Pedal N.º20

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PRIMAVERA

2014

Gratuito

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Capa: Bráulio Amado

Pedal 20 2

Ilustração: Bráulio Amado

Vinte vezes dezasseis são 160 duplas que se desdobram em trezentas e vinte páginas de Jornal Pedal. Este é o Pedal Vinte que afirma duas dezenas de Pedal nas ruas deste e de outros países a documentar e investigar a ciclo revolução. Entra-se no ano três de Jornal Pedal com retratos de pessoas com pedal na alma que se estendem da música à política, do activismo popular à literatura, passando por bicicletas com história e ainda pela recuperação do significado das ciclo palavras. A acompanhar, há centauros que se estampam no papel, fotografias captadas pela invicta e na capital e ainda formas ilustradas dos que estão por trás das ciclo existências. Venham mais vinte!

NÚMERO VINTE – Primavera 2014 / Ficha Técnica: Director: Bráulio Amado ba@jornalpedal.com / Director Adjunto: Luís Gregório lg@jornalpedal.com / Editor: João Bentes jb@jornalpedal.com / Redacção: Joana Bértholo, Maílis Rodrigues, Tiago Carvalho / Capa: Bráulio Amado / Colaboraram nesta edição: Fotografia: Inês Nepomuceno, Manuel Lino, Michael Hugges, Ricardo Filho de Josefina / Ilustração: Ivo Amadeus Reis / Revisão: Helena César / Design e Direcção de Arte: Estúdio HHH / Comunicação: Helena César hc@jornalpedal.com / Publicidade: Carla Cantante cc@jornalpedal.com, Diogo da Cunha Matos dcm@jornalpedal.com tlm: 933514506 / Distribuição: Lisboa: Camisola Amarela Algarve: Bike Postal, Markko Bike Messenger. Porto: Roda Livre / Departamento Financeiro: Pedro Bustorff Ferreira / JORNAL PEDAL é uma marca registada / Morada: Travessa do Alecrim, 1, R/C - Sala 1 Tel: 933514506 e-mail: info@jornalpedal. com web: facebook.com/JornalPedal / jornalpedal.com / twitter.com/JornalPedal / Impressão: Empresa Gráfica Funchalense S.A. funchalense.pt | email: geral@egf.com. pt Tel. 219677450 Fax 219677459 / Tiragem: 5.000 exemplares / Depósito Legal: 340117/12 / O JORNAL PEDAL faz parte da Cooperativa POST postcoop.org / Jornal Pedal é uma publicação gratuita que não pode ser vendida.

Ilustração: Bráulio Amado

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retrato TEXTO: JOÃO BENTES

MARIA BICICLETA: "O LADO FEMININO DO CICLISMO URBANO"

FOTOGRAFIA: RICARDO FILHO DE JOSEFINA ricardofilhodejosefina.com

Maria Bicicleta é um trabalho documental de Laura Alves, jornalista, produtora de conteúdos e co-autora do livro "A Gloriosa Bicicleta - Compêndio de Costumes, Emoções e Desvarios em Duas Rodas", e de Vitorino Coragem, fotógrafo, jornalista e documentarista - composto por um site - mariabicicleta.com - baseado no testemunho de 20 mulheres que utilizam a bicicleta no seu dia-a-dia. Semanalmente, é publicada uma série de cinco imagens e textos, ao logo de 20 semanas. Segundo os autores, ambos ciclistas urbanos, "Maria Bicicleta tem como objectivo explorar e mostrar o lado feminino da bicicleta como sendo algo natural, emocional e, de certa forma, espiritual".

mariabicicleta.com (Fotografia: Vitorino Coragem)

BIKE.POP ENSINA A ANDAR DE BICICLETA E MECÂNICA SIMPLES

Já estão abertas as inscrições em vários cursos no bike.POP (Largo do Intendente, em Lisboa): "Aprender a andar de bicicleta", destinado a quem nunca andou de bicicleta ou não sabe andar e "Condução de bicicleta em meio urbano", aulas teóricas (nomeadamente sobre as alterações ao Código da Estrada aplicadas a velocípedes) e práticas para circular nas cidades com segurança e confiança. Há ainda mais dois cursos disponíveis ligados à "Mecânica Simples de Bicicleta", um dedicado aos "Travões e Mudanças" e outro sobre "Furos e Rodas". As inscrições são feitas através do site bookeo.com/bikepop e podem ser solicitadas mais informações através do 211547479 ou lisboa@bikepop.pt.

ELETRICICLISTA: UM ELECTRICISTA DE BICICLETA

Electricista qualificado, que chega mais rápido e pratica preços mais baixos, uma vez que não existem custos de despesas ligadas a manutenção e combustível. Não se pode querer mais. Ricardo Bernardo é o Eletriciclista, em Lisboa, que depois de algum tempo fora do país, voltou para Portugal. No regresso, a ideia surgiu perante as desmoralizadoras condições oferecidas na procura de emprego e enquanto fazia o trabalho no espaço da RCICLA, do Grémio e da Camisola Amarela. O início está a correr muito bem e não está colocada de parte a ideia de alargar o serviço a outras cidades do país. Para quem precisar, basta marcar o 960019917. facebook.com/pages/Eletrici clista/1445988112298273?ref=ts&fref=ts

Emanuel Bragança viveu no norte de França, mais especificamente, em Lille e o facto das bicicletas fazerem parte do quotidiano da cidade, deu-lhe uma vontade imensa de fazer o mesmo e tornar a bicicleta o meio de transporte de eleição. Queria uma bicicleta antiga e nas suas pesquisas, encontrou uma à venda na internet, por 30,00€. Como nos conta Emanuel, "era de um casal de idosos que pretendia vender, uma vez que só ocupava espaço". No encontro, o casal, sem saber, "apontava para a águia do símbolo e dizia que era alemã, do tempo da guerra". Curioso com estes comentários, foi investigar: "Pelo nome que tinha, M. Kint, verifiquei que a marca é Marcel Kint. Uma marca com história no mundo do ciclismo! Marcel Kint (1914-2002) foi um campeão do mundo de ciclismo, em 1938, e um dos ciclistas mais famosos na Bélgica. Depois de ver isto, não parei de estudar o que era esta bicicleta. Cheguei à conclusão de que Marcel Kint tinha fundado uma fábrica depois de ser atleta profissional, em Kortrijk, na Bélgica - a 15 km de Lille. Esta mesma fábrica ainda hoje existe pelas mãos do seu neto, Marniek. Decidi então que a queria restaurar! Que ficasse impecável!" Encontrou-se com Marniek, na fábrica, que hoje é também uma casa-museu - a obra de M.

Kint no mundo do desporto é reconhecida como património cultural daquela vila. "Depois de lhe explicar como o descobri, mostrei-lhe o quadro da minha bicicleta. O seu espanto foi tal quando viu aquele quadro, que identificou logo a bicicleta como uma das primeiras que o seu avô tinha construído (19501955)! Não hesitou em oferecer-me qualquer coisa por ela. Fiquei ainda com menos vontade de a largar!" A vontade de a restaurar e deixá-la impecável foi ainda maior. Ainda em França, contactou Tiago Baptista da Bike Check (em Telheiras) e quando chegou a Lisboa, pôs a Marcel Kint nas suas mãos. Tinha comprado já, na fábrica de Marniek, algumas peças iguais às originais, nomeadamente, pedais, travões, dínamo e os bonitos autocolantes. Optou, ainda, por um selim e punhos Brooks e levou todo o material e a bicicleta à Bike Check. Tiago pôs mãos à obra e fez o trabalho que costuma fazer na sua oficina quando se trata de um restauro: desmontou a bicicleta, mandou pintar o quadro - Emanuel optou pela cor azul (não deu para perceber qual a cor original, porque entretanto a M. Kint já tinha sido pintada pelos donos anteriores), limpou, lixou, recuperou e montou tudo de novo com as peças já restauradas ou novas, iguais às originais. A mão de obra e o restauro ficou em cerca de 170,00€ e a Marcel Kint do Emanuel está como nova, bonita, confortável e pronta para desfilar por aí.


