Jornal Nuvem Negra [nov2016]

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EDIÇÃO #2

2016

CORPOS EM LUTA AZOILDA: A INTELECTUAL DO CHÃO DA ESCOLA O “MOVIMENTO” E A RESISTÊNCIA PERMANECEM

ESCREVIVÊNCIA EDUCAÇÃO EDUCAÇÃO EM RETROCESSO: UMA AMEAÇA À DIVERSIDADE E À DEMOCRACIA

DA ESCOLA À UNIVERSIDADE: LUTAS RUMO A AFIRMAÇÃO DA IDENTIDADE NEGRA

DE MENINA MULHER PARA MULHER NEGRA

VOZ DE LÉLIA MINHA PELE É PRETA E O MEU CABELO É DE LÃ CÓD.:161117


editorial

Nós, do Coletivo Nuvem Negra, usamos as páginas deste jornal para protagonizar nossas próprias histórias. Nascemos da necessidade de expressar nossa voz e de pautar nossas questões a partir de nós mesmos. Queremos afirmar a importância da luta antirracista nas instituições educacionais e das contribuições que intelectuais negras e negros oferecem ao desenvolvimento de diversos campos.

estimule a autoestima de estudantes negras e negros. Por meio de relatos de meninas negras, encontramos a evidência de um ambiente escolar que renega a estética negra.

Fazendo parte da editoria Escrevivência temos histórias que ressaltam como a escola tem prejudicado a autoestima de estudantes negras/os. Mas, também, em tais histórias, enfatiza-se que o processo de tornar-se Na segunda edição, o Nuvem Negra traz o tema negra e negro é libertador e revolucionário na vida de educação como ponto central do jornal. A proposta todos nós. é demonstrar como o ambiente escolar nega a A editoria Educação estreia ressaltando os perigos temática racial e como o sistema continua se omitindo do Movimento “Escola sem Partido” e da PEC 55/241 diante do combate ao racismo. Como consequência, para a educação. A luta do movimento negro e suas passamos 12 anos ou mais dentro de uma escola conquistas históricas no campo da educação estão sendo atravessados cotidianamente por diversas sendo ameaçadas a desaparecer. violências motivadas pelo racismo. A Lei 10.639/03, que regulamenta o ensino das relações étnico-raciais e Por fim, a editoria Universidade desta edição vem da história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas, denunciar a PUC-RIO por ser uma instituição apresenta ferramentas educacionais antirracistas que universitária que não cumpre o que determina da Lei permanecem sendo negligenciadas pelas instituições 10.639/03, ou seja, uma instituição que não oferece uma de ensino. Sendo assim, o Nuvem Negra deseja que quantidade mínima de disciplinas comprometidas com esta edição chegue às escolas motivando e inspirando reflexões e conhecimentos que formem educadores e estudantes e professores a destruírem as correntes de profissionais capazes de compreender e combater o uma educação racista, eurocêntrica, colonizadora e racismo. aniquiladora da diversidade de saberes e conhecimentos É tempo de reconhecer e assumir as contribuições do negro-africanos. conhecimento negro-africano, pois dizem respeito Um jornal comprometido com o debate sobre não apenas aos descendentes de africanos, mas a educação não poderia deixar de homenagear a toda a humanidade. importante intelectual e militante negra Azoilda Loretto da Trindade. A história dela nos inspira a refletir sobre o papel da militância negra dentro da escola, bem como a sua importante conexão entre universidade e escola na construção de uma educação antirracista. O axé da intelectual do “chão da escola” nos permitirá pontuar as instituições educacionais, em especial, a escola, como espaços centrais de produção e reprodução de traumas em negras e negros, devido às suas estruturas racistas, que se realizam nas relações interpessoais, ou por meio da negação da história e dos conhecimentos negro-africanos.

A matéria sobre Azoilda compõe a nova editoria Corpos em Luta, que pretende homenagear e apresentar personalidades do movimento, bem como as diversas frentes de luta contra o racismo e pela consequente libertação do povo negro. Como veremos ainda nesta editoria, o movimento negro não é algo recente, nem privilégio da geração atual. A resistência sempre esteve presente em nossa história. Na editoria Voz de Lélia perceberemos como a escola está muito aquém de ser um ambiente acolhedor, de pertencimento e que reconheça as diferenças e

Errata 1ª Edição Jornal Nuvem Negra • capa: Faltou o crédito do fotógrafo e amigo de Lélia Gonzalez, Januário Garcia. • revisão: Os textos da 1ª edição foram corrigidos por Rodolpho Amaral.

