16 ANO II MAIO—JUNHO 2013 Gratuito
Jornal Pedal • número 16 • Maio—Junho 2013
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Editorial: Maio—Junho '13
O Jornal Pedal dezasseis, que cai entre o cinco e o seis de dois mil e treze, é igual a dezasseis páginas vezes dezasseis números, o que iguala a um total de duzentas e cinquenta e seis páginas de manifestação da vontade de ir e estar sobre bicicletas, elaborada ao longo dezoito meses. São cerca de setenta e duas semanas ou quinhentos e setenta e oito dias de história de um Pedal em papel de dezasseis folhas que acompanha a urbanidade portuguesa no seu percurso para a cultura ciclável. Estas quatro vezes quatro folhas começam por relatar uma conferência internacional que existe há vinte e três anos e que visita, pela primeira vez, Lisboa. Passa também de rasgão um estafeta em montra, que atravessa a capital em menos de novecentos segundos para chegar às trinta fotografias de Ana Pérez-Quiroga que alavanca para os mil cento e cinquenta quilómetros de um Portugal esquecido e depois para um Porto na pedaleira de cinquenta e quatro dentes do Tiago Carvalho. Pelo meio, dá para sentir a Glória de duzentos e sessenta e cinco metros em trinta e nove segundos e sete milésimos. Feitas as contas, é altura para fingir que há mil e vinte e cinco raios de sol por cada metro quadrado que chegaram a sério para meter calor ao ar dos pneus e refrescar a mente com estes cerca de cinquenta e dois mil e noventa caracteres de Jornal Pedal. Jornal Pedal Ad.pdf
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4/11/13
10:57 AM
Curtas:
Pedal mostra Lisboa no MEO Kanal A convite do MEO Kanal, o Pedal inaugurou a nova rubrica deste canal, "Volta a Portugal em MEO Kanal", que teve início a 13 de Maio. O objectivo é dar a conhecer Portugal de Norte a Sul, durante 20 semanas, entre Maio e Setembro, apresentando 18 distritos e as duas regiões autónomas. O primeiro foi Lisboa e coube ao Pedal apresentar quatro vídeos sobre a cidade: "Lisboa num minuto", "A barriga cá da terra", "Quem manda aqui" e "Visto do futuro". O primeiro tem como objectivo mostrar a cidade e o próprio Pedal, num vídeo realizado por Fábio Gonçalves. Em "A barriga cá da terra", optámos por visitar o Temple Food, em Lisboa, num vídeo realizado por Joana Prudêncio. Demos ideias para a cidade, em "Quem manda aqui", de Luís Favas, numa perspectiva de uma cidade com mais bicicletas, bike polo e mais espaços verdes. Finalmente, a visão do futuro da cidade, aos olhos dos mais novos, foi-nos dada a conhecer num vídeo de Pedro Brajal. Todos os vídeos da "Volta a Portugal em MEO Kanal" podem ser vistos em http://volta.kanal.pt e também no MEO Kanal 901120, bastando para isso carregar no botão verde do comando e inserir o número do canal. O site da "Volta a Portugal em MEO Kanal" está igualmente disponível em versão mobile em http://m.volta.kanal.pt. Agradecimentos: Fábio Gonçalves, Dora, Alice, Au-Yeung, Anabela Cristos, Marco Costa, Sofia Morais, Joana Prudêncio, Luís Favas, António Cruz, Liliana Teófilo, Miguel Reis, Francisco Oliveira, Pedro Brajal.
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Maio—Junho 2013 • número 16 • Jornal Pedal
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teatro
Stefan Kaegi (Rimini Protokoll) Remote Lisboa
Duas ou Quatro Rodas, Há Espaço para Todas
uu Ponto de partida Cemitério dos Olivais
30 maio a 7 junho 18h30
Numa iniciativa da FPCUB - Federação Portuguesa de Cicloturismo e Utilizadores de Bicicleta, resultado de um protocolo com o Ministério da Administração Interna, a ANSR - Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, a GNR - Guarda Nacional Republicana, a PSP - Polícia de Segurança Pública e a Sport Zone, está a realizar-se a campanha "Duas ou Quatro Rodas, Há Espaço para Todas", desde o final do mês de Abril. Com o objectivo de apelar e sensibilizar à partilha da via pública entre os utilizadores de bicicleta e os automobilistas, a campanha inclui spot publicitário de TV, cartazes, brochuras informativas e autocolantes.
