Jornal Nuvem Negra [jun2017]

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EDIÇÃO #3 2017

INTELECTUAIS NEGRAS A ARTE DE “DESENSINAR” O MACHISMO E O RACISMO DOS CURRÍCULOS ACADÊMICOS

QUANTAS PROFESSORAS NEGRAS TEM NA PUC?

DADOS MOSTRAM QUE O PERFIL RACIAL DOS PROFESSORES DA PUC-RIO É BRANCO. NO RITMO QUE ESTÁ, A PUC SÓ IGUALARIA O NÚMERO DE PROFESSORES BRANCOS E NEGROS NO ANO DE 2136

RAFAEL BRAGA

ABDIAS NASCIMENTO

O GRIOT DO QUILOMBO CONTEMPORÂNEO É FONTE DE INSPIRAÇÃO PARA QUE OS QUILOMBOS QUE PULSAM EM NOSSOS CORAÇÕES ESTEJAM SEMPRE A POSTOS PARA TOMAR DE ASSALTO E SEGUIR À LUTA

A ESTRUTURA RACISTA PAIRA SOBRE O JUDICIÁRIO E SOBRE A POLICIA MILITAR

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CÓD.:170612


e d i t o r i a l Chegamos na terceira edição do Jornal Nuvem Negra. Mudamos o formato, mas continuamos a usar as páginas deste jornal para protagonizar nossas próprias histórias e pautar nossas questões a partir de nós mesmos. Agora, uma edição sairá a cada semestre, com mais textos, temas mais aprofundados e mais espaço para a criação. Temos como objetivo afirmar a importância da luta antirracista nas instituições educacionais e estimular a circulação das contribuições que negras e negros oferecem no desenvolvimento de diversas áreas. Antes de tudo, exigimos a liberdade de Rafael Braga Vieira! A história do nosso irmão Rafael Braga, condenado injustamente a 11 anos de prisão nas senzalas da modernidade, faz parte do sistema que persegue e encarcera corpos negros nesse país. ‘Libertem Rafael Braga!’ é o grito mais alto e doloroso que queremos transmitir. O encarceramento em massa do nosso povo é mais uma peça da engrenagem social branca que nunca admitiu a humanidade de nossa gente negra. É fruto desta visão sobre nós que o Ensino Superior se consolida como uma instituição que não admite a produção intelectual negro-africana, que se nega a reconhecer o continente africano como berço civilizatório da humanidade e que, portanto, produz um espaço hostil aos estudantes negras/os universitários. A condenação de Rafael Braga, o extermínio do povo negro, o apagamento e inferiorização das contribuições negro-africanas, a falta de professoras/es negra/os nas universidades e o menosprezo das instituições em relação às denúncias de discriminação e preconceito racial fazem parte do projeto genocida do Estado Brasileiro. O genocídio do negro brasileiro, como nos ensinou Abdias Nascimento, é um projeto de destruição não só física, mas também cultural, psicológica, epistemológica, espiritual, política e social de negro-africanas/os. Por isso, ou lutamos e destruímos todas as faces do racismo ou jamais teremos a

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nossa libertação negra. A casa-grande deve sucumbir aos pés de nossos quilombos.

Jornal Nuvem Negra Publicação semestral

A vitória resulta da potência que temos quando atuamos enquanto comunidade. Aproveitamos e agradecemos a todas e todos que fizeram doações para o Projeto Ananse possibilitando a impressão desta edição do JNN. Contamos com a nossa unidade para a continuidade deste projeto. Que o jornal contribua para o debate racial nos ambientes em que chegar, que gere incômodo, revolta e mudança de estrutura. Até o próximo semestre!

Linha Editorial:

Liberdade para Rafael Braga já!

Revisão:

Coletivo Nuvem Negra Editores: Gabriele Roza e Lucas de Deus Projeto Gráfico e Diagramação: Bruna Souza Coordenação de Comunicação: Henrique Almeida Financeiro: Wellington Mendes Capa: Bruna Souza

Laíza Verçosa

Nuvem Negra

O Coletivo Nuvem Negra é uma potência autônoma de estudantes negras e negros da PUC-Rio que reconhecem em si a necessidade de uma articulação comum, que compartilha a resistência, o afeto e o fortalecimento negro na universidade. O coletivo é um espaço de troca, a f i r m a ç ã o d a i d e n t i d a d e n e g ra , acolhimento e luta antirracista. Realizamos seminários, debates e encontros que possibilitem enegrecer o pensamento e as nossas reflexões. O CNN é aberto à participação de todas e todos negras e negros.

O projeto Nuvem nas Escolas tem o objetivo de compartilhar com estudantes e professores de colégios públicos e particulares do Rio de Janeiro nossos saberes, histórias, cultura e ancestralidade. Por meio de contação de histórias, oficinas, roda de conversa e cine debate, questionamos a reprodução de práticas racistas vivenciadas no cotidiano escolar e buscamos ressaltar a importância da Lei 10.639 no espaço educacional. Quer o Nuvem na sua escola? Mande mensagem para coletivonuvemnegra@gmail.com ou pela página no Facebook.

Junte-se a nós!! /coletivonuvemnegra coletivonuvemnegra@gmail.com /jornal-nuvem-negra

REUNIÕES SEMANAIS

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c o r p o s

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Um convite à Afrocentricidade Esteban Cipriano* Muitas vezes nos questionamos, sofremos e vivemos conflitos sobre quem somos, ficamos com a alma aflita e o coração apertado, permanecemos com o corpo pesado e perdemos o senso de direção. Um momento em que quase nada faz sentido e nos fazemos diversas perguntas. De onde viemos? Por que temos este nome? Qual é a origem da nossa família? São questões frequentes sobre nossa história, pois sabemos muito pouco sobre ela. Nos chamam de Maria, Manuel, João, todos nomes europeus, mesmo que eu seja negro, tenha a pele escura e o cabelo crespo. Dizemos ou pensamos em algum momento que não gostamos da cor da nossa pele e de nosso cabelo, nos perguntando: por que a vida é assim? Nossos sobrenomes são Silva, Santos, Souza e nossas famílias negras não sabem explicar por que temos esses sobrenomes e o que se esconde por detrás deles. Como um quebra-cabeça, sempre inventam um português branco por parte de pai ou de mãe que ninguém nunca conheceu. Parte da história sobre nosso passado, do sentido e da direção, foi apagada e esquecida. Na colonização europeia das Américas, apagar o nome do africano era parte do próprio processo de dominação. Buscavase assim, despersonalizar e dessocializar nosso povo para sua inserção como escravizados na sociedade colonial. Já o sobrenome europeu era utilizado para indicar que nós éramos propriedade de um determinado escravocrata. Contudo, mesmo com o holocausto negro, como estratégia de libertação psíquica, muitos de nós preservamos nossos nomes africanos no interior de nossas comunidades. Essa e outras estratégias de preservação foram o que nos garantiu hoje acessarmos nossa cultura ancestral, que nos mostra a verdade sobre nosso povo africano trazido a esse território. Violentados por diversos mecanismos pelo povo branco, tentaram extrair de nós a grandiosidade dos feitos negro-africanos na história da humanidade.

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Devido à constante luta pela emancipação intelectual e humana de mestres como W.E.B Dubois, Marcus Garvey, Cheik Anta Diop, Lélia Gonzalez, Ama Mazama, entre outros que se recusaram ficar às margens da mitologia branca, foi possível a proposta de uma mudança transformadora de paradigmas no mundo. Desse movimento pan-africano de unidade e de solidariedade entre os negros-africanos em todo o mundo, de tomar o protagonismo e colocar o povo negro como narrador de sua própria criação, que surge a Afrocentricidade.

ilustração: Wendel Anthuny

O que é Afrocentricidade? O termo “Afrocentricidade” foi cunhado pelo renomado professor e doutor Molefi Kete Assante, que a define como: “um tipo de pensamento, prática e perspectiva que percebe os africanos como sujeitos e agentes de fenômenos atuando sobre sua própria imagem cultural e de acordo com seus próprios interesses humanos”. Afrocentricidade é uma proposta inovadora que visa situar os sujeitos negros-africanos, para serem donos das suas próprias histórias e narrativas. Porém, é mais do que isso. A afrocentricidade vai provocar novas perguntas,

