Jornal-laboratório I Jornalismo UFOP I Ano 7- Edição Nº 25 - Fevereiro de 2017
a p u c O
o r u t u f ro
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Fevereiro de 2017
Arte: João vitor nunes
editorial
Transbordar o papel jornal A experiência da sala de aula é um importante contato social longe dos cuidados maternos. Ao deixar seu filho na responsabilidade dos professores, a mãe anseia que seu fruto busque experiências que transbordem o lar. Restringir a diversidade de conteúdo e conhecimento dentro do local onde deveria ser ensinado o gosto pelo saber é uma atrocidade. Além disso, é decepcionar seus antepassados que tanto fizeram para que aquela criança, hoje, pudesse alçar voos antes nunca imaginados. Para os mais desavisados, estamos falando sobre a reforma do Ensino Médio. Uma decisão tomada pelo Executivo que atravessou as entranhas da democracia brasileira, o Congresso, e se tornou realidade. Nesse meio tempo, vimos jovens de todo país ocuparem seus institutos de ensino com o intuito de fazerem os engravatados de Brasília ouvirem a voz do povo, algo de que nunca deveriam abdicar-se. Longe da capital federal, os problemas moram ao lado. Dentro do
mesmo modelo falido de política de Brasília, é possível ver idêntico modus operandi nas “casas do povo” mais perto de você. Dando um espetáculo de ineficiência e desconhecimento geral das necessidades mais básicas da população, os sofistas, que buscaram seus votos há poucos meses, nos palanques espalhados por todo o país, conseguem realizar péssimas administrações em sequência. A quem ficou a missão de fiscalizá-los, a venda. Reuniões fechadas e votos combinados fazem o Legislativo esquecer completamente da sua função no dia a dia da cidade e lavar as mãos ao fechamento de cada quadriênio. Quem passou da metade da vida e achou que encontraria a tão sonhada tranquilidade, mais uma surpresa. A equipe Temer reservou aos seus contemporâneos o pior dos pesadelos: a ingratidão com o trabalho duro. A reforma da Previdência arrebenta a corda para o lado mais frágil, o do trabalhador, que de forma obrigatória vê parte do seu suado dinheiro ser
charge
levado pelo governo, mês a mês, com a promessa de um descanso que para muitos não chegará. Em vez de planejar, investir e ter empatia para com seus iguais, o governo sobe no pedestal de quem vive em outra realidade e fere os direitos daqueles que já tanto fizeram por ele. Tendo o progresso a passo de tartaruga, a ordem instalada gerou o caos. Um velho problema bateu à porta de Brasília. Utilizando a exceção como regra, os presídios brasileiros superlotados deixaram de ser situações momentâneas para permanentes. Assim, estouraram rebeliões e motins, começando pela região Norte e se espalhando pelo Brasil. O LAMPIÃO ouviu quem sofre de mãos atadas essa situação: quem está de fora. Como é viver a angústia de ter um ente querido preso e agora em perigo? Dentro de tantas crises, há um Brasil que respira e pulsa. Como nas memórias póstumas de uma figura icônica de Ouro Preto, a Sinhá Olympia, de andarilha irreverente a tema de
escola de samba. Pessoas próximas a ela conversaram com o LAMPIÃO, tornando-a viva, de alguma maneira, em nossas páginas. Entre as ruas e vielas de nossos centros históricos, há espaço para muita tradição. Não é à toa que o Zé Pereira dos Lacaios completa 150 anos. A agremiação carnavalesca mais antiga do país nos reserva contos e causos que até o pescador mais criativo duvida. O fim de nossa edição ainda reserva muita fé. Aqueles que procuram cura e proteção têm, nas mãos dos benzedeiros, sua segurança. Para a Folia de Reis, o reconhecimento como patrimônio cultural imaterial do estado de Minas Gerais. E tudo isso nas próximas páginas que irá ler. Para além das linhas, para além das páginas, assuntos que transbordam os limites do papel. Com o ser humano no centro das atenções, a empatia como linha editorial e valor jornalístico inegociável. Assim o LAMPIÃO firma, novamente, seu compromisso com o leitor.
Ombudsman
Muito além da Gaveta Jamylle Mol
Homenagem a Masaya Nakamura, criador do Pac-Man que faleceu em 30/01/2017.
crônica
O luto na luta de todos nós Francielle de Souza
Há alguns dias, enterrei uma prima: uma garota de 17 anos, mãe de uma menininha de três. Duro, eu sei. Valhamo-nos do clichê nessa hora: nunca estamos preparados para a morte. Menos preparada ainda eu estava para levar minha afilhada para despedir-se de quem a carregou no ventre e, em seguida, ouvi-la perguntar se teria que arranjar “outra mamãe”. Não houve quem não chorasse. Não houve quem não sentisse compaixão. Ao voltar para casa, com a sensação de que a morte evidenciou minhas misérias, tomei um banho com a pequena. Acomodei-a no meu colo e, em um ato de cumplicidade, consolei-a da dor que a pouca idade ainda não permite entender. Ela, sem saber exatamente o porquê da minha tristeza aparente, também acalmou meu coração. Ali, juntas, nos despimos – das roupas e da dor. Minha prima escolheu parar de lutar. Quando a vida endureceu, atirou no próprio corpo e estancou o sofrimento. No Brasil de hoje, pós-golpe político, insistir na luta também parece em vão. Perdoe-me, leitor, se comparar uma coisa com a outra pareça oportunismo mas, ora, pensemos por um instante. De 2013 pra cá, com ápice nas manifestações pró-impeachment de 2016, tornou-se comum dizer que estávamos em luto pelo Brasil. Decretaram a morte do país porque, acreditava-se, não havia remédio para o gene da corrupção incrustado no DNA brasileiro. Cá pra nós: balela! Meses depois do golpe, fica claro que aquele discurso
contra a corrupção serviu para mascarar o incômodo da elite diante da melhoria de vida dos pobres. Agora, os que assumiram o poder mandam e desmandam, ameaçando direitos e colocando abaixo a esperança de construir um país plural e democrático. Um cenário inimaginável há uma década. Enquanto a água quente aliviava a tensão dos músculos doloridos sem aliviar o aperto no peito, pensei no meu luto e no suposto luto do Brasil. Cheguei a cogitar que teria mais motivos para me entristecer naquele dia. Vivenciando a dor junto a uma menina de três anos, senti-me injustiçada. Usaram o discurso da morte para justificar interesses políticos. Banalizaram o luto. Minimizaram a minha dor e a de tantos. Com a minha afilhada quase cochilando no meu ombro, tentei tirar da morte um sopro de vida. Lembrei-me de que, na efervescência do movimento secundarista, minha prima ocupou a escola em que estudava por alguns dias. Junto a outros adolescentes, foi do luto, proclamado por tantos, à luta, muito mais simbólica e efetiva. Minha prima não verá o país pelo qual lutou – e isso dói muito –, mas ameniza saber que há tantos jovens seguindo a estrada, incansáveis. A diferença, agora, é que eles hão de assegurar um Brasil não mais em luto. Hão de assegurar um país em luta para a menina de três anos que adormeceu nos meus braços no banho. Há de haver, espero, um futuro melhor para a menina que me consolou no dia da morte da própria mãe.
O jornalismo morreu. Cantou pra subir. Bateu as botas. Encontrou-se com o único mal irremediável. São várias as formas de decretar essa sentença infeliz que, me arrisco a dizer, todo estudante de jornalismo já ouviu alguma vez. Afinal, abraçar essa profissão é ter que lidar com a imensa esperança e vontade de mudar o mundo e, ao mesmo tempo, com a pouca fé que diariamente depositam em nós. Já faz quase quatro anos que fui repórter do Lampião. Na reportagem especial, decidimos falar sobre os distritos de Mariana, antes mesmo de Bento Rodrigues sumir na lama e aparecer nos jornais. Lembro das noites sem dormir, das longas horas de fechamento, dos caracteres que excediam o quanto ainda havia para denunciar, mas lembro, sobretudo, da sensação única ao sair pelas ruas distribuindo o jornal impresso e, em seguida, ver a cidade colorida de marianenses lendo o Lampião e comentando as nossas pautas. Hoje, faço o papel inverso: sou eu a marianense que senta na praça para ler e ver o Lampião iluminar a cidade. Dizem que o caminho mais perigoso é aquele que já estamos acostumados a atravessar: é difícil perceber e criar espanto com o que vemos desde que chegamos nesse mundo. O Lampião tem essa função: despertar a cidade para o que nós, marianenses, não vemos sozinhos – seja por descaso ou por costume. A responsabilidade do Lampião é grande. Mesmo sendo um jornal-laboratório, carrega o peso de ter nascido numa cidade em que a imprensa local sobrevive de alianças políticas e, por isso, deixa de enquadrar como notícia o que seria essencial ao leitor. A edição 24 do Lampião fez exatamente isso: trouxe à tona assuntos enraizados na história de Mariana, com a sensibilidade e a coragem necessárias para tirar da gaveta aquilo que incomoda, que fere, cobra, encanta e faz pulsar. Qual marianense não conhece a Casa da Sopa Tia Lica? Ainda assim, mesmo conhecendo o Sopão, é uma sensação diferente saber que um repórter dedicou o seu tempo para falar sobre essa iniciativa tão importante e bonita, que não apenas enxerga a grande desigualdade social que existe em Mariana, mas também tenta, como pode,
amenizar a travessia dos que não têm nem o que comer. Por outro lado, nós, marianenses, estávamos acostumados a aparecer na mídia como “a cidade dos sete prefeitos”, já que, nos últimos anos, fomos palco de um dos cenários políticos mais tumultuados e coronelistas que Minas Gerais já viu. Virou piada: se soltavam foguetes, era sinal de que tínhamos um novo prefeito. A edição 24 soube incluir esse episódio triste por um viés extremamente sutil e atual, analisando a atuação dos vereadores de hoje e, ao final, inserindo uma linha do tempo do Executivo. Essa matéria em específico explicita a importância das escolhas durante as eleições e o papel de cada cidadão na construção da cidade. É importante ressaltar também quão necessária foi a abordagem escolhida para falar sobre Bento Rodrigues. Depois de tanta exposição midiática, é difícil trazer uma narrativa nova, responsável e chamativa sobre esse crime ambiental. Nove meses depois do rompimento da barragem, mirar o futuro das famílias e questionar sobre o que já se fez para amenizar a dor de tantos atingidos foi, sem dúvida, a melhor forma de estampar a voz de quem perdeu o “lugar pra chamar de meu” e precisa seguir adiante num novo espaço, o “Novo Bento”. A edição 24 cumpriu a tradição do Lampião de sensibilizar e trazer luz ao que, muitas vezes, acaba ficando escondido no caminho. Como jornalista, a edição me gritou mil vezes o que todo profissional precisa ouvir de vez em quando: o (bom) jornalismo não morreu e nem morrerá, desde que existam aqueles que escolhem acreditar mais na utopia que no impossível, mais nas mudanças que nas tradições recheadas de medo. Como marianense, a edição 24 traduziu formas diferentes de ver e pensar a cidade e sua história, deixando claro que, pelo comprometimento social que sempre guia as matérias, as artes e as fotos, o Lampião é, antes de tudo, um gaveteiro. *Jamylle Mol é formada em Jornalismo pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e participou da 9ª edição do Lampião.
