Jornal Lampião - edição 11

Page 1

Abril de 2012

Edição: Nome dos Editores Edição: Nome dos Editores

lam

piao

@ic

sa.u

fop.

br

Arte: Kíria Ribeiro | foto: davi machado

Jornal Laboratório I Comunicação Social - Jornalismo I UFOP I Ano 3 - Edição Nº 11- Setembro de 2013

Na Arte dE iNspIrAr...

O eSsEnCiAl é InViSíVeL

Um título real Pág. 9

O legado da palhaçaria Pág. 11

A saga de um mito Pág. 10

Plantar, colher e servir Pág. 5

Pé na estrada, garra e determinação Pág. 4

2


2

Setembro de 2013

Edição: Daniela Gurgel e Adriel Campos Arte: Gustavo Kirchner

Editorial

Um jogo de inspirações “Pois minha imaginação não tem estrada. E eu não gosto mesmo da estrada. Gosto do desvio e do desver”.

A citação poética de Manoel de Barros, que abre este editorial, proclama um modo de olhar e criar relações que gostaríamos de imprimir nesta 11ª edição do LAMPIÃO. Tomamos como norte a arte de inspirar, pois a inspiração é algo que move o ser humano, provoca o imaginário e produz a inovação. Numa mistura de realidade e imaginação, o jornal vestiu-se de poeta e foi atrás do novo, do desconhecido, do inusitado, ancorando-se em três pilares: construir, inventar e recriar. Buscamos, assim, uma forma prazerosa de você, leitor, envolver seu olhar na nossa proposta de edição. Adequar-se a um novo estilo de vida, a uma nova forma de educação, seja ela física, mental e/ou social é uma das maneiras de buscar o novo. Fazer algo d’antes nunca feito, viver a arte na rua, alcançar um título,

até então, jamais esperado. Vencer os desafios da vida, despertar uma nova visão, experimentar novos sabores. Voltar um olhar especial para a literatura, a música e o lazer são experiências dignas que afloram a inspiração. Diante disso, o LAMPIÃO transformou estas experiências em narrativas, em matérias de excelente qualidade, e por que não dizer, poéticas, pois a vida é uma grande e inspiradora poesia! Com o intuito de promover este jogo de inspiração, nós brincamos com as formas, trouxemos os fatos, narramos vidas, ou seja, inspiramos a ação na simplicidade poética de Manoel de Barros. Incorporar um poeta foi o nosso desafio. O LAMPIÃO imergiu em um universo diversificado e descobriu que, diante da inspiração, o essencial é invisível!

Lampejos “Tem que vir da cabeça. O dedo faz a coreografia sobre o instrumento. A gente não faz a música. Ela faz a gente”. Ian Guest, músico e compositor – Pág. 6

“Não chamamos os jogadores de atletas, mas sim de família”. Givanildo Gonzaga, preparador físico – Pág. 9

“Vamos atacar as questões mais urgentes, o transporte público, a sinalização, priorizando pedestres e condutores”. Geraldo Simplício, chefe do Demutran – Pág. 3

“Fazemos isso porque acreditamos que, através dos livros, o ser humano pode ser cada vez melhor e a leitura pode sim, mudar vidas”. Fernanda D’Angelo Tonidandel, coordenadora da Osquindoteca Pág. 8

“Pelo amor de Deus, conserta meu guarda-chuva pra mim? E nesse ‘pelo amor de Deus’, já vai completar uns 20 anos ou mais que eu trabalho nesses consertos”. João Luís dos Santos, consertador de guarda-chuva – Pág. 10

“O palhaço é o imperfeito em um mundo que pretende ser perfeito”. Palhaço Furreca - Pág. 11

Entre olhares

Fale conosco

Fique atento! Sempre que o símbolo ao lado estiver presente na página, não deixe de conferir mais em nossa versão online.

Escreva: lampiao@icsa.ufop.br Curta: facebook.com/jornallampiao Site: www.jornalismo.ufop.br/lampiao

www.jornalismo.ufop.br/lampiao Lá você encontrará conteúdos exclusivos relacionados a leitura de cada página. Não deixe de conferir!

Charge

O jornal Poesia

Gilberto Gil

Um jornal é tão bonito Um jornal é tão bonito Tudo escrito, tudo dito Tudo num fotolito É tão bonito um jornal Vigilantes do momento Senhores do bom jargão Façam já soprar o vento Seja em qualquer direção Que o jornal é a matéria E o espírito do mundo Coisa fútil, coisa séria Todo escrever vagabundo Um jornal é tão diverso Um jornal é tão diverso Tudo impresso, tudo expresso Tudo pelo sucesso É tão diverso um jornal Não importa a má notícia Mas vale a boa vversão Na nota um toque de astúcia E faça-se a opinião De outra feita, quando seja Desejo editorial

Faça-se sujo o que é limpo Troque-se o bem pelo mal Um jornal é tanta gente Um jornal é tanta gente Tudo frio, tudo quente Tudo preso à corrente É tanta gente um jornal Um que dita, um que escreve Um que confessa, um que mente Um que manda, um que obedece Um que calcula, um que sente Um que recebe propina Um que continua honesto Um puxa-saco dos fortes Um que mantém seu protesto Um que trafica influência Um que tem opinião Um jornalista de fato Um rato de redação Um jornal é igual ao mundo Um jornal é igual ao mundo Tudo certo, tudo incerto Tudo tão longe e perto É igual ao mundo um jornal

Arthur Medrado

“Que a importância de uma coisa não se mede com fita métrica nem com balanças nem barômetros etc. Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós”. Manoel de Barros

Jornal Laboratório produzido pelos alunos do 6° período do curso de Jornalismo – Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA)/ Universidade Federal de Ouro Preto – Reitor: Prof. Dr. Marcone Jamilson Freitas Souza. Diretor do ICSA: Prof. Dr. José Artur dos Santos Ferreira. Chefe de departamento: Profa. Dra. Ednéia Oliveira. Presidente do Colegiado de Jornalismo: Prof. Dr. Ricardo Augusto Orlando – Professoras responsáveis: Adriana Bravin (Reportagem), Ana Carolina Lima Santos (Fotografia) e Priscila Borges (Planejamento Visual) – Editor Chefe: Adriel Campos - Secretária de Redação: Daniela Gurgel - Editora de Arte: Kíria Ribeiro - Editor de Fotografia: Davi Machado - Editora Multimídia: Bruna Sudário - Reportagem: Bárbara Zdanowsky, Cibele Souza, Flávia Pupo, Flávia Silva, Íris Zanetti, José Sampaio, Juliana Melo, Lídia Ferreira, Luma Sabóia, Marina Ibba, Samuel Perpétuo, Tácito Chimato, Thainá Cunha e Thiago Novais – Fotografia: Bruna Silveira, Carolina Lourenço, Edan André, Felipe Sales, Flávio Ernani, Gerliani Mendes, Nathália Nunes e Rafael Camara - Diagramação: Ana Clara de Castro, Arthur Medrado, Di Anna Lourenço, Gabriela Costa, Gustavo Kirchner, Marcelo Nahime, Mariana Borba, Pedro Ferreira, Tamires Duarte e Thamira Bastos - Multmídia: Bárbara Zdanowsky, Di Anna Lourenço, Felipe Sales e Gustavo Kirchner - Revisão: Daniela Gurgel, Isabela Azi, Mariana Borba e Núbia Cunha - Monitoras: Isabela Azi e Núbia Cunha Tiragem: 3.000 exemplares. Endereço: Rua do Catete, n° 166, Centro. Mariana - MG. CEP 35420-000


Setembro de 2013

3

Edição: Cibele Souza e Edan André Arte: Pedro Ferreira

CIDADE

eDAN aNDRÉ

Praça Tancredo Neves, Centro de Mariana, às 14h30: os flagrantes da imprudência de pedestres, ciclistas e motoristas apontam um dos principais fatores que aumenta o risco de acidentes

Insegurança no trânsito

Crescimento da frota de veículos e expansão da mineração exigem mudanças no planejamento viário da cidade Cibele Souza Surpresas e perigos são constantes no trânsito de Mariana. Os problemas vão desde pedestres que não respeitam a sinalização a veículos que transitam em alta velocidade. Em locais onde o trafego é intenso, é possível observar como a cidade tenta conciliar suas antigas estruturas com os 54 mil habitantes. Nos últimos anos, devido à expansão da mineração, houve um aumento na quantidade de veículos, o que tem gerado engarrafamentos e diversos transtornos no trânsito. De acordo com dados do último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2011 Mariana possuía 17.650 veículos e, em 2012, passou a contar com 19.595, o que representa um crescimento de 11% ao ano. Como consequência cres-

ceram os riscos de acidentes nas vias da cidade, muitas vezes provocados pelo desrespeito à sinalização, como nas faixas de pedestres. Foi o que aconteceu com o cadeirante e aposentado Edésio Pereira, que fraturou o pé ao ser atropelado na Avenida Getúlio Vargas, Centro de Mariana, enquanto atravessava na faixa. “O motorista me deu preferência, deu sinal para eu passar na faixa e, na hora que eu passei com a cadeira, ele avançou o carro”, contou. De acordo com Edésio, o motorista somente parou o veículo para dar assistência “porque o pessoal segurou ele”. O cadeirante precisou fazer fisioterapia após o acidente e enfrenta agora outros obstáculos. “Onde eu faço fisioterapia, todas as vezes que eu chego lá tem carro na rampa, tenho que esperar eles virem para ver se conseguem

tirar o carro.” A falta de respeito dos motoristas é o que deixa a fotocopista Fernanda Rocha mais indignada. “O carro para na faixa de pedestre e, quando você vai atravessar a rua, vem uma moto desesperada. Se ele tá vendo que o carro parou, por que a moto não para?”, questiona. Segundo o Boletim Estatístico do Observatório Nacional de Segurança Viária, de 2013, baseado na Seguradora Líder e nos Danos Pessoais Causados por veículos Automotores de Via Terrestre (DPVAT), nos casos de invalidez permanente os motociclistas representaram 75% e os condutores de automóveis, 20% do total das indenizações pagas. Para melhorar o fluxo de veículos e pedestres na cidade, foi elaborado um Plano de Mobilidade Urbana, que já se encontra em

#EunoLampião

Em julho passado, lançamos a campanha #eunolampião. Além de ir às ruas ouvir a população, abrimos espaço nas redes sociais para que você, leitor, lançasse sua opinião sobre o que precisa ser mudado em Mariana.