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aprimorar novos métodos, desenvolver novos campos de conhecimento e produzir novas visões de mundo. Visa articular valores e conceitos fundamentados nas sociedades africanas, isto é, do continente e da diáspora. É uma ciência, um conjunto de saberes, determinados a partir do marco teórico do sujeito africano e das sociedades africanas, enquanto território e localização política, psicológica, histórica, linguística, cultural e religiosa. Ser afrocêntrico é defender as pessoas, interesses e valores culturais africanos enquanto projeto humano em todos os assuntos e criações. É poder situar o holocausto negro diante de nossa história milenar como um curto período histórico que não define e encerra a existência dos negros-africanos no mundo. Por exemplo, é um arquiteto considerar diante da planta de uma casa ou apartamento a humanidade das empregadas domésticas, que em sua maioria são mulheres negras, que habitam cubículos desumanos chamados de “quartinho de empregada”. Isso pode ser aplicado a qualquer área do conhecimento. Ser afrocêntrico é descrever e reinterpretar todos os fenômenos apresentados como verdade. É descrever, cantar e pintar, todas as vezes que nos rebelamos e dominamos os navios negreiros, nossas experiências vitoriosas, é o compromisso com a nossa humanidade. Então, o que a Afrocentricidade tem de inovador, de revolucionário e tem como projeto é que os sujeitos negros-africanos assumam sua agência, o seu protagonismo dentro da história. O conceito de agência estabelecido por Asante é “a capacidade de dispor dos recursos psicológicos e culturais necessários para o avanço da liberdade humana”. A perspectiva afrocentrada busca a libertação humana contra toda a opressão seja qual for. Ela não é só uma ciência teórica, mas também uma ciência prática que permite a recondução, reatualização e investigação do passado propondo novos direcionamentos futuros, em harmonia e

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v o z concordância conosco, negros-africanos, nossas experiências e nosso patrimônio histórico e cultural. Nessa perspectiva, intelectuais como Molefi Asante, Ama Mazama, Nah Dove, Cleonora Hudson, Maulana Karenga, entre outros, vêm contribuindo de maneira significativa e magistral para o avanço dos estudos da Afrocentricidade. Nesse sentido, é evidente que a Afrocentricidade tem muito a contribuir com a Educação, uma vez que propõe repensar o mundo e as relações sociais através da agência e localização negro-africana. Vamos enegrecer nossos currículos nos sistemas de ensino, já que o desaparecimento de nossos saberes e intelectuais é uma das tentativas de nos eliminar. Foi necessário aos europeus, no Brasil e nas Américas, atacar a África de todas as formas. Colocaram-nos como inferiores, infantis, selvagens e sem história, pois sem desqualificar e deslegitimar nossos conhecimentos não seria possível manter a escravidão e o colonialismo. O conteúdo aprendido na escola e o currículo universitário são sempre um instrumento político e, por serem um instrumento político, nós não sabemos nada sobre a contribuição negro-africana na geometria, na astronomia, na medicina, na agricultura, na metalurgia, que foi muito anterior aos gregos. Há mais de 4.500 anos, os africanos já haviam concluído a construção das pirâmides do Egito Antigo, invenção criativa e sofisticada, com aposentos, túneis subterrâneos e câmaras, na qual se utilizaram da geometria, astronomia e medicina. Nessa época não existia Grécia nem Roma, a história Grega começa há 3.500 anos. Então, por que nossos currículos escolares e universitários começam com a história grega, ainda se baseiam na cultura ocidental e negam a negro-africana? Eu vos convido a esse desafio!

*Integrante do Coletivo Nuvem Negra e estudante de Serviço Social da PUC-Rio. Pesquisa políticas de ações afirmativas e Afrocentricidade.

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Intelectuais Negras e a arte de “desensinar” o machismo e o racismo dos currículos acadêmicos Giovana Xavier* “Então um dia Outras mulheres negras Das mesmas fileiras que nós Nos ensinaram que tudo que tínhamos aprendido Era uma grande farsa. Foi quando aprendemos a lutar.” Desensinamentos, de Jenyffer Nascimento.

Em maio de 2015, após participar de uma série de experiências educativas com Mulheres Negras e afetada pelas narrativas cotidianas de estudantes acerca do desconhecimento de autoras negras e da ausência de contato com docentes negras na universidade, senti-me fortalecida para atender a algo que hoje, olhando em retrospecto, compreendo como uma missão. Um chamado de ancestrais, donas de passos que vêm de longe. Foi assim que, ciente das relações entre conhecimento e espiritualidade, propus no Departamento de Didática da Faculdade de Educação da UFRJ, do qual sou professora adjunta de Ensino de História, a disciplina Intelectuais Negras: saberes transgressores, escritas de si e práticas educativas de mulheres negras. Após uma manhã de longos debates, a aprovação. O curso, uma proposta pedagógica de transgressão ao currículo hegemônico – branco, masculino, eurocêntrico – foi simultaneamente considerado por alguns ím-pares acadêmicos uma iniciativa pertinente para um projeto de extensão ao mesmo tempo em que inadequada para uma disciplina acadêmica. Tal simultaneidade, baseada nas hierarquias entre ensino, pesquisa e extensão, atualizou as reflexões de Eduardo Oliveira e Oliveira e Lélia Gonzalez, dois acadêmicos negros que, não por acaso, encontram-se à margem dos currículos hegemônicos de história do pensamento social e racial brasileiros.

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Duas obras da vasta produção destes intelectuais ativistas1, que pagaram com suas vidas o preço embutido no ato de transgredir, somadas à convivência com jovens negros em espaços universitários, nem sempre acolhedores, seguem decisivas para construção de respostas às seguintes perguntas: Como criar uma agenda acadêmica baseada em uma “ciência para o negro”? Como desenvolver práticas educativas que desestabilizem o “lugar de negro” construído historicamente pelas elites brancas e conservadoras? Intelectuais Negras representa uma das muitas respostas em curso em diversas universidades brasileiras para as perguntas acima. Seu sucesso deve-se tanto à originalidade e à pertinência da proposta curricular de ressiginificar o conceito de “intelectual” a partir das experiências negras quanto ao protagonismo estudantil, na apropriação e recriação das metodologias e no reconhecimento de que individual e coletivamente somos autoras e autores de nossas próprias histórias. Com base na produção de intelectuais como Claudia Pons, Conceição Evaristo, Cristiane Sobral, Elaine Marcelina, Elizabeth Espírito Santo, Ida Freire, Janete Ribeiro, Miriam Alves, Renata Felinto, para ficarmos com algumas, temos tornado possível a valorização de saberes negros comunitários, familiares, religiosos dentro da academia. Uma academia – não custa lembrar – definida em seu sentido hegemônico a partir da interpretação parcial da objetividade

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escrevivência

Corpos (in)desejáveis

ilustração: Bruna Souza + colagens / fotos: internet

Juan Telles*

como sinônimo de neutralidade. Esse acolhimento às identidades e vivências negras em detrimento do falso antagonismo objetividade x subjetividade traduz-se numa perspectiva – nos dizeres da artista plástica Rosana Paulino – de “refazimento” na sala de aula. Como primeira professora negra de muitos jovens do mesmo grupo racial que o meu, recordo-me com os olhos d’água de uma estudante narrando que após a disciplina passou a ler os textos de Conceição Evaristo em voz alta para sua avó, uma mulher negra iletrada. De um rapaz revelando que passou a enxergar suas irmãs, mães e vizinhas como intelectuais negras. De uma professora da educação básica que, anos afastada do meio universitário, decidiu participar das aulas como ouvinte. Findado o semestre, reencontramo-nos no teatro. Minutos antes de começar a peça O topo da montanha, ela me contou, com um sorriso e um olhar de cumplicidade, sobre sua aprovação para o doutorado. A despeito das ainda corriqueiras agruras e violências às quais jovens negras e negros são submetidos na universidade (escassez de bolsas, desqualificações de falas em sala de aula, preterimento em grupos de pesquisa etc.) existem

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muitas histórias de beleza e potência geradas pelo contato com a produção de Mulheres Negras. Ao escreviverem em seus textos a experiência de vida do negro pelo próprio negro, autoras como Azoilda Loretto da Trindade, Luiza Bairros, Virginia Leone Bicudo tornam-se referências para construção de respostas negras – autônomas e criativas – por parte destes sujeitos. Ao se identificarem com quem escreve o que leem, estudantes aprofundam a consciência racial sobre a importância que seus diplomas desempenharão para a população negra, em maioria distante dos bancos universitários. Em um país que professa por meio de políticas genocidas o ódio, a criminalização e a patologização da população negra, em especial das Mulheres, que ocupam a base de todos os indicadores sociais, a disciplina Intelectuais Negras aprimora a arte de desensinar o racismo e o machismo, contribuindo para que futuras e futuros antropólogos, arquitetos, advogados, biólogos, dentistas, historiadores da arte, professores afirmem com convicção: “Eu sou uma intelectual negra/o”. OLIVEIRA E OLIVEIRA, Eduardo. “De uma ciência “para” e não tanto “sobre” o negro”. Trabalho apresentado na 29a Reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, 1977. GONZALEZ, Lelia; HASENBALG, Carlos. Lugar de negro. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1982 1

*Professora da UFRJ, coordenadora do Grupo Intelectuais Negras.