Jornal-laboratório produzido pelos alunos do curso de Jornalismo - Instituto de Ciências Sociais e Aplicadas (ICSA)/Universidade Federal de Ouro Preto - Reitor: Prof. Dr. Marcone Jamilson Freitas Souza, - Diretor do ICSA - Prof. Dr. José Benedito Donadon Leal Chefe de Departamento: Prof. Dr. André Quiroga Sandi - Presidente do Colegiado de Jornalismo: Profa. Dra. Jan Alyne Barbosa Prado - Editor-chefe: Pedro Nigro - Editora de Texto: Francielle de Souza - Editor de Arte: Igor Mattos - Editora de Fotografia: Íris Jesus Editora Multimídia: Mayara Portugal - Equipe de Reportagem: Amanda dos Santos Francisco, Bruno Andrade, Carlos Paranhos, Carmem Guimarães, Evelin Ramos, Fernanda Covalski, Ingrid Mitsue, Letícia Caldeira, Lorena Lima, Lui Pereira, Luiz Loureiro, Thiago Dias, Wigde Arcangelo - Equipe de Arte: Gabriel Conbê, Glenda Louise, João Vitor Nunes, Jéssica Avelar, Thiago Henrique, Valéria Gomes - Equipe de Fotografia: Daniel Tulher, Guilherme Oliveira, Joyce Fonseca, Letícia Conde, Mariana Reis, Melissa Reis, Nathalya Saiki, Rafaela Rissoli - Equipe de Revisão: Marina Lopes, Mariani Barbosa Equipe Multimídia: Janaina Almeida, Jasmine Jacyara, Lillian Indrusiak, Mariana Morais, Sandro Aurélio - Professores Responsáveis: Karina Gomes Barbosa (Reportagem e Multimídia), Rafael Drumond (Reportagem), Flávio Valle (Fotografia) e Talita Aquino (Diagramação) - Monitoria: Carol Vieira, Caroline Hardt, Hariane Alves - Colaboração: Diego Luiz Ferreira - Agradecimento: Bruno Miné - Tiragem: 3000 exemplares - Endereço: Rua do Catete, nº 166, Centro, Mariana-MG. CEP: 35420-000
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Arte: joão vitor nunes
Justiça
Entre vigilância e descaso
Atingidos pela tragédia da barragem esperam que nova equipe do MP mantenha atuação firme e cobram participação dos vereadores Nathalya Saiki
Insegurança. Troca de três promotores responsáveis pela investigação do rompimento da barragem do Fundão deixa atingidos preocupados com a eficiência do Ministério Público
Na assembleia de validação do projeto urbanístico para a reconstrução do novo Bento Rodrigues, no dia 28 de janeiro de 2017, os promotores Carlos Eduardo Pinto, Mauro Ellovitch e Marcos Paulo de Souza Miranda não estavam entre as autoridades presentes. Desde o rompimento da barragem, os três eram responsáveis por fiscalizar os aspectos ambientais das investigações sobre o desastre: Miranda coordenava a Promotoria de Defesa do Patrimônio Histórico; Carlos Eduardo e Ellovitch faziam parte da coordenadoria do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Defesa do Meio Ambiente, Patrimônio Cultural, Urbanismo e Habitação (Caoma) do Ministério Público de Minas Gerais. Atualmente, os promotores não estão mais à frente do caso e foram transferidos às respectivas comarcas de origem. A mudança se deu após o governador Fernando Pimentel nomear, em 5 de dezembro de 2016, Antônio Sérgio Tonet como Procurador-Geral de Justiça do estado. A primeira ação de Tonet foi substituir a equipe de coordenação do Caoma e da Promotoria de Defesa do Patrimônio Histórico. As cadeiras vazias foram ocupadas por Andressa de Oliveira Lanchotti, Rômulo de Carvalho Ferraz e Giselle Ribeiro de Oliveira. Giselle assumiu a chefia da Promotoria de Defesa do Patrimônio Histórico. Já Rômulo é Procurador-Geral de Justiça adjunto institucional e assume temporariamente a coordenadoria do Caoma, até ser efetuada a transferência de Andressa da comarca de Nova
Lima para Belo Horizonte. Após o processo, o centro será administrado pela promotora e Rômulo deixará de exercer a dupla função. Os Centros de Apoio têm como atribuição assistir os promotores nas comarcas. Em Mariana, o promotor Guilherme Meneghin acompanha o caso desde novembro de 2015. Como titular da comarca, não pode ser transferido sem consentimento próprio: o artigo 127 da Constituição Federal assegura aos promotores a impossibilidade de transferência, o que dá a esses profissionais condições de exercerem suas atividades sem retaliações. Com a troca dos promotores, todo mundo assustou porque tinha o pessoal que apoiava a gente. Daí começou um monte de boatos. Nossa primeira providência foi ir ao Ministério Público” Milton Sena
Segundo Meneghin, é esse artigo que garante a continuidade de seu trabalho no caso. Outro fator que sustenta os processos é a impossibilidade de as coordenadorias entrarem com ação na Justiça sem sua assinatura. As medidas judiciais que tratam do desrespeito aos direitos humanos sofrido pelos atingidos estão sob os cuidados de Meneghin. Membro da comissão dos atingidos e editor do jornal A Sirene, Milton Sena mostrouse preocupado com a mudança promovida por Tonet. Entre tantas informações desencontradas, temeu que os atingidos perdessem apoio do
não foi um ato isolado. Desde o desastre, o MP vem oferecendo apoio aos atingidos. Muitos deles sentem-se acolhidos pela instituição. Como relatou Antônio Gonçalves, membro da Comissão de Atingidos, durante coletiva de imprensa após a assembleia: “Foi o primeiro órgão a estar junto, nunca se afastou”. Já por parte dos vereadores, o abandono é evidente. “A gente vê a ausência da Câmara Municipal em quase todas as reuniões. Ela elegeu duas comissões de assistência, uma para os atingidos e a outra para a empresa. Mas logo no início se desmancharam. Não sei o trabalho deles fora, mas aqui com a gente, não estão participando”, diz Antônio. As comissões foram determinadas pelas Portarias nº
MP. Foi o diálogo direto com a promotoria que os acalmou. “Com a troca dos promotores, todo mundo assustou porque tinha o pessoal que apoiava a gente. Daí começou um monte de boatos. Nossa primeira providência foi ir ao Ministério Público”, diz. Embora os processos envolvendo direitos humanos continuem sendo atribuições da comarca de Mariana, é responsabilidade do Caoma acompanhar o licenciamento ambiental para a volta das atividades da Samarco. “A empresa já tem dois procedimentos em trâmite: um do Complexo de Germano e um da Cava Alegria Sul. Esses procedimentos serão acompanhados pelo Ministério Público. Nós não participamos ativamente do licenciamento. Isso é função executiva da Secretaria Estadual do Meio Ambiente, mas verificadas irregularidades nesse processo, nós vamos agir”, garante Andressa. Questionado sobre uma possível ligação entre a troca na força-tarefa e a declaração de Fernando Bezerra, ministro de Minas e Energia, que prevê a volta imediata da Samarco, Rômulo diz que o processo está dentro da normalidade e sendo acompanhado pelo Ministério Público. Ausência do Legislativo Na assembleia dos atingidos de Bento Rodrigues, as únicas autoridades que viram todos os participantes aprovarem a proposta foram o promotor Guilherme Meneghin e o vice-prefeito Newton Godoy. Nenhum vereador presenciou o momento, etapa importante para garantir direitos dos moradores do primeiro distrito atingido pela lama. Essa ausência
as comissões de assistência não existem mais, porém vem acompanhando reuniões dos atingidos e justifica sua ausência na assembleia do dia 28 de janeiro devido à Câmara não ter recebido comunicado oficial. Faremos um requerimento pedindo para que a empresa volte a enviar o calendário das reuniões’’, diz. Sobre o Plano Diretor, o vereador diz que “é uma lei que só pode ser proposta pelo Executivo. A Câmara pode apenas aprová-la e fazer emendas. Nosso Plano Diretor está mesmo defasado, ele precisa ser renovado no mínimo a cada dez anos e o de Mariana é de 2004. Temos cobrado do Executivo essa revisão’’. O LAMPIÃO entrou em contato com a Prefeitura, mas não obteve resposta até o fechamento desta edição.
Interino. Rômulo assume provisoriamente o Caoma devido a questões burocráticas
Novo procurador-geral
Nathalya Saiki
Comprometimento. Andressa assegura fiscalização das ações da Samarco pelo Caoma
153/2015 e 154/2015, assinadas pelo presidente da Câmara à época, Tenente Freitas. Para Milton Sena, o Legislativo teme um possível conflito com a Samarco, caso a Câmara preste assistência aos moradores das comunidades atingidas, mesmo que a garantia dos direitos humanos não seja um empecilho à volta da mineradora. Embora algumas competências sejam atribuições dos promotores, há medidas que só podem ser tomadas pela Câmara. Entre elas, aprovar as leis do plano diretor do município, que garante as condições de construção e segurança do novo Bento Rodrigues. O vereador Cristiano, um dos nomes designados para apoiar os atingidos e reeleito presidente da Comissão de Direitos Humanos, diz que
Nathalya Saiki
Wigde Arcangelo
Os procuradores-gerais de Justiça são nomeados a partir de uma lista tríplice formada pelos candidatos mais votados pelos promotores do estado. Essa lista é encaminhada ao governador, que elege um dos três nomes para assumir o mandato de dois anos. Uma das incubências de um procurador-geral de Justiça é escolher pessoas para ocupar cargos de confiança no Ministério Público. Antônio Sérgio Tonet, nomeado por Pimentel, era o segundo da lista, com 562 votos, enquanto o primeiro colocado, Jarbas Soares, obteve 572. Tonet era oposição à administração passada do Ministério Público. Não é a primeira vez que ambos foram indicados pela lista tríplice. Em 2004, Tonet foi o primeiro colocado e Soares o terceiro. O então governador, Aécio Neves, escolheu Soares para assumir a posição. Nos dois primeiros anos do governo Fernando Pimentel (PT), Carlos André Mariani Bittencourt foi procurador-geral da Justiça. Ele foi nomeado na gestão de Alberto Pinto Coelho (PP), vice do exgovernador Antonio Anastasia. Professora de Direito na Universidade Federal de Ouro Preto e pesquisadora do Gru-
po de Estudos e Pesquisas Socioambientais (Gepsa), Tatiana Ribeiro de Souza explica que o sistema de nomeação do procuradorperal possui uma relação de interdependência entre o poder Executivo e o MP. Apesar de ser crítica ao modelo, a professora lembra que a ação é legal e garantida pela Constituição. “A mudança da direção dos órgãos internos do Ministério Público parece natural quando há uma mudança de direcionamento político no estado”, diz. Contudo, ela afirma que é preciso confiar na independência das investigações da instituição e é dever da população monitorar o funcionamento. “Precisamos dar um voto de confiança a essas pessoas que tomaram posse agora, para que elas provem que são igualmente comprometidas com as questões que estão em jogo. É importante que a sociedade civil cobre uma atuação tão eficiente quanto a da gestão anterior”. Em nota ao LAMPIÃO, a assessoria do governo de Minas Gerais disse que a Constituição Mineira e a Lei Complementar nº 102 de 2008 não especifica a ordem de votação como critério de indicação do novo Procurador-Geral de Justiça.
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Arte: valéria gomes
trabalho
Aposentadorias distantes
Reforma proposta pelo governo no sistema previdenciário impacta na vida de milhões de brasileiros e põe fim a conquistas letícia conde
Previdência. Maria Alice Miranda, professora, será afetada caso a reforma aconteça Evelin Ramos
Você conhece a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 287? Talvez, você tenha lido alguma coisa sobre o assunto no jornal ou “pescado” informações no rádio e na TV. Ela propõe a reforma do sistema previdenciário. Por exemplo: uma professora de 44 anos, nascida no dia 1º de dezembro, com aposentadoria prevista para 2021. Caso a reforma seja aprovada até 31 de novembro deste ano, ela terá que trabalhar por 15 anos para se aposentar - e não por mais 5, conforme a atual legislação. Entendeu? A PEC propõe uma idade mínima de aposentadoria aos 65 anos, tanto para homens quanto para mulheres. Atualmente, as mulheres se apo-
sentam cinco anos mais cedo, aos 60. A regra também altera o tempo mínimo de contribuição de 15 para 25 anos. E quem se enquadra na nova lei? Integralmente, homens com menos de 50 anos e mulheres com menos de 45. A aposentadoria por tempo de contribuição deixa de existir. Nas regras atuais, homens e mulheres podem se aposentar pela idade mínima exigida ou pelo tempo de contribuição somado à idade, com resultado igual ou superior a 85 pontos para mulheres e 95 para homens: a tal regrinha 85/95. O tempo de contribuição nesses casos deve ser, obrigatoriamente, a partir de 30 anos para mulheres e de 35 para homens. A equipe do LAMPIÃO saiu às ruas de Mariana e en-
Maria precisa de mais três anos e meio de contribuição, o que fará com que continue dando aula. A professora é um dos casos que se encaixa na regra de transição: caso as mudanças ocorram, precisará trabalhar por cinco anos e quatro meses.