PALAVRAS BEM OLEADAS 4

TEXTO: TIAGO CARVALHO ILUSTRAÇÃO: IVO AMADEUS REIS behance.net/amadeusdesign

Qualquer arte ou ofício exige o domínio de uma técnica; o que distingue então o virtuoso do perito ou do aprendiz são apenas diferentes graus de familiarização prática com certos instrumentos e de conhecimento acerca de uma teoria geral sobre o objecto dessa actividade. Aprender uma técnica é então conjugar as perícias teórica e prática e orientá-las para um mesmo propósito; pode ser algo que dura toda uma vida ou vários anos, mas exige uma dedicação constante e a manutenção propositada de hábitos que nos vão tornando mais experientes na arte ou ofício em questão. Esses hábitos não são forçosamente agradáveis ou recompensadores; confrontam-nos com as nossas dificuldades de aprendizagem e ilustram cabalmente os nossos limites físicos e espirituais; tornam-nos mais conscientes de, pelo menos, existir a combinação certa de esforço e talento necessários para tornar uma arte em algo que, visto de fora, parece ser quase natural. Devemo-nos então lembrar do segredo de que a excelência exige um sacrifício diário que deve ser e tem de ser cultivado quando esbarramos precisamente nos obstáculos e distrações que o domínio de qualquer arte ou ofício implicam. O mundo está e será cada vez mais sedutor e torna-se difícil fugirmos ao seu encanto quando a nossa dedicação a uma arte exige que nos retiremos dele para nos concentrarmos numa aprendizagem. Com a bicicleta o caso não é diferente. Quer sejamos ciclistas ou mecânicos, sabemos quão árduo é obedecer a essa musa. É mais fácil ficar na cama durante um fim-de-semana, no repouso merecido após uma semana de trabalho, do que levantarmo-nos para pedalar ao relento, castigados pelo frio e chuva, subindo encostas íngremes ou sofrendo ultrapassagens tangentes de automóveis; tal como pode ser algo frustrante tentarmos afinar o nos-

so próprio cubo traseiro, por exemplo, sujando as mãos de massa consistente para colocar as esferas nos copos depois de as termos limpado no petróleo; ou repetir o procedimento caso nos tenhamos enganado ligeiramente na colocação do comprimento do eixo que receberá os carretos. Só que existe uma recompensa evidente nestas actividades solitárias; adiar a gratificação imediata de estar numa noitada com uns amigos ou na cama com os cobertores acaba por nos dar um fruição pessoal que provém da sensação de nos termos superado. E contudo, o conforto rodeia-nos e rejeitá-lo momentaneamente para nos adestrarmos numa arte ou num ofício é algo que hoje se torna cada vez mais impossível, dada a falsa urgência com que as mensagens dos dispositivos electrónicos nos solicitam que nos juntemos com outros tantos ao próximo interessante e imperdível acontecimento... mas quanta satisfação não existe também na volúpia do cansaço após uma pedalada matinal? Quanto orgulho no facto de sabermos afinar com delicadeza e precisão o nosso próprio cubo e podermos falar disso a outrem? É então quando sentimos que o tempo, fugindo sempre por entre as nossas mãos foi, porém, e por breves instantes, detido naquelas horas e minutos em que nos dedicámos a pedalar ou a arranjar a bicicleta, perdidos nas sensações internas dos músculos e da respiração ou na minúcia e detalhes da máquina. Sempre me fez, por isso, alguma confusão a maneira como esta abordagem apaixonada que encontro em tantas pessoas que usam a bicicleta não tenha reflexo no modo como falam e escrevem acerca dos seus constituintes ou das suas actividades. As palavras são tudo o que temos. Dominá-las e usá-las para expor o que pensamos e sentimos e respeitá-las nesse processo é uma arte que nunca deveremos menosprezar. Esta minha impressão

será apenas e só minha, tanto quanto sei; porque gosto de palavras novas, de lhes saber a história, de lhes seguir o trajecto que percorreram em inúmeras bocas e livros desde a sua origem remota em décadas, séculos ou milénios antes de nós até hoje; gosto de atravessar os campos de batalha de uma aventura etimológica em que algumas pereceram ou se adaptaram aos novos objectos e relações que iam surgindo na vida dos povos; gosto pois de degustar, com o requinte de uma libação, a dança de sílabas desconhecidas no meu palato e lábios, de poder voltar a usá-las como quem as acorda de um sono imemorial, lançando-as aos outros com quem partilho a minha língua e agradeço que me façam o mesmo; gosto da sua música, das ligações que tecem com outros mundos, da maneira como um aumentativo ou diminutivo alteram a raíz, de como a forma ou som de um objecto permite a migração metafórica das palavras de um universo lexical para outro. Em suma, gosto de palavras desconhecidas com a curiosidade verdadeira que um biólogo tem ao descobrir um novo aspecto da rede entrelaçada e diversa que é a vida. O universo lexical da bicicleta é suficientemente rico para permitir sucessivas reapropriações e adaptações; a familiaridade com um dado objecto e actividades deveria, pois, permitir um trabalho de inquirição à nossa memória colectiva, um trabalho de recuperação e recriação dos termos outrora usados, aquando do surgimento da bicicleta em Portugal ou dos anos dourados do ciclismo de estrada e de pista. A própria bicicleta pouco mudou no seu funcionamento desde essas épocas; se diversos termos não são, de facto, usados pela população ciclista ou preteridos por outros, devo procurar as razões do meu espanto e desgosto em tendências sociológicas mais largas. É certo que o adven-



to da internet e de voos baratos internacionais tornou o turismo numa força capaz de reconfigurar a paisagem urbana. O inglês é a língua franca desta transformação do capitalismo e como tal, é expectável que as nossas cidades e as nossas vidas se vejam assaltadas por essa influência homogeneizante que tantas empresas, jornais e instituições adoptam sem qualquer crítica. É assustador verificarmos que um anúncio da televisão portuguesa dos anos 80 contém já uma distinguível dicção, mais fina, mais pura, como o narrador vozeia com um arrojo quase declamativo uma marca de manteiga e ver como na publicidade de agora o leque de palavras usadas é absurdamente mínimo. Reduzir o mundo da língua é reduzir o próprio mundo e a redução enquanto simplificação e substituição do nosso vocabulário prolonga o princípio insidioso de ter de ser feito com mais e maior eficácia. As palavras são tudo o que temos e devemos-lhe um respeito quase sagrado. É por tudo isto que fico com urticária cada vez que ouço ou leio amigos e conhecidos usarem expressões como "ride", "drop-out", "u-lock", "crank", "clips", "bag", "bottom bracket", "frame", "drops", etc.. O emprego destes termos, mesmo se inconsciente, é ingénuo e assinala um desleixo colectivo. Tais termos espalham-se como vírus, de hóspede para hóspede, na medida de outras alternativas não serem empregues e constituírem-se como opções no discurso; no limite, o seu uso torna-se tão habitual que se torna normalizado e o esquecimento da existência de alternativas não importadas é instituído. Outras vezes, o emprego de palavras em inglês é profundamente anti-equitativo porque pressupõe a sua universalidade como um dado adquirido, mesmo para lá de estruturas etárias mais jovens e que, precisamente por isso, estão em contacto com a influência anglo-saxónica presente nos computadores, filmes e música. O programa "Bike Buddy", da MUBi é, para lá dos seus méritos reconhecíveis, um exemplo claro de extrapolação irresponsável de termos banais de um universo lexical próprio de grupos urbanos para lá das suas fronteiras específicas. Os exemplos que se seguem não pretendem oferecer nenhum preceito; serão apenas uma demonstração de que existe um léxico próprio da bicicleta em português de Portugal e do Brasil; que a criatividade está sempre presente na criação e uso de novos termos e que a importação de termos anglo-saxónicos que se pratica não é nunca uma necessidade absoluta, mas o recurso de quem não aprofunda o seu próprio mundo; que o francês e o italiano foram também influências, e por razões históricas, mais legítimas; que muitas vezes os termos foram adoptados por importação de universos semelhantes ao da bicicleta, como aqueles característicos da arte equestre, da náutica ou da pesca (sabem os leitores que a Shimano também é fabricante de aprestos de pesca ao anzol?); e que o mesmo acontece noutros idiomas. Mesmo o European Cycling Lexicon, de 2011, publicado pela ECF (European Cyclists' Federation), consegue chamar "bolsa lateral" em português ao que em espanhol surge como la alforja. Muitos de nós também lhe chamariam alforge. É uma palavra de origem árabe comum aos países ibéricos e que designava uma bolsa dividida em dois compartimentos e que se podia colocar no dorso do cavalo ou do burrito. Claro que não havia bicicletas nessa época, mas isso não nos impede de ver como esta transposição é límpida e cristalina. Continuemos no universo equestre; que mais termos podem fazer a migração para a bicicleta? Eu, por exemplo, uso estribos metálicos na minha estradeira; e todos nós nos sentamos no selim, que deriva de sela; originalmente, sella é equivalente a uma cadeira ou um assento, do radical sed(i)-; cadeira, em italiano, é sieda; e também nós temos palavras dessa família, como sedimento e sede. Em Portugal, um coxim

é, segundo o dicionario Priberam uma "espécie de sofá sem costas", mas no Brasil ou noutras regiões da América Latina, pode também ser o selim. Continuando. Também o estafeta era originalmente um "portador de despachos, encomendas, cartas, que faz a entrega a cavalo"; hoje voam pelas ruas da cidade. E o Hunter, da Refood, porque não poderá ser ele considerado um almocreve, como aqueles comerciantes ambulantes que faziam viagens periódicas, montados em mulas, entre a serra e o mar, comercializando mantimentos e haveres ? Vamos para um exemplo que considero dos mais deliciosos: pedalamos uns bons quilómetros, ficamos sequiosos, bebemos um pouco da garrafa com água que trazemos no tudo diagonal; há quem lhe chame bidão, o que é um galicismo, sendo o original bidão. Seja. No México chamam-lhe anfora. Ânfora? Isso mesmo. Aquele vaso cerâmico especialmente usado para transportar líquidos e de gargalo estreito, nos tempos da Grécia e Roma antiga, migrou para os tempos modernos. Porque não usarmos nós "vasilha", por exemplo? Muitas vezes a adopção de um termo é inspirado na sua própria forma; já antes do aparecimento de bicicletas existiam alfaias agrícolas ou talheres: forquilha, fork (uk), fourche (fr), forcella (it); é demasiado óbvio porque chamamos então garfo ou forqueta à parte da bicicleta que se-