(exceto 2 junho) 12€ / Com desconto 6€ | M/12 IMPORTANTE!
Compra prévia obrigatória até 24 horas antes da sessão pretendida. Toda a info em teatromariamatos.pt Uma coprodução House on Fire com o apoio do Programa Cultura da União Europeia e do Goethe-Institut
música
Sexta de Bicicleta é uma iniciativa promovida pela MUBi - Associação pela Mobilidade Urbana em Bicicleta, que "convida todos os portugueses a assumirem voluntariamente o desafio de tentarem usar a bicicleta como meio de transporte às sextas-feiras, durante todo o ano de 2013" e já conta com quase 900 inscritos. Com esta pequena mudança de comportamento, o objectivo é atingir grandes mudanças e a pouco e pouco adoptar-se a bicicleta como meio de transporte de uma forma regular. Segundo os responsáveis, "participar no Sexta de Bicicleta é um bom pretexto para assumir esse compromisso em conjunto com muitas pessoas do país inteiro". sextadebicicleta.mubi.pt
Os Dias da Transição de Junho Os convidados dos Dias da Transição - ciclo de conferência sobre sustentabilidade, organizado pelo Teatro Maria Matos, em Lisboa - são Paulo Magalhães e Tim Jackson. O primeiro apresenta a conferência "O desafio de nos organizarmos como vizinhos globais", no dia 5 de Junho, e o segundo fala-nos sobre "Prosperidade e Sustentabilidade numa Economia Verde", no dia 24 de Junho. Ambas as conferências são transmitidas em directo, via streaming através do site live.fccn.pt/tmm-ciclotransicao e o programa completo pode ser consultado em teatromariamatos.pt/pt/programacao/ debate-e-pensamento.
© Paulo Cunha Martins
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Peixe
Convidados especiais Joana Sá, Pedro Gonçalves e Nicô Tricot
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tel. 218 438 801
Jornal Pedal • número 16 • Maio—Junho 2013
4 ICHC Lisboa 2013 Texto:
Ana Santos
e Mário Alves
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nternational Cycling History Conference (ICHC) é um encontro anual de especialistas de vários domínios do conhecimento, no qual partilham os dados das suas investigações sobre aspectos da tecnologia, mobilidade, desporto e lazer associados à bicicleta e ao ciclismo. A primeira ICHC foi em 1990 em Glasgow, Escócia e, desde então, a conferência correu mundo e já esteve em países de todos os continentes. A investigação promovida por estes encontros já levou à queda de vários mitos, como é o caso do desenho da bicicleta de Da Vinci que Hans-Erhard Lessing demonstrou ser um embuste porque do esboço original só constam dois círculos tendo sido tudo o resto acrescentado muito mais tarde não se sabe bem por quem. A proposta da Conferência de Lisboa olhou para o passado buscando inspiração e reflexão para resolver problemas no presente. Neste sentido, "Back to the future, a new city velorution?" foi a questão de partida para, ao longo do tempo, se identificarem e se entenderem as fracturas e continuidades do significado da bicicleta no interior das diferentes formas de mobilidade: espaciais, afectivas, profissionais, ligadas às idades da vida, lúdicas e até consumidoras. Filosoficamente, o projecto da Modernidade funda-se numa utopia cinética que hoje é questionada devido aos problemas ambientais que condicionam a saúde pública e põem em causa a integridade da própria vida no planeta; e, de igual modo, também a ideia de progresso que lhe deu vazão está também agora sob forte suspeição. Ora, perante a denominada "sociedade de risco", há uma reconfiguração do significado da bicicleta e/ou do ciclismo e, dado o aumento dos utilizadores urbanos, nomeadamente em grandes cidades (de que são exemplo Londres e Nova Iorque), pergunta-se se estamos perante uma nova Velorution - uma revolução cultural que tem em vista a sustentabilidade na qual a bicicleta é um bom exemplo de como uma tecnologia simples pode ser solução para problemas complexos. Este tema foi então o desafio para três dias intensos de apresentação de comunicações cujo espectro foi desde as alterações tecnológicas verificadas nos primeiros velocípedes, marcantes