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Sinto-me desautorizado a ir e vir, como alguém que também é parte, que integra o meio; como alguém que tem, sobretudo, o direito de transitar livremente por qualquer espaço. Tenho?! Sinto-me como uma ameaça. Sinto-me como um corpo que desarmoniza a ordem. Sinto-me como capaz de cometer as piores atrocidades contra os ditos humanos. Sinto-me como um delinquente. Sim, eles me dizem isso. Dizem o tempo todo! Olho para todos os lados e seus olhares me reprovam, suas bocas me condenam. Surjo na história como o causador do mal-estar na civilização. A sociedade sentencia: ‘‘Tenho uma essência má’’, ‘‘O lugar de onde eu venho não produz gente’’. Sim, eles me dizem isso! Triste, mas forçam-me a internalizar esses falsos discursos, a odiar os meus. Eles negam diariamente nossa existência. Violentam-nos a todo momento, nos matam! Não choram a nossa dor. Me expelem, não me permitem mostrar o que há de verdadeiro em mim; o que sou. Ainda assim, a cor da minha pele grita a minha verdadeira raiz, de onde vim. Sim, eu vim de lá! Sou força, sou resistência! Tiraram-me tudo, disseram que eu não era gente. Mas ainda assim, sinto-me potente. Apego-me a memórias carregadas de afeto passadas pelos meus ancestrais. Sim, o afeto, ele me ligou aos meus. Permitiu-nos amar e sermos amados, a emergir do não lugar que nos conferiram. Negro sou! E não há essência má em mim! O que há é uma falsa memória produzida sobre quem sou – sim, deram-me um outro eu –, que perpassa no imaginário social: a ideia do corpo negro, como o corpo que provoca a desarmonia social, que produz o caos, como o corpo suspeito, produtor de violências, o qual precisa ser contido, onde toda violência sofrida por ele é justificada. Definitivamente, esse não sou eu, mas eles! Nós não, mas eles são a ameaça!

*Integrante do Coletivo Nuvem Negra e estudante de Psicologia da PUC-Rio.

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Afrocentricidade e o Fundamentalismo Eurocêntrico Entrevista com Renato Noguera Renato Noguera, professor de filosofia na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), é pesquisador do Laboratório de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (Leafro) e do Laboratório de Práxis Filosófica da UFRRJ. O pensador é autor do livro “O ensino da filosofia e a Lei 10.639”, da obra infanto-juvenil “Era uma vez no Egito” e da coleção infantil “Nana & Nilo”. Na entrevista, o professor conta como a Afrocentricidade e a produção audiovisual podem ajudar no combate ao racismo. O que significa falar de Africa? Falar de África é sempre muito complexo. De que África estamos falando? Eu tenho um entendimento de África como paradigma cultural e não só como continente, mas como um conceito que revela uma pré-disposição civilizatória assim como o Ocidente. Quando a gente fala em Ocidente sem se preocupar em definir a localização geográfica dele que extravasa a Europa, o Ocidente não é só a Europa, é um paradigma cultural e um modo de subjetivação, uma maneira de pensar, se comportar e interagir com a realidade, e a África também. Nesse sentido, podemos pensar a África como uma categoria que não está inscrita só no registro analítico geográfico como um continente. O que falta nas universidades para que o continente africano seja discutido da mesma forma e com o mesmo valor que o europeu? Eu percebo que os cursos estão enredados por um fundamentalismo eurocêntrico. Eu tenho colegas intelectuais que têm desconhecimento disso, mas não é só desconhecimento, é uma zona de conforto. O cânone historicamente sempre foi eurocêntrico, por isso a gente precisa fazer uma desconstrução e ressignificação da história e da produção de conhecimento. Tem muitos autores e autoras que dão pistas para isso. Podemos ler o Black Atena, Diop, ler autores pan-africanistas e afro-centristas. O que eu penso que falta é ter mais intelectuais negros, negras e indígenas no espaço universitário, porque isso ajudaria bastante. Ainda que o sujeito social não seja o sujeito epistêmico. Não é só ser do sexo feminino, só ser negro, só ser indígena, isso não faz uma pessoa ter um recorte epistemológico que considere esse elemento. Não necessariamente pessoas negras fazem um recorte epistemológico afrocentrado ou têm uma perspectiva africana, a pessoa não tem

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uma obrigação em fazer isso. Mas, diante das disputas geopolíticas e em prol de uma sociedade mais plural e democrática, existe um grau de responsabilidade em diversificarmos a visão epistemológica. O que falta, às vezes, é a disposição das pessoas em se aventurar em novas possibilidades, mas ao mesmo tempo existe o racismo e o privilégio da branquidade. Qual é a importância da lei 10639 no ensino superior? Ela é para todos os níveis e modalidades de ensino. No ensino superior todos os cursos podem ser visitados, mas obrigatoriamente os que formam professores. Esse grupo precisa ter na sua agenda o debate sobre a diversidade étnico-racial. Para enriquecer o debate, ele não precisa ser somente multiculturalista e neocolonial, pode ser também afrocentrado e afroperspectivista, isso enriquece muito. Nós ganhamos muito quando conseguimos trazer outras epistemologias. Quando eu fazia universidade, eu era aquela coisa clássica, o único aluno negro da turma de mestrado, em 1996. São coisas que a gente acaba mudando, ainda estamos no processo de mudança, mas todo processo de transformação tem resistência. Nós estamos numa disputa. Dentro da academia a principal arma é o enriquecimento do debate. Mesmo os intelectuais que são mais

fundamentalistas e não gostam de discutir as relações étnico-raciais perdem, porque passam a não poder fortalecer seus argumentos e suas pesquisas. É fundamental sair da zona de conforto e a Afrocentricidade te tira desse lugar. A afrocentricidade ajuda a combater o racismo? Penso que sim, porque ela se propõe a fazer uma leitura de reorganização, localização e produção de agência negra. A Afrocentricidade é muito importante para enriquecer o debate, penso que ela provoca o deslocamento. Com toda crítica que possa ser feita de adesão ou objeção, ela nos ajuda a pensar, por exemplo, Kemet, nome do antigo Egito, recolocando-o de outra forma, em que conseguimos repensar o cenário da África e as relações que lá estavam. O Cheik Anta Diop é fundamentalmente alguém que faz um deslocamento epistemológico, uma recolocação dos temas, enegrece o debate e vai discutir o racismo como uma categoria estruturante e que não tem nada a ver com a relação interpessoal. Quais são os desafios para o resgate e fortalecimento da identidade negra? São muitos desafios. Eu penso que o audiovisual é um canal possível para debater e implementar isso. Não estou falando que isso é salvador, mas temos mais produções acadêmicas circulando do que outras produções. Um outro problema são as barreiras no setor. Como vamos fazer circular o audiovisual diante de uma indústria que não está totalmente consolidada no Brasil e talvez possa não estar aberta. É interessante a gente construir isso, ter filmes, novelas, séries, formar um público. Esse espaço é estratégico, em minha opinião. Por Leonne Gabriel, integrante do Coletivo Nuvem Negra e estudante de Jornalismo da PUC-Rio.

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EDIÇÃO #3 foto: divulgação manipulação: Bruna Souza


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foto: internet manipulação: Bruna Souza

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Abdias Nascimento, o griot do Quilombo contemporâneo Natany Luiz* Quando vamos revisitar a história do pensamento social brasileiro, deparamo-nos com nomes ditos clássicos como Gilberto Freyre, Oliveira Viana, Buarque de Holanda e outros brancos brasileiros. Suas obras procuram debater a formação nacional e o processo de construção da identidade do cidadão de nosso país, celebrando a harmônica mistura das diferentes etnias aqui presentes. E assim, são eles os cânones e as lentes pelas quais aprendemos sobre a narrativa política das relações raciais nos cursos de ciências sociais do Brasil. Nada é citado sobre o processo de estupro compulsivo das mulheres negras pelos brancos para povoar o país de indivíduos plenos de “morenidade”. E quando questionamos sobre essas outras narrativas, com autores negros pautando o mesmo tema, recebemos a resposta de que os mesmos não existem, não são conhecidos o suficiente e que nomes como Freyre “até são progressistas para sua época.” De fato, sabemos que essa é só mais uma desculpa do supremacismo branco acadêmico para manter sua posição e fechar os olhos para aqueles que denunciam as bases racistas em que nossa nação foi constituída e que os brancos patologizados pelo racismo, como diagnosticou Guerreiro Ramos, corroboram em seus escritos. Nós, estudantes negros, inconformados com essa outra face do racismo, que oblitera a possibilidade de conhecermos nossa história por nós mesmos, fazemos a caminhada paralelamente à jornada acadêmica para descolonizar o pensamento social brasileiro, e trazemos nossos intelectuais pretos, como Abdias Nascimento, para quebrar a lógica subalternizante do academicismo brasileiro. Em 1968, alvo de inúmeras investigações