O UNIVERSO LEXICAL DA BICICLETA É SUFICIENTEMENTE RICO PARA PERMITIR SUCESSIVAS REAPROPRIAÇÕES E ADAPTAÇÕES; A FAMILIARIDADE COM UM DADO OBJECTO E ACTIVIDADES DEVERIA, POIS, PERMITIR UM TRABALHO DE INQUIRIÇÃO À NOSSA MEMÓRIA COLECTIVA…

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gura a roda dianteira; mas existem outros casos; o pedaleiro costuma ter mais do que um prato; a forma redonda é o comum às suas várias denominações e os dentes lembrarão a uns indivíduos mais umas formas circulares do que outras; no Brasil chama-se por vezes coroa; uma outra varia em países de língua castelhana é também estrela. Não há pois nenhuma razão para lhe chamarmos chain ring. E como não sorrir depois de sabermos que na gíria do BTT o prato mais pequeno recebe o apodo de avozinha? Talvez a minha favorita vá para a luz traseira colocada sob o selim: olho de gato, no português do Brasil, é sem dúvida uma homenagem à imaginação. A bicicleta usada nas etapas de contra-relógio eram apelidadas em Portugal de cabra: o seu guiador apontava para fora, quais pequenos chifres, e o seu quadro era rebaixado. Falando com mecânicos no Porto, aprendi que chamam pinhão à roda livre. Ao princípio pensei que tal se devia à semelhança visual que uma roda livre de várias velocidades (ou andamentos) teria,

se vista de cima, com uma pinha de pinheiro; mas depois soube que deriva porém do francês pignon, que significa, simultaneamente, pinha de pinheiro e roda dentada ou carreto, também usados na pesca. Qual terá estado na origem do termo em francês? Gosto mais do primeiro sentido. Creio que a natureza é, na sua profusão de formas, uma influência semântica bastante mais duradoura nos idiomas do que as máquinas, que aliás lhe emularam muito do seu funcionamento. Muitas vezes, também é o próprio som da bicicleta que é o motivo para um nome; no Brasil, o conjunto dos carretos, em cassete ou roda livre, podem também receber o nome de catraca… é só pegar uma na nossa mão e fazê-la rodar para ver porquê... catac... catrac... trac... trac... Voltando ao pedaleiro, um dos termos mais arreigados é crank. Se procurarmos por crenque no OLX, encontraremos dezenas de resultados; não há qualquer semelhança com possíveis encrencas que a bicicleta possa dar. Este braço pedaleiro não é mais do que uma biela accionada pelo pé, transmitindo a direcção da aplicação de força noutra direcção. Quando uma biela pode ser accionada manualmente, chamamos-lhe manivela; quando ouvi o Chicarini chamar-lhe pedivela, fiquei rendido. Ao que parece, e além do Brasil, é também usada em Itália, e só lhe podermos dar as boas-vindas aqui por ser verdadeiramente tão inteligível. Mas a imaginação não tem amarras. No Brasil também lhe chamam "Zé". Porque será? Não é afinal sempre "aqui o Zé", povinho ou não, que leva com o trabalho todo, com toda a porrada, enquanto os outros ficam de papo para o ar? E onde é que o ciclista aplica toda a sua força? Durante as minhas reflexões, considerei quase impossível haver uma tradução para o termo drop-out. O problema era precisamente não o traduzir, mas conhecer outros universos lexicais em que uma parte móvel pudesse ser aplicada ao termo de um qualquer objecto e proceder à migração justificada. O Chicarini acho que lhe chama patilha. Já ouvi também ponteira e gosto: "peça metálica na extremidade inferior das bengalas, do chapéu-de-sol e na bainha das armas brancas"; "extremidade postiça que têm algumas boquilhas de fumar". O meu precioso cadeado em U é outro exemplo de uma tradução à letra de u-lock,e que retira o nome da própria forma desses cadeados. Um dia deparei com o termo manilha, provindo da náutica e vi que foi apenas por acaso e incúria que ele não é mais usado para apelidar esses cadeados. Se duvidam, basta efectuarem uma pesquisa no vosso motor de busca favorito e maravilharem-se com o resultado. Depois é só soletrá-lo, com coragem, quando a ocasião o proporcionar e explicar com calma aos vossos amigos do que falam ao certo, até eles ficarem infectados com essa nova palavra e também ele começar a usá-la. Quando os aristocratas ingleses partiam para uma ride, geralmente iam a galope caçar raposas, acompanhados por matilhas de cães; ou simplesmente iam arejar, em cavalgadas, pelos campos fora. Tal como as nossas bicicletadas são ainda uma maneira airosa de relaxar e de um bando de biciados cultivar um ar mais leve e radioso; a raíz de pneu (pneumático, apneia) é, aliás, pneûma, um “designativo do espírito, sopro animador ou força criadora”. Pedalar é assim e antes de mais, uma maneira de aprendermos a respirar. Muito mais haveria a dizer. No presente estado de coisas, as fronteiras do nosso mundo retraem-se e são facilmente corrompidas pelas flutuações subtis que existem na linguagem, pela aceitabilidade acrítica de muitas expressões, pela preguiça que temos em criar novos significados para as palavras que já temos no nosso idioma. É um sinal de falência do nosso imaginário colectivo declarar não sabermos proceder a estas migrações de sentido e desatar a importá-las a eito, sem eira nem beira, só porque estão mais à mão ou na moda, espalhadas pelos ecrãs e pelos catálogos de lojas. Para quem pedala, há muitas maneiras de cair.


“JUNTOS PEDALAMOS POR UM CICLISMO MAIS FORTE” RUI COSTA

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O UIVO DO KOYOTE

BLAC KOYOTE

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TEXTO: MAÍLIS RODRIGUES FOTOGRAFIA: INÊS NEPOMUCENO inesnepomuceno.com

Dois anos e muitos dias de espera impaciente até ao novo trabalho de Blac Koyote, que regressa em Abril com novo álbum. Antes disso, presenteia-nos com um apetizer videográfico que já anda por aí."Quiet Ensemble" é um disco muito mais minimalista e soturno, nas palavras do próprio, “está um bocadinho mais negro, o trabalho está mais grave, tem menos melodias”. Que isto não o impeça de ser óptima inspiração para longos passeios de bicla, a combater a chuva e este céu cinzento, única companhia neste Inverno. O lançamento de "Quiet Ensemble" está previsto para Abril nos Maus Hábitos no Porto, ainda sem data. De resto, Blac Koyote vai estar em Junho (dia

14) na Sonoscopia, também no Porto e, em Agosto (dia 8), no Festival Boom. Quando em 2012, Blac Koyote apresentou o seu primeiro trabalho, o grande desafio era o de lançar-se pela primeira vez a solo. Desta vez, o processo foi todo ele mais pacífico e, por isso mesmo, mais solitário, “tem menos participações do pessoal de fora”. No outro álbum, tinha contado com um conjunto importante de músicos que remisturaram alguns dos seus temas. Este processo de cedência, é, confessa-nos, sempre muito tranquilo, “depois de tomar a decisão que isto acabou, crio logo uma relação de distanciamento muito grande em relação às músicas, senão perco o juízo. No caso das remisturas e das versões, a maior parte do pessoal que as fez, são pessoas que admiro musicalmente, então isso nunca foi um problema. Sempre que vem, vem um resultado interessante e desafiante e fora do que eu estava a contar a nível de interpretação.” Para "Quiet Ensemble", no entanto, as colaborações, se existirem, serão posteriores, como nos explica: “É