para o posterior desenvolvimento do veículo, até a dados ligados ao uso da bicicleta como meio de transporte nas actuais cidades. Pelo meio ficam os estudos culturais decorrentes de análise de conteúdo de material tão diverso como são cartazes de propaganda e publicidade, fotografias de época e também performances – como é o caso da Massa Crítica, enquanto fenómeno de globalização de um ideal, e do Cycle Chic, enquanto globalização de uma ideia de Marketing de Copenhaga. No interior de todas estas temáticas não se procuram consensos nem se evitam controvérsias mostrando que a história da bicicleta e do ciclismo é marcada por diferentes paradigmas, por vezes concorrentes entre si. Na quarta-feira, Artur Lopes da UVP-FPC iniciou os trabalhos com um resumo histórico da instituição e a manhã terminou com uma comunicação de Fernando Nunes da Silva sobre a problemática da mobilidade de Lisboa. A ICHC começou com as comunicações dos investigadores que fazem parte do comité científico
deste grupo de investigadores: Nicholas Oddy e David Herlihy, ambos a analisar a cultura da bicicleta através da análise de conteúdo de imagens, fotografias. Nas sessões seguintes tivemos dados de produção de bicicletas no período Entre-Guerras por Andrew Millard, dados sobre usos da bicicleta em Lisboa por Rosa Félix e a defesa da tese de que as estradas não foram apenas construídas para carros, por Carlton Reid. A tarde iniciou com Renate Franz, líder deste grupo, mostrando como um investigador pode transformar-se num autor na Wikipedia. Depois, Lorne Shields encheu a livraria do Museu do Desporto com imagens inéditas da sua colecção de fotografias de mulheres na bicicleta. Para finalizar uma sessão que combinou revelações sobre American Mead Cycle por parte de Roger Bugg e Gary Sanderson e, ainda, novas imagens revelação sobre o Hobby-Horse. Quinta-feira, uma manhã dedicada à história da tecnologia da bicicleta com Gerd Böttcher, Nick Clayton, Nigel Land e Chris Morris. Depois, Leandros apresentou dados de utilização da bicicleta em Larissa, na Grécia. Por fim, foi apresentado “O meu livro de bicicletas” para crianças, apresentado por Miguel Castro e Pedro Machado, que contém alguns dos mitos já desfeitos por autores presentes na sala, o que levantou alguma controvérsia, mostrando a necessidade de escolha de meios eficazes de divulgação do conhecimento produzido pela investigação de modo a impedir a reprodução de histórias sem fundamento. A tarde ficou marcada pela saída de Lisboa rumo ao Museu do Ciclismo, nas Caldas da Rainha, e a Torres Vedras, lugar ícone da história do ciclismo português. No Museu do Ciclismo, o grupo visitou as exposições idiossincráticas idealizadas pelo coleccionador Mário Lino. No caminho para Torres Vedras, visitou-se o projecto Vila Literária de Óbidos da Ler Devagar que se trata de fazer das igrejas lugares de culto da leitura. Em Torres Vedras, visitámos o edifício destinado ao futuro Museu de Joaquim Agostinho e toda a comitiva inaugurou as novas Agostinhas que fazem parte do projecto de bicicletas partilhadas que marcam a nova Velorution de Torres Vedras. Com estas visitas pretendemos questionar como se tecem as histórias da bicicleta na memória colectiva em diferentes lugares de Portugal e também oferecer indicadores que permitam caracterizar as políticas da memória ligadas com a bicicleta e o ciclismo. Da tecnologia à indústria, passando pelos eventos desportivos e de lazer, até aos museus, tudo contribui para que se faça da memória do passado o património identitário das sociedades contemporâneas. Sexta-feira, o dia mais preenchido do programa começou com uma sessão sobre o valor das corridas de ciclismo, sobre a natureza das disputas na relação que estabelecem com o espaço urbano. Ana Santos e David Vale apresentaram dados sobre as corridas de ciclismo Lisboa no início do século passado, das quais se destaca a Subida à Glória, para compararem com as corridas assíncronas que neste momento decorrem nas ruas de Lisboa e podem ser seguidas na aplicação Strava, onde o segmento Glória teve nos últimos meses um pico de participantes a partir do momento em que a corrida da Subida à Glória foi anunciada. Entre estes dois mo-
