WALLFLOWER) Reprodução
Ana Laura Silva
Longa italiano, de Paolo Sorrentino, “A Grande Beleza” é protagonizado pelo escritor e bom vivant Jap Gambardella (Toni Servillo), que sustenta sua fama num único romance lançado, intitulado “Aparelho Humano”. Embora tivesse certeza de sua realização pessoal e profissional até a pouco, o 65º aniversário desencadeia um drama na vida de Jap, que começa a enxergar suas ambições de forma pouco orgulhosa. Para superar a crise, retorna às memórias afetivas e tenta escrever um novo livro. O filme exalta o estilo de vida luxuoso da alta sociedade romena, seja nas festas regadas a prazeres ou momentos do cotidiano dos personagens.
Suellen Rodrigues
UM SONHO POSSÍVEL
CINEMA
Reprodução
(THE BLIND SIDE) 2009
AMENIC
As Vantagens de Ser Invisível (The Perks of Being a Wallflower) é um filme norte americano de 2012, adaptado do livro de mesmo nome do autor Stephen Chbosky, que também dirigiu o filme. Estrelado por Logan Lerman, Emma Watson e Ezra Miller, o longa conta a história de Charlie (Logan Lerman), um garoto de 15 anos que entra em um colégio enquanto se recupera de uma depressão após perder seu único amigo que se suicidou com um tiro na cabeça, e as lembranças da morte de sua tia em um acidente. No colégio, começa sua jornada de socialização, crescimento e recuperação. Nesta batalha, conhece dois veteranos, Patrick (Ezra Miller) e Sam (Emma Watson), que o recebem em seu grupo de amigos. Patrick é homossexual que mantém um caso com um garoto popular do time de futebol da escola. Sam, uma garota roqueira encantadora e a mais nova paixão de Charlie. Longe dos populares da escola, passam a conviver diariamente. Charlie até descobre a felicidade nestas novas amizades, mas ainda sente falta de alguma coisa em sua vida.
Reprodução
Reprodução
Grande parte do filme, as escolhas do grupo são baseadas no que pode declinar ou elevar a popularidade, pois acham que ser popular vai criar valores e não padrões éticos. As vantagens de ser invisível leva a acreditar que o protagonista é beneficiado por não exceder limites e aguardar que as coisas aconteçam conforme o tempo certo. Charlie se acha totalmente invisível, mas não é. As pessoas o reparam, porém ele acredita que não é notado. Um filme protagonizado por histórias adolescentes, mas que tem uma linguagem para todas as idades.
Andreia Silva
Filme de 2009, baseado na história da vida de Michael Oher (Quinton Aaron), com roteiro e direção de John Lee Hancock. “Um Sonho Possível”, relata a trajetória de um garoto pobre e negro, que foi tirado de sua mãe ainda na infância, uma mulher viciada em drogas, e que cresceu pulando de um lar adotivo para o outro sem nunca encontrar acolhimento verdadeiro. O filme em geral gira em torno do “Big Mike”. O relato da rotina escolar do garoto mostra situações delicadas e emotivas, que colocavam em cheque, constantemente, o passado e futuro do protagonista. Pequenos gestos de bondade da família que dá suporte a ele, que inclui Sandra Bullock - vencedora do Oscar de Melhor Atriz pela atuação - mudaram sua vida, que no início parecia sem futuro. Enfim, é uma história de superação - o menino, que poderia ser só mais um órfão no mundo implorando por restos de comida ou até roubando e traficando, traz a mensagem que qualquer sonho é possível.
FOC@
O humano em destaque Produção com fins acadêmicos dos estudantes de Jornalismo da Faculdade Maringá 2017