aquela coisa de tentar sempre inventar a roda e não repetir processos. Acho que naturalmente depois das coisas saírem deve haver gente interessada, ou pode surgir isso, mas não no mesmo formato”. Apesar disso, sente que é importante o aval das pessoas em quem confia musicalmente na altura em que finaliza o trabalho. “Nesta fase, não sou muito seguro com o meu trabalho, ou seja, tenho um grau de segurança mas preciso de alguma rede para depois me sentir à vontade para lançar as coisas. Na fase final, ou seja, antes mesmo de pôr o lacinho no embrulho, preciso de duas ou três pessoas em quem confio muito, preciso de sentir essa aprovação, é mais por descargo de consciência”. “Antes era assim”, o primeiro single, parte de uma versão de Naco, projecto de folk experimental de Miguel Ramos. “Ele tinha-me pedido, já há cerca de dois ou três anos, para fazer um remix de uma música. Mandou o disco todo e eu escolhi essa. Como não havia data para entrega, aquilo foi-se fazendo e quando dei por ela, já não era um remix, tinha ganho vida própria. Tornou-se uma música independente mas a maior parte dos sons utilizados são da música dele”. Para além de Blac Koyote, José Alberto Gomes participa em muitos outros projectos. O ano passado compôs a banda sonora da curta "Ínsua", estreada em Setembro no Porto. Desta colaboração nasceu a ideia de lançar a música de avanço do álbum em vídeo, “gostei muito de trabalhar com os realizadores e fiz-lhes a proposta de fazerem um vídeo. Comecei a trabalhar com eles e escolheram esta música. Antes de sair o disco sai o vídeo, um bocado para anunciar a coisa”. O disco tem também uma forte relação com a curta, o lado B do disco é todo ele inspirado nas músicas compostas para a curta. Não se considera metódico embora trabalhe regularmente na música, “trabalho regularmente porque sim, vou trabalhando mesmo sem saber que há disco, é nessa onda. Mas depois, para fechar as coisas, preciso de me disciplinar”. "Quiet Ensemble" foi um disco composto em duas fases distintas, “a “Antes era assim” e a “L'arbre des songes”, não foram feitas a pensar em nada. Foram músicas em que eu ainda estava na ressaca do primeiro disco e ainda não tinha nenhuma ideia de lançar este, mas fui começando a trabalhar. Foram músicas que demorei meses a fazer, não por estar todos os dias a trabalhar nelas, mas porque fui muito ao pormenor. Depois, sei lá, há meio ano comecei então a definir as linhas de um disco, de um álbum, perceber como é que isto pode funcionar tudo junto”. A decisão de fechar o disco é sempre acompanhada por questões pragmáticas “passado algum tempo, se não lanças alguma coisa, o projecto começa a perder um contacto com um público. Não é vergonha, é o que é”. E, um outro lado mais poético, como refere, do momento que cada coisa tem. “É um bocadinho o que me aconteceu com o primeiro disco. Eu nunca sinto que o disco está acabado, só que, se a certa altura, aquilo que andaste a fazer, aquilo que estás a gostar de trabalhar na altura, se não sai, então nunca mais deve sair, percebes? Passa o tempo. Não é que os discos não sejam preparados como um todo e como uma peça única mas se eu não lançasse isto agora, daqui a um ano já estava fora de prazo, já não me representava.” De um trabalho para o outro, refere que tenta sempre “aprender com as coisas que saíram menos bem, vou trabalhando um bocadinho por objectivos”. Neste disco, “sinto que houve uma evolução. Acho que o anterior não é um disco, é um conjunto de seis canções ou músicas completamente diferentes. E neste, eu queria trabalhar um bocadinho nisso, tornar um álbum. Este ainda não é um álbum único, mas, por exemplo, um dos lados do vinil, embora tenha três faixas separadas, funcionam como uma só. Acho que já consegui criar uma coerência maior de disco”. Musicalmente, temos um álbum muito mais minimalista, que se vai despindo das camadas que se sobrepunham no álbum anterior,

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"NUNCA TIVE UM CARRO A BUZINAR-ME, NUNCA TIVE UM CARRO A APERTAR ..."

“neste, eu queria fazer uma coisa minimalista, queria fazer um disco mais electrónico. Não que o outro não fosse, mas tinha mais instrumentos e tinha um som até mais orgânico, mesmo que fossem de origem electrónica. Neste queria trabalhar uma coisa mais introspectiva e mais electrónica nesse sentido. Tecnicamente também, achei que algumas coisas não estavam tão aprimoradas no outro, fui aprendendo e, neste, acho que trabalhei melhor nisso”. Talvez por isso é que "Quiet Ensemble" tenha sido um disco que foi amadurecendo ao vivo, “nos últimos concertos já só estou a tocar material novo e muito do material foi amadurecendo em concerto. Os concertos mudaram um bocadinho de formato. Antes tocava com músicos a acompanhar e agora estou a tocar ou sozinho, ou com o Covas, só electrónica, só os dois. Estava com receio que isso tornasse o concerto um bocadinho mais impessoal, mas não, as pessoas têm aderido bem. Tem corrido bem e foi também a partir desse feedback que fui começando a fechar os capítulos para o álbum”. Para além da música, a bicicleta faz parte do quotidiano de Blac Koyote. “A bicicleta com que ando agora é uma bicicleta de corrida e estou a adorar. É altamente! É mesmo fixe. Dá imenso gozo andar, embora, às vezes, seja um bocadinho perigoso andar na estrada com uma bicicleta daquelas, mas é mesmo porreiro. Na altura, comprei essa porque tinha uma pasteleira e esta de corrida era um complemento. Como entretanto me roubaram a outra, esta passou a ser a bicicleta do dia-a-dia e se comprasse agora uma bicicleta, o meu objectivo seria uma que fosse funcional para andar aqui à volta de casa e no meio da cidade”. No Porto, refere que os maiores problemas à circulação são as ruas com paralelos (aquelas feitas com blocos, nada agradáveis para pedalar), e ser “uma cidade com altos e baixos, pronto. Há cidades piores. Por outro lado, embora ainda não esteja muito bem preparada, especialmente ali na zona da baixa, ao contrário do que eu estava à espera, nunca tive problemas com carros. Nunca tive um carro a buzinar-me, nunca tive um carro a apertar, se calhar tive um ou outro, mas nada continuadamente. Tenho mais problemas com peões. E é muito raro andar pelo passeio, evito. Mas os peões vêem uma bicicleta e metem-se à frente. De resto sim, as ruas são relativamente estreitas, também não é muito fixe, mas acho que está a melhorar muito, vê-se cada vez mais pessoas a andar, não é muito complicado”.


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ONDJAKI

NASCEU EM LUANDA EM 1977. IDENTIFICA-SE COMO PROSADOR, MAS NÃO É RARO APARECER TAMBÉM COMO POETA. ALÉM DA ESTANTE CHEIA DE LIVROS, TAMBÉM CO-REALIZOU UM DOCUMENTÁRIO, "OXALÁ CRESÇAM PITANGAS", SOBRE A CIDADE DE LUANDA. LICENCIOU-SE EM LISBOA (SOCIOLOGIA) E DOUTOROU-SE EM ITÁLIA (ESTUDOS AFRICANOS). O SEU ÚLTIMO ROMANCE - "OS TRANSPARENTES" - VENCEU O ANO PASSADO O PRÉMIO JOSÉ SARAMAGO. MAS FOI "A BICICLETA QUE TINHA BIGODES" A SER CONSIDERADA A MELHOR OBRA DE 2012 PARA CRIANÇAS E JOVENS PELA FUNDAÇÃO NACIONAL DO LIVRO INFANTIL E JUVENIL BRASILEIRA. O MESMO LIVRO EM PORTUGAL RECEBEU O PRÉMIO BISSAYA BARRETO DE LITERATURA. ENTRE MUITOS OUTROS TÍTULOS PUBLICADOS DESTACAM-SE POR EXEMPLO "O ASSOBIADOR" (NOVELA), "BOM DIA CAMARADAS" E "QUANTAS MADRUGADAS TEM A NOITE" (ROMANCES) OU "DENTRO DE MIM FAZ SUL SEGUIDO DE ACTO SANGUÍNEO" (POESIA) - TODOS PUBLICADOS PELA EDITORIAL CAMINHO.

ENTREVISTA: JOANA BÉRTHOLO FOTOGRAFIA: MICHAEL HUGGES

ENTRE O RIO E LUANDA, COM PARÊNTESIS * EM LISBOA

Ondjaki, esta história é passada numa rua de um bairro em Angola onde vive um rapazinho entusiasmado por ganhar uma bicicleta. A Rádio Nacional lança um concurso que oferecerá uma bicicleta bem colorida à criança que apresente a melhor redacção. Na rua deste rapazinho vive um experienciado escritor, de quem ele espera poder obter alguma ajuda. Se o enredo é simples, e a motivação do miúdo bem clara (uma bicicleta…!), ainda assim este livro tece-se numa rede intrincada de amizades, deslumbramentos, descoberta de novas palavras, aquela luminosa inocência dos miúdos e personagens bem caricatas - como a Isaura. Enfim, quanto disto tudo nasce das tuas próprias vivências? Esta estória - no fundo - tem pouco de vivências minhas, digamos, pessoais, mas inspira-se em crianças que conheci, até na criança que fui e nesse desejo universal das crianças angolanas dos anos 80 de terem uma bicicleta. Depois, o resto fui misturando, porque coloquei a personagem "AvóDezanove" na rua do "tio Rui" e isso não é verdade, a Avó Agnette nunca morou na rua do escritor Manuel Rui. A Isaura vem de outro livro. E o resto aconteceu entre magia e escuridão. Aos poucos descobri que essa Isaura tinha uma relação forte com os bichos da rua tanto quanto os rapazes tinham com a possível bicicleta. Mas acho que o livro não é sobre ganhar a bicicleta. É sobre palavras, estórias, sonhos e amizade. Mas se foste um dia este menino, hoje estás mais próximo do personagem "tio Rui", escritor famoso que vive lá na rua. És um tio Rui sem bigodes, mas com textos traduzidos na "Julgoeslávia". Como é, ver assim o teu trabalho chegar a tantos lugares? Quem me dera ser um escritor como o "tio Rui"... Mas sim, tenho algumas traduções e, parece-me, sim, sou um escritor também. Tenho uma relação ainda de magia com as palavras e as estórias. Concordo com o Mia Couto quando ele diz que o escritor às vezes é uma espécie de Deus a escrever pessoas e a decidir o que vai acontecer com os personagens. Vejo a escrita como a actividade do barro, onde se pode moldar, corrigir, deixar secar e apresentar o trabalho ou esquecer tudo. No fundo, para mim, que ainda não me esqueço (não sei porquê...) que sou escritor angolano, é muito bonito ver um trabalho angolano chegar (por via da tradução) a outras culturas "internacionais". Faz-me sentir bem e faz-me sorrir por dentro. Como um segredo colectivo... Por falar em segredos, neste livro há também uma "caixa de letras", uma espécie de repositório de histórias. (Desculpa, estórias...!) Também tens uma assim onde vives? E, já agora, com tantos aeroportos, onde é que tu vives, afinal...? O que eu mais queria era ter essa "caixa mágica" onde se guardam restos de palavras e de sonhos... Talvez ela esteja em minha posse e eu não saiba disso. Talvez seja até bom que eu não saiba disso na minha cabeça de lógicas excessivas e duras. Talvez seja bom ter essa caixa apenas no coração das emoções. Eu vivo entre o infeliz hábito de espreitar o futuro e a saudade crónica de um passado já ido... Isso tem o seu preço. Assim como as deslocações... Às vezes, brinco, dizendo que vivo entre a fila 17 e a fila 21 de um Boeing 777. Moro no Rio de Janeiro. Tenho toda a família nuclear em Luanda. Tenho imensos amigos queridos em Lisboa. Cada aeroporto lembra-me os que ficam e os que vou ver. Se há dias em que isso corre bem, há dias em que a tristeza me invade como uma neblina espessa. E aí, só se pode esperar que tudo passe. Aeroportos... Partilhas connosco a tua opinião sobre uma possível relação entre os diferentes meios de transporte; entre os que usas, naturalmente (andas a pé? de autocarro? de táxi?) e a ins-