mentos da história, os autores identificaram agendas diferentes que reflectem também a diferente relação entre a bicicleta e a cidade. Esta primeira apresentação do dia lançou o mote da reflexão sobre o presente baseada em acontecimentos do passado. Renate Franz relatou um episódio dos Jogos Olímpicos de 1968 em que os protagonistas se viram envolvidos num dos mais violentos conflitos da “guerra fria”: a rivalidade entre as duas Alemanhas. Paulo Andrade fez uma resenha histórica das leis aplicadas à bicicleta, em especial no ordenamento jurídico português, mostrando como o Código da Estrada actual posiciona a bicicleta como um veículo sujeito ao domínio dos restantes veículos motorizados. Rui Claudino fez a história recente da Bicicleta de Montanha na indústria portuguesa. Durante o debate fica a dúvida se o fenómeno BTT já atingiu, em Portugal, o seu ponto mais alto a que se seguirá um declínio como noutros países ou se está ainda em crescimento. Hans-Erhard Lessing questionou se a inovação da indústria de bicicletas na segunda metade do século XX foi prejudicada pelo fenómeno desportivo e os seus modelos. O autor questionou a razão porque modelos como o triciclo não se tornaram mais populares impedindo assim a popularização da bicicleta entre certos grupos demográficos nomeadamente os mais idosos. Foi precisamente o tópico do “ciclismo para todos” que serviu de tema para a apresentação de Jorge Carvalho sobre a inclusão social promovida por modelos de bicicletas adaptadas e terminou com um apelo à indústria para inovar não esquecendo as necessidades do continente africano. Durante a tarde, Tiago Carvalho reflectiu sobre a Cicloficina dos Anjos com base nos escritos de Ivan Illich e os seus conceitos de convivialidade e autonomia. John Green trouxe do passado documentação de um reparador de bicicletas de uma pequena aldeia perto de Cambridge. Sam Shupe, que acabou por receber o prémio de jovem investigador, apresentou a forma como Portland and Deering em Maine tentaram compatibilizar os parques públicos com o uso da bicicleta e como este esforço e conflito provocado é ainda sentido nos dias de hoje. Com a corrida da Glória, o epílogo mais arrojado do programa da ICHC de Lisboa, pretendemos mostrar que o património identitário, a recordação nostálgica de tempos idos, muitas vezes usada para legitimar a ordem liberal da mobilidade do mundo moderno, pode também servir uma agenda de transformação e mudança que apela ao implemento de políticas públicas de acalmia de tráfego de modo a devolver à vida urbana a pacificidade das ruas com mais peões, bicicletas e menos tráfego automóvel. E, no caso da Calçada da Glória, a ideia é demover a Carris de pensar o elevador como um monumento que não pode ser alterado na sua estética como justificação à falta de grelhas para transporte de bicicletas e carros de bebés. O elevador é um património porque ao longo de mais de cem anos facilita a relação social entre uma área baixa e outra alta da cidade e, tecnologicamente, altera-se quer nas fontes de energia quer no design para melhor servir a integração das pessoas na geografia do espaço urbano. O elevador é um património porque promove e facilita a vida citadina e, por isso, não deve ser tratado como um objecto a congelar para ficar lá atrás num passado já morto. As conclusões da conferência costumam ser feitas a posteriori e, neste caso, serão apresentadas em Julho, data limite de entrega dos textos finais que decorrem das apresentações agora feitas, no posfácio do livro dos Proceedings que será publicado antes da próxima ICHC que se realizará em Baltimore, nos Estados Unidos.
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Glória (latim gloria, -ae) s. f. 1. Honra, fama, celebridade, adquirida por obras, feitos, virtudes, talentos, etc. 2. Pessoa ou obra famosa ou que é motivo de orgulho (ex.: glória nacional). 3. Esplendor, magnificência.