trevistou alguns trabalhadores para levantar o tempo de contribuição e de trabalho de cada um deles, além de suas expectativas para o período após a aposentadoria. Com base nos perfis ouvidos e com o auxílio da professora de Direito Previdenciário da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) Rafaela Leite, explicamos algumas mudanças e os impactos da reforma. Silvério Geraldo do Carmo tem 43 anos, portanto, já se encaixa na nova regra. É trabalhador rural, natural de Furquim, distrito de Mariana. Nascido e criado na roça, começou a trabalhar por volta dos 10 anos nas terras do pai. A família de Silvério planta, colhe e consome tudo o que produz. E, mesmo trabalhando desde criança, ele só poderá se aposentar aos 65 anos, cinco anos mais tarde do que pretendia. Quando perguntado sobre ambições para a aposentadoria, ele revela que sua expectativa é a roça. Com a aprovação da PEC, trabalhadores rurais não poderão mais se aposentar cinco anos mais cedo, como permitido hoje ao grupo de segurados especiais. Além disso, as contribuições de homens e mulheres do campo passarão a ser obrigatórias e periódicas, como as demais, mas com valor e periodicidade ainda não definidos. Para homens a partir de 50 anos e mulheres a partir dos 45 será aplicada a regra de transição. Ela possibilita que se aposentem dentro das normas atuais. Entretanto, os segurados vão precisar trabalhar o tempo que falta para se aposentarem na data de apro-
vação da emenda mais 50%. Aos que já tiverem condições de requerer o benefício até a data de aprovação da proposta, o direito à participação no atual regime previdenciário será mantido sem o pedágio. Curiosamente, Maria Alice Miranda vai participar dos dois grupos, caso a reforma seja aprovada. Maria tem 49 anos, é professora há 29 e atualmente leciona na Escola Estadual Gomes Freire e no Colégio Providência para turmas do 5º ano. A partir do mês que vem, em março, ela se aposenta pela rede pública de ensino, no Regime Geral de Previdência Social (RGPS). Pela rede particular, por meio do Regime Próprio de Previdência (RPPS), Maria ainda precisa de mais três anos e meio de contribuição, o que fará com que continue dando aula. A professora é um dos casos que se encaixa na regra de transição: caso as mudanças ocorram, precisará trabalhar por cinco anos e quatro meses. Maria Alice conta que tem dois nódulos nas cordas vocais em decorrência da profissão, o que a afastou temporariamente das salas de aula em 2012. A professora reforça o desgaste, principalmente vocal, que sofrem professores do ensino infantil, fundamental e médio. Maria sempre trabalhou em duas escolas e conta que sente-se aliviada e feliz por já se aposentar em pelo menos um dos regimes. Mesmo tendo que trabalhar, ela pensa com viagens, na filha, no neto que está por vir e no tempo maior que terá para si. Hoje, comprovados 30 anos de magistério para homens e 25 anos para mulheres,
professores podem se aposentar apenas com o tempo de trabalho, sem idade mínima. Após a reforma, a aposentadoria especial para professores acaba. Isso quer dizer que outras Maria Alice precisarão dar aula até os 65 anos de idade, pelo menos. Silvânia Santos tem 54 anos, é técnica em análises clínicas e contribui há 24 anos para a previdência. Em razão da idade, ela escapa das mudanças que podem acontecer para quem desempenha, assim como ela, atividade insalubre ou periculosa. E o que são essas atividades? Aquelas que podem causar dano à saúde ou ameaçar a integridade física do indivíduo. Por isso, essa classe de trabalhadores se aposenta mais cedo, o que acaba na proposta. Na regra atual, a depender do nível de insalubridade da profissão, o tempo de trabalho diminuído varia em 15, 20 ou 25 anos. A reforma exigirá que homens e mulheres nessas condições se aposentem aos 65, com uma redução máxima de cinco ou dez anos de trabalho. E o que mais você precisa saber sobre a PEC? Para que o segurado garanta 100% do benefício na aposentadoria, serão necessários 49 anos de contribuição, além de, no mínimo, 65 anos de idade. Écio Pereira é auxiliar de serviços, tem 37 anos de idade e 17 de contribuição. Com a reforma, para que ele tenha acesso ao teto do benefício a que tem direito, precisará contribuir por mais 32 anos e trabalhar até os 69. Caso o segurado opte por se aposentar aos 65 anos sem 49 de contribuição, só receberá parte do benefício.
cidades
Urgência. Beatriz defende a economia Thiago Dias
A Samarco foi interditada logo após a tragédia da barragem do Fundão, em novembro de 2015. Pouco tempo depois, grupos se formaram para debater as questões acerca do rompimento, desde a situação dos atingidos até a crise econômica causada pela interdição da mineradora, que precisa de uma licença junto à Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad) para conseguir o retorno das atividades. O grupo “Justiça Sim, Desemprego Não”
é favorável ao retorno imediato da mineradora. Ele justifica suas reivindicações no fato de a empresa representar boa parte da economia marianense. Fundado por 20 membros, foi criado nas primeiras semanas pós-tragédia. Hoje, ele é composto por duas mulheres que explicam a redução do grupo: retaliações sofridas por suas posições em relação à companhia. Poliane Aparecida de Freitas e Beatriz Magalhães, mesmo a favor das atividades da empresa, apoiam a responsabilização da Samarco pelo rompimento. Em fanpage no Facebook, as amigas publicam para a população informações relacionadas à tragédia. Dentre outras ações, estão passeatas a favor da Samarco e um abaixo-assinado para agilizar o licenciamento da Cava Sul de Alegria que, segundo as organizadoras, conta com 50 mil assinaturas. A cava é uma alternativa temporária que permitirá a disposição de rejeitos para um imediato retorno das operações, permitindo à Samarco 60% da capacidade produtiva. O abaixo-assinado foi entregue ao Ministério Público de Minas Gerais, ao Semad e aos governos dos Estados de Minas Gerais e Espírito Santo. O grupo mobilizou parte dos comerciantes marianenses para apoiarem a causa, diante da instabilidade econômica na cidade. Em alguns estabelecimentos de Mariana, pode-se ver banners afixados mostrando apoio ao retorno da Samarco, com frases como “Somos todos atingidos” . O “Justiça Sim, Desemprego Não” não é o único grupo a buscar o debate. Há vários atores, como o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), a Comissão dos Atingidos, o “Somos Todos Samarco”, o jornal “A Sire-
ne” e o coletivo “Um Minuto de Sirene”. O “Um Minuto de Sirene”, formado por 11 pessoas, realiza ações de forma contínua e sistemática. Uma delas consiste na ocupação da Praça Gomes Freire, no dia 5 de cada mês - dia do rompimento -, com o intuito de divulgar os principais fatos e desdobramentos do rompimento da barragem. “É uma forma de nos mantermos alertas, em contínuo aprendizado e vigilância”, conta Ana Elisa Novais, membro do grupo. A principal reivindicação do grupo é manter latente a discussão sobre o que aconteceu e como isso afetará todos os atingidos ao longo do tempo. O coletivo acredita ainda que a participação popular e uma sociedade civil mobilizada, participativa e atenta, tanto nas instâncias municipais, quanto estaduais e federais, são fundamentais para a resolução do caso. Para eles, a volta da Samarco pode ser possível, dependendo exclusivamente de como a empresa atenda às exigências determinadas pelos órgãos governamentais e civis. Argumentam ainda que apesar do apelo popular para a Samarco voltar, é necessário discutir, monitorar e pensar o retorno da mineradora. A relação do coletivo com outras iniciativas existe. O “Um Minuto de Sirene” não identifica nenhum grupo como contrário. O movimento, porém, sincroniza suas ações com os grupos afins. Ana Elisa vê possibilidade de diálogo com todas as ações, caso haja oportunidades ou necessidade. Exemplo dessa conversa é a parceria com o jornal “A Sirene”, uma amostra de trabalho coletivo e de cooperação que dá certo quando há objetivos comuns. Mais de um ano depois da tragédia, os grupos trabalham continuamente. O “Justiça Sim,
nathalya saiki
nathalya saiki
Para não esquecer Fundão
Condição. Ana Elisa pede fiscalização
Desemprego Não” mostra os impactos econômicos e o “Um Minuto de Sirene” mobiliza as pessoas para se lembrarem do rompimento da barragem. Apesar de os dois fazerem ações diferentes, concordam com a responsabilização da empresa, órgãos e pessoas pela negligência que levou ao rompimento da barragem. Outra opinião convergente é a falta de notícias em relação ao caso. Essa escassez de informações estaria prejudicando a imagem de Mariana e as comunidades atingidas. Para ambos os movimentos, um dos maiores problemas seria deixar Fundão cair no esquecimento.
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Fevereiro de 2017
Arte: Valéria gomes
política
OP tem déficit milionário Luiz Loureiro
Desde agosto de 2016, as escolas municipais de Ouro Preto enfrentam dificuldades financeiras. No ano passado, a Prefeitura deixou de repassar aproximadamente R$ 265 mil destinados à merenda escolar. De acordo com Huaman Xavier Pinto Coelho, atual secretário de Fazenda, “o atraso no repasse dessa verba obrigou diretores e diretoras a contraírem dívidas em seus próprios nomes no comércio local”. Janaína Penna, ex-dirigente da Escola Municipal Renê Giannetti, assumiu dívidas na aquisição de pães, leite, verduras, frutas e carne. “Os itens não perecíveis a gente recebe da Prefeitura, em espécie”, conta. A ex-diretora relata que o problema era recorrente mas, mesmo com atraso, foram recebidas todas as parcelas correspondentes aos anos anteriores. “Em 2016, ocorreu atraso para o início dos repasses e de agosto em diante não recebemos mais”, declarou Janaína. “A padaria e o supermercado eu consegui quitar, mas ainda existem dívidas no açougue e na quitanda, no valor de quase R$ 1.800,00”. Júlio César Oliveira, ex-diretor da Escola Municipal Tomás Antônio Gonzaga, decidiu fazer um tipo de controle diferente: reduziu a quantidade de alguns itens do cardápio, como carnes e frutas. “Mas, mesmo assim, ainda resta uma dívida de cerca de R$ 600,00 relacionada à aquisição de hortifruti”, afirmou. A verba não repassada às escolas é apenas uma pequena parte da dívida que, de acordo com Júlio Pimenta (PMDB), teria sido deixada pela gestão anterior, chefiada por José Leandro Filho (PSDB). O valor
total anunciado é superior a R$ 43 milhões, sendo que apenas R$ 4 milhões foram deixados disponíveis nos cofres públicos pelo ex-prefeito. Composição do rombo A declaração de Júlio Pimenta foi acompanhada da apresentação dos itens mais significativos da dívida. O principal é a folha referente a dezembro de 2016 dos funcionários municipais, no valor de R$ 12,1 milhões. Também são elevados os valores referentes à cooperativa de transportes, a funcionários terceirizados, coleta de lixo, aluguéis, vale alimentação e despesas vinculadas (recursos com destinação específica e obrigatória, tais como as verbas destinadas à educação e saúde). O item “Demais Despesas”, que engloba dívidas com fornecedores de produtos e serviços, apresenta déficit de quase R$ 13 milhões. Férias e outros direitos - tais como 13º salário - não pagos ao exprefeito e ocupantes de cargos comissionados na gestão anterior atingem R$ 1,1 milhão, de acordo com Huaman Coelho. Ainda segundo o secretário de Fazenda, estão sendo analisadas reivindicações de outros fornecedores que já superam a cifra de R$ 8 milhões. “Esse montante ainda é preliminar e está sendo objeto de análise pela Procuradoria Jurídica Municipal”, declarou. Informações colhidas pelo LAMPIÃO dão conta que, desde 2013, um grande número de processos administrativos encontra-se em tramitação e análise, referente a serviços alegadamente prestados à Prefeitura sem licitação ou autorização legal. Os itens que mais aparecem nos processos são relativos à contrata-
ção de músicos e fornecimento de refeições em eventos. No início deste ano, a nova administração de Ouro Preto suspendeu por 180 dias o pagamento aos fornecedores envolvidos na dívida. Huaman Coelho informou que já foram observados indícios de irregularidades em alguns contratos: “Só na Secretaria de Fazenda identificamos dois veículos fantasmas da Cooperativa de Transportes Minas Brasil”. Segundo ele, o fato será denunciado à Procuradoria Jurídica do município. Em nota encaminhada ao LAMPIÃO, a cooperativa de transportes confirmou que a Prefeitura de Ouro Preto ainda não efetuou o pagamento parcial dos serviços prestados em outubro e o integral de novembro e dezembro. Negou a existência de irregularidades e esclareceu que a empresa só emite faturas correspondentes a ordens de serviço assinadas pelos responsáveis de cada Setor/Secretaria da Prefeitura. LRF e atuação da Câmara A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) estabelece normas e limites a serem obedecidos na administração e prestação de contas dos recursos públicos. Também proíbe que o governante efetue despesas que não possam ser pagas no mesmo ano, exceto se for deixado dinheiro em caixa para pagamento no ano seguinte. Corjesu Quirino, procurador jurídico da Câmara Municipal de Mariana, alerta: “O grande perigo reside na autorização para que os prefeitos tenham margem elevada do orçamento passível de remanejamento por decreto”. O procurador diz que, nesses casos, existe a possibilidade de serem cometidas irregularida-
des, pois os remanejamentos são feitos com base na estimativa da receita, que algumas vezes não se concretiza. Para Chiquinho de Assis (PV), líder da oposição durante o governo José Leandro Filho, a atuação dos vereadores ficou restringida, já que, somente em 2016, o Legislativo teve oportunidade de analisar o parecer do Tribunal de Contas relativo a 2013. “O parecer com a recomendação de reprovação da prestação de contas não foi acatado porque o ex-prefeito tinha maioria na Casa”, lamentou o vereador. “Nós já vínhamos percebendo um desequilíbrio nas contas e encaminhamos várias ações ao Ministério Público, caracterizando o que podemos chamar de farra do dinheiro público com lixo, transporte e outras contratações”, informou Chiquinho. O vereador Luiz Gonzaga do Morro (PR), integrante da base política do ex-prefeito, demonstra sérias restrições à gestão anterior. Ele ressaltou a necessidade de maiores esclarecimentos sobre a dívida anunciada e afirmou que “nos últimos seis meses de governo, José Leandro nem atendia mais os vereadores. Não importava se eram ou não de sua base, não havia nenhum diálogo e nem resposta aos requerimentos apresentados”. O único integrante da administração anterior que retornou os contatos do LAMPIÃO foi Adriano Jardim, ex-secretário de Fazenda. Por telefone, ele informou que o ex-prefeito José Leandro Filho está aguardando o recebimento de documentos e informações para fazer uma declaração pública, que não foi agendada até o fechamento desta edição.