piração para escrever? Transparece que o lugar-aeroporto remete para uma imensa nostalgia. Bicicleta estaria associada a quê? Bem, (risos). Eu adoro bicicletas, mas no fundo sou uma pessoa pouco ecológica quanto a isso. Não tenho carro, o que já é bom. Uso autocarro e metro, no Rio, para me deslocar. A bicicleta, especificamente, para mim está associada directamente ao prazer. É isso que sinto ao andar de bicicleta, e no Rio há muitas bicicletas para alugar, podemos pegar num lugar e deixar num outro. Às vezes faço isso, ando pela orla, vejo o mar, sinto o vento. Uma vez, em Itália, em Como, fiz 70km num dia, e adorei. Acho portanto que associo bicicletas à infância e ao prazer...

* Esta conversa entre o Ondjaki e a Joana Bértholo teve lugar no canto inferior direito do ecrã de cada um dos respectivos computadores portáteis, em Janeiro de 2014.

Não sendo portanto um utilizador regular da bicicleta urbana consegues, no entanto, esboçar as principais diferenças entre o uso da bicicleta, em duas cidades tão intensas mas tão distintas como o Rio e Luanda? Em Luanda é muito difícil andar de bicicleta. Não tem o espaço próprio nem a cultura... E é uma cidade com o trânsito caótico, mas por isso mesmo seria bom experimentar-se isso. Mas não vejo as pessoas fazerem-no. Infelizmente. No Rio, começa a haver consciência de ser necessário criar espaços próprios, ciclovias, mas há uma enorme resistência por parte dos taxistas e dos condutores de autocarros. São até violentos para com os ciclistas... Penso que o tempo, o hábito e a formação cívica poderão alterar isso. Assim espero. A diferença, no fundo, é que o Rio quer isso. E em Luanda nunca ouvi falar disso como uma preocupação. Há, sim, cada vez mais pessoas a andar de moto. Mas eu também sei que viveste uns bons anos em Lisboa, num tempo em que a cultura ciclista urbana era quase inexistente, considerada uma miragem por uns poucos. Como é agora - porque também sei que nos visitas regularmente - mudou a tua percepção da cidade? Ou seja, isto de se ver cada vez mais bicicletas na estrada, a cada vez que voltas? Sim, houve uma altura em que senti isso, agora nos últimos talvez dois anos, sinto que estagnou, não vejo isso a aumentar a ritmo galopante. Mas nota-se no centro de Lisboa (e noutra cidades) uma tentativa de "dar espaço" aos ciclistas. Acho isso muito inovador e avançado. Para esta cidade, claro. Se pensarmos em Amesterdão é outra realidade. Mesmo a Suécia. Mas o futuro é respeitar os diversos meios de transporte, sobretudo sendo este tão ecológico. E possível. E que permite uma relação mais "limpa" com a cidade, a vários níveis, até sonoros. Nesta edição do Jornal Pedal focamo-nos no livro "A bicicleta que tinha bigodes", por motivos que parecem evidentes. Mas tu tens uma estante inteira de publicações, das mais diversas naturezas, incluindo um romance que arrebatou o prémio Saramago o ano passado. Fala-nos um pouco dos diferentes Ondjakis, ou dos diferentes livros, e imagina: para a leitura de qual dos teus livros recomendarias o uso de capacete? O capacete talvez seja mesmo aconselhável para a pessoa que for ler "Os transparentes". E, se recuar, um livro chamado "Quantas madrugadas tem a noite" também pode requerer algum cuidado. O resto não, é coisa suave, em torno de afectos e pessoas do mundo ou da fantasia. No caso da poesia, não sei... Penso que há dois projectos mais arejados e dois mais densos, mas no caso da poesia sempre penso ser bom ir sem capacete algum... Eu acho que sou vários. Nos dias e nas escritas e, portanto às vezes estou na poesia, outras nos livros infantis e, muitas outras, nos contos e livros que eu não quero que tenham idade... Gosto muito dos livros sem indicações, sem bula, desrotulados. Acho que é mais sério e sincero para com a literatura.

Neste livro, mais uma vez, encontramos a mão gráfica de António Jorge Gonçalves. Podes contar-nos um pouco sobre esta vossa parceria e os brindes que ele traz o hábito de plantar, de livro para livro, para os leitores mais atentos? Sinto uma grande alegria por poder colaborar com ele, e vice-versa... Ele começou por fazer todas as minhas capas (quando a editorial Caminho virou LEYA) e, a partir daí, nasceu o contacto e a amizade e a colaboração. Já tínhamos coisas pensadas para uma colaboração mais gráfica e o caso da "Escuridão bonita" revelou que isso era possível e frutífero. Tudo o que tenho a dizer é que me sinto agradecido, sinto-me bem com este encontro entre a minha escrita e a escrita dele. Porque ele está a escrever comigo quando desenha. Vejo nesse resultado um abraço. E um abraço é um quintal onde se podem pôr pessoas e sonhos. É muito isso, um abraço... Ondjaki, ficamo-nos então por esse abraço, quintal de pessoas e sonhos. Eu digo que lá há umas quantas bicicletas, mas deixo para cada um povoar o seu próprio quintal… Obrigada.

"A BICICLETA QUE TINHA BIGODES" de Ondjaki

ilustrações de António Jorge Gonçalves Editorial Caminho, 2011 "Fiquei um bocadinho ali sentado. Olhei para trás. Como tava tudo quase completamente escuro, consegui ver o cigarro na boca do tio Rui, a mão dele a coçar os bigodes. Ele devia estar a pensar. Fiquei com inveja. Quando eu penso não me saem estórias. Penso nos trabalhos de casa que não fiz, penso em preparar a mochila com os livros para o dia seguinte, e nos chocolates bons que encontrei algumas vezes na casa de alguém. Penso nessa coisa de a Isaura estar sempre a dar nomes aos bichos e saber do comportamento deles. Também penso nas coisas estranhas que a minha AvóDezanove diz. Às vezes ainda penso que talvez, um dia, se eu crescer e tiver bigode, e se coçar muito o bigode, eu vou conseguir escrever uma boa estória. Mas eu queria era ter bigodes agora para poder ganhar a bicicleta." (página 37)

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ANA PEREIRA É INSTRUTORA DE CONDUÇÃO, FORMADORA EM SEGURANÇA RODOVIÁRIA, CONSULTORA EM MOBILIDADE & TRANSPORTE EM BICICLETA E CO-FUNDADORA DA MUBI, ASSOCIAÇÃO PARA A MOBILIDADE URBANA EM BICICLETA. POUCAS SEMANAS DEPOIS DA APROVAÇÃO DO NOVO CÓDIGO DA ESTRADA, ENTREVISTAMO-LA PARA SABERMOS O QUE MUDARÁ NA VIDA DOS CICLISTAS URBANOS E O QUE AINDA FALTA FAZER PARA QUE POSSAMOS VIVER EM CIDADES MAIS CICLÁVEIS.

ANA PEREIRA

CO-FUNDADORA DA MUBi

(Associação para a Mobilidade Urbana em Bicicleta)

tem dinheiro para o carro ou para o passe ou que anda de bicicleta por preocupações ambientais. Não conhece o Código da Estrada ou ignora-o, não tem seguro e é um chico-esperto. Um ciclista é uma pessoa que usa um bem público sem pagar impostos para tal. E anda ali a “passear” ou a “treinar”, “empatando o trânsito” das pessoas que estão ali de carro a “trabalhar” ou, pelo menos, a ir para o trabalho. A MUBi acompanhou através de um grupo de trabalho as várias propostas de revisão do Código da Estrada. Como foi poder contactar com os deputados das várias forças políticas acerca de um documento tão fundamental? Foi motivador. Na última audição que fizémos, encontrámos um grupo bastante interessado neste tema e muito receptivo às reivindicações e respectivas justificações que apresentámos. O trabalho desenvolvido ao longo dos anos por tanta gente parece que teve bom resultado. Qual é a leitura que a aprovação do novo Código da Estrada vos merece? Há razões para que os direitos dos utilizadores de bicicleta em meio urbano estejam mais salvaguardados ou esta actualização ficou aquém das vossas expectativas? Ficámos agradavelmente surpreendidos com o resultado – embora não tenha ficado tudo perfeito, ou tudo feito, neste conjunto de alterações ao Código da Estrada. E foi um grande progresso. Mas um bom Código da Estrada é como um seguro, não evita o dano, simplesmente oferece maior probabilidade de sermos dele ressarcidos. A polémica associada às alterações, contudo, foi boa para dar visibilidade aos ciclistas e pôs as pessoas a discutir as leis.