Recebemos manifestações sobre diversos temas que abrangem o sistema público da cidade. Os setores mais criticados foram: saúde, educação, política, planejamento , segurança, serviços públicos e patrimônio. Bruna Sudário

Etapas do plano de mobilidade urbana

Transporte coletivo urbano: rotas para percurso mais ágil

Táxi: regulamentação

Sinalização

E Estudo de criação do Moto Táxi

Acessibilidade para pedestres e deficientes

Estacionamentos: Parquímetro Fonte: Departamento Municipal de trânsito

fase de licitação. O Departamento Municipal de Trânsito (Demutran) informou que a empresa escolhida terá de oito meses a um ano para implantar todas as etapas previstas (veja no Box). “Vamos atacar as questões mais urgentes, o transporte público, a sinalização, priorizan-

do pedestres e condutores”, afirmou o chefe do Demutran, Geraldo Simplício. Além disso, são realizadas campanhas de educação no trânsito para conscientizar a população. “Hoje nós temos um setor educativo que trabalha nas escolas e dar palestras também em algumas empresas”, lem-

brou Simplício. Diversas atividades estão programadas para a Semana Nacional de Educação no Trânsito, que acontece de 12 a 25 deste mês e conta com palestras, exposições, campanhas, rua de lazer e apresentações culturais em diversos pontos da cidade.

Confira as opiniões: “Mariana precisa ser melhorada na questão da saúde pública, onde as condições são precárias”. Jéssica Silva, 20 anos, coordenadora, Santa Rita de Cássia “Acredito que o transporte público deva ser, significamente, melhorado em Mariana. Além disso, o preço dos imóveis é algo que deveria ser bastante revisto”. Júlia Maria Muniz, 19 anos, estudante, Centro “Mais segurança nas escolas e nas ruas”. Cristiele Carolina, 21 anos, balconista, Rosário “A cidade precisa de várias questões básicas: educação, saúde e segurança pública. Política e políticos deveriam estar em comunhão, promovendo o bem coletivo. Está passando da hora!”. Jacqueline Antunes, 49 anos, pedagoga e professora, Jardim dos Inconfidentes “Um concurso público para eleição dos diretores das escolas já seria um bom começo. Em Mariana, na maioria das escolas municipais ainda são usados os métodos do nepotismo e da troca de favores. A escola Wilson Pimenta Ferreira, localizada no Santo Antônio (Prainha) e onde eu estagio, passou por uma profunda crise política esse ano por conta desse problema”. Lucas Oliveira, 20 anos, estudante do curso de Letras, Centro

Nas ruas e praças de Mariana, moradores opinam sobre a administração pública.

{

Repetir, repetir até ficar diferente.

}

Manoel de Barros


4

Setembro de 2013

Edição: Flávia Pupo Arte: Thamira Bastos

educação

Os desafios em busca de um futuro melhor

cAROL teixeira

Apesar dos programas do Governo Federal e do aumento das vagas em universidades, conciliar emprego e estudos é um obstáculo Samuel Perpétuo Sair de casa às seis da manhã e retornar à noite, essa é a rotina de muitos marianenses que precisam dividir o dia entre trabalho e faculdade. O acesso ao ensino superior no Brasil vem crescendo nos últimos anos, por isso, o Governo Federal tem investido nesse setor, com programas como: Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), que já ampliou mais de 850 mil vagas em universidades públicas, e o Programa Universidade para Todos (Prouni), que já concedeu mais de 1,2 milhão de bolsas em universidades particulares. Uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgada em maio último, revelou que diploma de nível superior aumenta o salário em 219,4%. Nessa busca por melhorias na vida profissional, muitas pessoas que não tiveram a oportunidade de ingressar na faculdade ao concluir

o ensino médio, hoje estão lotando as salas de faculdades e universidades em todo o Brasil. Dificuldades Esse é o caso do guarda municipal, Aloísio Junior, que mesmo já estando empregado, está em busca de qualificação profissional. Apesar de Mariana possuir quatro instituições de ensino superior, Aloísio precisa deslocar-se para outro município. Ele trabalha durante o dia e estuda Educação Física, à noite, em Ponte Nova, que fica a 69 quilômetros de Mariana. Um dos motivos é que as faculdades particulares de sua cidade não oferecem o curso. Ele disse que tentou o vestibular da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), mas não teve bons resultados. O ingresso nas universidades públicas exige disponibilidade de tempo para que os candidatos consigam se preparar para a seleção e uma boa formação no ensino médio.

Assim como Aloísio, o técnico em manutenção mecânica Renato Roberto precisa enfrentar a estrada todos os dias para estudar em outra cidade. Prestes a se formar em Engenharia Industrial Mecânica, em Ouro Branco, a 44 quilômetros de Mariana, ele afirma que trabalhar e estudar em outra cidade pode atrapalhar no desempenho dos estudos. “Particularmente acho que atrapalha, pois em alguns dias o rendimento após o serviço é fraco. A escola demanda um tempo grande para estudos e trabalhos em casa. Ainda temos a dificuldade do trajeto entre a empresa onde trabalho e a escola”. A pedagoga e Vice-Reitora da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Célia Maria Fernandes Nunes, acredita que o aluno que trabalha durante o dia inteiro pode ter uma formação com a mesma qualidade que o colega que se dedica em tempo integral aos estudos. “A motivação e o desempenho do aluno

Para estudar, Aloíso Jr. (em pé) e Fernando Morais viajam diariamente

ao longo do curso é que auxiliará a sua formação durante todo o ensino superior. Com certeza, é isso que fará a diferença após a conclusão do curso e a inserção no mercado de trabalho”. Gastos A Prefeitura de Mariana não possui nenhum plano de apoio a estudantes nessa situação. Diferente de Itabirito, distante 61 quilômetros, que disponibiliza vans sem custos para alunos que estudam em outra cidade. Além de todo o esforço, pessoas como Aloísio e Renato possuem muitos gastos com transporte e alimentação por pre-

cisarem se deslocar para outra cidade. Segundo Aloísio, juntando todos os seus gastos com faculdade, alimentação e transporte seu investimento fica em aproximadamente R$ 1 mil por mês, mesmo dividindo os custos da gasolina com o amigo Fernando Morais. O dia só termina para os dois por volta de meia-noite quando retornam para casa. O tempo que sobra para descansar é curto, pois às seis da manhã eles já estarão de pé para começar um novo dia de trabalho. Segundo ele, a rotina é difícil, mas o sacrifício vale a pena pelo retorno que terão no futuro.

CIDADE

Entre quitutes, legumes e uma boa conversa BRUNA SILVEIRA

Flávia Pupo São cinco horas e já é possível ouvir o galo cantar. É manhã de sábado. No estacionamento ao lado do Centro de Convenções Alphonsus de Guimaraens Filho o dia já havia amanhecido antes mesmo de o sol raiar. É dia de feira livre em Mariana. No Brasil, o costume veio com os portugueses e há registros de feiras desde a época colonial. Em Mariana, ela existe há cerca de três décadas. Em seu início o comércio não era tão organizado; hoje as 37 barracas são montadas na noite anterior. Assim, quando o sol nasce elas já estão prontas para receber os produtos. É hora de começar a festa. Sim, as feiras livres são como uma festa onde as pessoas podem conversar e até comer um bom tropeiro enquanto fazem suas compras. Com uma rica diversidade, você encontra desde alimentos para uma boa salada até panelas de pedra e artesanato. E não se espante se vir um galo fugindo da gaiola. Você não está no

lugar errado, ele também está à venda. – Tenho sapucaia, sim senhora – escuto a feirante Maria Clara Cota responder a cliente. E indago: – Sapuca, o que? – e Dona Maria, que vende a sapucaia e outras plantas medicinais, me explica: ela é retirada de uma árvore brasileira. Muito usada como remédio natural para doenças como diabete e inflamaflamações, mas não serve só pra isso, pois suas sementes são comestíveis como a da castanha do pará e têm o mesmo valor nutricional. Feirantes Já passa das 10 horas e o movimento começa a diminuir. Quando penso em ir embora, algo chama minha atenção: é a barraca da Dona Roseli da Silva, que há 12 anos atende todos seus clientes com carisma e um jeitinho encantador. Além disso, ela é a atual presidente da Associação da Feira Livre de Produtores Rurais de Maria-

na. A maioria dos produtos vendidos na feira provém de agricultura familiar da região, “mas tem gente que vem de longe também”, completa Roseli. Segundo ela, “a prefeitura queria que ficasse só o povo da cidade, mas não tem gente suficiente para atender o movimento que costuma ter aos sábados. Eles têm incentivando muito para melhorar a plantação daqui para que fique só a gente mesmo. É uma ideia bacana de incentivar a produção local”, diz. A manhã de sábado vai chegando ao fim. As barracas começam a ser desmontadas e a maioria dos produtos já foi vendida. É hora de levantar as mangas, juntar as coisas e ir embora. Semana que vem, todos os feirantes estão de volta. Nesse dia, tente parar alguns minutos para perceber as boas energias que esse lugar produz. Você irá se surpreender com a experiência incrível que é ficar do lado de fora da feira, observando e redescobrindo esse lugar cheio de cores e vida.