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político-militares, Abdias acaba exilado pelo AI-5 (quinto decreto emitido pela ditadura militar e considerado o golpe mais severo do regime) em Nova Iorque. Lá, mergulha nas artes cênicas, plásticas e no mar do Pan-Africanismo – movimento político baseado na construção de uma unidade racia Este projeto teórico e prático denunciava também o racismo na educação e apresentava uma proposta de mudança educacional. Seguindo o 7˚ princípio do Quilombismo, “[...] A história da África, das culturas, das civilizações e das artes africanas terão um lugar eminente nos currículos escolares. Criar uma Universidade Afro-Brasileira é uma necessidade dentro do programa quilombista;. Essa proposta é fundamental para recriar as narrativas recorrentes sobre o povo negro, que só é retratado na historiografia comum como o sem história, sem produção, sem agência. Para conhecermos verdadeiramente nossa realização, é preciso orientar a educação a um currículo afrocêntrico, que tome a perspectiva negra sobre os fenômenos e história do mundo. Portanto, é preciso descolonizar o olhar eurocêntrico dos currículos escolares. Apesar de sua robusta atuação internacional como professor universitário, escritor e pensador social brasileiro, toda sua contribuição intelectual continua sendo negada nos currículos escolares e acadêmicos.

empreendida. O racismo e o genocídio tão denunciado por Abdias continua nos desumanizando. E é por isso que nosso griot nos é fonte de inspiração para que os quilombos que pulsam em nossos corações estejam sempre a postos para tomar de assalto e seguir à luta, rumo à real libertação e herança africana. Griot (pronúncia: “griô”): um personagem importante na estrutura social da maioria dos países da África Ocidental, cuja função primordial é a de informar, educar e entreter.

*Integrante do Coletivo Nuvem Negra e estudante de Relações Internacionais da PUC-Rio.

A implementação da Lei 10.639 que institui o ensino de história e cultura afro-brasileira não tem sido aplicada, o que faz com que a luta pelo direito de aprender a verdadeira história do nosso povo ainda seja

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Perfil racial dos professores da PUC-Rio: Alguém viu algum negro por aí?

Há, na PUC-Rio, 1985 professores, destes, apenas 86 são negros. Os dados são de 2016 e gerados pelo Sistema de Gerência Universitária (SGU), e nos mostram que professores negros e negras representam apenas 4,3% do corpo docente, sendo 1,6% de mulheres negras e 3,2% de homens negros. No ritmo que está, e baseado na média de crescimento anual dos últimos 10 anos, a PUC- Rio só igualaria o número de professores brancos e negros no ano de 2136. Ou seja, a estimativa é que mais de 100 anos serão necessários para que o corpo docente retrate a real proporção racial do país, uma população composta por 51% de negras/os. A pesquisa pelos dados resulta da campanha “Quantas/os professora/es negras/ os tem na PUC?”, lançada pelo Coletivo Nuvem Negra no primeiro número do jornal. Intrigados com a falta de professores e professoras negras nos cursos da graduação e pós-graduação, iniciamos a campanha com o intuito de registrar a dinâmica racial do corpo docente. Nesse sentido, pretendíamos gerar uma reflexão sobre os efeitos perversos da falta de representatividade negra na docência e no desenvolvimento de pesquisas acadêmicas. Ressaltamos que estes questionamentos são compartilhados por estudantes e organizações negras de todo o Brasil. Em 2015, a Universidade Federal de Juiz de Fora – MG lançou a campanha ‘‘Quantos professores negros você tem?’’ (inspiração para o título de nossa campanha) que viralizou na internet e levantou amplo debate sobre a ausência de professores e professoras negras.

É nítido o avanço e as conquistas após a implementação das políticas de ações afirmativas para o acesso de negras e negros no ensino superior. Elas trouxeram um duplo reconhecimento para a relação entre a educação e a questão racial no Brasil: de um lado, foi reconhecida uma falta maior de oportunidade para a população negra e pobre de ingressar na universidade, resultado da escravidão, do racismo e de contextos diversos como a condição social e a educação básica precária; por outro lado, o reconhecimento da necessidade de reparar os efeitos dessa precarização na sua condição racial-social, que 94% DOS PROFESSORES DA PUC-RIO produz mecanismos que retiram negras/ SÃO os dos espaços deBRANCOS poder e de produção de saber. Nós negras/os, permanecemos em uma estrutura acadêmica “branco-cêntrica” (Lourenço Cardoso, 2014), elitista e que, portanto, naturaliza a brancura de seu corpo docente e seu respectivo projeto político pedagógico. O universo acadêmico certamente é um dos espaços que mais marcam o caráter segregador de nossa sociedade. N e l e p e rce b e m o s o p ro ce ss o d e

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SÃO BRANCOS

1.985

professores brancos

1.860

professores negros

86

professores amarelos

10

professores indígenas

1 28

Q U A N T I TAT I V O D E P R O F E S S O R E S

B R A N C O S N A

94% DOS PROFESSORES DA PUC-RIO

P U C - R I O

total de professores

não declarados

NEGROS NO ANO DE

QUADRO DE PROFESSORES D A

manutenção dos privilégios da supremacia branca e, que ainda como tal, estabelece como norma homens em detrimento de mulheres, especialmente mulheres negras. Neste sentido, apontamos isso como uma das causas do completo desinteresse ou, pelo menos, a falta de problematização de não possuir colegas de profissão negras/ os. Conforme José Jorge de Carvalho, professor do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília (UNB), ‘‘a segregação racial no meio universitário jamais foi imposta no Brasil legalmente, mas BASEADO NO sua prática concreta tem sido a realidade DOS do nosso PERCENTUAL mundo acadêmico’’. Em outras palavras, queremos que o “confiÚLTIMOS DEZ ressaltar ANOS namento racial acadêmico” que vivenciam A P Ubrancas/os C - R I O e negras/os na professoras/es PUC-Rio expressaS Ó uma realidade do ensino superior brasileiro. De com levantaIGUALA R acordo IA mento realizado pelo Instituto Nacional de NÚMERO Educacionais DE Estudos eOPesquisas Anísio Teixeira (Inep), do total de 383.683 docenPROFESSORES tes de instituições de ensino superior púBRANCOS blicas e particulares do país, apenas 5.154 E se declararam negras/os, o que representa FONTE: Sistema de Gerência Universitária, 2016.

“A academia não é um lugar neutro, tampouco simplesmente um espaço de conhecimento e de sabedoria, da ciência e erudição, mas também é um espaço de violência.” Grada Kilomba

E

N E G R O S

P U C - R I O

A PUC-RIO TEM

4 0 V E Z E S M A I S Q U A D R O D E PHOMENS ROFESSORES PROFESSORES B

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professores negros

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IGUALARIA

u n i v e r s i d a d e

O NÚMERO DE PROFESSORES

BRANCOS

FONTE: Sistema de Gerência Universitária, 2016.

B A S E A ED O N O

NEGROS

PERCENTUAL DOS ÚLTIMOS DEZ NO AN O ANOS DE

2136

A PUC-RIO SÓ

IGUALARIA O NÚMERO DE PROFESSORES

BRANCOS E

NEGROS

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Infográfico: Henrique Almeida