ENTREVISTA: TIAGO CARVALHO FOTOGRAFIA: MANUEL LINO manuelino.com

Qual o balanço que a MUBi faz dos últimos anos no que toca à evolução da mobilidade suave em Portugal? O balanço é positivo, pelo menos para o modo bicicleta. O número e a diversidade de utilizadores tem aumentado, o uso da bicicleta ganhou presença regular nos media, já faz parte do discurso político e começa a chegar às empresas. Não há fórmulas mágicas para mudar mentalidades. Na vossa opinião, e apesar de alguns mitos que progressivamente se desfazem, quais são ainda os preconceitos contra quem usa diariamente a bicicleta na cidade? Caricaturizando: um ciclista é uma pessoa que não

Quais são as medidas complementares ao Código da Estrada que a MUBi defende para que a utilização da bicicleta como meio de transporte urbano possa afirmar-se definitivamente em Portugal? Temos que ter noção que os ciclistas não nascem nas árvores, um novo utilizador de bicicleta para determinada deslocação é um ex-utilizador de outro modo qualquer. A bicicleta vai ter que competir com outros modos e faz sentido que seja com os automóveis, cujo excesso é a origem de muitos dos problemas urbanos e não com o andar a pé e/ou de transporte público, que é o mais fácil, visto facilmente a bicicleta ser mais competitiva e apelativa do que andar a pé numa cidade como Lisboa. A afirmação da utilização da bicicleta como meio de transporte em Portugal depende de medidas deste género, de estabelecer maior equidade, como garantir condições práticas e seguras de parqueamento, acesso veicular a pontes e túneis, programas de formação, etc., mas nesta fase também tem que se investir em medidas de marketing, ou seja, melhorar a imagem pública da utilização da bicicleta e do utili-


zador de bicicleta, para que as reivindicações deste grupo sejam mais respeitadas e para que as pessoas adiram mais facilmente a este estilo de vida, sem medo de estigmas. E há que tomar medidas para reduzir os favorecimentos e subsídios à utilização de automóveis. Isso automaticamente tornará os modos activos e os transportes públicos mais atractivos e mais competitivos.

1. Princípio segundo o qual a vulnerabilidade dos vários modos de mobilidade é reconhecida através da responsabilização do utente do modo mais pesado e, por conseguinte, mais mortífero.

Uma das propostas da MUBi era reduzir a velocidade máxima em meio urbano para 30 km/h, exceptuando aquelas vias onde tal seja claramente injustificado. De facto, parece que muitas das avenidas em Lisboa se assemelham a vias rápidas ou auto-estradas. Acham esta proposta verosímil de ser implementada num futuro próximo? Essa medida nunca será eficaz sem intervenção nas infraestruturas, que permitem e convidam a velocidades muitas vezes bastante superiores aos 50 km/h da lei. Há muitas avenidas assim em Lisboa e essas terão que aguardar não só vontade política como orçamento, mas também há muitas outras onde a aplicação dos 30 km/h seria muito mais fácil e barata de implementar e, por isso, faz sentido continuar a reivindicá-lo, para que esse futuro chegue mais cedo. Perdeu-se uma oportunidade para implementar a Responsabilidade Objectiva1 em Portugal ou a figura dos “utilizadores vulneráveis” é um sucedâneo suficiente? A Responsabilidade Objectiva é um conceito fundamental para a protecção dos mais vulneráveis e, a exemplo de outros países europeus, deverá ser trabalhada mais ao nível do Código Civil do que do Código da Estrada. Apesar de ser um conceito que já existe de facto no Código Civil português, ainda há bastante latitude para a sua não aplicação por parte do juiz em tribunal. A MUBi defende que o conceito de Responsabilidade Objectiva seja melhor explicitado no Código Civil, porque ainda é relativamente raro a seu uso como regra geral, havendo, no entanto, casos de jurisprudência em Portugal em que o conceito já foi usado. Tão ou mais importante, também deverá ser legislado em Portugal formas de indemnização automática e rápida dos "utilizadores vulneráveis" por parte das seguradoras dos veículos motores (a exemplo da Lei de Badinter em França). Neste sentido, a figura dos “utilizadores vulneráveis” no Código da Estrada é um passo extremamente importante para que estes subsequentes passos sejam dados num futuro próximo. Acreditamos, no entanto, que o Código da Estada poderia ter ido mais longe na aplicação prática dos direitos dos “utilizadores vulneráveis”, nomeadamente porque continua a não reconhecer a 100% o direito dos condutores de bicicleta a decidirem a sua posição na via ou de decidirem livremente se optam pela estrada ou pela ciclovia. Pensam que as autoridades seguirão um princípio de proporcionalidade perante o risco que cada tipo de utilizador induz por um comportamento incorrecto? Ou pode haver uma focalização excessiva nos ciclistas devido à sua indisciplina natural? Pode haver uma focalização excessiva nos ciclistas, não devido à sua indisciplina natural, que é igual à dos automobilistas (todos humanos), mas simplesmente porque os comportamentos incorrectos dos condutores de veículos automóveis estão banalizados pelo seu número e frequência. Assim, é muito mais fácil implicar com a minoria, agora que é um tema “quente”. Neste sentido, na vossa opinião e apesar do novo Código da Estrada já vigorar, porque continuam vários utilizadores de bicicleta a preferir os passeios para circularem? Porque alterar o Código da Estrada não altera automaticamente comportamentos, nem altera infraestruturas ou volumes de tráfego. Os comportamentos alteram-se através de formação, fiscalização e bom desenho. O Código da Estrada é só a base.

Até que as autarquias respectivas esclareçam, existe o perigo de um ciclista ser multado por circular numa faixa BUS? Existe, como existia antes, de resto. Importa lembrar, contudo, que o carácter reservado dos corredores BUS (como o dos “corredores Bici”, de resto) não é, de todo, absoluto. Se vou virar na próxima à direita, aceder a uma garagem, local de estacionamento, propriedade, posso e devo seguir pelo corredor BUS se este for a via mais à direita ou se for a única via disponível. Não existe o perigo que o novo Código da Estrada seja igualmente letra morta se a fiscalização não pugnar pela sua aplicação? O limite de velocidade nas cidades é 50 km/h e é diariamente violado por milhares de veículos. Claro. Mas o primeiro objectivo das alterações do Código da Estrada era estabelecer maior equidade entre os utilizadores de diferentes modos. É o primeiro passo e, se não existirem passos seguintes, tal não anula a utilidade deste primeiro passo. Qual a melhor resposta às declarações recentes do presidente da ANSR aconselhando o seguro obrigatório para os utilizadores de bicicleta? Consultando os dados, é fácil verificar-se que a causa de tanta sinistralidade rodoviária não pode ser atribuída aos ciclistas. Preocupa-vos que as autoridades revelem tamanho desconhecimento? Um seguro de Responsabilidade Civil obrigatório para velocípedes não faz sentido dado o reduzido risco para terceiros associado ao uso da bicicleta. Não existe noutros países com muito mais pessoas a andar de bicicleta e onde chegou a existir foi descontinuado porque as receitas não cobriam o custo da burocracia do sistema. Só as actividades de elevado risco são obrigadas a serem cobertas por um seguro. No caso da circulação rodoviária, esta obrigatoriedade não está associada à classificação de “veículo” nem aos “direitos” atribuídos aos seus utilizadores, mas sim ao nível de risco que a condução de um veículo coloca à sociedade – daí que nem as carroças nem as bicicletas precisem de um seguro, mas veículos a motor sim. Daí também que os prémios dos seguros variem consoante a cilindrada do veículo, a experiência do condutor, o seu histórico de acidentes, se vive numa cidade ou numa aldeia, se se trata de um motociclo ou de um automóvel, etc.. É realmente preocupante o desconhecimento das autoridades e também a utilização de medidas como o seguro ou o capacete como armas de arremesso pelos seus porta-vozes. Parecem sentir-se ameaçados pelos ciclistas, agora que “são equiparados a automobilistas” e parecem sugerir estas coisas por as entenderem como dissuasores ou penalizações e não por entenderem a sua razão de ser. A MUBi planeia empreender por si própria ou colaborar com autoridades ou instituições no sentido de criação de uma campanha de divulgação e esclarecimento do novo Código da Estrada em que o público-alvo não sejam ciclistas? Embora a MUBi seja uma associação de voluntários sem qualquer tipo de financiamento regular, mesmo assim, estamos a preparar vários conteúdos que poderão vir a ser utilizados no futuro. Temos participado regularmente em programas de televisão e dado muitas entrevistas de esclarecimento sobre as alterações do Código da Estrada - tendo produzido um documento de Perguntas Frequentes que tem sido amplamente divulgado. A MUBi tem também vindo a alertar que da parte das autoridades tem havido pouco investimento, demasiada preocupação em "educar" ou mesmo culpabilizar os mais vulneráveis, não tendo havido esforços para a consciencialização para os utilizadores que são a maior o fonte de perigos em espaço público.