Jornal Nuvem Negra Publicação trimestral Linha Editorial: Coletivo Nuvem Negra Editores: Gabriele Roza e Lucas de Deus Projeto Gráfico e Diagramação: Bruna Souza Revisão: Rodolpho Amaral

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educação

Educação em retrocesso: uma ameaça à diversidade e à democracia Sandra Marcelino * Vírus com forte poder de destruição vêm sendo espalhados e ameaçam a falência total da educação. O Movimento “Escola sem Partido”, através do projeto de lei 867/15, a atual Reforma do Ensino Médio, a Proposta de Emenda Constitucional 241/55 (PEC 241/55) são exemplos de tais vírus e que apontam retrocessos na educação brasileira. Nos últimos meses, acompanhamos no cenário político ações que ferem a democracia, incitam intolerâncias, cerceiam o pensamento crítico e suprimem direitos conquistados. Como acreditar que é possível a redução das desigualdades sem investimentos na educação? Sabemos que a educação sozinha não resolve todos os problemas sociais, no entanto, não podemos negar que a escola e a universidade desempenham um papel importante. Uma insatisfação popular cresce a cada dia em um cenário marcado por retrocessos. Em resposta a isso, em meio às manifestações que se seguem em diversas cidades do país, um movimento novo, insurgente e de caráter juvenil protagoniza o exercício de luta pela cidadania: os movimentos de ocupação das escolas. Que educação afinal querem esses jovens? Por quais agendas e “saberes outros” são pautados seus gritos? Esses gritos registram cores, classes, gêneros, orientações sexuais, religiões, entre outras diversidades que são marcadas por opressões distintas? Parece que vivemos uma reprise de um passado triste de nossa história, caminhando para um futuro duvidoso. O Movimento Escola sem Partido, por exemplo, reflete um “Calese!” que alega a existência de doutrinação na educação brasileira. Esse projeto é uma arma letal para dizimar ainda mais uma população pobre, propagando a homofobia, o machismo, o racismo e outras discriminações.

Como fica a lei 10.639/03 nesse contexto? Provavelmente silenciada. A luta do movimento negro pelo direito à educação e suas conquistas históricas através da revisão dos livros didáticos, da obrigatoriedade do ensino da cultura afro-brasileira e da Lei de Cotas estão ameaçadas a desaparecer. Nessa mesma sequência, a Reforma do Ensino Médio é outra cepa de vírus letal que “vende” uma proposta de melhoria da educação através de três disciplinas-chave: português, matemática e inglês, ou seja, ser leitor funcional, saber contar e reproduzir o verbo to be. Esta proposta coloca os filhos das classes populares na mesma condição de igualdade que os filhos das “sinhás” que continuam recebendo a educação diferenciada para exercer a governança e ocupar os cargos de prestígio? Outro vírus do retrocesso ameaça não somente a educação, mas também a saúde e a assistência social: a PEC 241/55, tramitada atualmente no Senado, prevê medidas de contenção em investimentos para essas três instâncias das políticas públicas. Não podemos esquecer que esses serviços atendem a uma maioria negra e empobrecida. Mais que uma falência, há um genocídio silencioso atingindo física, social e intelectualmente a grande massa que compõe a sociedade brasileira. Não sabemos por quanto tempo ainda poderemos nos manifestar. Por ora, insistiremos na (sobre)vida da diversidade e da democracia. *Sandra Marcelino é Doutoranda em Educação pela PUC-Rio e integrante da Rede Carioca de Etnoeducadoras Negras.

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CORPOS EM LUTA

O “Movimento” e a resistência permanecem Ronilso Pacheco* O Movimento Negro não é algo recente, nem privilégio da geração atual. A resistência sempre esteve presente na história do povo negro no Brasil, desde quando os primeiros negros escravizados aqui chegaram. Desde a Revolta dos Malês na Bahia, em 1835 - em que se destaca a liderança de Luisa Mahin, mulher negra, mãe do poeta Luís Gama - aos diversos quilombos espalhados pelo território nacional, vemos experiências de luta e sobrevivência em comunidades. Os negros nunca interromperam o “movimento” em direção à liberdade e à conquista dos lugares de destaque e reconhecimento em meio à sociedade e Estado racistas, herdeiros do sistema escravocrata. Sendo assim, se começo por citar a Frente Negra Brasileira, fundada em 1931, não é necessariamente por ser o primeiro Movimento Negro, mas apenas por uma escolha de iniciar por uma data mais próxima. Sua organização proporcionou a criação de escolas, de um departamento jurídico extremamente competente. O movimento chegou a reunir 20 mil associados e se tornou partido político em 1936, sendo a maior representação negra na política partidária, até ser dissolvido em 1937, às portas do Estado Novo. O ano de 1944 marca a fundação do Teatro Experimental do Negro (TEN), que tem Abdias do Nascimento como uma das suas principais e mais destacadas lideranças. É a partir do universo de construção teatral, da narrativa cênica, que o TEN resistiu e lutou pela garantia dos direitos civis dos negros no país. Além disso, o grupo propôs a promulgação de uma lei antidiscriminatória na legislação brasileira.