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glorioso Alfredo Piedade, em 1926, terá levado uma multidão ao delírio com a sua épica subida dos 265 metros da Calçada da Glória em apenas 55 segundos. Na noite de 17 de Maio de 2013, esse recorde foi pulverizado! Perante largas centenas de testemunhas outra centena e meia de ciclistas reviveu esta prova que até aqui assumia contornos de mito ou lenda longínqua. A chuva miúda que se fazia sentir nessa noite antevia o mesmo efeito que barrar maionese nos carris do elevador para pedalar sobre eles de seguida. A calçada desregrada e os restos de vidros de garrafas que sobram, das noites infames do Bairro Alto, minavam o percurso, mas nenhuma destas evidências impedia uma grande empresa de seguros de patrocinar a prova. Todos estavam a postos para superar o declive, fintar os carris e atingir a Glória! Os elevadores pararam, obrigando turistas a adiar a visita ao seu deslumbrante interior. Os que seguiram a pé terão ficado atónitos com a superação dos que loucamente arriscavam ultrapassar o limiar de batidas por minuto considerado saudável para um normal coração. Qualquer ciclista utilitário de Lisboa sabe que subir a Calçada da Glória de bicicleta é idiota, não serve para o dia-a-dia. Apenas o desafio ou a oportunidade de ter uma multidão em êxtase a puxar por nós - algo que tantas vezes desejamos quando estamos a subir uma singela Almirante Reis - terão levado tantos anónimos a querer competir ao lado de nomes como Cândido Barbosa, Joaquim Gomes, Marco Chagas ou, o novo recordista com 39,7 segundos, Ricardo Marinheiro. A prova foi disputada por pessoas de várias gerações, homens e mulheres com bicicletas de vários feitios. Entre os participantes estavam indivíduos que interpretam o modo de usar a sua bicicleta de forma tão díspar como as línguas na torre de babel. Poucas provas terão reunido até hoje tão vasta gama de velocípedes. No final alguém segurava um prémio para o melhor amador, o melhor atleta não federado, mas todos haviam desertado, desaparecido por entre os vultos que invadem o Bairro Alto numa noite de sexta-feira. Os amadores não estavam lá pelo prémio. O desejo de superação era algo individual. A brincadeira havia terminado. Pelo meio, a sensação que a calçada foi vivida e por uma noite deixou de ser caminho dos elevadores e vultos que rumam ao Bairro Alto. Foi a rua a protagonista, um lugar de encontro, de vivência e catalisador da emoção. Gloriosa Calçada da Glória!
texto: António Borges Cruz fotos: Fábio Teixeira Fabioteixeira.com
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6 Pausa
Texto: Eduardo Mendonça ilustração: Dawid Ryski talkseek.com
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araste no topo do Parque Eduardo VII, até onde vieste das Amoreiras, aproveitando um momento morto do teu dia. Há-os, inevitavelmente. Gostas da vista daqui, no enfiamento da Avenida da Liberdade, dominando a Baixa, ladeada por colinas, o castelo castanho e verde à esquerda e o estuário do Tejo em frente; e, hoje, a limpidez do dia permite distinguir claramente todas as baías e convexidades da Margem Sul e as formas da Arrábida, imponente apesar da distância. Gostas de todas as vistas, na verdade, pela sensação de domínio topo/carto/geográfico que oferecem. Comes uma empada de tofu e bebes um sumo de pacote, este mais por motivos de deglutição do que de hidratação: nunca te chegariam estes duzentos mililitros. Para te lembrar disso, o vento que faz oscilar ruidosamente a bandeira nacional atrás de ti e desvia o jacto de água que irrompe continuamente da escultura fálica que sempre te baralhou passa-te junto à pele, e o contacto do ar fresco com o suor que a recobre faz-te arrepiar por um instante. Vem-te à mente o oximoro ‘incómoda carícia’. Ris-te brevemente. Pensas na rapariga da loja que te