Dona Roseli vende pães, biscoitos e doces caseiros na feira livre de Mariana BRUNA SILVEIRA

{

BRUNA SILVEIRA

As coisas não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis

BRUNA SILVEIRA

}

Manoel de Barros


Setembro de 2013

Edição: Luma Oliveira Arte: Marcelo Nahime Jr.

5

MEIO AMBIENTE

Fotos: Gerliani medes

Orgânicos para saúde e alma Em Mariana, a produção agrícola sem agrotóxicos já é realidade Luma Oliveira Foram 17 quilômetros de estrada de Mariana até o Distrito de Monsenhor Horta. De lá até o nosso destino, não esperávamos que houvesse ainda muito chão pela frente. Em uma estrada de terra, repleta de verde e com diversas cachoeiras pelo caminho, seguimos a direção indicada pelos moradores do local até o Sítio Nova Esperança. Na chegada, fomos re-

Há dez anos, o produtor Waldir dedica-se a sua plantação

cebidos por um sorridente senhor, o nosso anfitrião, que nos aguardava atrás de uma porteira, na entrada do seu sítio. O amanhecer foi apenas mais um complemento para deixar a nossa entrevista ainda mais agradável. Em meio à combinação de cores e mistura de texturas, encontra-se a horta do agricultor Waldir Pollack, 67 anos. Nascido na cidade de Itaguaçu (ES), e morador do subdistrito de Paracatu de Baixo, Waldir passou a dedicar-se à produção de produtos orgânicos após o falecimento da sua esposa, vítima de câncer, aos 40 anos.

A horta orgânica exige tratamento diferenciado e mais cuidados

Por uma vida mais saudável Luma Oliveira Os produtos orgânicos são mais saudáveis, pois são livres de agrotóxicos, hormônios e produtos químicos, além de possuírem um alto valor nutricional, explica a nutricionista e professora pesquisadora do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Sudeste de Minas, Juliana Andrade. “Há uma grande diferença em nível nutricional entre os alimentos orgânicos e os produzidos de forma convencional. Os orgânicos possuem diferença acentuada no conteúdo de alguns minerais. Eles são muito mais saborosos e fazem bem à nos-

Ao descobrir que a doença, segundo diagnóstico médico, fora causada pelo consumo de alimentos contendo alto teor de agrotóxicos, o agricultor começou uma intensa pesquisa, juntamente com a médica veterinária e instrutora do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar), Michelle Azevedo. Juntos, levaram 28 cursos para a região, oferecendo novas oportunidades aos moradores da zona rural. Em uma área de 600 metros quadrados, cobertos, Waldir realiza a produção por meio de compostos e adubo orgânico. “Cresci em torno do plantio. Nunca concordei em queimar mato e usar veneno para pragas. A natureza se faz sozinha”, afirma o produtor, que descartou a hidroponia, técnica que utiliza a água, por não ser to-

Escolher alimentos sem agrotóxicos é um hábito de consumo saudável

sa saúde, apresentando uma variedade de nutrientes e vitaminas essenciais para o bom funcionamento do nosso corpo”. Na hora das compras, os alimentos mais bonitos e os mais baratos são sempre os escolhidos, porém, o que é mais atrativo aos olhos pode ter sido cultivado utilizando uma série de agrotóxicos. Por isso, nem sempre os alimentos com mais peso ou cor representam melhor qualidade. A única desvantagem dos alimentos orgânicos para o convencional é o

O selo é a garantia de procedência de cada produto comercializado

preço, por serem produzidos em uma escala menor e por terem custo de produção maior, eles acabam se tornando mais caros. Entretanto, o barato pode sair caro, porque os alimentos cultivados com agrotóxicos podem causar doenças crônicas, câncer, sobrecarga hepática, dentre outras enfermidades.

Um prato nutritivo e variado resume toda essa história

talmente isenta de química. Em um ritmo acelerado de trabalho, Waldir conta com uma ajudante, Zélia Ana Batista, e com três estagiários da Escola Técnica Paulo Freire, para produzir mais de 40 hortaliças, como alface, cenoura, couve, tomate, dentre outras, que são levadas todos os sábados à feira livre de Mariana e distribuídas, às quartas, em cerca de 50 casas da cidade. A produção segue o sistema de rotação de terra. Os alimentos orgânicos, além de serem isentos de adubos químicos e agrotóxicos, também são livres de drogas veterinárias, hormônios, antibióticos e resíduos que poluam a água ou o solo. Durante o cultivo não são usados adicionais químicos sintéticos como corantes e aromatizantes. O produtor ainda explica que a rotação é feita para que o solo se recomponha dos nutrientes absorvidos por cada uma das espécies plantadas, assim sempre estará fértil para novas plantações. Em Mariana, é possível encontrar produtos orgânicos na feira, ao lado do Centro de Convenções Alphonsus de Guimarães, aos sábados, a partir das sete horas, nas hortas comunitárias e, também, nos mercados que recebem esses produtos de distribuidoras da região. Os produtos vindos de distribuidores chegam embalados e possuem o selo que identifica a produção orgânica.

Desconto para quem preserva

{

plástico

papel

Veja como receber os descontos do programa

vidro

autoria do ex-vereador de Ouro Preto, Flávio Andrade (PV). “A ideia do ‘Quem preserva paga menos’ é fazer com que as pessoas que se preocupam com o meio ambiente tenham algum benefício financeiro”, explicou. De acordo com o supervisor de tributos imobiliários de Ouro Preto, Felipe Almeida Pinho, neste ano, cerca de cem pessoas receberam o desconto sobre o valor do IPTU. A maioria dos inscritos buscam 10% de desconto pela coleta seletiva. Para se inscrever no programa, o interessado deve preencher o formulário disponível no site da Prefeitura de Ouro Preto (www.ouropreto.mg.gov.br), e anexar fotos das instalações (no caso de captação de água da chuva ou de energia solar), ou deve buscar seu comprovante de participação da coleta seletiva em uma das associações responsáveis pelo serviço. Em seguida, é feita uma verificação na propriedade. Caso esteja tudo regularizado, é concedido o desconto ao proprietário do

metal

Bárbara Zdanowsky Todo ano, os proprietários de imóveis pagam ao município o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), que visa à obtenção de recursos financeiros para investir em serviços de limpeza urbana, manutenção das vias públicas e segurança. Em Ouro Preto, desde janeiro de 2012, os cidadãos que contribuem com a sustentabilidade e preservação do meio ambiente recebem isenção parcial do imposto. Os inscritos no programa “Quem preserva paga menos” podem receber descontos, de até 20%, sobre o valor do IPTU. Esse desconto varia de acordo com a contribuição do cidadão: 5% para aqueles que comprovarem ter sistema de captação de água da chuva ou de energia solar em casa, e 10% do valor para o proprietário do imóvel que estiver inserido no programa de coleta seletiva do município. O programa de incentivo à preservação foi criado pela Lei Municipal 113/2011, de 27 de dezembro de 2011, e é de

Sistema de coleta seletiva: 10%

Sistema de captação de água de chuva: 5% Sistema de captação de energia solar: 5%

20%

Eu via a natureza como quem a veste.

imóvel no ano seguinte à inscrição. Ouro Preto não tem uma política pública de coleta seletiva, por isso, o serviço é realizado pela Associação de Catadores de Materiais Recicláveis da Rancharia (Acemar) e pela Associação de Beneficiamento e Reciclagem do Lixo Ambiental e Preservação Ambiental (Associação do Padre Faria). A coleta acontece de segunda à sexta-feira, das 8 às 17 horas. Ainda são poucas as pessoas que separam o lixo reciclável, e as rotas dos caminhões não são fixas. Fazem parte da rota os bairros Bauxita, Saramenha, Vila dos Engenheiros, Jardim Alvorada, Vila São José, Centro, Cabeças e Vila dos Operários. Há ainda a opção de levar o material reciclável para as sedes das associações, nos endereços: Rua Diamante, 18, Jardim Itacolomy (Acemar), e Rua Desidério de Matos, S/N, Padre Faria. Os telefones para contato são: 35523063 (Acemar) e 35593265 (Associação do Padre Faria).