A instauração da ditadura militar em 64, caçando todas as oposições ao governo, significou também o desmantelamento do TEN, culminando na partida de Abdias para o exílio em 1968. Apesar de toda a desmobilização provocada pela ditadura, em que corpos negros também foram exilados, presos e torturados - o que é, em grande parte, completamente oculto das bibliografias e filmografias de história sobre o período da ditadura -, em 1978 surge o Movimento Negro Unificado (MNU). A intelectual negra Lélia González foi uma das fundadoras e militantes do MNU exatamente no ano em que ela passou a lecionar na PUC-Rio, e é ela quem diz que “A criação do MNU foi um marco histórico muito importante para nós”. Também é histórica e emblemática a manifestação, em 1983, na Cinelândia, Centro do Rio, denominada Zumbi Está Vivo, reunindo dezenas de milhares de pretos e pretas. Neste rastro e nesta herança, novos movimentos e coletivos surgem e se consolidam. Na primeira década de 2000 e, sobretudo, na década atual, chama atenção o surgimento de movimentos negros diversos e, principalmente, dos coletivos. Como o próprio Nuvem Negra, que nas universidades, em especial, cumpre um papel crucial de referência para os estudantes negros e negras que ali ingressam. Seu papel é fundamental na organização e potencialização de negros e negras na vida e na sociedade. O novo desafio agora é como o movimento negro e coletivos negros existentes entram e dialogam com as escolas, fazendo crescer o movimento e possibilitando novas referências para crianças do ensino fundamental e adolescentes do ensino médio. *Ronilso Pacheco Teólogo, escritor e interlocutor social na ONG Viva Rio, além de integrante do Coletivo Nuvem Negra.

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voz de lélia

Minha Pele é preta e o meu cabelo é de lã Luana Fonseca*

“Eu lembro que eu tinha uns 5 anos e eu sempre ia com o cabelo preso e fazia umas tranças. Aí, teve um dia que eu falei que não queria ir de trança para a minha mãe e ela disse ‘tá bom’! Soltou o meu cabelo e passou o creme e quando ele seca, ele arma mesmo… aí, fui para a escola. Aí, a professora chegou e disse: Por que você veio com esse cabelo solto de neguinha de morro? Pode prendendo esse cabelo! E eu não quis e ela me forçou a prender o meu cabelo. Eu cheguei em casa com o meu cabelo preso e chorando.” Mulher, negra, cabelo e escola. Essas palavras despertam diversos pensamentos angustiantes e marcantes para a maioria das mulheres negras. Se você é mulher e negra, provavelmente irá identificar traços semelhantes aos do relato acima, de uma estudante de 15 anos entrevistada para a minha monografia intitulada Minha Pele é preta e o meu cabelo é de lã: Cabelo e a construção da identidade negra e feminina no ambiente escolar, concluída em 2016.1. A negação do cabelo afro é um dos apagamentos principais que o corpo negro sofre cotidianamente no ambiente escolar. Para a mulher negra, esse processo é mais doloroso por vivermos em uma sociedade estruturalmente racista e machista, fazendo com que as imposições sobre o corpo e principalmente sobre o cabelo se iniciem desde os primeiros anos da infância. A fala que segue é de uma estudante de 16 anos que, no momento da entrevista, estava em processo de transição capilar: “Eu lembro que ardia muito o cabelo quando a mulher passava o produto e depois até eu me acostumar… ardia, doía! Eu estava perdendo muito cabelo, mas eu aceitava porque eu achava que valia o sacrifício pela beleza no mundo.” O cabelo é sempre percebido nas relações culturais e sociais, por isso ele é representativo. Na escola, é comum ouvir de professores e funcionários que é necessário “arrumar o cabelo”, “cabelo feito”, “cabelo preso”, qualquer discurso com a ideia de “domar” o cabelo afro. Além do discurso racista pautado numa falácia de “cuidados com o cabelo”, as estudantes negras não esquecem em suas trajetórias até os dias atuais das piadas e dos apelidos difamatórios, como “cabelo de palha”, “cabelo de bombril”, “cabelo duro”. Esses apelidos marcam e influenciam na socialização e na construção de