vendeu a comida, nos olhares e sorrisos que não sabes serem cordiais ou insinuantes. Verificas no telemóvel que não perdeste nenhuma chamada nem mensagem e, ao constatar que permaneces ignorado, tiras da mochila o livro que estás a ler há já algumas semanas. Não conseguirias discorrer sobre ele, se to pedissem: só o tens lido em momentos fugazes e distraídos como este e notas que a complexidade da linguagem, a polifonia da narração e a não-linearidade da narrativa o têm tornado, para ti, impenetrável. Consideras abandoná-lo ou recomeçá-lo. Olhas para a bicicleta que deixaste a teu lado e na qual já fizeste hoje mais de meia centena de quilómetros, e sentes um quase imperceptível desconforto nos ílios, nos pulsos, no períneo, resultado dos desgastes acumulados na semana que se aproxima do fim. És estafeta de bicicleta, é de esperar que isto aconteça, supões; e antes estas atrições ligeiras, subtis, expectáveis do que outros impactos mais violentos, abruptos, manentes. És bom no que fazes. Pensar no assunto deixa-te desconfortável: sempre gostaste de te diminuir. Mas não consegues evitar o pensamento: és, provavelmente, quem se desloca mais depressa em Lisboa. Nas corridas efémeras do teu quotidiano, deixas sempre os táxis e até as motas para trás; quando as há, costumas ganhar entre ciclistas, ou pelo menos ficar
nos primeiros lugares. Atravessas a cidade em menos de quinze minutos, e estás habituado a olhares surpreendidos de quem, não acreditando nas tuas previsões, contava esperar por ti e não o contrário. Deslocas-te na cidade com uma facilidade que, frequentemente, até a ti te desconcerta, quando num cruzamento confuso com carros a vir de todas as direcções tomas uma linha que te surgiu numa fracção de segundo e, sem abrandar, evitas por pouco uma colisão sangrenta e continuas a pedalar, já com os olhos e a mente no cruzamento seguinte. E usas o trânsito: às vezes, agarras-te à caixa aberta duma carrinha, ao aileron ou vão de roda dum carro, ao suporte da antena dum táxi e, sem pedalar, vais circulando a quarenta até que num semáforo ele pára e tu segues confiante e quase eufórico. Além disso, fortalece-te os braços, esperas. Onde conheces de cor o padrão das paragens, encostas-te à traseira dos autocarros para diminuir a resistência do ar e a transição do bafo estático e quente e poluído para o vento fresco que de repente se opõe a ti surpreende-te sempre. Captas a informação à tua volta sem esforço e sem pensar nisso: com um olhar, prevês o comportamento do condutor que vai sair do estacionamento e do peão que vai passar na passadeira, estes dois com alguma análise morfo-psicológica à mistura, enquanto ouves que uma mota vai ultrapassar-te e ainda notas um buraco na estrada e vês se o semáforo lá à frente está verde e planeias a tua trajectória em função disso tudo e ajustas-te pedalando mais ou menos e inclinando o corpo para onde queres ir, e isto centenas de vezes por dia até um ponto em que o fazes tão inconscientemente que és figura de corpo presente nos teus próprios movimentos. Achas que o filme "Premium Rush" representa bem todo este processo mental, e reflectes momentaneamente no quanto o Joseph Gordon-Levitt é atraente. Três ou quatro vezes por dia, decides andar sem mãos só pelo estilo, e se cruzas uma rapariga gira no passeio ou se consegues fazer uma curva apertada ficas particularmente contente. Gostas de pensar que um estafeta de bicicleta vê o trânsito como mais ninguém; a sua existência processa--se toda numa incessante subversão das regras estabelecidas, na descoberta dos espaços negligenciados pelas limitações físicas de carros e até motas: o corredor de retrovisores por onde deslizas num engarrafamento, o intervalo fugaz e volúvel e, acima de tudo, móvel entre a bagageira anterior e o capô seguinte quando passas um semáforo vermelho.