valéria Gomes
Dívida da Prefeitura de Ouro Preto chegou a comprometer merenda escolar e folha de pagamento dos servidores municipais
o que dá pra fazer com
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saúde
UBS impedida de abrir Bruno Andrade
donos da empresa, William Angelo Soares e William Dos Santos Borges, informaram que a construção não foi finalizada devido a uma dívida pendente. “Não estávamos recebendo por aquilo que já havia sido feito, então não achamos viável continuar trabalhando sem saber se iríamos – ou quando iríamos – receber”, afirmou William Soares. O LAMPIÃO teve acesso aos documentos contratuais da unidade e descobriu que, ao longo da cons-
guilherme gabriel
Segundo dia de janeiro: início de mais um ano de expectativas e compromissos. Para iniciar bem o ano, Andreia Silva*, 29 anos, procurou tomar a terceira dose da vacina contra hepatite B, já que a Unidade Básica de Saúde (UBS) do seu bairro, Morro Santana, havia sido transferida para uma rua mais próxima de casa. Andreia está amamentando e queria se precaver de qualquer risco à saúde da filha recém-nascida, Maria Eduarda*, de 3 meses. Ao chegar ao posto de saúde, foi informada de que a UBS recém-transferida encontrava-se fechada. Como não poderiam atendê-la, os servidores que estavam no local – que também foram surpreendidos pelo ocorrido encaminharam-na para a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) no Bairro São Cristóvão. A confusão teve início no dia 22 de dezembro de 2016, quando a equipe do posto, conhecido como UBS Andorinhas, recebeu uma ordem da Secretária de Saúde para embalar os equipamentos e se dirigir ao novo prédio. A ordem foi aceita e a mudança foi realizada entre os dias 23 e 30 de dezembro, com o posto em funcionamento. No dia 2 de janeiro, conforme alega uma enfermei-
ra que não quis se identificar, os funcionários foram informados de que não estavam autorizados a trabalhar na nova unidade. Com os materiais trancados na nova UBS, também não teriam como executar os trabalhos na antiga. Ainda de acordo com a enfermeira, a comunidade ficou sem atendimento no posto por dois dias. A interdição foi efetuada pela construtora Nova União, responsável pela obra que não havia sido concluída e poderia causar acidentes. Os
Confusão. Desacordo financeiro prejudica a construção da nova UBS
trução da nova sede, a planilha original sofreu inúmeras alterações que foram registradas apenas em blocos de notas pela empresa. Contudo, como algumas mudanças e aditivos não passaram pelo setor jurídico da Prefeitura, como deveriam, há uma dificuldade no acerto de contas com a construtora. De acordo com relatório publicado no site da Prefeitura Municipal de Ouro Preto, para construção do novo prédio, realizada em convênio com o Estado, foi disponibilizado um orçamento de R$1,5 milhão em 2014. Desse montante, já se gastou R$1,4 milhão, mas conforme avaliação da atual gestão da Secretaria de Saúde, a obra precisa passar por muitas melhorias. O problema, segundo o Departamento de Convênios da Prefeitura, é que o prazo para aditivos foi encerrado, por isso, é necessário que o município disponibilize recursos para conclusão da obra. Questionamos o superintendente da Secretaria de Saúde de Ouro Preto, Leandro Moreira, quanto aos benefícios do novo prédio à comunidade e descobrimos que a UBS em construção, além de atender a um maior número de pessoas, por comportar mais equipes básicas - médico, enfermeiro, técnico de enfermagem e agente comunitário de saúde – do
Programa Saúde da Família (PSF), também serviria de base para atividades e serviços da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). “O posto em funcionamento conta apenas com duas equipes e cerca de 6 mil pessoas cadastradas, contemplando os bairros Morro Santana e Morro São João”, afirma Moreira. Do total de cadastrados, 2 mil são crianças, 3.970 equivalem aos moradores do Morro Santana e, em média, 1.150 pacientes são atendidos mensalmente. A nova unidade contará com mais uma equipe e poderá beneficiar cerca de 10.500 pessoas, podendo atender também outras comunidades. Ainda segundo Leandro Moreira, uma licitação está sendo feita para solicitar equipamentos, não só para a nova sede do Morro Santana, mas também para unidades de outros bairros. A atual administração da Prefeitura tem se reunido com os donos da construtora para resolver a situação. Conforme alega William Soares, está sendo feito um levantamento para apurar o que falta ser pago, com o intuito de dar continuidade à obra. Até o fechamento do LAMPIÃO, não havia previsão para o desfecho do quadro. *Nomes fictícios a pedido da entrevistada.
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Arte: Thiago Henrique
Ocupações: a luta dos secundaristas TEXTO: CARLOS PARANHOS E INGRID MITSUE FOTOS: JOYCE FONSECA
11h30 no relógio. Chega ao fim o turno da manhã na Escola Estadual Dom Silvério. Da quadra, no fundo da escola, vários alunos saem em bando. Matheus olha para o lado e procura os amigos. Um pouco à frente, uma colega chama: “Vamos para a porta logo, temos que encontrar os outros para irmos embora!”. Mesmo que tudo pareça igual, algo mudou neste início de ano letivo. Novas amizades surgiram desde que esses jovens, há alguns meses, fizeram morada na escola que os abriga. Em 2016, estudantes do ensino médio e superior ocuparam centenas de escolas no país. O movimento se expandiu a partir da publicação da Medida Provisória de Reformulação do Ensino Médio (MP 746), da possível aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 55 e da implementação do programa Escola Sem Partido. Ouro Preto e Mariana também aderiram à causa. As escolas estaduais Dom Silvério, em Mariana; Dom Pedro II e Polivalente, em Ouro Preto; Padre Afonso de Lemos, em Cachoeira do Campo; e o Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG), também em Ouro Preto, tiveram seus espaços ocupados por secundaristas que firmaram posicionamento diante do cenário político.
As ocupações funcionaram de forma semelhante: os adolescentes se organizaram na realização de tarefas relativas à alimentação, limpeza, saúde, comunicação e lazer. As funções eram escolhidas internamente, trazendo novas experiências de convivência, além de proporcionar momentos coletivos entre os responsáveis por cada área. Reuniões do “comando de ocupação” eram marcadas periodicamente para repasses e deliberações internas. O LAMPIÃO conversou com alguns desses jovens para entender como se deram as ocupações e quais suas perspectivas para o futuro, sobretudo diante da aprovação das políticas públicas combatidas por eles.
“O movimento crescerá” Pablo Morais, 19 anos, é um dos jovens recém-formados que integrou o comando de ocupação da Dom Silvério. Desde o início do movimento, seus planos de ingresso na universidade pública mudaram. Ele, amante confesso dos números, pretendia seguir carreira no campo das exatas; agora, diz querer cursar Direito. Pablo explica a mudança: ano passado, suas madrugadas foram ocupadas com estudos sobre legislação e os impactos sociais das propostas do governo.
Queria debater de forma mais qualificada o futuro do país. Na Dom Silvério, os estudantes decidiram pela ocupação no dia 1º de novembro. Com apoio da direção, foi a única escola secundarista ocupada em Mariana. O movimento terminou por decisão democrática em assembleia realizada no dia 13 de dezembro, data de aprovação da PEC 55 no Senado Federal. Pablo conta que a ocupação rompeu a relação de autoridade entre professor e aluno. Para ele, “a escola tinha que ser muito mais que disciplinas, pois faltam conteúdos para que o aluno leve a vida social e política com clareza”. Para assegurar o direito à educação, o estudante é enfático: “Se for preciso, iremos ocupar novamente e quantas vezes forem necessárias”. Em relação à aprovação da PEC 55, apesar de restar o sentimento de dever não cumprido, Pablo acredita que os jovens podem fazer um movimento maior e mais forte. Ele tem esperanças que, daqui a 20 anos, as ocupações sejam vistas por seus filhos com orgulho. O secundarista Matheus Calderaro, 18, também participou do comando de ocupação. Membro do grêmio estudantil, conta que o órgão pretende realizar uma semana
União. Rayene e Rayele acreditam que a luta pelo coletivo promove reflexão e respeito
PEC 55 A PEC 55, também conhecida como PEC do teto de gastos, tem o objetivo de frear a trajetória de crescimento dos gastos públicos. Para isso, busca congelar por até 20 anos os investimentos em saúde, educação e programas sociais. O impacto do congelamento é a redução do investimento, prejudicando a parcela mais pobre da população e estimulando os negócios privados. Ela pode, inclusive, alterar o cálculo do salário mínimo, que passará a ser baseado na inflação do ano interior, já que o texto prevê que, se o Estado não cumprir o teto de gastos da PEC, fica vetado o aumento acima da inflação com impacto nas despesas obrigatórias. A medida começa a valer em 2017, contudo, para educação e saúde. O congelamento efetivo será a partir de 2018, ano em que ocorrerão novas eleições presidenciais.
cultural baseada nas oficinas que foram oferecidas durante o movimento. Conhecido como o “cara do fundão”, diz ter se tornado um aluno mais aplicado e em diálogo com a direção da escola. Uziel Lorenço, 38, vice-diretor do turno da manhã, incentiva a aproximação: “Estar ao lado dos alunos é muito importante, sobretudo depois da manifestação cívica por parte deles, buscando participação nas decisões referentes ao sistema educacional.”
“Política virou assunto” A experiência da ocupação mudará para sempre a vida de Inaiê Thani, 16, estudante do 2o ano do ensino médio da Escola Estadual Dom Pedro II. Ela guarda na memória a ida a Brasília, na votação do primeiro turno da PEC no Senado. Com a mãe, Renata Sebastiani, 41, e outros jovens, gritou palavras de ordem e enfrentou bombas de gás lacrimogêneo jogadas pela Polícia Militar. Para a estudante, a luta não foi em vão: “Conseguimos cutucar a ferida do governo”. Inaiê sempre recebeu total suporte da mãe, que é professora, e sabe o quanto essas medidas são prejudiciais: “Meu apoio é incondicional, ainda mais agora que ela está tendo um discernimento político. Preciso orientá-la”.