um pertencimento étnico-racial. As relações sociais fundamentam a percepção identitária e, consequentemente, o pertencimento e aceitação da sua negritude. Munanga (2009) ressalta que “a recuperação dessa identidade começa pela aceitação dos atributos físicos de sua negritude antes de atingir os atributos culturais, intelectuais, morais e psicológicos, pois o corpo constitui a sede material de todos os outros aspectos”. A identidade é uma construção constante. A escola é um espaço fundamental da construção da identidade e de todos os conflitos implicados nesse processo. A valorização das características simbólicas do corpo negro, como o cabelo, é um importante caminho de resgate da ancestralidade. A escola é potencialmente um espaço do tornar-se negro (Souza, 1990). Nesse contexto, a Lei Federal 10.639/03, que torna obrigatório o ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira nas escolas, afirma que “garantir o direito de aprender implica em fazer da escola um lugar em que todos e todas sintamse valorizados e reconhecidos como sujeitos de direito em sua singularidade e identidade” (LDB, 2009). Pensar a relação entre educação e identidade negra nos desafia a refletir e construir novas práticas pedagógicas. A escola precisa ser um ambiente acolhedor, de pertencimento e que reconheça as diferenças e estimulem a autoestima de estudantes negras e negros. A aceitação do cabelo afro para estudantes negras envolve a construção do ser negra. É um afronta-mento. É resistência. É ocupação. Pois, como diria a nossa Lélia Gonzalez, “a gente nasce preta, mulata, parda, marrom, roxinha dentre outras, mas tornar-se negra é uma conquista”. *Luana Fonseca é integrante do Coletivo Nuvem Negra, cientista social, feminista negra interseccional. Apaixonada por educar, antropologia e ouvir histórias de crianças.

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CORPOS EM LUTA

Azoilda: A intelectual do chão da escola Mariana Bispo*

O Caruru de Chegança homenageava Azoilda Loretto da Trindade quinze dias depois de sua passagem para Orum, o céu em iorubá. No dia 27 de setembro de 2015, amigos e admiradores de Azoilda presenciaram a colcha de retalhos tornandose “manto sagrado”. Mais de trinta anos em prol da educação libertária não poderiam ser celebrados com tristeza, e, como consta no relato da cerimônia escrito por Katia Costa Santos e Janete Ribeiro, não foi: “é um ato revolucionário estarmos aqui hoje, enaltecendo a vida e, não a morte; dividindo esperanças e ensinamentos, e não desesperos; evocando uma constelação de ancestrais em nome do amor em suas mais variadas formas”. Doutora em Comunicação e Cultura, mestre em Educação e graduada em Psicologia e Pedagogia, Azoilda escolheu trilhar o caminho da educação com ênfase na reeducação das relações raciais a partir do reconhecimento da importância do afeto nas práticas pedagógicas. A luta de Azoilda para estabelecer a educação como eixo fundamental no contexto do movimento negro nos anos de 1980 já trazia a ideia da necessidade de um vínculo entre academia e militância. A valorização de diferentes saberes e o combate ao racismo era a sua grande bandeira de luta. Para Janete Ribeiro, historiadora e amiga por quase 30 anos da intelectual, a importância da conexão do “chão da escola” com as discussões sobre igualdade racial era pensada por Azoilda bem antes do decreto-lei nº 10.639, aprovado em 2003, que exige o estudo da cultura africana e afrobrasileira nas escolas. – O encontro com a Zó me apontou o caminho da educação como um espaço de afrontamento ao racismo. Eu e a Zó entendíamos que para pensar a questão racial, tínhamos que relacionar o chão da escola com a produção da universidade. Nessa época, o chão da escola e o movimento social não se relacionavam. A academia questionava o movimento negro e o usava como um mero objeto, não havia um diálogo horizontal. E a militância, por outro lado, dizia que a universidade era racista. Entrar na faculdade era se embranquecer - relata Janete.