Antes da reconfiguração do esquema de trânsito, adoravas fazer o Marquês de Pombal sem abrandar entre a Fontes Pereira de Melo e a Liberdade. Já andaste na Segunda Circular e no Eixo Norte-Sul, e neste já chegaste aos setenta à hora. Conheces o nome de centenas de ruas e dezenas de padrões de semaforização e localização de buracos no pavimento. Já foste a zonas da cidade que ainda desconhecerias de outra forma; já entraste em grandes empresas e embaixadas e prédios de escritórios como os dos filmes, com um jardim interior e elevadores de vidro e portas sem nome. Na sede dum banco na Baixa e num pequeno escritório de contabilidade em Carnaxide e no terminal de carga do aeroporto. Tens os teus trajectos preferidos, que alteras entusiasticamente quando te vês batido por outro ciclista; evitaste a Rua da Escola Politécnica durante quase um ano depois dum acidente nos filhos da puta dos carris de eléctrico, inutilizados há quase duas décadas mas ainda um perigo constante. Quanto dizes o que fazes a alguém, a tua voz ainda se ilumina com um harmónico de felicidade, mas não estás tão satisfeito como já estiveste: a novidade de haver quem te pague para pedalar esgotou-se ao fim de algum tempo, e agora afiguram-se-te a falta de progressão, o perigo constante e consequente a que te expões, o sucesso e seriedade e adultidade dos teus amigos. Fazes vagas conjecturas de mudança de actividade. Tentas imaginar-te daqui a dez anos, mas és absolutamente incapaz de conjurar a mais pequena representação mental do que isso poderia ser; desistes. Borrifam-te uns pingos de água que uma rajada de vento fez chegar até ti vindos do repuxo ejaculatório que permanecerás sem compreender. Sentes-te só: a escassez das dez meias dúzias de palavras trocadas com os clientes do dia fazem-te chegar ao fim do dia carente de contacto humano profundo, que a internet e o livro que manténs aberto com o polegar mas que deixaste descair até à cintura não te oferecem. Voltas a pensar na rapariga que te vendeu a comida: vais tentar voltar a comer lá, para ter a certeza. Um trinado electrónico e uma rápida vibração surgem-te da perna direita. Recebeste um serviço, a recolha longe de onde estás, e longe da entrega; um percurso Sul-Norte junto ao rio onde prevês vento contra. Resignado, arrumas o livro inútil, deitas fora os pacotes do sumo e da empada, pões a mochila às costas. Arrotas; tens sede. Sobes os degraus com a bicicleta ao ombro, pousa-la, montas-te e partes.
Maio—Junho 2013 • número 16 • Jornal Pedal
Ficha técnica: 30 fotografias Instagram cor, filtro earlybird, texto e imagens impresso em papel GraphoBright 52gr., bicicleta características: quadro BLB track mint tamanho 49, bb neco 107, pedaleira mighty prata, corrente kmc prata, rodas: aro branco, cubo e raios prata, carretos livre 20 dentes, avanço zoom prata, guiador riser prata, espigão de selim prata, fita d'aro, pneus pasela pretos 28c, selim not concor creme, pedais ckc nylon, manetes travão dia-compe mx122, ferraduras tektro prata.
Um projecto artístico de Ana Pérez-Quiroga, realizado em Maio de 2013, para o Jornal Pedal.
8 Uma (quase) questão de gosto
Jornal Pedal • número 16 • Maio—Junho 2013
D esde sempre que a bicicleta me pareceu um meio de transporte inspirador. Deslocar-me nela do ponto A até B ou, sucessivamente, ir percorrendo outras letras, correspondentes a sítios, é a forma, quanto a mim, é claro, mais agradável de me deslocar em qualquer cidade. As minhas preferências na utilização da "bici" têm um carácter mais de deslocação do que de lazer, sou muito menos dada a '"ir de passeio" e gosto de ter um propósito para a locomoção. Contudo, isto não quer dizer que eu não seja uma flâneur, uma espectadora urbana que deambula pela cidade tirando fotografias. Andar de bicicleta em Lisboa é, para mim, uma novidade, descoberta desde Janeiro deste ano, altura em que comecei a fazê-lo de forma diária. Quando em 2010 a artista plástica Susana Guardado me convidou para participar no seu projecto, Personal DJ, um conjunto de auto-retratos musicados, eu escolhi o meu espaço de atelier para o fazer e quis que à minha imagem fosse também associada a bicicleta. Como eu não tinha nenhuma, pedimos uma emprestada à loja BikeIberia. Neste projecto, eu apareço descendo inúmeras vezes (sete) o troço com o arco da Rua Academia das Ciências que a liga à Rua do Século, onde na altura eu tinha o meu atelier. (Personal DJ Ana Pérez-Quiroga www.youtube.com/ watch?v=ueJzg1oans4). Desde 2007 que todos os anos vou mais