Ela afirma que no dia a dia das ocupações todos faziam de tudo, até porque eram poucos secundaristas que realmente dormiam na escola: “Teve gente que aprendeu a cozinhar e a lavar banheiro ali. A união de todo mundo fez toda diferença”. Contudo, Inaiê está pessimista: “As coisas vão ficar piores, pois, sem verba, não há infraestrutura suficiente para a educação”. Quando questionada sobre a Reforma do Ensino Médio, a estudante mostrase convicta de que o certo seria a melhora do ensino de base. Os secundaristas da Dom Pedro enfrentaram um desafio extra. Segundo eles, a direção da escola não apoiou o movimento. Apesar de a administração não confirmar a informação, o LAMPIÃO teve dificuldades para realizar apurações na escola: nossos repórteres foram impossibilitados de entrevistar os alunos no espaço da instituição. Após 37 dias de ocupação, também encerrada no dia 13 de dezembro, Inaiê acredita em um empenho maior dos colegas de classe nesta retomada de ano. Para o futuro, espera que a vontade de mudança permaneça no dia a dia da escola e, apesar das reformas realizadas pelo governo, aspira cursar Biologia em uma universidade pública.
Rumo. Após estudos e debates durante a ocupação, Pablo pretende cursar Direito
REFORMA DO ENSINO MÉDIO A Medida Provisória de Reformulação do Ensino Médio (MP 746) propunha, na época das ocupações, a não obrigatoriedade de matérias fundantes da crítica social, como Sociologia, Filosofia e Artes, além de Educação Física, importante para o desenvolvimento físico e cognitivo dos estudantes. Apesar dessas matérias não terem sido retiradas do currículo - uma vitória das ocupações? -, entre as mudanças aprovadas estão: História e Geografia tornaram-se disciplinas facultativas, não será mais necessária a diplomação de professores em cursos técnicos/profissionais e a carga horária estudantil aumentará de 800 horas/aula para 1400 horas/aula. Especialistas alertam para o risco de a reforma, da maneira como reorganiza a formação, prejudicar alunos de baixa renda da rede pública de ensino.
ESCOLA SEM PARTIDO O Projeto Escola Sem Partido é uma proposta de lei que regula o discurso professoral a partir de uma alegada isenção de ideologias políticas no ambiente escolar. Dessa forma, uma cartilha será fixada nas salas de aula com os “deveres” do professor no ensino fundamental e médio. Dentre os tópicos presentes nos cartazes, há itens como: “O professor não se aproveitará da audiência cativa dos alunos para promover os seus próprios interesses, opiniões, concepções ou preferências ideológicas, religiosas, morais etc”; “O professor respeitará o direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”; e “O professor não fará propaganda político-partidária em sala de aula, nem incitará seus alunos a participarem de manifestações, atos públicos e passeatas”.
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Arte: thiago henrique
s pelo futuro da educação no rasil “A luta continua”
Hoje luto por um ensino de qualidade não só para mim, mas também para meus irmãos, sobrinho, primos, amigos. Por todos. Isso é um direito.” Márcio Miranda
Os alunos da Escola Estadual de Ouro Preto, o Polivalente, têm experiências de vida atravessadas por desigualdades sociais e econômicas. A instituição tem a fama de “abrigar” os jovens da periferia da cidade. Lá, o comprometimento com os estudos foi o maior legado deixado pelas ocupações. É o que relata Márcio Miranda, 23, um dos líderes locais do movimento: “Hoje luto por um ensino de qualidade não só para mim, mas também para meus irmãos, sobrinho, primos, amigos. Por todos. Isso é um direito”. Durante os intervalos, os professores da escola passaram a colocar o assunto em pauta. Brena Faria, 25, professora de Sociologia, entende a importância de lutar pelo ensino: “A ideia era mostrar que os próprios estudantes são capazes de propor uma educação plena e de qualidade. Com trabalho em conjunto, isso pode se tornar realidade”. Quando a diretoria da instituição retirou o apoio às ocupações, os estudantes perceberam que deveriam gerar resultados e formas de resistência além dos muros da escola, seja pela criação do grêmio estudantil ou por postagens nas redes sociais. Márcio almeja uma escola de qua-
lidade, capaz de formar pessoas com pensamento crítico. Por isso, sentese vitorioso pela luta, mesmo sabendo que, com as reformas do governo, o caminho até a faculdade de Medicina, que pretende cursar em uma universidade pública, ficou mais longo.
“Ocupar para quem?” Entre os moradores de Cachoeira do Campo, distrito com cerca de 15 mil habitantes, pouco se discute política. No entanto, o tema foi recorrente entre os meses de outubro e dezembro do ano passado. “Fizemos aulões públicos e fomos à rádio com o intuito de convidar a população para conhecer o movimento que estava nascendo”, diz Laura de Assis, 18, que, na época, fazia parte do comando de ocupação da Escola Estadual Padre Afonso de Lemos. Apesar do estresse, dos atritos e da ausência de suporte por parte da diretoria - obrigando os repórteres, mais uma vez, a executarem a entrevista do lado de fora da escola -, Laura não se arrepende: “Quero que todo mundo possa entrar em uma universidade com boas condições”. Segundo Marcos Passos, 17, que também participou da ocupação, um forte vínculo foi criado entre eles e as funcionárias: “Tivemos que lavar as carteiras sujas e vimos como é com-
plicado o trabalho das ‘tias’. Depois disso ficamos bem próximos”. Em contrapartida, Marcos reconhece que as amizades mudaram. Sobretudo em vista dos laços formados com outros secundaristas de semelhante posicionamento político. Dentre as dificuldades enfrentadas, Laura destaca o machismo que sofreu por parte da PM: “Toda vez que eu falava, os policiais pediam para um garoto tomar a voz no meu lugar”. Entretanto, segundo ela, o empoderamento feminino foi frequente na ocupação, de tal forma que os rapazes faziam questão de cozinhar, tarefa tachada como feminina. “No início, tivemos dificuldades na cozinha, tanto que, durante vários dias seguidos, só preparamos macarrão”, reitera Marcos. Laura e Marcos ainda não sabem qual graduação farão, mas concordam que a aprovação das medidas irá reduzir o número de vagas nas instituições públicas, afetando, principalmente, alunos de baixa renda. Temem, ainda, a privatização das universidades federais e estaduais devido ao congelamento dos investimentos na educação do país.
“Não Desanimaremos” Mulheres, negras, família de baixa renda. Não é fácil nascer e crescer
nas periferias das cidades brasileiras. O cenário se complica quando o governo desconsidera medidas que garantam condições de acesso ao ensino formal. É o que dizem as irmãs gêmeas Rayene Sacramento e Rayele Sacramento, 16, lideranças importantes na ocupação do Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG). Desde pequenas, elas carregam no sangue o som do rap. Os versos de artistas que fazem da rima protesto político ecoam nas meninas. Quando foram a Brasília e as bombas de gás lhes ardiam os olhos, as razões para desistir da luta viraram grito: “Juventude, combatente, lutando pelo futuro no presente!” Para as duas, fica a sede de querer lutar por mais, mesmo que “os caras lá de cima não escutem quem está em baixo”, garante Rayene. “Querem aprovar isso tudo para que as pessoas não tenham pensamento crítico, não questionem”, completa Rayele. As meninas também pretendem se graduar em uma universidade pública. Jovens alunos que conheceram o sentido da luta. Estudantes tachados de vagabundos, baderneiros, arruaceiros, mas que não desistiram. Se o objetivo primeiro das ocupações não foi alcançado, o legado do movimento é um caminho aberto aos destinos da educação pública no Brasil.
Resistência. Sem apoio da diretoria, Marcos, Laura e Inaiê lutaram por melhores condições na educação em suas respectivas escolas. Concordam que aprenderam mais sobre ensino, cidadania e manifestação durante as ocupações do que no dia a dia estudantil
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Arte: jéssica avelar
Economia
Ouro Preto lidera ranking Alta no preço do minério de ferro ajuda cidade mineira a conquistar a maior taxa de sobrevivência de empresas do país Fernanda Covalski
saldo negativo de empregos no Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) e o preço do barril passa a cair de uma média de 130 dólares até atingir o valor mais baixo dos últimos anos, em janeiro de 2016: pouco mais de 30 dólares. Desde essas mudanças na economia, o Sebrae ainda não realizou novas pesquisas. Felipe Melo, gerente da Unidade de Inteligência Empresarial do Sebrae Minas, afirma que, para comentar a conjuntura
atual sem o estudo detalhado das taxas de sobrevivência, é necessária uma análise cuidadosa. A baixa na economia tende a aumentar a taxa de mortalidade dos negócios, mas há fatores que podem fazer um município estar melhor ou pior nesse sentido; a proporção de MEIs constituídos na cidade, como Efigênia e Ana Paula, é um desses fatores. Felipe explica que, por terem menos e menores obrigações, os microempreendedores individuais podem Jéssica Avelar
Efigênia já tinha sua mercearia há seis anos quando, em maio de 2011, decidiu se registrar, tornando-se Microempreendedora Individual (MEI). Ao sair da ilegalidade e conseguir um registro no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ), ela começou a emitir notas fiscais e parou de recolher o INSS por conta própria, passando a pagar o Simples Nacional, regime tributário diferenciado que contempla empresas com receita bruta anual limitada. Além disso, como MEI, pegar um empréstimo no banco se tornou mais fácil que na condição de pessoa física. São diversas vantagens que ajudam pequenos empresários, como Efigênia e a cabeleireira Ana Maria, a terem os benefícios legais concedidos às empresas. Ana, a cabeleireira, se registrou em 2012 e, quase cinco anos depois, continua formalizada e em atividade. Sua empresa é uma das que contribuiu para o sucesso de Ouro Preto em recente pesquisa lançada pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae). “Sobrevivência das Empresas no Brasil” é um estudo que pretende identificar a taxa de sobrevivência e mortalidade de pequenos negócios que tenham até dois anos de registro. Na análise publicada neste ano,
são considerados os MEIs, as microempresas e as empresas de pequeno porte (EPP) que foram registrados em 2012. Para calcular a sobrevivência, há um levantamento de quais desses negócios ainda estavam ativos em 2014. Ouro Preto ficou em primeiro lugar no ranking nacional, ultrapassando os índices de todas as cidades brasileiras que tiveram mais de 500 registros em 2012. A cada 100 empreendimentos, 86 continuaram vivos. A média nacional de sobrevivência é de 76,6%, e a de Minas Gerais, 77,4%. A cidade mineira é a única do estado que está entre os dez primeiros lugares da pesquisa. Para os professores André Mourthé e Daniel Consentino, ambos do curso de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), o destaque de Ouro Preto se deve, principalmente, à grande alta do preço do minério de ferro no mercado internacional. De acordo com o Metal Bulletin, publicação especializada no mercado de metais, o preço do barril de minério chegou, em 2011, a pouco mais de 190 dólares e, em 2012, a 150 dólares. Esses valores altos refletem uma economia favorável, especialmente em uma cidade tão ligada à mineração quanto Ouro Preto. A partir de 2014, o cenário de crise começou a se configurar. O ano fechou com
encontrar formas de sobrevivência com mais facilidade e rapidez do que micro e pequenos empresários. Michela Oliveira, 27, é MEI desde 2016 e um bom exemplo. Ela é a única responsável legal por seu negócio e, ainda estudante de Artes Cênicas na Ufop, já realizou espetáculos, intervenções cênicas e produção de eventos. Pretende aumentar o leque de atividades realizadas por sua empresa, a Truá Produções. Pelo ponto de vista de Felipe, o dia a dia da Truá Produções é mais descomplicado do que o de uma micro ou pequena empresa, por exemplo. Considerando esses três tipos de pessoas jurídicas, o desempenho de empresas de pequeno porte também ajuda a elevar as taxas de sobrevivência. Não possuem a agilidade dos MEIs, mas são entidades mais consolidadas e organizadas. As microempresas ficam num nível intermediário, pois não são ágeis como os MEIs, e também não são robustas como as EPPs. Além do tipo de negócio que se abre, também são importantes as características do ambiente de negócio. Ouro Preto, nesse sentido, tem características favoráveis, como o turismo, mas também pontos desfavoráveis, como o grau de dependência da mineração. Quando uma única atividade econômica é a maior
fonte de renda da cidade, o que acontece a ela reflete no restante da economia: ou seja, se a mineração vai mal, a economia de Ouro Preto também vai mal. Mas essa falta de dinamismo econômico, ou baixa variedade de setores, para Felipe, também garante certa estabilidade aos negócios. A conta final desses fatores faz com que, na cidade mineira, a taxa de natalidade não seja tão alta, o que quer dizer que a quantidade de negócios que são abertos não é grande. Quanto às variáveis microeconômicas, isto é, internas a cada negócio, o planejamento aparece como principal fator que define a sobrevivência de pequenas empresas, segundo Jaqueline Guimarães, coordenadora técnica da Agência de Desenvolvimento Econômico de Ouro Preto (Adop). “Um empreendedor que se capacita e inova está muito mais preparado para os desafios do mercado”, afirma. Em concordância, o gerente do Sebrae Minas defende, inclusive, o planejamento pessoal para controlar sentimentos como frustração e desilusão, que tendem a aparecer junto com os obstáculos que aparecem no caminho. Para ele, o mais importante no empreendedor é a resiliência, ou seja, a capacidade de se adaptar ao tempo ruim e às mudanças, sem deixar a decepção impedir a luta pela sobrevivência.