Escritora de vários livros, Azoilda teve vasta experiência na área da educação, com ênfase em currículo, didática e prática de Ensino e psicologia educacional. Dedicou-se também ao estudo das relações raciais, à História da África e Cultura afrobrasileira, à psicanálise e à constelação familiar. Em homenagem ao comprometimento e à luta de Azoilda para levar uma escola libertária a crianças, uma das oito unidades da Escola de Desenvolvimento Infantil (EDI) recebeu o nome de Azoilda Loretto da Trindade. Com o objetivo de disseminar o grande acervo de livros deixado pela intelectual, um grupo de amigas e amigos de Azoilda criou o projeto Legado de Zozó. O grupo montou uma biblioteca infanto-juvenil com mais de quatro mil títulos que faziam parte da biblioteca particular de Azoilda. Os livros estão sendo distribuídos em diversas instituições de ensino e a escola com nome em homenagem a Azoilda receberá a biblioteca infantil no dia 10 de dezembro deste ano. Janete diz que a amiga era a “intelectual das brechas”, bem articulada e com várias frentes de pensamento. Azoilda Trindade, carinhosamente chamada de Zó, nos inspira e alerta sobre a importância de nunca desconectarmos do chão da escola, assim como nos ensina a jamais perder o vínculo entre academia e o espaço escolar e não nos deixar levar por caminhos que nos distanciam do combate ao racismo. O chão da escola pode ser pensado como uma grande metáfora acerca da necessidade de nós negras e negros que ocupamos o ensino superior, em hipótese alguma, nos afastarmos da comunidade negra. A Azoilda, que hoje é uma ancestral, nos instiga a permanecer lutando por uma educação antirracista em todos os níveis educacionais. A sua trajetória nos motiva a trilhar um caminho no qual a universidade seja vista como uma ferramenta de luta contra o racismo. Azoilda, Presente! *Mariana Bispo é estudante de jornalismo da PUC-Rio e integrante do Coletivo Nuvem Negra.

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As grades curriculares foram acessadas no site da PUC no dia 12/10/2016

universidade

O infográfico reflete o nosso cotidiano de invisibilização, negação, apagamento e subtração dos conhecimentos negro-africanos, bem como de reflexões comprometidas com a luta antirracista. Nas palavras de Nilma Gomes, “a África e a questão racial brasileira continuam invisíveis na grande maioria das grades curriculares dos cursos de graduação e pósgraduação, sobretudo na área da educação”. A ausência de disciplinas obrigatórias que abordem as diversas temáticas étnico-raciais, a partir da perspectiva negra, só vem a reiterar e visibilizar a PUC como uma instituição racista. As salas de aula permanecem como um

espaço da universidade privilegiado da proliferação de representações negativas e estereotipadas sobre o povo negro, sua história, cultura e estética. Diante deste quadro, reafirmamos a importância de uma universidade que combata as mais variadas faces do racismo de maneira objetiva. Portanto, esperamos que a PUC-Rio e as instituições de ensino, de um modo geral, alterem suas grades curriculares e introduzam conteúdos e disciplinas relacionadas à educação para relações étnico-raciais nos seus cursos de graduação e pós-graduação. Acesse medium.com/jornal-nuvem-negra para informações mais detalhadas do infográfico. Por Bruna Souza, Gabriele Roza e Lucas de Deus

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escrevivência

Da escola à universidade: lutas rumo a afirmação da identidade negra *Wellington Mendes

Fomos programados para ser ninguém. Sim, fomos. Mas por que e por quem? Como um preto, favelado e mergulhado num mar de desinformação consegue se formar na universidade? Quando penso em oportunidade para chegar à universidade, incluo não ser desassistido, esquecido, negligenciado. Negligenciado em relação à água potável, ao saneamento básico, à educação de qualidade, ao direito de ir e vir e ao simples fato de ser negro. Lembro muito bem das vezes em que fui acordado com a casa tremendo. Acordado pelo barulho estrondoso de helicópteros e até mesmo pela visita incomum no meu quarto de um não convidado fardado, que educadamente apontava um fuzil em minha direção. Para que horas depois da ilustre visita, minha mãe mandasse com suas poucas palavras - nem sempre da melhor forma, mas certamente da forma que lhe era possível - para a sala de aula, na tentativa de virar doutor. Tardiamente, já na faculdade, descobri que era preto. E, até aqui, eu fui muita coisa: pardo, moreno, mulato, chocolate e, até mesmo, da cor do pecado. Eu era tudo, menos preto. Infelizmente, muitos de nós continuamos presos aos rótulos e às imposições do sistema desde que nascemos. Nossas vontades e necessidades são violadas e tentam nos colocar em segundo plano através de inúmeros artifícios, da mídia com a TV aos livros didáticos. Somos fortes, temos muita história. Um povo consciente é o pior pesadelo de um sistema mal-intencionado. Precisamos e vamos ir além dos discursos vazios que impulsionam a passividade do preto depreciado. Nosso desenvolvimento pessoal e econômico passa pela valorização dos nossos saberes locais, da nossa união. Agora, mais do que nunca sabemos que um povo com o mesmo propósito pode e deve se apoiar e, assim, se tornar irmão. O povo negro está se unindo, do cabelo à escrita, e nos aproximando cada vez mais de nossas raízes. Estamos chegando, e o que é nosso não ficará mais guardado. Steve Biko (ativista anti-apartheid da África do Sul nas décadas de 1960 e 1970) já dizia: “estamos por nossa própria conta. Ubuntu! *Wellington Mendes é formado em Administração pela PUC-Rio, criador da Zepelim e integrante do Coletivo Nuvem Negra.