}

Manoel de Barros


6

Setembro de 2013

Edição: Íris Zanetti, Lídia Ferreira e Thiago Novais Arte: Tamires Duarte

“Se os olhos veem com am Humana e plural: a inspiração de cada um Íris Zanetti O LAMPIÃO foi às ruas de Mariana para saber: “o que te inspira?” -O que me inspira? Vocês! -A gente? -É... a mulher. A natureza, a vontade de viver. A música. -Vocês são músicos? -A gente engana. Mas inspiração é tudo isso aqui, esse convívio, as amizades. O que faz a gente deixar um legado. Sentados dentro da Casa de Cultura, Tarcísio de Jesus, 67 anos e Francisco Assis, 63, membros da Cia. Musical Uns e Outros.

-O que te inspira? -Me inspira? Eu vejo pássaros, como esse aqui agora, e eu fico toda feliz, toda inspirada. As montanhas também me inspiram. Tenho vontade de mostrar para os meus netos e meus filhos. -É, tem que observar os

Ernani

-O que é inspiração para você? -Ah, é difícil. É o ar. É o fogo da gente. Encerrando o trabalho na Praça do Jardim: Efigênia da Conceição, 52, gari.

- O que é inspiração? -Inspiração é uma coisa que a gente tem que ter. Se tiver, seu trabalho sempre sai bom. -E o que te inspira? -Fazer coisas diferentes, bem feitas, com amor. Não é só pelo patrão, é pela gente também. Tem que cozinhar com amor para tudo. Acabando de preparar o almoço no restaurante Rancho: Maria Aparecida de Souza, 58, cozinheira desde os 16.

detalhes. A vida de cidade grande é corrida e as coisas passam despercebidas. Às vezes, eu penso ‘por que estou correndo tanto?’ A gente tem que dar um tempo para a gente. Viver cada minuto. Levantar, fazer alongamento. Ler... A leitura me inspira muito. -Inspiração é algo que vem da alma. Deus colocou dentro da gente. O que me inspira é a própria criação. Na Praça do Jardim, duas das quatro irmãs aposentadas de Brasília, em viagem por Mariana: Frances Soares Vieira, 58 e Valkíria Rocha, 64. -O que é inspiração? -É uma coisa de respirar?! Brincando no Jardim: Vitor Soares, seis anos.

“Eu sou da invencionática”

áv io

Er

Flávio

Fl

na ni

Dionísio Ferreira

eir

a

ixeira

Ian Guest

l Te

eix

coisa é parar de ser adulto”. Sentado numa poltrona confortável, explica com simplicidade que preza pela arte com estética, não com ética. Fala da criação como algo para si, sem certos e errados, sem vaidade. “O importante é a não-qualidade”. Cerca de dez minutos de prosa, Ian se dirige ao piano, a passos ágeis, para demonstrar algumas obras. Fascinante! Os dedos habilidosos, que ele apelida de “macacos de circo”, espalharam belas harmonias pela casa. “Tem que vir da cabeça. O dedo faz a coreografia sobre o instrumento. A gente não faz a música. Ela faz a gente”, comenta numa pausa – o silêncio que ele aprendeu a ouvir para criar.

ro

lT

Íris Zanetti Da casa sem divisórias, ecoou a inspiração para esta escrita. O húngaro de cabelos brancos, sobrancelhas escuras e grossas e de sorriso carismático falou da palavra como quem é de casa daquela, sem paredes para as ideias. “Nunca fiz tanta música boa como depois que vim morar aqui”, diz o músico e compositor Ian Guest, 73 anos. Vinícius de Morais cantou que “pra fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza”. Fazendo jus às palavras do poetinha camarada, com quem compôs algumas canções, Ian, entusiasmado, define inspiração: é emoção... com uma pitada de ingenuidade da infância. “A primeira

Ca

Ca

ro

Car ol Teixeira

Car ol

Teix

eir

a

“Precisamos desfazer o normal da cidade para reinventá-la! (Manoel de Barros)”.

Um o lha r d

“Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos. Tenho abundância de ser feliz. Meu quintal é maior que o mundo (Manoel de Barros)”.

“Até fez uma p Thiago Novais Ao ver sua loja, a tal da inspiração me visitou. Eu, que queria uma entrevista para falar dela, agora a recebo com prazer. Andando pela Rua do Catete, em Mariana, passei pela ourivesaria Aliança, de Dionísio Ferreira, abri as portas para a inspiração e entrei. O rapaz de 24 anos era bem simples, do tipo que só fala para responder algo. Percebendo isso, fui logo perguntando, até que ele se empolgou com o rumo da conversa. Com um sorriso torto ele contava que, quando está pra baixo, fica quietinho num canto e as ideias aparecem. Minutos se passaram e de apreensivo ele passou a relaxado, e pa-


Setembro de 2013

Edição: Íris Zanetti, Lídia Ferreira e Thiago Novais Arte: Tamires Duarte

7

mor o que não é, tem ser” Não é para compreender, é para incorporar Lídia Ferreira Subjetiva. Real. Abstrata. Concreta. Pode surgir da sutileza do cotidiano, que constrói olhares. Por vezes vai ao encontro da arte. Tem contrato com o amor. Não tem hora marcada, nem mesmo preferências. Alguns esperam por ela, outros a procuram. De onde ela vem? De qualquer lugar do mundo. Há até quem acredite que ela seja um dom. Faz pensar que existe uma força maior. Ou acreditar que no meio da noite ou no claro do dia ela escolhe aparecer, e aí nos resta deixar levar. Sua origem vem do latim, e das explicações em dicionários encontramos seu conceito material: ação pela qual o ar penetra nos pulmões. Das conversas entre esquinas ou nas mesas de bar ouvimos que é um estado da alma, quase sempre passageiro. Dirá a ciência que é quando a percepção do real ou

Didito Camillo Flá vio

Er

na

ni

Xibil Ramos

“ E tem mais: as andorinhas, pelo que sei, consideram os andarilhos como árvore (Manoel de Barros)”.

Flávio Ernani

recia sentir prazer em falar do que faz. “Já trabalhei como eletricista, e em outros trabalhos, mas isso é diferente. Sento ali e o tempo passa”, disse, apontando para o seu cantinho, sua oficina, onde trabalha, no ouro, com a alma. Lugar de encontro com seu íntimo. Enquanto contava que herdou essa paixão de seu pai, Abílio Ferreira, olhava vagamente para o nada, como quem sonha acordado. Lembrava que cresceu ouvindo o martelo batendo. Que quando via o serviço do pai, esse lhe dava alguns metais sem valor para criar peças. Hoje sabe do valor do seu trabalho: “cada um tem um gosto, e minha inspiração é tentar satisfazê-lo”.

áv io

ni

pedra dar flor”

Lídia Ferreira Um deles sentou-se no palco. Corpo e pés a alguns palmos do chão. O outro na primeira fila, lugar da plateia. Didito Camillo e Marcelino Xibil Ramos são da Estandarte Cia. de Teatro. A companhia artística, que é referência em Ouro Preto, há nove anos faz principalmente teatro de rua e possui um trabalho pautado na cultura popular brasileira. Através de uma analogia entre o mundo que vivemos e as artes cênicas, contaram sobre o que para eles é a inspiração. “Quando se tem uma ideia é preciso abrir um leque de informações sobre o

Fl

assunto. É necessário vivenciar outras coisas, sentir, observar”, disse Didito. “Vivenciar é importante. A inspiração precisa estar em sintonia com a vida, é preciso ter verdade, ter pulsação”, acrescentou Xibil. As opiniões se completavam e ambas destacavam a importância do trabalho no fazer artístico. “Uma ideia sem trabalho não é nada, é só uma ideia ruim que eu descartei”, afirmou Didito. Falaram desse processo de concretização da ideia no mundo real, da tentativa e do erro. Do corpo e da alma em cena, de deixá-los dizer além da voz. De fazer com que a energia que não é visível seja sentida em palco. E com um sorriso sincero Marcelino Xibil concluiu: “mas o que nos dá prazer é o que realmente nos inspira”.

na

“É preciso transver o mundo”

– divina – está vinculada a origem da escritura sagrada, a Bíblia. Ela garante que o conteúdo dos textos bíblicos – Velho e Novo Testamentos – esteja isento de erros. “Inspiração é o processo da revelação divina, é Deus que se comunica com os homens, é a tradução dessa revelação nos escritos bíblicos. Ela é um dom do Espírito Santo, é um carisma”, confirmou o Padre Geraldo Dias. Subsídio. Dom. Quando se concretiza transforma-se em música, poesia, escultura. Vemos em cena, no palco. Torna-se concreta, mas nem sempre material. Pode ser individual ou coletiva. Mas não se limita. Pode ser encontrada nos sabores, na caminhada, na profissão, na natureza, no convívio, na amizade, em um sorriso, e até nas montanhas. Com frequência habita o mundo dos prazeres. É nômade. Com inúmeras origens, sotaques e explicações ela não tem dono. É de quem quiser. É de quem procura.