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"…HÁ QUE TOMAR MEDIDAS PARA REDUZIR OS FAVORECIMENTOS E SUBSÍDIOS À UTILIZAÇÃO DE AUTOMÓVEIS. ISSO AUTOMATICAMENTE TORNARÁ OS MODOS ACTIVOS E OS TRANSPORTES PÚBLICOS MAIS ATRACTIVOS E MAIS COMPETITIVOS." É notório que a MUBi se esforça por aproximar os peões e os ciclistas na defesa de um ambiente urbano mais seguro e saudável. Há, de facto, ligações óbvias e duradouras entre ambos ou vivemos ainda uma época em que o automóvel está demasiado presente? É muito fácil o modo bicicleta canibalizar o modo pedonal e é muito fácil os dois modos entrarem em conflito pelos mesmos espaços em cidades vendidas ao automóvel, como é Lisboa. A MUBi não quer defender os direitos dos ciclistas nem aumentar as fileiras da bicicleta à custa dos peões. Isso não resolveria os problemas da cidade e só criaria outros novos. Por isso, pôr os peões, os seus direitos, o seu conforto e conveniência, pelo menos a par dos dos ciclistas, quando não acima, é fundamental para orientar as nossas acções na direcção certa. Uma cidade amiga das bicicletas será certamente uma cidade diferente das que conhecemos hoje. Em que medida é que a defesa das bicicletas que a MUBi empreende se articula numa perspectiva mais larga de um novo urbanismo? A MUBi é feita de gente que gosta de andar de bicicleta e que quer fazê-lo com boas condições, daí a sua missão primordial de defesa dos direitos dos ciclistas. Além e antes disso, é gente que quer viver numa cidade mais aprazível, mais integradora, mais sustentável e, por isso, defende a transformação das cidades em espaços mais compatíveis com a vida, com uma boa qualidade da mesma. Isso não se consegue subjugando a gestão e construção da cidade à lógica do automóvel como meio de transporte individual, privado, e primário de uma tão grande porção da população. O espaço que ocupa afecta a densidade urbana, afecta a fluidez da circulação rodoviária, encarece os imóveis, compete pelo uso do solo com outras aplicações e actividades mais importantes, gera poluição local que mói e mata, e a sua massa associada à sua velocidade e capacidade de aceleração, nas mãos de pessoas que, naturalmente, cometem erros, tornam-no uma ameaça para os outros utentes das vias públicas, causando vítimas directas (sinistralidade) e indirectas (é negado o direito à rua quase na totalidade às crianças e aos idosos e, parcialmente, aos restantes). Nesta óptica, a bicicleta surge como parte da solução, oferecendo a mesma liberdade, flexibilidade e conveniência do automóvel, sendo um veículo particular, mas sem os seus aspectos negativos, complementando belissimamente, sem substituir, os transportes públicos (os colectivos, claro, mas também as opções de carsharing, por exemplo) e o andar a pé. A bicicleta é, pois, uma de várias ferramentas necessárias, ou úteis, para construir colectivamente uma cidade melhor. E é, claro, uma fantástica ferramenta de transformação e satisfação pessoal que todos queremos preservar e partilhar.


14 MURILO É DO BR ASIL, É DO AROMEIAZERO E TAMBÉM DO BIKE CAFÉ. É DA ARTE URBANA, DAS PEDALADAS E DO BIKE ARTE. É DA MOBILIDADE E DOS DEBATES. METE O PÉ NO PEDALA CASULO E EM OFICINAS COMUNITÁRIAS ALÉM DE MUITOS OUTROS PROJECTOS SEDIADOS NO BR ASIL E QUE AGOR A MOSTR AMOS A PORTUGAL. PERGUNTAMOS DE QUE GOSTA MAIS AO CICLAR E ELE RESPONDE: “GOSTO MUITO DA ADRENALINA. SEJA NUMA TRILHA, SEJA PEDALANDO NO TR ÂNSITO INFERNAL DE SÃO PAULO." É UM TIPO COM PEDAL.

MURILO CASAGRANDE O Aromeiazero (facebook.com/Aromeiazero) é um instituto sem fins lucrativos, sediado em São Paulo, que tem como interesses-base a mobilidade, a arte urbana, a qualidade de vida e a inovação social, principalmente relacionados com a bicicleta. Quais os principais projectos em que estão envolvidos neste momento? Neste momento, estamos a planear três projectos: Pedalas, Bike Arte e OFCE. O nosso primeiro projecto, o Pedala Zezinho acontece desde 2011, em conjunto com a Casa do Zezinho. Organizamos pedaladas no Parque Villa-Lobos; exibição de filmes e debates sobre mobilidade; oficinas de formação de ciclistas estafetas e mecânicos, além das famosas oficinas comunitárias, onde voluntários arrumam as bicicletas com crianças. Em 2013, surgiu o Pedala Casulo que, em parceria com o Projecto Casulo, já distribuiu bicicletas e ofereceu formação para crianças e responsáveis sobre mobilidade, assim como cuidados de mecânica. O Bike Arte (fb.me/bikearte) é um festival de rua que reúne artistas, bandas, gastronomia e exposições associados ao tema da bicicleta com o objectivo de fazer da nossa cidade um lugar melhor para viver! Realizámos a 2ª edição em Novembro de 2013, na Vila Madalena. A Oficina para Formação de Ciclista Estafeta ou OFCE (fb.me/oficinadociclista) é um curso básico com dois objectivos: o primeiro, como o próprio nome diz, para formação de Ciclistas Estafetas e o outro objectivo é o da segurança para quem quer usar a bicicleta como meio de transporte ou lazer. É ministrado in company ou em formato de aulas avulsas com inscrições abertas a quem esteja interessado. Outro “projecto” que se tornou num produto e que fica cada vez maior é o Bike Café. O café é cultivado na Fazenda Santa Clara, na cidade de Guaxupé, no sul de Minas Gerais. É vendido em estabelecimentos que apoiam a bicicleta, em embalagens de 250 gramas e em três moagens diferentes ou em xícara. Em todos os casos, 10% da facturação é revertido para os projectos do Instituto Aromeiazero. Como surgiu esta ideia de aliar o café à bicicleta? Qual o seu objectivo, quem está envolvido e quem vos apoia? O Bike Café nasceu da necessidade de captarmos recursos para o Aromeiazero. Essa é uma premissa básica do produto: 10% da facturação é revertida para projectos que espalhem mais bicicletas por aí. Hoje, quem recebe esse repasse é o Pedala Zezinho

e o Bike Arte. A médio prazo, queremos reverter para outras iniciativas, de outras organizações. Percebemos também uma grande combinação: seja pela histórica ligação entre café e pedal; pela cultura dessa mistura em Portland; pela ideia de que um café te dará mais energia quando precisares de pedalar, seja o que for, o mais poderoso é termos juntado três das coisas que poucas pessoas não gostam: tomar café, a bicicleta e ajudar a fazer algo bom. Os paulistanos adoram café, mas nem todos pedalam. O Bike Café é também uma forma de trazer mais pessoas para junto das bicicletas e, ao mesmo tempo, de tornar a cidade mais humana para todos nós. Temos uma parceria com a Fazenda Santa Clara, que produz os grãos de acordo com uma série de procedimentos ambientalmente correctos, desde a plantação, até a entrega do grão para a torra. Quais as intenções para o futuro do Bike Café? Querem conquistar outros continentes? Onde se pode encontrar o Bike Café fora do Brasil? Sim, queremos conquistar o mundo. O café brasileiro é conhecido em todo mundo, mas queremos que as pessoas aprendam o consumir um bom café. E isso não é uma questão apenas de gosto. É uma questão de saúde e cultura. Aprendemos a tomar um café super torrado, super forte, cheio de açúcar e sem saborearmos. Na verdade, a maneira como o café tem sido produzido e industrializado está totalmente errado, é insustentável. A causa do Bike Café é a bicicleta, mas também queremos mudar alguns conceitos no mercado de café. Temos ainda alguns detalhes técnicos para superar e então o melhor lugar para se tomar um Bike Café é, por enquanto, ainda no Brasil. Além de bicicletadas e restaurantes em São Paulo, vendemos pela internet (beikeforever. com.br) e em cidades como Porto Alegre, Rio de Janeiro e Guararemos, interior de São Paulo. E também participamos de eventos e feiras gastronómicas, que também acontecem por aqui.