1,34%. A Universidade de São Paulo (USP) e após longo debate, fazendo da PUC-Rio BASEADO NO Universidade Federal do Rio Janeiro (UFRJ), uma precursora de políticas afirmativas. por exemplo, são instituições emPUC-RIO que a proFazemos estaPERCENTUAL memória, com DOSa finalidade 94% DOS PROFESSORES DA PROFESSORES DA PUC-RIO porção de professoras/es negras/os 94% não DOS de convidá-la a enfrentar e transformar ÚLTIMOS DEZ ANOS SÃO BRANCOS SÃO BRANCOS passa de 0,2%, segundo Jorge de Carvalho, esta realidade e, deste modo, tornar mais Q Uvez, A D Ruma O Duniversidade E P R O F E Sreferência, SORES que também é coordenador do Instituto uma A P U C R I O D A P U C R I O Nacional de Ciência e Tecnologia e Inclusão acerca de políticas de ações afirmativas. SÓ no Ensino Superior (INCT). Acreditamos que, conjuntamente, a partir da apresentação e problematização 1.985 total de professores IGUALARIA Este cenário grita nos nossos ouvidos: as/ deste diagnóstico, podemos pensar em os pesquisadoras/es, intelectuais, cientisprofessores brancos 1.860 mecanismos O para fazer daDE PUC-Rio um NÚMERO tas, artistas brancas/os continuam extreespaço plurirracial. professores negros 86 Que a brancura ofusmamente confortáveis com a segregação PROFESSORES cante de corpos e mentes cedam lugar a racial no meio acadêmico. Entretanto, é im- professores amarelos 10 uma paleta que irradie as múltiplas cores portante salientar que nós negras/os não BRANCOS de todoindígenas o universo. 1 professores estranhamos esta indiferença, pois o doE Nuvem Negra não declarados 28 mínio da branquitude nestas instituições é central à manutenção do poder político, econômico, social, cultural e simbólico NIO DFEE S S O R E S Q U A N T I TAT V OA DN E O PRO que exercem sobre negros e indígenas. É Qpor U Ameio DRO D E P R O F E S S O R E S de saberes e conhecimentos leB R A N C O S E N E G R O S QU F CE- SR SI OO R E S A P espaços U C - R I que O se define P U gitimados Dnestes o A D R O D E NP AR O que deve ser valorizado e o que se constiD A P U C - R I O tui enquanto um problema, bem como as 1.985 total de professores formas de resolvê-lo. Neste sentido, pas1.985 total de professores professores sados brancos 60 anos das críticas e denúncias de 1.860 Guerreiro Ramos (1957) ao espaço acadêprofessores brancos 1.860 professores negros mico, o branco,86continua desfrutando do ‘‘privilégio de ver o negro, sem por este úlprofessores negros 86 professores amarelos 10 timo ser visto’’.

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1 Raça/cor “parda”, “preto”, “branprofessores amarelos 10 Ao mobilizarmos a categoria de confinaco”, “amarelo” “e indígena” são os não declarados 28 mento racial acadêmico, temos o professores objeti- indígenas 1 29 689 57 1171 termos de classificação utilizados vo de visibilizar e denunciar a inexpressipelo IBGE, sendo “negros” o sonão declarados 28 va quantidade de professoras/es negras/ matório de professores que se auA PUC-RIO TEM todeclaram “pretos” e “pardos”. daI VPUC, como Qos U Adentro N T I TAT O DE P R Oum F E grande S S O R EimS O campo de informação Raça/ #quadrobranco 4 0 V E Z E S M A I S pedimento de sua própria missão em proB R A N C O S E N E G R O S A preenchimento P U C - R I O Tvoluntário EM #coletivonuvemnegra Cor, de pagar ‘‘o pluralismo e o debate democráQ U A N T I TAT I V O D E P R O F E SHOMENS SORES PROFESSORES N A P U C - R I O consta dos formulários de 4 0 V E Z E S M admisA I S tico, objetivando, sobretudo, a reflexão, o A N CBO R O SS B R S EA N NE GCR O são na PUC-Rio para funcionários, crescimento e enriquecimento da sociePROFESSORES HOMENS N A P U C - R I O professores e alunos, desde 1998. DO QUE PROFESSORAS dade’’, como está no próprio site da PUC. B R A N C O S m Todos os dados referem-se apeImportante destacar que esta problemátiprofessores Dnas O aQ U E P R Ofonte F E SPUC-Rio, S O R Ao S ca reflete o retrato de universo acadêmico que exclui contratados por projehistoricamente segregador e produtor de tos, convênios e terceirizados. desigualdades raciais. m Total geral refere-se à soma das Diante disso, relembramos que em 1994, cinco classificações de “Raça/Cor” a instituição compreendeu a importâne os não declarados, inclui-se procia das reivindicações do movimento fessores ativos e afastados. negro, em especial os movimentos de Fonte: Sistema de Gerência 29 689 57 1171 pré-vestibulares para negros e carentes, Universitária (SGU)

professores indígenas

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2017 #quadrobranco #coletivonuvemnegra

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FONTE: Sistema de Gerência Universitária, 2016.

FONTE: Sistema de Gerên

A PUC-RIO


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O que a autodeclaração pode dizer sobre nossa realidade social e institucional? Thula Pires* O critério da autodeclaração é utilizado nos levantamentos censitários no Brasil e consolidado como mecanismo de identificação não apenas em termos étnico-raciais, mas também de gênero, religião, sexualidade, entre outros. A despeito da sua utilização na produção de dados oficiais interna e internacionalmente (Convenção 169 OIT, por exemplo), a autodeclaração passou a ser amplamente debatida nos espaços públicos quando da adoção das políticas de ação afirmativa de corte étnico-racial nas universidades e no serviço público. Tendo em vista que se está diante de políticas públicas que objetivam dispensar um tratamento diferenciado a determinados grupos em situação histórica de vulnerabilidade estrutural, é necessário que o critério de definição desses grupos os implique diretamente e não sejam reproduzidas práticas de cooptação que os mantenham na invisibilidade e silenciados. No âmbito da fruição de direitos e de acesso a políticas públicas, funciona como possibilidade de ser reconhecido nos seus próprios termos, abrindo espaço para confrontar classificações que operam no sentido da manutenção da violência sobre determinados grupos, tradicionalmente encobertas nas noções de neutralidade e objetividade. Trata-se de mecanismo especialmente adequado para aferir condições sociais e politicamente construídas, incapazes de serem apreciadas por critérios biologizantes e fixos. Direcionando nosso argumento para as implicações da autodeclaração no âmbito das classificações raciais, podemos afirmar sua especial validade para lidar com as dinâmicas do racismo que por aqui se manifesta, definido por Lélia Gonzalez (1988) como sendo um racismo por denegação. Diante da complexidade dos códigos sociais pelos quais o racismo opera, a autodeclaração permite pôr em questão as estruturas que (re)produzem os lugares sociais racialmente definidos,

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as divisões raciais do trabalho, a docilização, a infantilização e desumanização imposta aos corpos negros. A defesa do referido critério para informar políticas de identidade, tem por objetivo fomentar o desenvolvimento de autoestima individual e coletiva, a constituição de uma identidade política, a legitimação e valoração de elementos simbólicos e materiais capazes de conformar uma unidade específica de um grupo racial, respeitadas as complexidades internas que decorrem da imbricação com outras variáveis como gênero, classe, sexualidade, pertença religiosa, idade, deficiência, etc. Apesar de muito atrelada a políticas de identidade, defende-se que a autodeclaração pode revelar outros aspectos sobre a dinâmica das relações sociais, estruturas de poder e funcionamento das instituições. Conforme Patricia Hill Collins (2016, p. 102): a “autodefinição envolve desafiar o processo de validação do conhecimento político que resultou em imagens estereotipadas externamente”. Afirmar o poder de definir a si mesmo implica colocar em suspeição as imagens construídas por aqueles que se arrogam a autoridade de descrever e analisar o que consideram como outro. Para além disso, ao confrontar o sujeito que se autodeclara com a imagem que faz de si mesmo, possibilita a elaboração crítica de um novo lugar, a partir dos aspectos fenotípicos, culturais, sociais e das estruturas de poder (racismo, sexismo, heteronormatividade, etc.) que interpelam sua experiência. Entender a classificação racial como construção social e política corresponde a não considerá-la como realidade ontológica. Autodeclarar-se corresponde a um permanente e complexo vir a ser. Nesse sentido, tornar-se negro, no contexto brasileiro, implica na tomada de “consciência do processo ideológico que, através de um

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discurso mítico acerca de si, engendra uma estrutura de desconhecimento que o aprisiona numa imagem alienada, na qual se reconhece” (SOUSA, p. 77). Em outras palavras, assumir a definição sobre si mesmo como negra ou negro é um ato eminentemente político de construir uma identidade que rompe com o ideal de branqueamento que constitui o racismo e o sistema de privilégios que ele engendra. É tomar consciência de novas possibilidades de existir e estar no mundo. É desafiar o modelo de dominação de matriz colonial-escravista e suas estruturas. É assumir uma consciência engajada na experiência (FANON, 2008, p.121), comprometida com a imbricação entre as lutas antirracista, feminista, contra a heterossexualidade compulsória, a mercantilização da vida e da natureza, e qualquer outra forma de dominação e opressão. REFERÊNCIAS CONSULTADAS PELA AUTORA: FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008. GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de Amefricanidade. In Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, nº 92/93 (jan./jun.), 1988, p 69-82. COLLINS, Patricia Hill. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. In Revista Sociedade e Estado. Volume 31, número 1. (jan./abr.), 2016, p. 99-127. SOUSA, Neusa Santos. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Graal, 1983.

*Professora do Departamento de Direito da PUC-Rio.