Er

de quem

a i r c

a ideia é coberta por afeto, ou pelo sentimento que aquilo traz, junto à capacidade de transcender e objetivar essa percepção no real. “Ela precisa ser construída no mundo. É na significação do real que acontece a inspiração”, explica a psicóloga Sandra Augusta de Melo. E por mais que ela goste de chegar sem avisar, sem nem mesmo pedir licença, sua autoridade não a torna dona da arte, como muitos pensam. É apenas subsídio. “O processo artístico não é apenas a inspiração, mas é toda uma área de conhecimento. Tem a ver com predisposição de sentir o cotidiano, suas relações, suas lembranças. É um modo de ver e expressar o mundo. A inspiração está ligada à fase de nutrição artística e estética”, alertou o professor de artes cênicas, Davi de Oliveira. Misturada ao vento. Sobrenatural. Por definição religiosa, a inspiração


8

Setembro de 2013

Edição: Flávia Silva e Thainá Cunha Arte: Arthur Medrado

cultura

Reinventando histórias

Com lazer e imaginação, a Osquindoteca desperta o interesse pela leitura em crianças e jovens de Passagem de Mariana Felipe sales

Thainá Cunha Já dizia o escritor Monteiro Lobato que “um país se faz com homens e livros”, e foi pensando em contribuir para a formação de pessoas apaixonadas por leitura que uma garagem virou uma biblioteca comunitária no distrito de Passagem de Mariana. Com mais de seis mil livros em seu acervo, a Osquindoteca funciona desde 2009, promovendo atividades de fomento à leitura, contação de histórias, oficinas, mostras, palestras e exibição de filmes. As ações promovidas pela Osquindoteca fazem parte do Clube Osquindô, Associação Cultural de Passagem, que realiza diversos projetos sociais na região. Os projetos são mantidos através de Leis de Incentivo à Cultura e editais. O local que já atrai pelas cores fortes na fachada, traz em seu interior um universo mágico de livros, brinquedos, jogos, histórias, invenções e diversão de sobra, que surpreendem quem visita pela primeira vez. A conquista das crianças e jovens também veio a partir de iniciativas diferenciadas, como o Projeto Loucos por Leitura, o varal com reconto dos livros, um mural com os melhores livros indicados pelos leitores e a criação do Godofredo, um gato leitor que incentiva a leitura por meio da imaginação infantil e leva sua mala de histórias para escolas da região. De acordo com a coordenadora da Osquindoteca, Fernanda D’Angelo Tonidandel, cerca de 20 crianças por dia frequentam o local e mais de 600 estão cadastradas. Para ela, “há uma resistência na cultura da região com relação à leitura, o que não im-

Os livros na Osquindoteca säo separados por faixa etária; a estudante Stella Tonidandel, 11 anos, prefere os de histórias infanto-juvenis

pede o trabalho”. “Fazemos isso porque acreditamos que, através dos livros, o ser humano pode ser cada vez melhor e a leitura pode sim, mudar vidas”. Fernanda afirma que a diferença da Osquindoteca para uma biblioteca “comum” é que “aqui conhecemos a maioria do nosso público e oferecemos atividades que o envolve cada vez mais com o local, com a nossa cultura e a arte, de uma forma geral”. Leitores Ainda segundo ela, “o desejo é criar cada vez mais redes de leitores e fazer com que a Osquindoteca seja um elo de pessoas engajadas na causa”. E essa realidade já está mudando, con-

forme garante a estudante Júlia Rocha Gomes, sete anos. “Amo esse lugar, porque já gostava de ler antes e agora leio ainda mais. Adoro vir pra desenhar também e sempre que venho, vou embora só quando fecha”, afirma. Quando está de folga, o supervisor Eduardo Júnior de Paiva, 35 anos, leva sua filha de três anos para ter seus primeiros contatos com a literatura na Osquindoteca. Segundo ele, “é importante incentivar a leitura desde cedo. Acho que a comunidade deveria aproveitar ainda mais o local, porque ele se tornou uma referência para Passagem, com atividades que remetem a sua história também”. Para a pedagoga Simone

Aparecida Silva, da Escola Municipal de Passagem de Mariana, “esses pontos de difusão da cultura e da leitura são muito importantes porque também funcionam como um local de encontro dos moradores; as crianças e jovens daqui eram carentes com relação a isso. A Osquindoteca possui uma parceria muito interessante com as escolas e nós sempre orientamos os alunos a frequentá-la”. Os moradores da região podem ter acesso gratuito a livros de autores renomados, como Gabriel García Marquez, Eça de Queiroz, Agatha Christie, Monteiro Lobato e muitos outros, a partir de um cadastro realizado na Osquindoteca. O local fica aberto ao público de segunda a

sexta-feira, das 10 às 13h e das 15h às 18h e funciona na Rua do Comércio, 625 em Passagen de Mariana. Mais informações pelo telefone: (031) 3557-5260

Atividades: Quarta-feira: Jogos infantis, das 15h15 às 17h30 Quinta-feira: Cine Godofredo, das 15h15 às 17h30 Sexta-feira: Senta que lá vem a história, das 15h15 às 17h30

Alphonsus de Guimaraens entre memória e esquecimento Flávia Silva Depois de aproximadamente quatro anos fechado, começaram este ano, no museu Casa de Alphonsus, as obras de reestruturação do prédio. “Por meio de recursos próprios do Estado, a primeira fase do projeto de revitalização do espaço já foi concluída, com a contratação de projetos arquitetônicos, estruturais e complementares para a reforma do edifício”, afirmou o superintendente de Museus e Artes Visuais, da Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais, Leonardo Bahia. Mesmo com o museu fechado, as atividades culturais não foram interrompidas, como o “Cantando Alphonsus”, “Alô Poesia” e “Alphonsus vai à escola”, que são projetos de incentivo aos estudos da obra de Alphonsus de Guimaraens existentes desde 1984. Desde 2001, passaram a integrar parceria com a Pró-reitoria de Extensão, da Universidade Federal de Ouro

{

Preto (Proex/Ufop). “Os projetos levam alunos de cerca de 15 escolas, de Santa Barbara, Ouro Preto e Mariana, tanto públicas quanto particulares, dos ensinos médio e fundamental, além do público adulto, a lerem, produzirem textos literários e recriarem as obras de Alphonsus no sarau que acontece em março, na Semana de Museus em Mariana” , informou a coordenadora do museu, Ana Cláudia Rola. Desvalorizado Alphonsus foi um grande poeta simbolista do Século XIX, admirado por escritores como Mário de Andrade, que veio a Minas especialmente para conhecer o “solitário de Mariana”, e Carlos Drummond de Andrade que até escreveu um poema sobre o encontro dos dois poetas. Hoje, porém, “não passa de uma placa: aqui nesta casa nasceu o poeta Alphosus de Guimaraens’ e nada mais encontramos a sobre o poeta”, diz,

desolado, o escritor e pesquisador José Efig enio Pinto Coelho, integrante da Academia Ouropretana de Letras. Há momentos na história de Alphonsus de Guimaraens que se fundem à história de Mariana. Entre as amizades dele estava Gomes Freire, importante político da cidade e um dos responsáveis por trazer a ferrovia para Mariana, dono também do jornal em que o poeta escrevia, O Germinal. Vale lembrar também que foi a convite de Gomes Freire, que Alphonsus escreveu o hino do bicentenário da cidade, que é cantado até hoje nas festividades. O hino relata a fase pós-Ciclo do Ouro na cidade, afirmando que seriam as futuras gerações as responsáveis por acabar com o marasmo em que Mariana se encontrava. Alphonsus de Guimaraens foi poeta, cronista, juiz e jornalista, deixou muito mais que uma herança física, mas uma herança cultural.

Hino de Mariana Alphonsus de Guimaraens No seio dolente das idas idades Em meio ao silêncio , fiquei a sorrir... A Deusa de outrora só tinha saudades, Chorando o passado , esperando o porvir! Entre os coros das litanias Que vêm do céu, na asa do luar, Vivo de mortas alegrias, Sempre a sonhar, sempre a sonhar! Quem é que me vem perturbar o meu sono De bela princesa no bosque a dormir? Que há muito caiu sobre o solo o meu trono, Que era emperolado de perlas de Ofir! De estrelas o céu sobre mim recama; Há luz no zênite e clarões no nadir... O campo auriverde da nossa auriflama, É todo esperança: esperei o porvir! Agora bem sinto, no peito, áureos brilhos; De novo me voltam as perlas de Ofir... Aos doces afagos da voz dos meus filhos, Mais belas que outrora, eu irei ressurgir!

Há várias maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é a verdadeira.