Escrevivência (neologismo criado pela escritora Conceição Evaristo) é o espaço para contar as experiências vividas e pensadas por nós, negras e negros. É a vivência como alimento da escrita. “A nossa escrevivência não pode ser lida como histórias para “ninar os da casa grande” e sim para incomodá-los em seus sonos injustos”. Envie a sua para jornalnuvemnegra@gmail.com.

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escrevivência

De menina mulher para mulher negra *Thaís Nascimento

Se eu pudesse conversar com a Thaís de alguns anos atrás, quando eu estava entrando no Colégio Militar do Rio de Janeiro, a conversa seria mais ou menos assim: “Oi Thaís de 14 anos, eu sei que você tá com medo dessa escola nova. Eu sei que te falaram que é um lugar com o ensino bem puxado. Mas calma. As coisas vão se acertar.

Você voltou pro Rio e enfim tá usando mais o seu cabelo solto, né? Que pena que pra isso ter acontecido, e pra que você soltasse esse cabelão todo, precisou achar que devia usar química. Mas que saco isso de você não poder soltar no colégio. Eu sei que sua autoestima é das piores nesse momento, até o final do ensino médio ela vai piorar um pouco mais. Eu sei também que você pensa que é só uma questão de aparência, pura estética; mas, te afeta muito mais do que você imagina. Você acha que não consegue muita coisa. Acha que suas amigas brancas são mais bonitas e melhores que você. Os garotos mais desejados pelas meninas olham pra elas e não pra você. O que te faz se sentir um pouco mais bonita do lado de fora do colégio, quando as regras militares, que são totalmente incitadas e respeitadas do lado de dentro, somem. Seu cabelo tem que ficar preso sempre. Rabo de cavalo ou coque. E, claro, você deixa bem esticado pra trás porque, afinal, você acha que é melhor assim. Nas normas do colégio, a menina se isenta de prender os cabelos quando este vai, mais ou menos, até a altura do queixo, quando é bem curtinho. Mas e a irmã de black? Como ela faz tendo que usar uma boina que tem posição certa pra ficar na cabeça? Eu sei que nas festinhas do colégio você consegue se sentir um pouco melhor. Às vezes até gosta de ser diferente das outras, todas iguais de cabelos lisos. Mas fica irritada quando dança demais e o cabelo começa a encher. Ei, garota, deixa eu te falar - isso tudo vai mudar. Essa baixa autoestima, essa falta de amor próprio e crença em si mesma nos estudos, e em tudo, vai mudar! Os planos vão mudar um pouquinho também. Sabe aquela ideia de cursar engenharia? Ela vai ficar um pouco de lado. Calma. Você vai passar. Você consegue sim! Mas, muito corajosamente, você vai decidir que