distrito
O curioso caso dos caracóis Lui Pereira
Os caramujos-africanos já são íntimos dos moradores de Passagem de Mariana. Com seu caminhar lento e aparência asquerosa, despertam medo em alguns e fascinação em outros. Para descobrir os mistérios desse bichinho, o LAMPIÃO foi a campo com o objetivo de saber: afinal, por onde andam? Do que se alimentam? Quais riscos podem trazer para nossa saúde e bem-estar? Por ser um molusco terrestre e pulmonado, o Achatina fulica é na verdade um caracol, diferente dos
caramujos, que são caracterizados como moluscos de água doce. De hábitos noturnos, costuma aparecer após períodos chuvosos, o que explica seu sumiço neste início de ano. Em geral, prefere se instalar onde há mato e acúmulo de lixo. Por não ser um animal nativo da fauna brasileira, é considerado uma praga no país. Falta-lhe nas terras daqui um predador natural. Não bastasse a vida de poucos riscos, o bichinho é extremamente fértil: cada espécime pode colocar até dois mil ovos por ano. O capinador Gilson Raimundo Rosa, 48 anos, especialista na arte de Lui pereira
Caracol-africano. Exemplar encontrado em Passagem de Mariana
eliminar caracóis, lesmas e na limpeza de lotes em geral, consegue retirar, em algumas épocas e em terrenos grandes, até três latas de 20 litros do molusco. O processo de catação é sempre o mesmo. Primeiro, ele junta todos os caracóis com o rastelo e os coloca em um saco ou lata. Em seguida, adiciona cal virgem e um pouco de água. Depois de certificar o óbito de todos os bichinhos e de deixá-los bem secos, descartaos junto ao lixo retirado do quintal. Gilson ainda alerta: “O maior risco de pegar doença através dos caracóis é pelo consumo de verduras sujas com o muco desses animais”. Portanto, para eliminar qualquer risco de contaminação por possíveis bactérias presentes no animal, é essencial lavar bem os vegetais e deixá-los de molho em uma solução de água com um pouco de água sanitária. Amanda Carvalho, 10, considera-se, além de boa cozinheira, excelente caçadora de caracóis. Seu método, contudo, é diferente. A menina prefere queimá-los com sal e deixá-los bem sequinhos para depois jogar fora. Quando questionada se faria uma farofa de caracol, Amanda desconversou, preferindo deixá-los na horta mesmo. Professora de Amanda, Juliana Conti venceu os animais com muita paciência. Ela, que possui uma horta onde cultiva verduras e tomates, dividiu sua plantação com os invasores por muito tempo. “Eles adoravam comer minhas couves. Agora parece que enjoaram e não mexem mais no meu quintal”. E completa: “Esses bichos são estranhos, pare-
cem de outro planeta. Quando chegam a gente não sabe de onde vieram. De repente vão embora e a gente não sabe para onde eles vão”. No Brasil, a introdução do animal aconteceu em meados dos anos 80. Acreditava-se que, por ser maior e ter uma reprodução mais rápida que o tradicional escargot, seria uma alternativa barata ao sofisticado prato francês. Por isso, vários agricultores começaram sua criação. Contudo, a ideia aparentemente genial acabou falhando, já que poucos foram os paladares que se satisfizeram com a novidade gastronômica. Abandonado por seus criadores, o molusco se viu livre para povoar tranquilamente nosso país. A diretora teatral Luciane Trevisan conta que foi na casa onde mora que se deu o início da infestação em Passagem. Segundo ela, há muito tempo, um homem começou a criar o caracol na piscina. Após não ver futuro na empreitada, abandonou a casa e sumiu. Quando a proprietária entrou no terreno, deparou-se com uma grande quantidade do molusco por toda casa, até mesmo no teto. Apesar do posterior aterramento da piscina, já era tarde demais. Os caracóis haviam tomado o distrito. O caracol tem fama e jeito de conquistador. De acordo com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), o espécime é considerado um dos cem invasores mais bem sucedidos do mundo. No Brasil ele está presente em pelo menos 23 estados e no Distrito Federal, além de fixar residência e ovos em dezenas de países mundo afora.
Como eliminar? Segundo o Ministério da Saúde, alguns cuidados devem ser tomados ao exterminarmos caracóis em residências: O primeiro passo é a certificação do tipo de caracol. O africano pode ser avaliado a partir da casca, que possui cinco giros e um ápice pontudo. Mas atenção! Não confunda os bichinhos: o Megalobulimus sp., espécie similar de três giros e ápice mais arredondado, não deve ser eliminado por ser um caracol de nossa fauna. Em seguida, colete os invasores e seus ovos, geralmente encontrados semi-enterrados no solo, utilizando uma luva ou algo similar. Coloque-os em um recipiente como uma lata ou um balde. Após a coleta, quebre suas conchas com um martelo e enterre os animais em uma cova. Adicione uma pá de cal virgem para não contaminar os lençol freático. Evite usar sal, pois a substância pode levar à infertilidade do solo. Queimá-los também pode ser uma solução, desde que de forma controlada para evitar acidentes. Apesar de não haver registros no Brasil de transmissão de zoonoses ligadas aos caracóis, o procedimento recomendado pelo MS é o mesmo adotado por Gilson: lavar bem as hortaliças com a proporção de uma colher de água sanitária para cada litro de água.
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Fevereiro de 2017
Arte: Jéssica avelar
cidadania
Mães à espera de liberdade
Do lado de fora da prisão de Mariana, famílias de detentos vivem sentenças de dor, espera, aprendizado e desrespeito Mariana reis
Superação. Após 3 anos de detenção, Kênia Gabriela trabalha como diarista e manicure para criar os filhos
Entre paredes e grades reforçadas, trancados por cadeados e vigiados a todo instante, centenas de homens uniformizados aguardam no Presídio de Mariana o momento em que encontrarão novamente o direito de viver em sociedade. Enquanto os detentos cumprem a pena, familiares anseiam a liberdade. Está dada a realidade do cárcere: quem possui um parente preso também está fadado a cumprir o castigo. Era noite do dia 27 de dezembro de 2016, quando policiais militares chegaram com o filho de Lidiane em casa. A auxiliar de servicos gerais, de 53 anos, conversava com vizinhos no portão ao deparar-se com Henrique dentro de uma viatura. Como servente de pedreiro, Henrique ajudava nas despesas de casa e, segundo a mãe, mantinha uma vida simples e totalmente fora de qualquer suspeita. Mãe de 11 filhos, Lidiane vive, pela primeira vez, a experiência de ter um deles preso. “É difícil vê-lo nessa situação. A gente não cria os filhos para passar por essas coisas”, diz. Nascida em família pobre, Lidiane trabalhou como doméstica desde os primeiros anos de vida e, por isso, estudou somente até a terceira série. Embora tenha passado por muitas situações adversas, o último ano parece ter superado todos os outros momentos difíceis. Meses antes da prisão de Henrique, sofreu a dor de perder um filho, por assassinato. Aos poucos, a mãe tenta ocupar a cabeça com trabalho, mas faz questão de ver o filho aos fins de semana. “Visito todo domingo, mas não gosto de ficar por muito tempo. Dá uma sensação ruim. Fico aflita. Nao gosto de ficar nem meia hora”. Além da fobia pelo espaço, o constrangimento de passar por revistas íntimas incomoda. “Nos fazem tirar a roupa, soltar os cabelos, agachar. Sinto muita raiva disso”. Por achar as revistas constrangedoras, assim como Lidiane, e por um problema nos joelhos, Vera Fernandes, 55, decidiu não visitar mais o filho. Lucas, detido aos 18, viveu praticamente toda a juventude dentro de uma cadeia. Entretanto, os anos parecem não ter passado para a mãe. Ainda hoje, descreve o rapaz de 29 anos como se fosse o jovem que acabara de ser levado pela polícia. Afetuosa, não esconde o amor pelo filho. “Ele é um menino ótimo, inteligente e com um coração muito bom. Se você for lá, você vai ver”. Contudo, nos últimos anos a preocupação com Lucas aumentou. Dentro da prisão, desenvolveu hepatite B. Por se tratar de uma doença grave, a mãe vive em apreensão. Atualmente, viaja quase 300 quilômetros por mês para buscar os
medicamentos, com valor de aproximadamente R$ 3 mil. Segundo Vera, por várias vezes, o filho não recebeu tratamento adequado, afetando bastante seu estado de saúde. “Agora parece tomar tudo direitinho, mas estou lutando pra ele cumprir a pena em casa”. Voltar ao lar é um sonho antigo, mas parece estar cada vez mais próximo. No último ano, Lucas obteve o indulto de Natal e recebeu o direito de passar as festas de final de ano com a família. “O Natal foi bom demais! Na verdade ele nem acreditava que estava aqui. Como vendo roupas, enchi o armário dele de peças de marcas. Ele é doido com iogurte também, então comprei”. Para as mães, são rapazes inteligentes e de bom coração. É difícil ver os meninos que carregaram no colo dentro de uma cadeia. A auxiliar de enfermagem Márcia Bernardes relembra a primeira vez que viu Mário, 22, encarcerado. “É difícil pra gente que é mãe. A primeira vez foi muito triste, muito doloroso. Chorei demais e ele também”. Márcia não ignora os crimes cometidos por Mário, preso há pouco mais de um ano. Sabe que a pena por ter roubado uma televisão deve chegar a seis anos. Entretanto, já sente mudanças no comportamento do filho. Enquanto consumia drogas ficava agressivo, mas após os efeitos, não se lembrava dos momentos de fúria. Hoje, Mário é acompanhado por uma psicóloga e está livre do vício, o que tem ajudado bastante a encarar o cárcere e deixado a mãe bastante otimista. “Quando sair, vai ter filhos e recomeçar”, diz Márcia. Vida encarcerada Esperança resume os sentimentos das mães do cárcere. Para elas, a vida dura dentro de uma prisão ensina, renova, restaura e transforma. Dá chance a uma vida nova. É a realidade de Kênia Gabriela. No corpo, ainda há marcas da prisão. Algumas tatuagens e diversas cicatrizes nos braços rememoram em carne um passado difícil. “Colecionadora de lágrimas” é como ela se identifica. Viúva há pouco mais de seis meses, Kênia trabalha como manicure e diarista para criar o filho mais velho de 14 anos e a caçula, de cinco. Mãe de quatro filhos, viu-se afastada deles ao ficar detida entre os anos de 2008 e 2011. Quando foi levada para a detenção, amamentava um dos filhos. “A ficha só caiu no outro dia de manhã, quando meus peitos estavam cheios de leite e não tinha meu neném ao lado. Comecei a chorar e não parava de gritar. Perdi muita coisa aqui fora. Quando fui transferida para Belo Horizonte, deixei de ter contato por muito tempo com as crianças”. Atualmente, dois filhos são
O Mário vai montar um salão, porque ele gosta de cortar cabelo. Tenho fé em Deus e em Nossa Senhora Aparecida, porque ele está renovado. Vai ter apoio da família. O que a sociedade pensa não importa” Márcia Bernardes
O dia do Motim A mensagem espalhou-se rapidamente na madrugada de 30 de janeiro de 2016. “A cadeia de Mariana está pegando fogo!”, dizia o texto. Imediatamente, a Rua 16 de Julho foi tomada por familiares e amigos. “Assim que soube da notícia, minha nora e eu descemos correndo. A gente que é mãe sofre muito. Nem esperamos o ônibus”, disse Márcia Bernardes. O medo de ser mais uma das várias rebeliões que, na época, se alastravam pelo país deixou familiares preocupados. Segundo o diretor prisional, Antônio Pataro, “o motim teve início após uma tentativa de fuga. Detentos estouraram cadeados, mas foram impedidos por agentes. Sem sucesso na ação, iniciaram uma revolta mas foram rapidamente controlados”. No dia 27 de janeiro, o promotor de Justiça Guilherme Meneghin já havia entrado com uma ação civil contra o Estado de Minas Gerais, alegando a impossibilidade de funcionamento da prisão. Segundo Guilherme, no dia do motim, havia 158 detentos. Relatório obtido no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) afirma ser de 110 o número de vagas, além de tratar como péssimo o estado de conservação da unidade. No dia da revolta, parentes tentaram bloquear o trânsito e alguns chegaram a passar mal. Os vereadores Ronaldo Bento e Cristiano Villas Boas, da Comissão de Direitos Humanos da Câmara de Mariana, estiveram no local quase 11 horas após o início do tumulto para analisar a situação dos encarcerados. A demora deixou amigos e parentes indignados. Identificados como lideranças do motim, 12 presos foram transferidos. Nos dias seguintes, familiares tiveram dificuldades em localizar parentes. Segundo Pataro, “a responsabilidade de comunicar as transferências é da unidade que recebe os presos”. Quase cinco dias depois, muitos ainda não tinham notícias sobre o paradeiro de familiares, como Marília Silva. “Localizei meu namorado somente no dia 4 de fevereiro”, diz. Embora exista o projeto de construção de uma nova sede e de uma Associação de Proteção e Assistência ao Condenado (Apac), o estado não possui recursos para iniciar as obras em Mariana. Por esse motivo, medidas paliativas são realizadas dentro da própria unidade, como a construção de celas e o reforço da segurança do presídio.