}

Manoel de Barros


Semtembro de 2013

Edição: Neto Medeiros, Thainá Cunha e Tácito Chimato Arte: Di Anna Lourenço

Arte

ESPORTE

Lições do futebol

União e entrosamento levam Seleção de Mariana à disputa do primeiro campeonato profissional rafael Camara

Tácito Chimato A precoce eliminação na Taça BH de Futebol Júnior - cinco derrotas em cinco jogos - não é motivo para desanimar a Seleção de Mariana. Além da estreia em competiçoes profissionais, o time conquistou a inédita Copa Estrada Real de Futebol Amador 2013, com apenas uma derrota em 16 partidas. Segundo o treinador da Seleção, Thiago Freitas, esse título veio com o trabalho conjunto de comissão técnica e jogadores. “Todos interagiram muito bem. Sabemos a hora de falar sério e de brincar. Depois de três meses trabalhando de forma unida, é gratificante um resultado desses”. Para Thiago, o diferencial da conquista veio na forma como todos encaram o trabalho. “No geral, a Seleção era montada para a disputa da Copa e no resto do ano ficava parada. Hoje, não queremos mais parar, queremos outros campeonatos”. Assim, a Taça BH foi o início de um trabalho profissional com a Seleção. “Vamos continuar mais unidos do que nunca”, disse o técnico, após a primeira derrota do time para o Guaicurus F.C. Essa seriedade se reflete no discurso do supervisor do time e preparador de goleiros, Wagner Flávio Ramos, o Waguinho, minutos antes do treino no campo do Guarany. “Espe-

Wagner Ramos, supervisor do time, se reúne com jogadores antes do treino para motivar a equipe rumo a novas conquistas

ro a colaboração de todos para que esse não seja só o nosso segundo passo. A partir de agora, quero concentração. Essa é a oportunidade da vida de vocês”. Família Um dos preparadores físicos do time, Givanildo Gonzaga, destacou a importância do grupo unido em torno de um único objetivo: a evolução individual. “Não chamamos os jogadores de atletas, mas sim de família”. Para a comissão técnica, jogadores e todos que acompanham o time não restam dúvidas: mais do que formar jogadores, a missão é formar cidadãos. Informação confirmada pelo goleiro Marco

Túlio Mendes, o Tulinho, de 19 anos, eleito atleta revelação da Copa,. Para ele, o entrosamento vai além do campo. “Quando se joga há tanto tempo com as mesmas pessoas você acaba aprendendo com todos. Na vida, você tem ser educado em todo lugar. Respeitamos muito um ao outro, e em todas as equipes que joguei, nunca vi um time tão unido”. Lições que fazem questão de levar para fora do campo. “ Esses meninos trabalham, estudam, e também levam a sério o time”, conta o técnico. Ele afirma que buscam seu melhor, dentro e fora do gramado, representando a cidade de Mariana.

Artilheiro nato Considerado o jogador destaque do time, Ronaldo de Paula, o Sinha, foi longe: artilheiro da Copa Estrada Real aos 17 anos, agora joga a série A do Brasileirão pelo Vitória (BA), após disputar o primeiro campeonato profissional de sua carreira .“Quero ser profissional, lógico. Quem aqui não quer?”, indaga. Sinha nasceu em Mariana, no Bairro da Prainha, e mal lembra como começou a jogar bola. “Sei que era goleiro”. Aos 12 anos, foi convocado pela primeira vez para o Olympique, de Mariana. Depois foi para a equipe do seu bairro até

ser convocado pelo Clube Guarany, onde jogou por três anos e foi para o Marianense F.C. “Aí fui convocado pela Seleção e depois fui pro Valério do Rio Doce, de Itabira”. O jogador fala com alegria dos últimos meses junto à Seleção “Foi muito bom. Levamos o nome de Mariana muito longe. Foi uma experiência incrível”. E destaca: “tivemos muito apoio da comissão, nossa diferença não ficou só no preparo. Também facilita muito o fato de sermos amigos. Conheço o Tulinho (goleiro) há muito tempo, já jogamos junto fora da seleção”, conclui.

A tradição das cartas na ponte Bruna silveira

ENTENDA O TRUCO

TOCO

Objeto quadrado, semelhante a um dado, geralmente de madeira que contem os números 2, 4, 6, 8, 10 e 12 correspondentes à pontuação da rodada.

PÉ OU FECHADO No truco da Barra, em Ouro Preto, os olhares atentos dos jogadores acompanham cada movimento das partidas

Neto Medeiros Coringa. Letrado. Catatau. Se essas palavras te seduzem é provável que você já tenha se reunido a alguns senhores em um lugar especial de Ouro Preto. Se não, tentarei leválo a este universo. Todos os fins de semana e também nos feriados, homens de diversas idades se reúnem para jogarem truco no descansadouro, um vão que fica na Ponte da Barra, que une o bairro homônimo ao do Antônio Dias. A cada rodada o trio perdedor cede o lugar na

{

mesa aos de fora, os chamados “sapos”. São eles quem animam as partidas. As cadeiras, a sombrinha, a mesa, os tocos e o baralho são cedidos pelo comerciante Nelson Ferreira, 61 anos. É no Bar do Nelson, no início da ponte, que os jogadores adeptos da caninha recarregam suas energias. “O truco da Barra surgiu quando um rapaz que trabalhava na Brahma daqui resolveu fazer um campeonato relâmpago, desde então não parou mais. Isso tem uns 20, 25 anos”, relata Nelson Totó,

como é chamado o simpático comerciante da Rua Antônio Martins, nº 37. Nelson Totó conhece bem cada jogador do truco da Barra. “O mais sacana é o Celé. Tem muito jogador bom. Dico Dobrada. Tem o Deca Picareta. Os ruins são o Terêncio e o Tobias, que não joga nada”. Tobias da Silva, 54, o sanfoneiro, discorda de Nelson. “O melhor sou eu né?” Diz. Tobias joga na ponte desde que o truco começou. Aliás, a maioria dos competidores já está na chamada melhor idade.

9

O truco talvez seja o jogo de cartas mais barulhento que existe. Não há uma “mão” sem algazarra. O da Barra não foge à regra. Totó lembra-se dos jogadores que agitavam as partidas como ninguém. “Os que gostavam de fazer uma gracinha, infelizmente, Deus levou. Seu Tatão, Ronaldo Sabiá, Baiano Jiboia”, recorda-se. Assim como a cruz que protege a ponte do mau agouro, o truco da Barra se junta à paisagem e ao cotidiano de Ouro Preto, feito harmoniosa curva barroca.

O úlltimo competidor da rodada a jogar. É sempre ele quem distribui as cartas.

MÃO

Competidor que inicia a rodada.

Flores que mudam vidas Thainá Cunha Com a chegada da Primavera, o LAMPIÃO mergulha na arte de recriar jornais, revistas, tecidos, plásticos, sacos, garrafas pets e madeiras em flores artesanais. O trabalho feito pelo grupo Maria das Flores, da Casa Maria Isabel, reinventa histórias de vida no distrito de Passagem de Mariana. A casa, criada há quase cinco anos, envolve 11 mulheres com idades de 30 a 66 anos para trabalhar com o material reciclável. Uma sede decorada por flores coloridas, cortinas, pinturas e murais para inspiração em novos trabalhos artesanais. A idealizadora e coordenadora da casa, Marilu Motta, 66 anos, afirma que teve a ideia a partir da vontade de trazer um trabalho diferenciado à Passagem. “Quis criar flores com esse material, porque acredito que a mulher é um pouco flor, ela é delicada por natureza. O que fazemos aqui dentro é uma espécie de terapia, pois não possuímos nem renda fixa e o trabalho é voluntário”, conta. O material reutilizado pelo grupo é fruto de doação dos próprios moradores do distrito, e a casa onde elas se instalam é alugada por Marilu. A artesã Teresinha Alexandrina da Costa e Silva, 59 anos, conta que “no começo, nem acreditava que era possível transformar algo que tratamos como lixo pra fazer flores. Agora tudo que eu vejo, imagino se transformando em rosas” diz. Para a artesã Elizabeth Lara da Silva, 51 anos, que está no grupo há três meses, “esse é um trabalho artístico, algo bonito de se ver e mais ainda de se fazer parte. É muito gratificante ser uma das Marias das Flores”. A artesã Cláudia Maria Zadra Peixoto, 59 anos, afirma que o trabalho com as flores mudou a sua vida. “Estou envolvida no grupo desde o início e isso mudou minha visão com relação a tudo que jogamos fora, que pode ser recriado e ter outras possibilidades de utilização. O artesão tem uma alma de artista e as flores me inspiram durante o meu dia, isso já faz parte da minha vida”. A Casa Maria Isabel está aberta para visitação às quartas e quintas-feiras, de 13h às 16h, na Rua do Comércio, nº 599, Passagem de Mariana.

MANILHAS ( Maiores cartas)* Da esquerda pra direita

Coringa ou Copão Letrado 7 de Rata Catatau *usadas no jogo da Barra

É no ínfimo que eu vejo a exuberância.