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Estudantes negras e negros: rumo à pós-graduação Coletivo Negro Carolina de Jesus* Após a realização do Encontro de Estudantes e Coletivos Universitários Negros (EECUN), e de uma ocupação comprometida com a assistência estudantil e implementação das cotas na tríplice universitária (ensino, pesquisa e extensão), nós do Coletivo Negro Carolina de Jesus deliberamos no dia 8 de dezembro de 2016 a última missão do ano. O Reitor Roberto Leher não cumpriu sua promessa referente à recomendação das cotas na pós graduação, via conselho universitário (CONSUNI), passados seis meses de seu pronunciamento - ocorrido em contexto de assembleia da ocupação no IFCS. Para nós, não havia a possibilidade de encerrar o ano com esse posicionamento híbrido da atual gestão da reitoria. Elegemos o antepenúltimo CONSUNI do ano para ser o momento do acerto. Às 9h30, na sala de sessões do conselho universitário, gabinete do reitor, Cidade Universitária, Rio de Janeiro, a estudante e membro do Coletivo Negro Carolina de Jesus, Caroline Amanda Borges iniciou sua fala: “Quero começar a minha fala lembrando as mais de duas dezenas de mortes na Cidade de Deus no dia vinte de novembro. Para além de todas as resistências que têm sido cravadas e travadas no cenário nacional, e muito foi lembrado aqui o dia vinte e nove lá em Brasília, é importante dizer que nós, estudantes negras e negros, traçamos essa luta in loco nos territórios em que moramos, vivenciando e experimentando uma política genocida que está em curso e que tem uma seletividade racial. É exatamente por isso que estamos aqui hoje. No dia vinte de novembro o recado do Estado racista brasileiro foi o assassinato de mais de vinte pessoas, isso do ponto de vista legal, do que foi informado formalmente na Cidade de Deus, e viemos fazer nesse cenário nacional uma reflexão e uma solicitação veemente à Reitoria dessa Universidade. Se, em escala nacional, o recado do Estado tem sido a morte, aqui dentro da Universidade Federal do Rio de Janeiro o recado da

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instituição também tem sido, de alguma maneira, o epistemicídio. Temos dito para o Prof. Roberto Leher da necessidade dessa Reitoria, na figura do CONSUNI, recomendar cotas na pós-graduação e cotas nos espaços de pesquisa e extensão”. A estudante ainda relembra o trágico, mas não ocasional, assassinato do estudante de Letras Diego Vieira Machado, no território da universidade, intercalando com o apontamento da falta de vontade política da gestão: “Nesse mesmo ano tem a possibilidade da Professora Yvonne Maggie, que é a professora que lutou muito contra as cotas, receber o título de emérita. Ou seja, a professora que luta contra as cotas pode receber um título de emérita e vamos passar batido de novo. Lembrando que a UFRJ foi a última universidade a aderir as cotas, com defesa dos dois lados, da direita e da esquerda contrária às cotas. Nós não somos um fenômeno, nós somos a regra da sociedade brasileira. Fenômeno é a minoritária de pessoas brancas que atuam nos melhores espaços desse país e nós continuamos nos espaços subalternos. Não tem fenômeno nisso. Isso é a regra da sociedade brasileira. E aí, viemos, nesse sentido, dizer que a oportunidade desta Reitoria é, diante de um cenário caótico, um cenário genocida, de garantir que aqui dentro continuemos vivos. Porque lá fora já é muita disputa de sobrevivência. Esperamos que aqui dentro seja menos pior. Melhor sabemos que nunca vai ser. Mas que seja menos pior. Então, diante desse cenário, se a Reitoria pode e quer, de fato, dar uma resposta ao cenário nacional, tem que começar pelos cotistas.” Em clima de notória tensão e desconforto, o reitor submete a proposta de recomendação de cotas na pós-graduação para votação no plenário do conselho. Apesar de um declarado boicote de alguns conselheiros, que se retirarem da sala para impedir a votação, entre abstenções e votos favoráveis a proposta é aprovada.

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Passados quatro meses desse passo vitorioso que demos em comunhão com a nossa ancestralidade, bem como com a velha guarda negra viva e ativa – de dentro e de fora daa universidade – a qual somos contemporâneos, e com os aliados, testemunhamos a fatídica cerimônia da outorga de título de professora emérita para Yvonne Maggie, no Dia Internacional de Combate ao Racismo e a Discriminação Racial (21/03/2017). Até o presente momento, dos mais de cem programas de pós-graduação da UFRJ, menos de duas dezenas adotaram a política de ações afirmativas. Como sustentáculo da supremacia branca, a universidade rearticula e sofistica a todo o momento estratégias para a manutenção de seu status quo. No entanto, isso não nos assusta! Já demos o recado. Conforme concluiu Caroline Amanda: “Um recado de que a Universidade Federal do Rio de Janeiro já não é aquela, que este centenário seja comemorado com vitórias concretas e que os cotistas sejam convidados para a festa e que tenham motivos para comemorar”.

*Caroline Amanda Lopes Borges Marcell Machado dos Santos Maria Clara de Almeida Camargo William Cunha Galdino O Coletivo Negro Carolina de Jesus nasceu no dia 21 de março de 2014, Dia Internacional de Combate ao Racismo e a Discriminação Racial, logo após o assassinato de Cláudia Ferreira, com o objetivo primordial de lutar pela permanência de estudantes negros e/ou cotistas no ambiente universitário.

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Racismo e o Departamento de Educação da PUC-Rio: a ausência de um currículo antirracista Lucas de Deus* “Celebro um ensino que permita as transgressões – um movimento contra as fronteiras e para além delas. É esse movimento que transforma a educação na prática da liberdade.” Bell Hooks O departamento de Educação da PUCRio é reconhecido e respeitado por desenvolver pesquisas que estejam preocupadas em problematizar educação e diferenças culturais. Isso, supostamente, dentro de uma perspectiva de multiculturalismo que, segundo Vera Candau (2008) – professora renomada neste departamento - “quer promover uma educação para o reconhecimento do ‘outro’, para o diálogo entre os diferentes grupos sociais e culturais [...], e é capaz de favorecer a construção de um projeto comum” [...]. Apesar disso, todo esse acúmulo teórico-metodológico tem se mostrado incapaz de fazê-los reconhecer o valor e a necessidade concreta de se elaborar, em seu curso de Pedagogia, uma base curricular comprometida com um projeto político pedagógico antirracista. Há uma resistência em efetivar a Lei 10.639/03 que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e dá suporte Às Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da História e Cultura AfroBrasileira e Africana, em todos os níveis educacionais (CNE, 2004).

negligência, invariavelmente, traduz-se em profissionais profundamente incapacitados em resolver e combater o racismo vivenciado por estudantes negras/os, bem como na proliferação de tantos outros profissionais que irão protagonizar as discriminações e preconceitos raciais. Não é possível promover uma educação que reconhece o valor do “outro” sem enfrentar o debate sobre relações raciais e racismo no Brasil. De acordo com Stuart Hall (2013), “o multiculturalismo refere-se às estratégias políticas adotadas para governar ou administrar problemas de diversidade e de multiplicidades gerados pelas sociedades multiculturais”. Nesse sentido, do mesmo modo que existem diversas sociedades multiculturais, há também, para o autor, uma variedade de multiculturalismos bastante diversos, discussão também apresentada por Candau (2008). Isso implica, por exemplo, a existência de modelos que têm como princípio o projeto assimilacionista, que visa à manutenção de poder pelo grupo hegemônico. Diante dessa multiplicidade de possibilidades, Hall enfatiza que a questão multicultural, ou seja, os desafios colocados

Diante disso, como formar pedagogas/ os, professoras/es que possam trabalhar efetivamente pela melhoria da qualidade do ensino – como descreve o site do departamento – com um currículo que não reflete acerca do processo de formação social do racismo na sociedade brasileira? Que não desenvolve uma reflexão crítica em sala de aula, sobre o racismo e seus impactos no processo de aprendizagem em negras/os no ambiente escolar? Essa

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por sociedades multiculturais e pluriétnicas, como a nossa, exige que pensemos formas novas, algo novo, para além dos discursos tradicionais. Nessa perspectiva, o autor coloca como condição a contestação sem trégua de cada forma de fechamento racial ou etnicamente excludente. Contudo, os parâmetros curriculares do Departamento de Educação vêm refletindo uma perspectiva multicultural inversa ao que vem pontuando Stuart Hall, e em desacordo com Candau, uma vez que não têm assumido o compromisso político-pedagógico de combater as diversas expressões do racismo, inviabilizando a construção de um projeto comum. Em outras palavras, não há uma reflexão desenvolvida dentro das salas de aula que esteja preocupada com mudanças no campo da educação que tencionem e rompam com uma ordem social racializada. Enegrecendo a reflexão: o “racismo epistêmico”, ou seja, a anulação da validade de conhecimentos e saberes não ocidentais e ocidentalizados (Renato Noguera, 2014) –, permanece orientando a concepção e construção dos seus currículos. Os referenciais epistemológicos, históricos, políticos, científicos e culturais não ocidentais continuam sendo recusados. Ao fazerem isso, o Departamento de Educação e os demais que continuam se negando a repensar seus currículos e elaborar uma educação antirracista e pluricultural, reiteram um modelo educacional que desqualifica a capacidade cognitiva da comunidade negra. Nas palavras de Sueli Carneiro (2005),

ilustração: Bruna Souza

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u n i v e r s i d a d e “não é possível desqualificar as formas de conhecimento dos povos dominados sem desqualificá-los também, individual e coletivamente, como sujeitos cognoscentes”. Não por acaso, não valorizam intelectuais pretas/os que pensem a educação de acordo com perspectivas negro-africanas e se negam a oferecer a disciplina Educação e Relações Étnico-raciais,

contrariando assim, o mínimo exigido pela LDB (citada no início do texto). O departamento de Educação de qualquer universidade tem um papel político central na sociedade. Por ele são formadas muitas pessoas que terão a responsabilidade de pensar os caminhos da educação, que estarão nas instituições educacionais e que,

por isso, têm muito a contribuir: ou para a manutenção de espaços extremamente racistas e que visam marginalizar e excluir negras/os; ou para uma “educação na prática da liberdade”.