Mariana Reis
Carmem Guimaraes
criados por outras pessoas. O de dez anos vive com o pai e a filha de nove é criada por padrinhos. Durante o tempo na cadeia, vivenciou momentos conturbados: desenvolveu depressão e passou boa parte da pena sob efeito de medicamentos. Praticava automutilação e tentou suicídio. “Cheguei a amarrar um lençol no pescoço e me pendurei. Fui impedida por colegas de cela e agentes. Depois disso, passei a ser vigiada”. Embora tenha vivenciado motins, castigos e depressão, para Kênia, os piores momentos dentro da cadeia aconteceram quando o marido foi preso em 2015. Por ser exdetenta, as revistas eram mais rigorosas. Contudo, a experiência mais dolorosa, foi o falecimento do esposo em setembro do ano passado. Kênia acredita que a morte ocorreu por negligência da penitenciária Dutra Ladeira, em Ribeirão das Neves, e da antiga administração da cadeia de Mariana. Ela conta que o marido esteve doente durante meses e não recebeu tratamento. Segundo ela, a situação poderia ter sido evitada caso o esposo não fosse transferido. A manicure tornou-se referência para famílias com parentes em situação carcerária. Conhece bem a realidade do sistema prisional do Estado e as deficiências do sistema Judiciário. De certa forma, tornou-se mãe para muitos familiares de detentos. “Hoje me procuram para praticamente tudo. Quando alguém é transferido, quando precisam de entrar com algum documento no Fórum. Gosto de ajudar, então eles vêm”. Os anos convivendo com advogados e promotores proporcionaram a Kênia conhecimento técnico sobre alguns princípios burocráticos do Direito. Aprendeu a redigir pedidos, habeas corpus e outros documentos. “Escrevo com papel e caneta mesmo”, explica. Como a maioria dos presos são de famílias carentes, o auxílio gratuito oferecido por ela evita gastos excessivos na contratação de advogados. Conquistar a liberdade com a qual tanto sonham e iniciar um novo ciclo. Ouvir o barulho das chaves nos cadeados e ver o abrir dos portões. Retirar o uniforme, ir embora e nunca mais voltar. Recomeçar a vida, superar preconceitos e realizar desejos. Esquecer o passado de violência e seguir em frente é o que mães e filhos esperam ansiosos. Como aconselha Kênia: “Eu sempre falo com meu filho. Não queira pra você o que sua mãe passou na cadeia, porque é muito sofrimento. Perdi tudo que eu tinha”.
Angústia. A auxiliar de enfermagem Márcia Bernardes conta como foi doloroso ver o filho ser preso
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Fevereiro de 2017
Arte: glenda louise
patrimônio
Os remendos de Olympia Imortalizada em canções, poesias e documentários, Dona Olympia Cotta ainda vagueia na memória dos ouropretanos Letícia Caldeira
íris jesus
A memória, aqui, é de muitos. As histórias de Sinhá Olympia, velha andarilha de Ouro Preto, são contadas a partir de outros. Seguir os rastros de alguém que se foi há 40 anos é como costurar uma colcha de retalhos. As lembranças dos familiares e moradores da cidade, coloridas e vívidas como as roupas da Sinhá, remendam-se para formar vestes únicas – tecidos que, sem nunca terem tocado o corpo de Olympia, abrem novos caminhos à mulher que atravessa gerações. Passar a linha pela agulha é passo primordial da costura. De forma igualmente delicada, Sinhá Olympia enfeitava seu inseparável cajado com flores, papéis de bala, tecidos e adereços excêntricos. Com ajuda de seu sobrinho-neto Márcio, a majestosa sinhá das terras do ouro negro coroava-se ainda com um chapéu igualmente enfeitado: todos esses pequenos objetos engrandeciam-se ao serem tocados por Olympia. O cajado agregava-lhe um caráter quase místico. Veja bem, subir as ladeiras da velha Ouro Preto requer preparo e força aos visitantes da cidade histórica. O cajado não apenas ajudava a andarilha em seu trajeto diário – do Pilar, bairro onde morava, à Praça Tiradentes –, mas também evocava um ar de nobreza e encantamento. Ela sabia da estranheza que causava a quem a via. “Agora, imagina você meu filho, que martírio, sem o povo saber porque que eu ando mendigando, porque que eu ando como uma mendiga, no meio da rua, pedindo… E ganho tudo, e protejo a quem não tem. Com a graça de Deus”, disse no documentário Dona Olímpia de Ouro Preto, feito nos anos 70. A alcunha de “sinhá” foi dada anos após a morte de Olympia: a Estação Primeira de Mangueira, escola de samba do Rio de Janeiro, enalteceu a velha senhora de cajado na mão e chapéu na cabeça em um samba-enredo na década de 90.
Entre os remendos que costuram as memórias de Olympia, uma imagem resiste: ao sol de meio-dia, a senhora sobe rumo à Praça Tiradentes.
Logo virou “Sinhá Olympia”. Seus remendos vibrantes foram atrelados ao ideal de liberdade e aos doces delírios que, em outras décadas, a notável figura fez imperar nas ruas da cidade barroca. Antes de colorir a cidade onde firmou morada e escreveu história, Olympia Angélica de Almeida Cotta viveu no distrito de Santa Rita Durão, sua terra natal. Nascida em 1889, em uma família detentora de muitas terras, cresceu na casa onde morou o poeta Frei Santa Rita Durão, autor do épico Caramuru. Em 1929, mudou-se para Ouro Preto. Entre os remendos que costuram as memórias de Olympia, uma imagem resiste: ao sol do meio-dia, a senhora sobe rumo à Praça Tiradentes. Há quem se lembre da Sinhá zangada com os moleques malcriados que insistiam em irritá-la: bastava os arteiros gritarem “Catuaba!” para a indignação tomar conta de Olympia. Outros garantem que a andarilha era alegre e aberta a conversas. Chiquitão, um antigo vizinho, ressalta: “Dona Olympia era uma senhora extremamente imaginativa. Ela não contava histórias com h, mas sim estórias”. Efigênia Carabina, moradora de Ouro Preto, comenta que o modo de viver e vestir de Sinhá Olympia despertava curiosidade e preconceito: “Ela se vestia tipicamente. Naquele tempo, quando alguém aparecia com roupas diferentes, era chamado de doido”. Para Carabina, não havia loucura na Sinhá: “Muitas vezes eu tomei cafezinho com broa na casa dela. Um dia, curiosa-
mente perguntei o porquê dela se vestir daquele jeito. ‘Eu era apaixonada, Efigênia’. Ó, eu tô aqui em frente à Igreja Nossa Senhora do Pilar e não tô falando mentira”, afirma. “Ela me disse que era apaixonada por um rapaz negro, mas os pais dela não gostavam disso. Como começaram a prendê-la dentro de casa, Dona Olympia deu uma de doida pra ter liberdade”. Olympia era contadora de histórias. Para muitos, as fantasias grandiosas que bradava eram uma válvula de escape. A velha andarilha acreditava ser parente do Marquês de Paraná e de Dom Pedro II – cada hora vivenciava um imaginário para poder fugir da realidade. A personalidade da sinhá exalava magnitude e despertava interesse, principalmente em turistas. No canto da boca, a senhora de muitos adornos sustentava um cigarrinho e um tanto de histórias épicas. Recebia, de bom grado, um dinheirinho aqui e acolá. Chamou atenção, inclusive, dos filósofos franceses Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, na ocasião da visita do casal a Ouro Preto, em 1960. A liberdade era companheira da sinhazinha. Após os 75 anos, mesmo velha e cansada de subir as ladeiras íngremes de Ouro Preto, Olympia continuava em contato com a rua: ficava na porta de casa, no Pilar, relembrando o passado e conversando com os turistas que transitavam pelo lugar. Dizem ainda que Olympia sempre marcava de tomar café na casa de algum conhecido e, nas festas da família Cotta, pedia um teatrinho ou uma cantoria a seus sobrinhos. Esses e outros detalhes da rotina da andarilha são lembrados por sua afilhada Vilma, a quem Olympia carinhosamente chamava de Sinhá Morena. Ao inaugurar uma pousada com o nome em homenagem à notória tiaavó, Vilma homenageou a madrinha com palavras: “Os que amam de verdade não serão esquecidos”. Pois é, ao que parece, há costuras que resistem ao tempo.
Mayara Portugal
Com um ramo de arruda e um copo de água benta nas mãos, Sancho Alves Pereira, 70 anos, reza para quem busca uma benção no quintal da casa onde mora, no Bairro São Gonçalo, em Mariana. De camisa aberta, calças largas e chinelos, o benzedeiro profere as orações que aprendeu com o pai, ainda na infância. “Ele me ensinou a tirar cobreiro quando ainda era menino. Não sei ler, então pedi pra ele repetir três vezes pra eu decorar. Depois disso, nunca mais esqueci.” Sancho benze há 30 anos. Aposentado, é procurado com frequência por moradores da cidade. Aos fins de semana costuma descansar, mas não se incomoda em prestar atendimentos até mesmo nesses dias. Como é de costume entre os benzedeiros, não cobra pelos serviços. “Às vezes as pessoas trazem uma coisa ou outra, me ajudam com um trocado, mas não peço nada não, o prazer que tenho de benzer é uma alegria. Eu faço agora pra lá na frente a fé que tenho em Deus ajudar a minha família também, né?” A tradição do benzimento é antiga em terras brasileiras. Segundo Celina Gontijo Cunha, mestranda em Estudos da Linguagem da Universi-
Rafaela rissoli
Sob a proteção da benção
Sagração. De camisa e coração abertos, Sancho Alves realiza ritual de benzimento em seu quintal
dade Federal de Ouro Preto, a prática do ritual tem contribuições de outros povos que passaram pelo Brasil. Uma delas é indígena, na tradição e na prática de benzer com ervas; a outra vem da religiosidade africana, no costume de fazer trabalhos e acender velas em busca da cura. O sincretismo religioso, fusão entre doutrinas religiosas diferentes, também é importante para entender a prática. “Quando escravos vieram para o Brasil, para continuarem cultuando os orixás, começaram a mesclar e a correspondê-los
aos santos do catolicismo. É nesse contexto que começa a benzeção, diante da mistura dos saberes”, afirma a mestranda. Os benzedeiros são procurados por todos os tipos de pessoas, das mais humildes às mais abastadas, em busca de cura para diversos problemas. Além dos frequentes pedidos de proteção, as rezas mais procuradas são para afastar mau-olhado e pela cura do cobreiro (nome popular para a doença de pele herpes zóster). Segundo a pesquisadora, apesar de rezarem para diferentes proble-
mas, quando procurados por pessoas que precisam de um médico, os benzedeiros costumam indicar atendimento profissional. “Mas há males que, de fato, não passam pela medicina alopática, tratada de modo tradicional, então é nesse contexto que a prática dos benzedeiros atua na vida dessas pessoas”, explica Celina. Além de Sancho, há pelo menos outros três benzedeiros em Mariana. Na rua principal do Bairro Cartucha, a casa pintada de rosa, com muro baixo e portão entreaberto, traz em papel sulfite o aviso: “Aten-
dimento de segunda a sexta, das 8h às 17h30”. Quem mora nessa casa é Dona Ewfigênia, uma simpática senhora de 83 anos, que, há 20, exerce o ofício de benzedeira. Dentro da casa, calendários antigos e relógios parados dividem o espaço nas paredes da sala com imagens de diversas entidades da umbanda, do candomblé e do catolicismo. Dona Efigênia nasceu em Belo Horizonte e veio para Mariana adolescente, aos 14 anos. Atualmente, vive sozinha na casa onde criou seus dois filhos já falecidos. Aprendeu a benzer ainda criança, com um tio. “Ele me ensinou antes de morrer e nunca esqueci”, relembra. Não demora muito para que a conversa seja interrompida por alguém à procura de uma benção. Com touca, vestido florido e sorriso aberto, Dona Efigênia recebe quem está à sua procura. O benzimento acontece em seu quarto, onde há mais imagens de entidades, velas e relógios dividindo espaço com a cama de casal e o guarda-roupa. Em pé, segurando na mão enrugada um ramo colhido de seu quintal – que pode ser de guiné, arruda ou manjericão roxo –, Dona Efigênia, de olhos fechados, faz baixinho suas oracões enquanto vai girando, vagarosamente, aquele por quem reza.