Arte: Neto Medeiros

Confira o ensaio no site: http://migre.me/fSGvK

}

Manoel de Barros


10

Setembro de 2013

Edição: Daniela Gurgel Arte: Ana Clara de Castro

Cultura

Uma outra história real

As narrativas em torno de Chico Rei permeiam a memória coletiva entre o mito e a verdade de Muzinga? Teria ele sido coroado e dado início a primeira festa do congado e reinado? Teria ele, “mesmo”, adquirido a mina onde trabalhou? Maria Bárbara de Lima passou boa parte de seus 97 anos cuidando deste mito. Um de seus filhos redescobriu a mina da Encardideira enquanto brincava nos fundos de sua casa, que fica no Bairro Antônio Dias, isso no final da década de 40. A doce Dona Mariazinha, como era conhecida por todos, se foi no último 7 de julho, véspera do aniversário da cidade patrimônio mundial. Ouro Preto também é referência para o Congado mineiro. O doutorando em Museologia e Patrimônio pela Universidade Federal do Estado do Rio

de Janeiro (Unirio) Hugo Guarilha investiga o ritual. Apesar de não haver comprovação por meio de vestígios materiais, os adeptos do Congado em Minas Gerais acreditam na existência do escravo, batizado de Francisco. “O fato é que nós não temos nenhuma materialidade que confirme a existência de Chico Rei. Não existe documento. Para os congadeiros ele existiu, e a memória dessa coletividade é construída com base no reconhecimento dessa existência”, diz Guarilha. A professora integrante da Comissão Ouro-Pretana de Folclore e da Associação dos Amigos do Reinado de Nossa Senhora do

R ica

ôn

nio Marcelo. “A história do Brasil é uma história branca. Tudo que fosse revolta de uma plebe deveria ser esquecida. Não há nada que prove a existência de Chico Rei. Dentro da ordem mercantilista não existe mina improdutiva. Sem estimular revoltas, ele compra a mina. Você tem um negro europeizado. O que é mais interessante: dizer que o congado é ligado aos negros quilombolas que lutaram de forma selvagem pela liberdade, ou dizer que a tradição é ligada a um lord inglês, que por acaso era um negro, que comprou sua liberdade sem derramar uma gota de sangue? Por favor, né?”, afirma. Para Guarilha e também para o vocalista da banda Galanga, Juliano Mendes, a existência de Chico Rei não é relevante. “Se ele existiu ou não é o que menos importa”, afirmam os dois.

Foi aí que ele começou a exercer seu dom de pensar novas possibilidades para antigos objetos. A clientela é variada: irmãs de caridade, padres, médicos e gente de todo tipo o procuram. São pessoas não só de Mariana, mas também de Ouro Preto, Acaiaca e Ponte Nova. A oficina é tomada por inúmeros guarda-chuvas, alguns esquecidos, abandonados por seus donos, uns ele guarda, os bons ele vende, e os ruins ele doa. Mas Seu João diz que a verdade é que as pessoas só se lembram realmente do consertador de guarda-chuvas quando a chuva vem. Mesmo assim, ele exerce seu trabalho com paixão e a paciência de um verdadeiro reparador. É como retrata o poeta Manoel de Barros: “As coisas não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis: elas desejam ser olhadas de azul, que nem uma criança que você olha de ave”. É o olhar de pessoas razoáveis, de pessoas comuns que acaba com a poesia, com a possibilidade de recriação. O olhar comum não consegue ver nelas qualquer sentido, acabando por enxergar apenas definições e palavras com seus significados convencionais. Seu João com toda sua criatividade, paciência, atenção e cuidado consegue extrair de um objeto aparentemente perdido, um novo recomeço, e é isso que o diferencia dos demais.

O olho vê. A memória revê. A imaginação transvê.

a

Cr

sos do tema, a construção do mito, feita pela obra, é racista. Autor de “A atualização das tradições: performances e narrativas afro-brasileiras” (2012), Rubens Alves da Silva diz o seguinte no capítulo em que trata do tema: “Chico Rei é um mito que merece ser ouvido e lido com desconfiança, pois não deixa de ser uma invenção de intelectuais representantes da elite mineira que, ao se aventurarem no arriscado mundo das letras, não abriram mão dos interesses coletivos como arauto de um discurso dominante”. Quem também afirma que a narrativa é preconceituosa é o historiador e professor do Centro de Ensino à Distância da Universidade Federal de Ouro Preto (Cead/Ufop), Antô-

guard e d a-c s o r hu a p v e

Juliana Melo Vivemos numa era em que as coisas são descartáveis. Com toda facilidade que temos, nos desfazemos daqueles objetos que não nos são mais úteis e logo adquirimos algo novo. Andando pelas ruas de Mariana, me deparei com uma cena um tanto quanto diferente: uma oficina de guarda-chuvas. Atentei para isso em meio ao movimento da Avenida Manoel Leandro Corrêa, onde mora o Seu João Luís dos Santos, 80 anos. Ele não é apenas mais um dos inúmeros moradores da avenida, mas um consertador, um recriador. A oficina, instalada na garagem de sua casa, abriga centenas de guarda-chuvas: pretos, coloridos, estampados, novos, velhos, reparados ou quebrados. Com ar humilde e acolhedor, ele recebe bem a todos que procuram por seus serviços. A história desse consertador começou há pelo menos 20 anos, quando seus familiares começaram a lhe pedir que consertasse algumas sombrinhas que estavam com defeitos. A partir daí outras pessoas solicitavam o mesmo favor com frequência. “Pelo amor de Deus, conserta meu guarda-chuva pra mim? E nesse ‘pelo amor de Deus’, já vai completar uns 20 anos ou mais que eu trabalho nesses consertos”, lembra Seu João, com alegria estampada no rosto.

{

Rosário e Santa Efigênia (Amirei), Solange Palazzi, defende a existência do herói com veemência. “Em primeiro lugar, nenhum mito surge do nada. Se você for a qualquer Congado de Minas Gerais e perguntar quem te ensinou a fazer o Congo ele vai falar: Chico Rei. Ouro Preto ainda não teve a grandeza de colocálo no mesmo patamar de Zumbi dos Palmares”. Alguns pesquisadores discordam da existência do personagem e questionam a narrativa do livro “Chico Rei”, de Agripa Vasconcelos, publicado na década de 60 e que inspirou o filme Chico Rei, de Walter Lima Júnior, na década de 80. Para alguns estudio-

sra. guarda memória

Neto Medeiros Ao digitar o nome “Chico Rei” no Google, o primeiro resultado que aparece é uma marca de camisas. Coisas da indústria cultural que se apropria dos costumes e das tradições, inclusive da saga de um rei. A história de Galanga começa do outro lado do Atlântico. Arrancado do Reino do Congo para ser escravo numa mina de ouro em Vila Rica, veio com vários malungos, termo dado aos escravos que chegavam vivos após resistirem ao navio negreiro. Lá ele era rei, e repetiu aqui sua nobreza, depois de alforriar seu povo e construir a igreja de Santa Efigênia, no Alto da Cruz. As narrativas e reflexões em torno de Chico Rei, o “herói negro”, que teria vivido em Ouro Preto no ápice da corrida do ouro, ainda hoje provocam reflexões, tradição e fé. Teria mesmo vivido por aqui o herói africano pai

}

Manoel de Barros


Setembro de 2013

Edição: Marina Ibba Arte: Mariana Borba

11 Flávio Ernani

cultura

De pai para filho

Respeitável público, agora, no picadeiro, o palhaço que carrega a arte no bolso Marina Ibba Vestindo a menor máscara do mundo, recolhe sorrisos por onde passa. Dos picadeiros às praças, os palhaços encantam até os mais distraídos, e as crianças não podem faltar. “Furreca é o Sr. Eduardo Dias, e Sr. Eduardo Dias é o Furreca”, se apresenta. Natural de Belo Horizonte, veio para Mariana cursar História e por aqui ficou, se casou e teve dois filhos, que enchem seus olhos de admiração. Flávio Ernani

Alice, 11 anos, e Francisco, cinco, ex- do o pano de prato que também recebe perimentaram o palco aos três anos, quan- toques especiais de Francisco, de poucas do manifestaram interesse em participar palavras e olhos atentos ao pai. das apresentações do pai, que recorda “O palhaço, o poeta do riso, é essencada momento com muito orgulho e ad- cial para a mudança porque ele é o dermiração. Observadores, arriscam até fazer rotado, o que apanha, mas não oferece a análises críticas dos espetáculos que assis- outra face. Ri de si mesmo, mas princitem em família. palmente ele é o desajustado que não se Palhaço Dudu foi batizado Furreca em enquadra no mundo social e, sim, mostra 2003, em um almoço com um amigo que outra forma de ser. Para mim, a maior lise confundiu ao contar uma história e ção que ele passa é: ‘olha para mim, eu usou esse nome. A identificação foi ins- sou assim mesmo e posso ser tantos outantânea e ainda se mantém. “Depois co- tros do meu jeito’. O palhaço é o impermecei a refletir sobre a escolha e vi que feito em um mundo que pretende ser perfoi muito pertifeito”, ensina. nente. Sou filho, “Ele é o desajustado que Furreca e Lamsobrinho e primo não se enquadra no mundo breta subiram ao de caminhoneiro social e, sim, mostra outra palco na Praça da e até hoje não tiSé, no Encontro forma de ser”. rei minha carteira de Palhaços, em de motorista. Meu primeiro número solo Mariana, em 2011, em grande estilo. Na leva o nome de Carrinho e nasceu antes apresentação da peça “Que problema tem do Furreca”, conta. isso?” o trapalhão Dedé Santana dividiu Francisco, antes de subir ao palco a cena com os dois e surpreendeu seu fã como palhaço Lambreta, gostava de se Eduardo, que de tanto sorrir, chorou. aventurar nos bastidores. Assistia as apreEsse homem que provoca um misto de sentações de Furreca na cochia, de olhos sensações ao se despir de vaidades, coloatentos na plateia e no palco. car sua máscara e revelar-se para o púRecebeu-me pela manhã. O café esta- blico, também busca o riso e a reflexão va na mesa, cuidava da louça na pia. Os através da arte, em outros projetos. Rebiscoitos que Francisco gosta já espera- cém-escolhido delegado de cultura de Mavam que ele acordasse. riana, Eduardo, além de se preparar para Brinca como uma criança e sua crian- representar a cidade na Conferência Estaça o acompanha. Eduardo fala sério sobre dual de Cultura, trabalha para a manuteno papel social e transformador do palha- ção de um pequeno teatro, sede da Assoço. Enquanto isso, faz desenhos dobran- ciação Orquestra e Coro Mestre Vicente.