Como é a vossa relação com a comunidade em que estão inseridos? É fácil conseguir a adesão nos diversos projectos e captar o interesse? Cada projecto tem um público ou comunidade diferente. O Aromeiazero procura parcerias para ajudar nessas relações e, claro, para conseguirmos a adesão de um maior número de pessoas. No caso dos Pedalas, do lado dos beneficiários, a relação começa com uma ONG ou uma pessoa nossa parceira. E é assim

ENTREVISTA: JOÃO BENTES FOTOGRAFIA: ARQUIVO AROMEIAZERO


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no Pedala Zezinho, que foi construído juntamente com a Casa do Zezinho (uma ONG que se iniciou há quase 20 anos com Parque Santo António, zona sul da cidade de São Paulo). Quando fazemos um Pedala, a adesão dos jovens e crianças deixa as ONGs impressionadas. Mas também contamos com voluntários e mecânicos amigos nossos, que conhecemos em bicicletadas e outros projectos. No caso do Bike Arte, os meus sócios, o Cadu e o André, ficaram responsáveis por cativar os comerciantes e os habitantes. Aqui em São Paulo não se fecha uma rua ao trânsito sem uma série de procedimentos burocráticos, confusos e caros. Mas a interacção com os moradores é indispensável e a bicicleta ajuda muito nesse sentido. Já a OFCE é executada juntamente com a Carbono Zero, uma empresa de entregas em bicicletas. O Bike Arte aconteceu no final de 2013. Fala-nos deste projecto e faz um pequeno balanço da última edição. Foi a segunda edição e descobrimos que é um festival de rua à prova de água. Choveu muito em Novembro do ano passado e mesmo assim foi um sucesso! Fechámos uma rua na Vila Madalena, tivemos cinco bandas, som impecável, oficinas de caligrafia, rodas de leitura, mecânica comunitária, plantações de orquídeas, grafitti ao vivo, actividades para crianças e personalização de quadros de bicicletas. Esteve presente um público diverso durante o dia inteiro: desde ciclistas de várias zonas de São Paulo até moradores do bairro com os filhos. E é isso que queremos: mostrar que uma rua com menos carros se pode encher de arte, música, convivência e claro, bicicletas. Já estamos a preparar a edição deste ano e a produzir outras exposições, pois a ideia é que o Bike Arte seja itinerante. No fim do mês estará na PUC, uma universidade de São Paulo e em Abril no Aro 27, um park & shower em Pinheiros. Viveste algum tempo em Lisboa. Queres fazer uma pequena comparação entre Lisboa e São Paulo em termos de mobilidade em bicicleta? Vantagens e desvantagens ou pontos a mudar nestas duas cidades? Acho as duas cidades incríveis para se pedalar. Por que são cidades incríveis para se viver. Acho que ambas tem um preconceito ou desafio cultural para superar: são ditas cidades que não foram feitas para a bicicleta. Como se fossem amaldiçoadas pela geografia. Acho que isso muitas vezes é usado como desculpa, seja para quem tem certa resistência a pedalar, seja para políticos justificarem a falta de investimento e políticas para a bicicleta. Acho que Lisboa tem muitas opções de transporte e também é um bocado mais pequena. Também acho que vocês, lisboetas, têm uma relação diferente com o espaço público. É normal o piquenique, tomar um vinho em algum miradouro ou o café nas esplanadas. Acho que realmente as sete colinas podem ser um desafio, mas seria bom criar e expor alternativas.

É também importante investir no diálogo com taxistas, motoristas de ônibus e todos os profissionais das vias públicas. Acho que Lisboa poderia fomentar mais o turismo de bicicleta, seja por dentro da cidade ou como ponto de partida para outras. Integrar os transportes como comboios e autocarros. Parece-me que a aprovação do novo código da estrada no ano passado foi uma vitória para vocês, mas passar do papel à prática do dia a dia também é um desafio. Em São Paulo, ainda estamos no início. Há violência, pouco hábito de aproveitar o espaço público e uma idolatração doentia do carro. Sem esquecer que estamos no Brasil, um país cheio de injustiças sociais, na qual São Paulo é uma ilha de melhorias cheia de contradições e baixa qualidade de vida. As nossas áreas de convívio e lazer são parques, lugares particulares. Mas vejo uma quantidade enorme de colectivos, movimentos e pessoas que estão a lutar para mudar isso. Seja o Bike Arte, o Bike Anjo ou o Sampa a pé, são sinais de um avanço. As duas cidades têm uma vida cultural, boémia, artística que também poderiam unir mais as bicicletas. Precisamos usar a bicicleta como veículo de mobilidade entre esses lugares. Parece-te que há futuro para a bicicleta urbana no Brasil? Em que cidades? O projecto Transite, que é nosso parceiro, está a rodar 18000 kms para retratar, de norte a sul do país milhões de pessoas que usam a bicicleta como meio de transporte diário. O uso da bicicleta nas periferias também é grande. Os engarrafamentos acontecem em cidades de diversos tamanhos. Há muitos anos que o nosso governo subsidia a venda de automóveis e motos. As cidades do interior sofrem com acidentes viários e o sedentarismo dos mais jovens. As manifestações de Junho do ano passado foram desencadeadas por problemas sérios de mobilidade urbana. Mas a partir daí, discutimos a falta de hospitais, de educação e os movimentos populares ganharam voz. Além disso, a bicicleta possui uma força para o empreendedorismo que é algo muito importante. Assim, acho que a bicicleta precisa de ter futuro no país. Falamos sobre Lisboa e São Paulo, mas acho que podemos pensar em Portugal e Brasil. O número de novos negócios que surgiu em São Paulo por conta da bicicleta é impressionante. As pessoas podem ir trabalhar de bicicleta, mas também podem viver da bicicleta. Eu acredito nisso de tal forma que fundei o Aromeiazero. E como se pode contribuir para o Aromeiazero? Sendo voluntário, lendo as nossas publicações nas redes sociais e também comprando produtos que lançamos para conseguir dinheiro para nossas acções. Temos tido muito sucesso com as nossas parcerias e a melhor contribuição que temos é quando uma pessoa entra em contacto connosco para multiplicar nossos projectos em outros lugares e para outros públicos.

Testemunho

FÓRUM MUNDIAL DA BICICLETA 2014, EM CURITIBA.

Por: Murilo Casagrande

"Entre os dias 13 e 16 de Fevereiro, rolou, em Curitiba, o III Fórum Mundial da Bicicleta (FMB). Foi o primeiro FMB em que o Bike Café participou (e o nosso primeiro também). Fomos convidados pelo nosso parceiro Rafael Gripp, que também começou um novo negócio, chamado Chromic FX (facebook.com/chromicfx), especializado em óculos desportivos fotocromáticos e óptimos para pedalar. Dividimos os custos e o espaço do stand durante três dias e não sei como o Rafa não enlouqueceu com a bagunça e enxurrada de gente que trouxémos. Eu, para falar a verdade, participei pouco no Fórum, acabámos por ficar focados na 1ª Feira da Bici, onde muitas organizações, ONGs e activistas mostraram seu trabalho. A ida foi, no mínimo, caótica e um sinal de que a mobilidade é um problema para todo o Brasil. Fomos de carro, para levar tudo o que precisávamos para estrear com tudo no FMB, além de bicicletas e malas e perdemos o primeiro dia, presos num engarrafamento de doze horas entre São Paulo e Curitiba. Um trajecto que é possível percorrer em cinco horas, passámos sete parados. Chegámos para saber que o painel de abertura foi bem polémico, cheio de discussão e até protestos contra o actual prefeito de Curitiba que tentou fazer um discurso de abertura. Realmente esse será um ano de muitas manifestações em todo o país, o que eu acho óptimo. Os outros dois dias foram bem parecidos: passávamos o dia a preparar e a servir café, apresentar os projectos do Aromeiazero e conversar com velhos e conhecer novos amigos. Gente do mundo todo, do Brasil todo. Fiquei sabendo que a palestra das nossas amigas do Las Magrelas (facebook.com/LasMagrelas) e do oGangorra (facebook. com/oGangorra) foi um grande sucesso (para variar) e assim como fiquei sabendo do Fórum do ano passado, tomara que muitas pessoas se inspirem para abrir mais negócios. Alinhado com o facto de haver uma feira de “negócios” da bike, realizaram-se debates sobre empreendedorismo criativo relacionado com a bicicleta (forummundialdabici.org/?p=950) e o Painel Economia que contou com Elly Blue (takingthelane.com/bikenomics), Chris Carlsson (São Francisco), Daniel Guth (São Paulo) e Rafael Milani (Curitiba). No Domingo , depois de diversas apresentações de cidades por pessoas interessadas em levar o FMB para sua cidade, rolou a escolha da próxima cidade do Fórum, que acontecerá em Medellin. Aproveitámos para visitar as espectaculares exposições no não menos espectacular Museu Oscar Niemeyer, também conhecido como “Museu do Zóio” por conta da sua arquitectura. Aliás, vale ressaltar que o FMB aconteceu em diversos locais da cidade e várias obras de arte foram espalhadas pela capital curitibana. Sem contar os belíssimos materiais de comunicação que a organização produziu. Para finalizar, na Segunda pela manhã, o Kuritibike (novo.kuritbike. com) ajudou a organizar o Pedal da Graciosa. Foram quase 100 km de pedal entre Curitiba e Morretes, uma cidade linda que fica próxima ao litoral. Eles montaram uma grande estrutura para transporte até saída na BR-116 - sim, a mesma em que passámos oito horas parados e que recebe o famigerado apelido de “estrada da morte”. Perdemos a hora, mas alcançámos o pessoal antes de fazer a descida. Pela fome ser grande, trocámos um belo retorno pelo Expresso de Prata, um trem que sobe de volta a serra; por uma bela refeição típica, o barreado, que valeu muito a pena. E como aprendi com um amigo: "sempre vale a pena deixar algo para fazer numa cidade, é uma desculpa para voltarmos." E realmente não faltam desculpas para voltar ao FMB e a Curitiba!"



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