*Integrante do Coletivo Nuvem Negra, cientista social formado pela PUC-Rio.

e s c r e v i v ê n c i a

Sem Falácias, há Histórias Ruth Gomes* Educar é doutrinar? É sustentar conceitos? É mantê-los a ponto de uma lavagem cerebral ser feita em uma sociedade? É negar a minha história e os meus antepassados? Fico a pensar que se a minha história não é dita, o meu hoje não existe. Então qual é o meu ontem, cujo hoje busca deturpar e generalizar? Criaram um faz de conta que prega a ausência de pensadores e pensadoras negras. Disseram que Carolina Maria de Jesus ‘‘definitivamente, não é literatura’’, literatura pra quem? quem determina? o branco? que historicamente nega a produção negra em todos os ambientes possíveis em que somos também fisicamente impedidos de circular? Desde o meu tempo de educação básica, vivencio experiências de conteúdos majoritariamente europeus, cujos assuntos envolvem apenas a Europa. Simplesmente lançam informações genéricas, já que na minha vivência escolar não acessava temáticas envolvendo intelectuais e pensadoras pretas, nem brasileiros, tampouco do continente africano. Dizem que autores negros não existiram, mas o que existe é a explícita ocultação dos dados e do pensamento dos meus. Como ignorar algo que é tão gritante na sociedade? Chimamanda fala do grande perigo de uma história única. Será a educação a maneira de desmascarar ideias cristalizadas? Como, se é neste campo onde mais

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encontramos racismo, preconceito e discriminação? Só pra te situar a contradição de nosso país: mais da metade dos brasileiros são pretos. Então qual o sentido de ignorar a maioria? Isso vem do passado colonialista, um ranço escravocrata estruturado e articulado nos primeiros anos desse país. O pior de tudo é que ele tem sido mantido até hoje por conta do racismo. Os desafios a serem enfrentados são muitos, o caminho é árduo, mas fizeram que aprovassem uma lei que assegura a inserção de conteúdos referentes à nossa história na escola. Mas e a aplicação desta lei? Digo que ainda não é garantida. Os cursos não discutem, debatem, tampouco buscam analisar a nossa questão. A Pedagogia – que deveria formar professores – diz que segue a teoria da educação, que é tão bela, mas quando embarcamos na realidade, tudo se mostra contraditório. Permanecerá a hegemonia dos conteúdos? Até quando, na escola, a África será tratada como local uniforme? O continente foi transformado num país cujas pessoas são todas da mesma cultura, sem especificidades. Na Europa – quer dizer França, Inglaterra, Itália – ali existem peculiaridades culturais. Mais da metade de filósofos, sociólogos, matemáticos e teóricos da educação estudados na academia são brancos, não me apresentam autores negros e indígenas. Essa omissão está presente em um local

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que deveria compartilhar diferentes ideias de conhecimento. Queria entender o porquê de mostrar só uma parcela, quando é a própria educação que teoriza seus conceitos em um ‘‘ensino plural e difuso’’. Não desejo aos meus futuros alunos essa versão doutrinária de educação, esse conceito de ensino para domesticar é tolo. O que a escola fez senão reforçar ainda mais o estereótipo dos negros? Fico na dúvida se seria a educação o campo de ampliação de ideias ou só mais um local de opressão. Inserir uma bibliografia que componha autores pretos é muito mais que tê-los nos livros, é, na verdade, fazer sentido a palavra representatividade. A não ser na minha família, nunca vivi um exemplo de representatividade. Nós precisamos representar e queremos ser representados de forma coerente, desejo que a imagem deturpada e naturalizada de nós pretas e pretos seja eliminada. A minha história há de ser minha, a minha luta agora terá sentido. Deixo de ser a sombra de alguma coisa e transformo os meus medos em coragem. Coragem esta de dizer: há histórias e não falácias. Saravá e Axé a todas e todos!

*Integrante do Coletivo Nuvem Negra e estudante de Pedagogia da PUC-Rio.

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c o r p o s

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Uma história libertadora Ezequias Teixeira* Pensar na história do Brasil é um desafio. Até mesmo para as pessoas mais conceituadas do ramo existe uma dificuldade em conceber os acontecimentos históricos a partir de múltiplas perspectivas e narrativas sobre um mesmo fato. Essa dificuldade revela-se ao analisarmos as abordagens que dizem respeito ao processo de abolição da escravatura e de seus desdobramentos. O famoso 13 de maio de 1888 tornou-se, por convenção imposta pelo Estado Brasileiro, o marco de uma atitude revolucionária tomada, ainda que tardiamente, pela compassiva nobreza, representada pela Princesa Isabel. Essa “divisão de águas”, no entanto, foi precedida por inúmeras insurgências, revoltas e mortes, sobretudo dos escravizados. A abolição não deve ser encarada como marco, mas sim como processo histórico, que se iniciou muitos anos antes da Lei Áurea. O início do século XIX foi marcado pela ascensão da Inglaterra como líder das relações comerciais marítimas. Entre os anos de 1806 e 1807, a elite inglesa acabou com o tráfico negreiro em seu império e um ano depois, a abolição da escravatura tornou-se marca de sua política externa. Esperem aí…Caros leitores, percebem que caímos mais uma vez na perspectiva europeia da contação dessa história? Que tal enegrecê-la? Flávio dos Santos Gomes, historiador negro e doutor em História Social, publicou, em 1995, o livro “Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro, século XIX”. No livro, o historiador mostra que as revoltas e os quilombos ruíam as estruturas daquela sociedade escravista desde o início do século XVII (período de consolidação da produção de açúcar e do uso da mão-de-obra escrava no

Brasil), mas conta também que existiram histórias de insurgências anteriores. O historiador destacou, em sua obra o Quilombo dos Palmares, que era formado por cerca de onze núcleos de povoamento e chegou a abrigar em torno de 20 mil quilombolas, em meados do século XVII, na atual região da Serra da Barriga em Alagoas. Os primeiros relatos do surgimento dos núcleos que formavam Palmares datam de 1605. O Quilombo é o principal símbolo da resistência negra, sobretudo graças a Dandara e Zumbi, os últimos líderes de guerra do quilombo, estruturado politicamente por Ganga Zumba, o primeiro líder. Ao longo de sua existência, os governos da elite daquela região enviaram aproximadamente 30 expedições militares para destruir Palmares. Em todas foram derrotados pelos quilombolas. Somente em 1694, por um ataque liderado por Domingos Jorge Velho, o quilombo dos Palmares foi destruído e seus líderes, mortos. Outro relato de insurgência foi o Quilombo Buraco do Tatu, situado na atual região de Itapuã, em Salvador, Bahia, que abrigava cerca de 200 quilombolas conhecidos por sua agricultura, pesca e por seus ataques estratégicos e roubos nas fazendas dos grandes agricultores baianos. Além disso, esse pequeno quilombo assustava muito a elite branca da época, devido à sua organização e à estruturação do seu próprio terreno, que era quase impossível de ser encontrado, pois seu percurso era lotado de armadilhas e caminhos falsos. O Buraco do Tatu surgiu em 1744

e resistiu até 1763, quando foi destruído e alguns de seus membros, presos. Outra revolta histórica que destaco ocorreu no Engenho de Santana, em Ilhéus. Cerca de 300 negros organizaram uma revolta contra os senhores do engenho. Fugiram para as matas, organizaram-se em quilombos e propuseram um acordo pacífico que os permitisse trabalhar naquelas terras para seu próprio sustento e comércio. Propuseram liberdade na escolha do “turno” de trabalho, entre outras coisas. Suas propostas foram aceitas no início, porém os organizadores das revoltas foram mortos pelos senhores quando retornaram, o que desestabilizou a organização. Muitos outros relatos de revoltas e insurgências permeiam a história anterior à abolição, como: a Revolta do povo Kalunga, em Goiás; a Revolta de Carrancas, em Minas Gerais, liderada por Ventura Mina; a Revolta do povo Haussá, na Bahia; a Revolta de Vassouras, no Rio de Janeiro, liderada por Manoel Congo; a Revolta dos Malês, com Luíza Mahin, na Bahia; entre muitas outras. As propostas das revoltas e dos quilombos sempre foram manter vivos os corpos negros, assim como suas identidades, conhecimentos, culturas e religiões. Como consequência de todos esses levantes, a elite branca brasileira foi obrigada a pensar sobre o seu sistema escravista e a perceber que seu fim era iminente. A batalha travada fisicamente pelos quilombos também eclodiu acadêmica e politicamente.