o curso de Artes Cênicas vai ser mais interessante. Teu pai não vai apoiar isso, não. Olha, ele vai falar tanto, mas tanto, que vai te dar ainda mais vontade de fazer o que você quer e sonha. Chega de ser controlada pelos outros. Chega de achar que o que eles vão pensar de você vale mais do que as suas opiniões. Você vai entrar na PUC e vai fazer sua matrícula em Artes Cênicas. Você vai sair da matrícula cheia de dúvidas ainda. ’Será que é isso mesmo? Se meu pai estiver certo?’ Eu sei que seu primeiro período vai ser bem desgastante. Cara, como você consegue morar em São Gonçalo e estudar na Gávea? Você vai querer desistir algumas vezes. Mas alguma coisa não vai te deixar fazer isso. Pra ser sincera, eu já não sei mais o que te prende. Você sabe que a gente acredita que as coisas acontecem por algum motivo. Talvez seja porque você vai conseguir ser uma atriz, dramaturga, diretora, performer... o que você quiser. Já faz uns meses que eu penso que tomei uma das decisões mais felizes da sua vida: ter entrado pro Nuvem Negra. Cê sabia que tem um coletivo negro aqui? Não, né? Até porque você é morena. Ainda nem se percebe negra, mas calma, logo vai entender.” *Thaís Nascimento é graduanda em Artes Cênicas pela PUC-Rio e integrante do Coletivo Nuvem Negra. Nasceu em Belém, morou alguns anos em Manaus, mas passou a maior parte da vida no Rio de Janeiro. Sagitariana até dizer chega. Pretende ser do teatro, e não atriz da Globo.

Escrevivência (neologismo criado pela escritora Conceição Evaristo) é o espaço para contar as experiências vividas e pensadas por nós, negras e negros. É a vivência como alimento da escrita. “A nossa escrevivência não pode ser lida como histórias para “ninar os da casa grande” e sim para incomodá-los em seus sonos injustos”. Envie a sua para jornalnuvemnegra@gmail.com.

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ENTREVISTA

Menina, coloque seu turbante! Entrevista com Maria Chantal

Maria Chantal é, segundo ela, uma “africana em diáspora”. Criadora da Loja Maria Chantal, foca em roupas e acessórios voltados para o empoderamento negro. A angolana conta como estimula a autoestima negra por meio de suas peças. O que você pensa sobre o empoderamento estético? Quando assumi o cabelo crespo, eu posso dizer que era a única do bairro. Agora é tão lindo, eu passo em frente às escolas públicas e vejo as meninas com batonzão mesmo, com cabelo assumido, eu acho isso tão bonito. Sim, tem a problemática de ser, por vezes, vazio, mas essa questão de assumir o cabelo e enfrentar o mundo, já é um start pra acender aquela militância, sabe? Pra acender um questionamento contra o sistema. Então, acho foda empoderamento estético e acho que só não pode pecar em ficar só nisso. Seria, digamos, o primeiro degrau para essa escada da militância. Sobre os turbantes, todo mundo pode usar? Numa sociedade que não respeita nem cultura nem religião, é difícil respeitar isso. Brancos me perguntam: ‘Maria, posso usar turbante?’. É tão difícil responder essa pergunta. A gente tá morrendo de tanta coisa, o jovem preto é taxa de 70% dos homicídios, a gente morre de depressão... E a única coisa que preocupa os brancos é se pode usar turbante ou não. É uma ação sanguessuga o tempo todo, eu nem discuto mais. É normal do colonizador absorver a cultura sem trazer o peso que isso tem. Uma menina virou pra mim e falou: ‘ah, mas é só um tecido’. Se é só um tecido pra você, então usa. Eu explico sobre o valor de luta de resistência. Para uma menina branca, de cabelo loiro, que é padrão, ela tá resistindo ou lutando contra o quê? Mas, meninas negras, usem turbante sim, é uma forma até de se fortalecer... Porque a gente entende que é adorno, coroa, era algo ancestral, e isso fortalece tanto quando você entende que não está sozinha, que tem força. É um símbolo de resistência. O que você tem a dizer para os estudantes? Busquem conhecimento, sabe. Conhecimento é poder. Tem um ditado africano que diz que o maior veneno de todos é a ignorância, é a burrice. E a burrice é uma das armas que tem sido usadas contra nós o tempo todo. Ou então, vamos usar o Sankofa*: olhar pro passado, entender o presente, pra gente poder fazer um futuro melhor ou diferente. Então é isso, busca o passado, procura entender, não se baseie só no que a televisão, o seu professor, o livro diz, porque... fica difícil, tem muito caô. Por Bruna Souza

fotos: Bruna Souza

*o símbolo do pássaro olhando para trás, que está na capa e nesta página, à esquerda, representa o adinkra sankofa.