O objetivo nobre é transformar o espaço em um centro cultural. Sobe ao palco na cozinha de casa, com uma bola de malabares nas mãos, me conta que para promover a transformação social é preciso se unir, pois o “trabalho é de formiguinha”. A arte do palhaço, que se paga com sorrisos sinceros, corre as veias e extravasa em poesia. Arte que invade os espaços, da decoração com miudezas feitas à mão, do grafite no muro que se vê na janela da cozinha até a bexiga azul, sorriso de canetinha que chega ligeira no meio do papo, acompanhada de passinhos silenciosos do menino que me espia. Eu precisava lhe devolver a atenção de seu pai.

Um encontro marcado com o circo Flávia Pupo De longe ouço o palhaço: hoje tem marmelada? Tem, sim sinhô. Hoje tem goiabada? Tem, sim sinhô. Hoje tem palhaçada? Tem também, sim sinhô. Respeitável público, com vocês, há 13 anos em cena: o Circovolante. A praça está lotada com gente de todas as idades, que chora, que ri, que se envolve. O picadeiro está pronto e o espetáculo nas ruas já vai começar. É exatamente assim que Mariana fica durante o Encontro Internacional de Palhaços, promovido desde 2009 pelo Circovolante. O grupo foi criado em janeiro de 2000, pelos artistas João Pinheiro e Xisto Siman. Vindos de Governador Valadares, eles sabiam que daqui não iriam embora tão cedo. Segundo Xisto Siman, 43 anos, a ideia do

Encontro surgiu da possibilidade de criar um evento que reunisse artistas, mas que também tivesse uma aproximação com a comunidade. “As pessoas querem esse evento, elas procuram, e você vê que as pessoas que já vieram, voltam e vão em peso pra rua”, afirma Xisto. Com muito suor e trabalho, o Circovolante chega esse ano à quinta edição do evento, contando com o apoio financeiro de empresas, da Prefeitura de Mariana e do Prêmio Funarte Carequinha de Estímulo ao Circo. Interação A iniciativa do Circovolante busca um diálogo importante na relação com a comunidade. A pesquisadora da história do circo no Brasil, Ermínia Alves, 59 anos, afirma que “não é à

toa que a cidade aparece para vê-los, porque durante o ano inteiro tem um trabalho muito forte deles, e isso faz parte de um projeto artístico, político, social e cultural que envolve todos os moradores de Mariana”. A Cia Lunática é parceira do Circovolante desde o 1º Encontro e, pela terceira vez, realiza o Ateliê Riso In Formação, em sua sede, no distrito de Passagem de Mariana. As atividades começaram em agosto e terminam na semana anterior ao evento. A atriz Josélia Alves, 43, integrante da Lunática, completa. “Quanto ao público e ao fato de que as atividades do Encontro de Palhaços sempre ficarem lotadas, imagino que tenha a ver com a maneira como é feita a produção: de forma afetiva, que considera

rafael camara

5º Encontro Internacional de Palhaços 26 a 29

de setembro Homenageado: palhaço Chicrete

o público como principal convidado do evento”. Desse modo, o Circovolante consegue fazer da rua o seu palco democrático, onde a alegria gratuita é a atração principal. No cir-

co é assim: primeiramente o público fixa os olhos nos artistas, em suas brincadeiras, gestos e movimentos. Depois, como esquecer esses momentos? Ficam sempre na lembrança

as emoções que proporcionam, e a imaginação não deixa pra menos. Faz do espetáculo verdadeira mágica, algo que sempre se reinventará na memória a cada novo encontro.

lando, cantando, escrevendo, fotografando, atuando, jogando, rindo, vivendo. E, você, viu? Você notou o senhor sentado nas escadarias da Igreja da Sé nos finais de semana, jogando conversa fora com quem passa e vendendo seus badulaques? Você conversou com algum deles? Se palavras tivessem valor, ah... eles seriam os milionários. Vivem a vida livre, sem chefes, sem trânsito. Têm de escritó-

rio uma cidade patrimônio. Mais, eles são a cidade, narradores únicos de quem tem o privilégio de ver o movimento o tempo todo, de quem adquire olhar apurado para as pequenas cenas do cotidiano. Eles veem beleza onde ninguém mais vê. E colocam nas suas esculturas, nas suas intervenções. É só olhar. Então, pare. Veja. Seja a sua cidade. Você pode sair dela. Resta escolher se ela sairá de você.

crônica

Muito além do seu cotidiano Tácito Chimato Ouro Preto, patrimônio mundial da humanidade. Centenas de turistas nas ruas, com câmeras fotográficas a postos e dinheiro para comprar lembranças. Festas o tempo inteiro, dentro das casas antigas. E bem ali, ao pé da Rua Direita, um grupo de teatro realiza uma intervenção. A moça está sentada com um saco de frutas cheio de lixo na cabeça e diversos objetos sob um tapete, cada um com um va-

{

lor anexado. Alguns param, olham rápido, e vão embora. Comentam entre si, riem. A maioria, só passa. Onde estão as fotos dessa moça? Nenhum turista parou enquanto estive lá. Vale mais uma lembrança do Fórum, em frente. Alguns estudantes passavam olhando, mas logo subiam a ladeira. Os comerciantes, cansados da jornada de trabalho, corriam para o ponto de ônibus. E quem são esses que ficam na rua? Quem vê ali

a oportunidade de crescer? No auge da minha infância, sentado à noite com minha mãe vendo o telejornal, lembro-me das chamadas sobre assaltos e roubos na rua. Aí cresci, e, óbvio, saia com meus amigos. Minha mãe dizia: “cuidado, volta cedo, hoje apareceu no jornal...”, e contava um caso tenso sobre alguém que estava dando mole na rua. “A rua não é para ficar dando bobeira, não seja besta, se for atender telefone, entre em

algum lugar, não converse com ninguém”. Pobre daqueles, que ficam em casa, imaginando as coisas e não conhecem os “bestas”. Os tolos. Os guerreiros. Aqueles que veem na rua a oportunidade de expor o que são. Ora, para onde vão os músicos, artesãos, atores e atrizes, que não trabalham recebendo um daqueles cachês de novela? Não cabe todo mundo no palco. Mas na rua cabe tudo. E lá estão eles pintando, vendendo, marte-

Para enxergar as coisas sem feitio é preciso não saber nada.

}

Manoel de Barros


12

Setembro de 2013

Edição: Tácito Chimato Arte: Gabriela Ribeiro

ENSAIO

Juliana Melo (texto) | Nathália Viegas (fotos) Movimentos corporais feitos de uma forma lenta e contínua, trabalhando a harmonia física, mental e emocional com passos inspirados na natureza e nos animais resumem a essência do Tai Chi Chuan. É uma arte milenar que foi desenvolvida nos templos e mosteiros da China e introduzida no Ocidente no século passado, como forma psicoterapêutica. A inspiração vem dos movimentos circulares, lentos e suaves dos tigres, garças, serpentes e ondas do mar. Percebi que o que compõe o Tai Chi são a respiração, o movimento e o pensamento. Pode ser considerada também uma arte marcial, uma autodefesa. Ao fazer uma aula observamos claramente a possibilidade de se tratar o estresse e a ansiedade através de um trabalho intelectual. O ambiente tranquilo e acolhedor do espaço conhecido como Machu Picchu, no Intituto de Ciências Humanas e Sociais (ICHS), em Mariana, é palco desse espetáculo. Ouvi o mestre Ricardo Silva Teixeira, responsável por trazer essa receita de paz para seus alunos. Ele me disse que geralmente quem não consegue completar os movimentos é quem realmente está precisando parar um pouco e praticar. A música serena se junta aos movimentos e ao ambiente verde do Instituto numa só sintonia. Os alunos saem relaxados, e não poderia deixar de falar com alguns deles. Conversando com a produtora cultural Eliane Sandi e a cabelereira Simone Rocha, descobri também que o Tai Chi Chuan trabalha a energização do nosso corpo. As energias fluem, e os problemas de saúde desaparecem. Além disso, descobri que quem começa a praticar não quer parar mais. Os movimentos são delineados com a utilização de alguns objetos como leques, espadas, sombrinhas, bastões e bancos. Observando cada passo daquela aula, o cuidado com cada movimentação, percebi que não só a mente é trabalhada mas o corpo físico como um todo. Conheci Diana Antônia dos Santos que estava ali também ensinando alguns alunos. Ela me contou que a prática daqueles movimentos pode ajudar a combater a insônia, equilibrar a pressão, fortalecer articulações, melhorar a respiração, o trabalho do coração e promover o rejuvenescimento físico e mental. Não é à toa que o Tai Chi é conhecido como a Arte da Longa Vida. Os movimentos são simples, nada muito complicado de se aprender. O que precisamos é parar, acalmar um pouco, sair da agitação e deixar a música e a suavidade dos movimentos nos guiarem.

S u a v i d a d e


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.