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Fevereiro de 2017
Arte: glenda louise
PATRIMÔNIO
Tradição lacaia renovada Lorena Lima
Um antigo casarão de Ouro Preto, ao pé da ladeira Santa Efigênia, abriga o clube Zé Pereira dos Lacaios, a agremiação carnavalesca mais antiga do país. Com 150 anos de história, completados neste ano, o clube arrasta moradores, turistas e foliões pelos paralelepípedos da cidade histórica em diversas épocas do ano. No tradicional desfile, bonecos dançantes são acompanhados por músicos trajados com casacos vermelhos e cartolas pretas. O remelexo fica por conta da banda, formada por taróis, bumbos e clarins. O cortejo é cercado por lanternas e guiado por dois personagens: o Boi da Manta, figura do folclore mineiro, e o Cariá, facilmente reconhecido pela roupa de diabo e responsável por afastar as pessoas quando raspa uma lança no chão produzindo faíscas. “Quanto mais ele pulava assustando o povo, mais a gente mexia com ele”, relembra a moradora de Ouro Preto Maria do Pilar Ferreira, 62 anos, ao falar do seu personagem favorito. Dentre os bonecos mais novos do clube estão personalidades regionais como Tiradentes e Sinhá Olympia. Os mais antigos são a Baiana, Benedito e Catitão – o primeiro a ser construído e com origem desconhecida sobre quem teria inspirado sua criação. Há quem diga que é uma representação do fundador do clube e também quem o chame de Zé Pereira. Na obra O livro de Ouro do Carnaval Brasileiro, de Felipe Ferreira, não é possível datar
com precisão a origem do termo. “Antigamente, o carnaval era conhecido como Zé Pereira – de origem portuguesa – ou Zabumba, e ambas as expressões possuem significado de festa e solenidade”, esclarece Arthur Ramos, 20, presidente do clube. Entre as razões para não ser reconhecido apenas como um bloco carnavalesco, há o destaque para a participação em diversas festas, independente da época. “Em Portugal, onde começou o Zé Pereira, eles saem até em missas e procissões”, esclarece. A tradição no Brasil começou em 1846, quando o sapateiro português José Nogueira de Azevedo Paredes chegou ao Rio de Janeiro, então capital federal, e levou para o carnaval carioca um toque semelhante ao reproduzido por grupos do Zé Pereira de Portugal, que é o mesmo apresentado até hoje. O sucesso durou 41 anos até que, em 1887, ele veio para Ouro Preto, na época capital mineira, trabalhar no Palácio do Governo como lacaio. O termo era uma forma pejorativa para tratar as pessoas que executavam trabalhos mais humildes. Na época, em Ouro Preto, existia o bloco de carnaval Marchadinha, no qual apenas membros da alta sociedade eram aceitos. O nome “Clube dos Lacaios” foi escolhido como resposta sarcástica ao grêmio elitista, além de ter sido fundado para dar sequência à tradição que se espalhou por várias cidades do país. “Em várias cidades de Minas tem Zé Pereira, mas só o daqui tem esse toque”, conta Arthur Ramos.
Rafaela rissoli
Com 150 anos de história, o Zé Pereira dos Lacaios continua arrastando foliões e admiradores pelas ruas de Ouro Preto
Pioneiro. Prefeitura de Ouro Preto declara 2017 como Ano Zé Pereira de Cultura Popular
Era muito bom. A gente ia atrás deles, pulando e dançando. Quando o Zé Pereira ia embora, a gente ia também.” Gracinda Silva
O tempo de existência contrasta com a faixa etária de grande parte dos integrantes. Tanto o vice José Arthur Xavier, 19, quanto o presidente, começaram no clube ainda crianças e continuam contribuindo nos cuidados da organização. “Eu comecei a vir com meu primo. Minha família é muito ligada à música. Comecei tocando caixa de couro e hoje estou na diretoria’’, relembra José Arthur. Em 2001, devido ao grande sucesso do Zé Pereira, foi criada a versão mirim do clube, que não possui restrição de idade. Nele, não há um professor encarregado de instruir o toque. Os jovens são supervisionados por diversas pessoas, como Adriana Oliveira, que leva o filho Yuri para tocar desde os cinco
anos. “Parece que as crianças já chegam aqui sabendo tocar, ninguém ensina’’, afirma. De acordo com a diretoria do clube, nas últimas contagens havia mais de 60 crianças e adolescentes e 80 adultos. Não apenas o toque é aprendido por eles, como também a paixão pelo bloco. Inspirados pelo Zé Pereira original, algumas crianças vizinhas à sede se juntaram para fabricar seus próprios bonecos. “A gente tinha acabado de ensaiar. Meu irmão e eu chegamos em casa, vimos uns pedaços de madeira e resolvemos fazer um Catitão pra gente’’, conta Ryan Silva. Ele, o irmão mais novo e alguns amigos fizeram também uma réplica dos demais bonecos e saem pelas ruas carregando-os enquanto re-
produzem a batida tocando latas. “Junta um monte de menino. É só começar a tocar”, confirma a avó de Ryan, Gracinda Silva. A senhora de 66 anos que já saiu com o bloco fantasiada de morte, hoje se contenta em acompanhar os netos nos ensaios e cortejos. “Era muito bom. A gente ia atrás deles, pulando e dançando. Quando o Zé Pereira ia embora, a gente ia também”, relembra. Independente da idade ou posição social, a agremiação continua fazendo sucesso. Tanto que aceitaram o convite de levar o cortejo para as ruas de Belo Horizonte no carnaval deste ano. Com sua batida característica, seus bonecos centenários e um Cariá saltitando pelas ruas, o Zé Pereira continua deixando sua marca.
Abra as portas para a folia Letícia conde
Religiosidade. Jésus Florentino e sua sanfona: símbolos de fé Letícia Caldeira
A bandeira anuncia os santos de devoção. A sanfona toca. A viola chora. Os cantos bradam agradecimentos aos Três Reis Magos. Todos os anos, entre os dias 24 de dezembro e 6 de janeiro, é possível ouvir a cantoria de foliões e devotos que caminham a pedir bênçãos para quem recebe o festejo de bom grado em suas casas. A fé católica e a
cultura do interior se entrelaçam para dar vida à Folia de Reis, uma das manifestações populares mais tradicionais de Minas Gerais. Em janeiro deste ano, as Folias de Reis foram registradas como patrimônio imaterial de Minas Gerais pelo Conselho Estadual do Patrimônio Cultural (Conep). O reconhecimento consolida a tradição foliã – e preserva o papel social e artístico nas regiões onde é festejada.
Passadas de geração a geração como símbolo de fé e valor cultural, as Folias de Reis originaram-se em zonas rurais. “É uma cultura que vem da roça. A capina tem que acabar dia 25 de dezembro porque os dias seguintes são para agradecer”, conta Jésus Florentino, fundador da Folia dos Santos Reis Magos do Padre Faria, de Ouro Preto. A andança começa e vai até o céu dourar – há folias que andam madrugada afora e seguem até o amanhecer. Segundo a pesquisadora da crença e da sabedoria popular Deolinda dos Santos, as casas mantêm-se apagadas até a chegada da folia. Ao som de canções, por vezes improvisadas, a bandeira percorre todos os cômodos da moradia, carregando votos de saúde, proteção e prosperidade. O canto e o tocar dos instrumentos são um pedido de licença para a porta se abrir. Sanfona, viola, reco-reco, tambor, pandeiro são essenciais para a cantoria e animação. Dizem que, após sete anos de participação, não se pode mais abandonar uma folia: a viola e os demais instrumentos já se acostumaram a ser tocados pelas mãos desses foliões. As músicas surgem antes de entrar em uma casa, afirma Jésus. “Faço a música de acordo com o ambiente, então os companheiros ainda não sabem o que vou cantar”. Quando há encontro de bandeiras, cada folia toca em um tom diferente
para não afetar a frequência da outra, sempre respeitando o momento e o espaço de cada manifestação. Além do mestre e dos foliões, algumas folias possuem duas figuras mascaradas: o palhaço e a catirina. Ambos simbolizam o caminho dos Reis Magos seguindo a Estrela do Oriente até Belém, já que saem à frente da procissão pedindo permissão para a chegada da folia. A dupla também faz a coleta das esmolas que o grupo recebe após a apresentação. Sempre com roupas coloridas e vibrantes, outras folias apresentam ainda os Santos Reis como personagens: Gaspar, Baltazar e Melchior. De acordo com Deolinda dos Santos, a festa católica varia conforme o local de origem: “Essa manifestação tem suas peculiaridades nas danças, cantorias e brincadeiras. Há variações também nas denominações, ritmos, músicas, versos cantados, número de personagens caracterizados e a função de cada um durante a caminhada”. Como muitas culturas ligadas à religiosidade católica, perder os costumes com o passar dos anos é quase inevitável. A fé envelhece e vai perdendo lastro, deixando jovens cada vez mais desinteressados. O medo do desaparecimento das tradições da Folia de Reis é iminente. “A gente precisa ensinar os mais novos, mas tem menino que não quer nada na vida. É preciso que as professo-
ras incentivem o folclore dentro da sala de aula porque, no dia de amanhã, muita coisa vai acabar”, afirma Jésus. Para o fundador da Folia do Padre Faria, a Folia de Reis é uma herança que merece ser conservada: “É um presente que vamos deixar para a cultura. O folclore tá aí. As folias, o congado, as charolas. Infelizmente esses jovens pensam que a folia é coisa de velho”. Mesmo sendo reconhecidas como patrimônio imaterial do estado, as folias encontram dificuldades para se manter: “Agora virou patrimônio, né? Mas, para serem patrimônio, precisam ter condições financeiras. Se o governo pode pagar R$ 60 mil para uma escola de samba, por que não dar R$ 5 mil para as folias?”, indaga Jésus. Para Laura Catarina Batista, membro da Folia de Reis Menino Jesus de Goiabeiras, distrito de Mariana, a falta de apoio impossibilita a continuação do festejo criado em 1992: “A nossa folia está parada há três anos. Tá faltando folieiro, muitos membros mudaram para outra religião. O pessoal não dá valor, mas tenho muita fé que vamos voltar”. A Folia de Reis luta para se manter como uma das manifestações culturais mais genuínas de Minas Gerais. Quando alguma folia cantar na soleira de sua porta, abra – e receba de coração aberto a alegria dos foliões que tanto têm a agradecer aos santos de devoção.
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Fevereiro de 2017
Arte: Gabriel ConbĂŞ foto: daniel tulher