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indicação nuvem negra

Hey, Black Child Countee Cullen* Hey, Criança negra Você sabe quem você é Quem você realmente é Você sabe que pode ser O que você quer ser Se você tentar ser O que você pode ser Hey, Criança negra Você sabe onde você está indo Onde você está realmente indo Você sabe que pode aprender O que você quer aprender Se você tentar aprender O que você pode aprender Hey, Criança negra Você sabe que você é forte Quero dizer realmente forte Você sabe que você pode fazer O que você quer fazer Se você tentar fazer O que você pode fazer Hey, Criança negra Seja o que você pode ser Aprenda o que você deve aprender Faça o que você pode fazer E, amanhã, a sua nação Será o que você quiser que ele seja. *Countee Cullen poeta norte-americano, autor e estudioso. Um dos líderes no Renascimento do bairro de Harlem.

Oportunidades Observatório de Favelas Uma organização pública dedicada à produção do conhecimento e de proposições políticas sobre as favelas e fenômenos urbanos. O Observatório atua em cinco áreas distintas: educação, políticas urbanas, comunicação, cultura e direitos humanos. O espaço oferece diversos cursos voltados para adolescentes e jovens ao longo do ano. Para se inscrever, acompanhe o site e o Facebook do Observatório. Endereço: Rua Teixeira Ribeiro, 535, Maré, Rio de Janeiro – RJ Telefones: (21) 3105 4599 :: (21) 3888 3220 Site: observatoriodefavelas.org.br

Spectaculu A escola oferece capacitação profissional nas áreas de Arte e Tecnologia e Artes Cênicas para jovens de 17 a 21 anos, da rede pública de ensino e moradores de regiões de vulnerabilidade social do Grande Rio. Os cursos oferecidos são: Adereços de Cena, Beleza, Contrarregragem & Camarim, Costura e Figurino, Fotografia, Iluminação Cênica, Montagem de Cenários e Tratamento de Imagem; e também proporciona aos alunos formação de filosofia, cidadania e direitos, expressão corporal, oral e escrita, história da arte e criatividade. As inscrições são anuais pelo site: Endereço: Via Binário do Porto, 847 – Cais do Porto – Santo Cristo - Rio de Janeiro :: Telefones: (21) 3149 9065 :: (21) 2547 0463 :: (21) 984385020 :: Site: www.spectaculu.org.br OUTRAS ESCOLAS DE FORMAÇÃO: • CDD NA TELA Cidade de Deus :: agenciarj.org/ideias/cdd-na-tela/ • AfroReggae Lapa, Vigário Geral, Caju, Cantagalo e Parada de Lucas :: www.afroreggae.org/ • Central Única das Favelas (CUFA) Madureira www.cufa.org.br

Pré-Vestibular Comunitário Padre Anchieta Pré-vestibular da PUC-Rio localizado na Pastoral Universitária. O curso é voltado para funcionários da universidade e para moradores de comunidades vizinhas. As aulas vão de segunda à sexta, das 19h às 22h e sábado, das 8h às 13h. Os alunos do projeto têm auxílios como: orientação psicopedagógica, acesso à biblioteca central da PUC, cópias de material didático e benefício de refeição noturna.

Contato: pastoraluniversitaria.com.br :: E-mail: prevestibular. pucrio@gmail.com :: Tel: (21) 3527 1348 :: Endereço: Marquês de São Vicente, 225- Gávea

Educafro Rio A Educafro Rio é uma rede de pré-vestibulares organizada através de núcleos espalhados pelo Rio de Janeiro. Tem a missão de promover a inclusão da população negra e pobre nas universidades públicas e particulares com bolsa de estudo de até 100%. Sede: Rua Uruguaiana 77. Centro - Rio de Janeiro :: Telefone: (21) 2509 3141

Curso preparatório on-line A prefeitura do Rio de Janeiro e a plataforma de ensino Descomplica formaram parceria para oferecer um curso pré-vestibular on-line. Site: https://descomplica.com.br/prefeitura-rio/

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O Coletivo Nuvem Negra é uma potência autônoma de estudantes negras e negros da PUC-Rio que reconhecem em si a necessidade de uma articulação comum, que compartilha a resistência, o afeto e o fortalecimento negro na universidade. O coletivo é um espaço de troca, afirmação da identidade negra, acolhimento e luta antirracista. Realizamos seminários, debates e encontros que possibilitem enegrecer o pensamento e as nossas reflexões. O CNN é aberto à participação de todas e todos negras e negros. Junte-se a nós!!

REUNIÕES SEMANAIS

/coletivonuvemnegra coletivonuvemnegra@gmail.com

Gostou do conteúdo? Leia e compartilhe a versão online: medium.com/jornal-nuvem-negra Dúvidas, sugestões de pauta ou propostas para o jornal? Mande mensagem para jornalnuvemnegra@gmail.com

EDIÇÃO #2 2016 12


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