ilustração: Wendel Anthuny

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os oprimia, sob um sistema que apenas se adaptou, para lucrar mais em cima de seu trabalho e da manutenção das desigualdades. Nenhum tipo de política pública foi criado para integrar o povo negro à dita “República” brasileira. Pelo contrário, foram construídas leis que tinham o intuito de criminalizar e controlar os corpos pretos, como a criminalização da vadiagem, do samba e capoeira.

ilustração: Bruna Souza

Emancipacionistas, abolicionistas, escravistas e imigrantistas disputaram, por alguns anos, a resolução do problema dos negros escravizados no Brasil. Os primeiros propunham a extinção lenta e gradual da escravidão. Os segundos exigiam a libertação imediata dos escravizados. No entanto, os escravistas defendiam manter o sistema como ele era, ou ao menos uma indenização aos senhores proprietários, caso a abolição acontecesse. Os imigrantistas, por sua vez, propunham a tese do branqueamento, através da concessão de benefícios para que os imigrantes brancos vindos da Europa se estabelecessem e se multiplicassem no Brasil, enquanto os negros seriam levados de volta, ou morreriam “naturalmente”. Essa proposta, para eles, limparia o país do mal que os negros haviam trazido consigo. Nessa época, alguns abolicionistas negros letrados e influentes em suas áreas escreviam e faziam o possível para tratar, por meio da imprensa, sobre o tema da escravidão. O jornal “A Gazeta da Tarde”, sob a direção de Ferreira de Menezes e José do Patrocínio (ambos

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negros), denunciou a recorrência da reescravização de libertos e escravização de livres, que era crime na época do império. Outro easpaço do jornal foi destinado a divulgar pessoas negras da liberdade, como outros abolicionistas, além de em alguns folhetins serem incluídas situações detalhadas a respeito da vida dos escravizados, o que era desconhecido por alguns setores da sociedade. Tudo isso, somado a inúmeras divulgações artísticas contrárias à escravidão, foi aumentando a revolta de parte da população contra o sistema escravista. Outro intelectual, Luiz Gama, ex-escravo e proibido de frequentar a universidade por ser negro, aprendeu Direito como ouvinte e usou essa expertise para conseguir alforria para mais de quinhentos escravizados. Junato a ele, na mesma época, Machado de Assis escrevia para a elite branca, mostrando as faces sombrias da sociedade da época e das relações cruéis que os senhores tinham pra com os escravizados. Machado trazia à tona a miséria da alma daquela elite, mantendo sua percepção de seu lugar de escrita, enquanto negro. Após a Lei Áurea, nada foi oferecido aos negros libertos, nem moradia, alimento, saúde e elementos básicos para sobrevivência. Eles e elas (Nós!) foram jogados à própria sorte, obrigados a viver num país racista, regido pela mesma elite que

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Essa história é do povo negro. Do povo que, em sua maioria, continua fora das instituições de ensino superior do país. Do povo que vive nas regiões periféricas e que morre refém dos falhos sistemas de saúde oferecidos a ele. Da população que mais tem seus jovens assassinados todos os dias e que ainda tem suas religiões demonizadas. Do povo que não tem liberdade de lazer, que não tem seus saberes incluídos nas instituições educacionais. Do povo cuja própria história não é contada a partir de suas próprias narrativas. Comemorar o 13 de maio é perpetuar o reducionismo branco de um processo histórico que foi protagonizado por corpos negros durante séculos a uma mera assinatura de uma princesa. Por esse motivo, não comemoramos o dia da falsa abolição da escravatura e defendemos o dia 20 de novembro, data em que Zumbi dos Palmares retornou aos ancestrais, como data que marca luta permanente pela libertação real do povo negro. Fazemos desse, e de todos os outros, dias de reflexão e de memória dos nossos ancestrais, de nossa luta e de nossas conquistas. Quem conta a história tem o poder de escolher origens e de traçar trajetórias. Antes de mais nada, nossos saberes e narrativas precisam nos guiar àquilo que tanto sonhamos. Nós por nós.

*Integrante do Coletivo Nuvem Negra e estudante de Ciências Sociais da PUC-Rio.

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A condenação de Rafael Braga ou a sofisticação da forma colonial de punir pretos e pobres Ronilso Pacheco* Rafael Braga Vieira, jovem negro, morador da região do Complexo do Alemão, condenado a 11 anos de prisão por tráfico e associação ao tráfico, após ser preso em janeiro de 2016. Vamos falar da condenação do Rafael ou vamos falar de racismo? Falaremos de ambos, porque um não aconteceria da maneira que aconteceu sem que o outro estivesse inserido na sua construção, formulação e desenvolvimento. Quando a condenação por portar água sanitária e pinho sol, em 2013, parecia ter sido o emblemático exemplo do funcionamento violento, racista e criminalizador de pobres do sistema penal-judiciário, caçador de bodes expiatórios para mostrar a força da sua repressão, a condenação de agora coroa o roteiro de como toda a estrutura da seletividade penal racista funciona. Os únicos depoimentos aceitos foram os dos policiais. Como sempre, o “flagrante” de posse de drogas justifica qualquer tipo de atuação, seja qual for a maneira que os policiais a operem (seja com humilhação, surra e força excessiva). A desumanização que a figura do “traficante” evoca passa a legitimar toda incoerência e injustiça processual, toda a crueldade que o sistema impõe sobre o “acusado-culpado” e, obviamente, torna inexistente o efeito desta violência no seu contexto familiar. De 2013 até aqui, a mobilização pela liberdade do Rafael só fez crescer. Esforços diversos, artigos, manifestações, repercussão internacional. É claro que até a mobilização pelo Rafael também indica um pouco do nível da nossa segregação racial. Falar de mobilização por Rafael Braga é também falar das “mobilizações que mobilizam”

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e das mobilizações que lutam pelo reconhecimento e pela adesão. Com a condenação pela prisão de 2013, a Campanha Pela Liberdade de Rafael Braga, a primeira grande mobilização organizada para lutar pelo jovem negro, teve de disputar a necessidade de lembrar do Rafael em diversos “espaços de luta”. Em meio às mobilizações pelos detentos conhecidos como “os 23”, a maioria jovens ativistas e universitários, que foram presos também em manifestações, o nome de Rafael Braga foi engolido, sumiu, tornou-se periférico. Isso também quer dizer que as diversas prisões que reproduzem o caso do Rafael, isto é, “suspeitos” e até efetivamente inocentes, são presos e condenados como forma de o Estado mostrar serviço à sociedade que se sente insegura. Presos, sempre pretos e pobres, que formam uma massa de presos

provisórios que estão apodrecendo no sistema penitenciário única e exclusivamente porque não possuem as condições para pagar sua defesa, ou nem os meios e as instruções para que a família brigue por seus direitos e por um julgamento justo. A sentença de condenação do Rafael Braga proferida em abril reproduz racismo e criminalização da pobreza. O que o Juiz profere na sentença não tem coerência e o processo não deveria ter qualquer validade diante das muitas evidências, testemunhas e contraprovas que o mesmo juiz se recusou a levar em consideração. Provavelmente, foi a publicação da sentença da condenação e a quantidade de anos a que o Rafael foi condenado que inflou os atos de repúdio, manifestações e resistências. Não parece ser difícil deduzir o proposital desejo do Judiciário de mandar um recado para manifestantes, ativistas, mostrando sua indiferença a pressões populares. Não há como não saber do caso de Rafael Braga e da hostilidade à Justiça que o caso acabou por criar. A estrutura racista paira sobre o Judiciário, paira sobre a Polícia Militar, paira sobre todo o processo militarizado a qual um pobre e negro é submetido ao cair no sistema, não o de agora, mas o de sempre, nessa sofisticação do sistema repressor e de controle, que o sistema escravocrata criou e a elite racista mantém.

*Teólogo, escritor e integrante do Coletivo Nuvem Negra

EDIÇÃO #3


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