de um mês para Xangai e é claro que a ideia que se tem das cidades chinesas passa por imagens de pessoas em bicicletas. Logo que cheguei, uma das primeiras coisas que fiz foi comprar uma bicicleta. Vi algumas nas lojas e em sites. Escolhi uma com um design clássico de senhora, da marca Mengol, que me custou €9.50, nova! Fiquei por lá três meses e esta bicicleta transportou-me por todo o lado, de dia e de noite, desde idas aos fornecedores e assistentes em trabalho, a festas, inaugurações, eventos sociais ou bares de moda. Devo esclarecer que ir para estes sítios mais "in" de bicicleta não era assim tão bem visto, porque andar de táxi em Xangai é muito barato. Mas a minha diversão era incomparavelmente maior e a sensação de liberdade imensa. A esta bicicleta devo um dos projectos artísticos seminais do meu percurso, O quase roubo da bicicleta, 2008 (www.anaperezquiroga.com/Work. aspx?Lang=PT&PRJ=1). Quando me vim embora, dei esta bicicleta à minha Ayi (empregada doméstica) para que a vendesse e ficasse com o dinheiro. Nos anos seguintes, sempre que voltava, iam-me emprestando bicicletas, todas muito melhores do que a primeira. A marca mais famosa é Forever, imortalizada em inúmeros filmes e, mais recentemente, por Ai Weiwei, artista plástico, numa instalação com o mesmo nome. É claro que também pedalei numa dessas. É sempre um prazer renovado pedalar em Xangai e poder misturar-me com os ciclistas locais, seja lá em que "bici" for. Mas, com muita pena minha, esse facto está a diminuir drasticamente. Todos os anos vejo menos bicicletas a circular nas ruas e as aglomerações de ciclistas, à frente dos carros, são de ano para ano menores. Por outro lado, o preço das bicicletas é cada vez mais alto. Xangai é uma cidade plana e as bicicletas podem quase ser de betão porque o peso não tem importância quando se pedala, mas Lisboa é já uma outra história. Eu vivo na Baixa e durante muitos anos não se viam bicicletas nas ruas que fazem parte do meu perímetro de bairro, que vai até ao Príncipe Real, passando pelo Chiado, Bairro Alto e S. Bento. Mas eu queria mesmo andar de "bici" e pesquisei! Numa procura de qual seria a bicicleta que deveria comprar, que compreendia questões ligadas a estilo, marca e preço, uma das características a ter em conta era seguramente o peso. A "bici" teria que ser leve, porque um 5º andar sem elevador sempre é um 5º andar onde tenho que subir com ela ao ombro. O problema era que quanto mais leve mais cara! Bom, sabia agora o que queria! No meu trabalho artístico, o acaso é uma das determinantes para a criação, numa inseparável ligação entre arte e vida; assim, a escolha da bicicleta foi também um projecto artístico. Em Maio de 2012, fui comprar umas latas de tinta spray à Montana, para um trabalho que estava a fazer em stencil; a um canto estava um quadro de bicicleta a ser pintado. O quadro tinha um tubo fino, a cor era um verde claro e eu imediatamente perguntei onde se comprava. - "No Sota". Ah! Era mesmo ali ao lado. Fui! Depois de uma hora de estimulante conversa, eu tinha encomendado uma "bici", quadro, roda, acessórios, cor, quase tudo ficou definido. Faltava apenas tratar de uma pequena questão, o dinheiro. Fui pagando aos poucos e, finalmente, em Dezembro entrava na fase de montagem. Agora era só esperar mais um pouco para a ter. E, quando a recebi, fiquei tão feliz, que desci a Rua do Carmo a cantar a plenos pulmões. Era tarde, a viagem foi curta e, pela primeira vez, subi as escadas com ela. Foi super fácil! Ao longo destes meses fui conhecendo imensas coisas sobre o mundo das bicicletas, conheço agora desde as míticas, às mais trendies. Fui apurando o meu gosto, tendo pesquisado dezenas de sites e fazendo likes em muitas páginas. Assim, fui tomando opções de comportamento: não uso capacete e raramente levo o kit de manutenção, não gosto nada de carregar peso. Desde há muito que fotografo as bicicletas que encontro e de que, de alguma forma, gosto. Quando surgiu a oportunidade de fazer um projecto para o Jornal Pedal, propus-me contar uma pequena história pessoal, ilustrada com imagens tiradas com o Instagram. São instantâneos que publico na minha página e, como tal, são retratos do quotidiano, representando uma vivência social engajada em alguns acontecimentos políticos. Todas as fotos de bicicletas foram tiradas em Lisboa, com excepção da bicicleta verde que tirei em Pequim e da outra que manifestamente se pode identificar com a Ásia e que tirei em Xangai. Agradeço a todas(os) as(os) donas(os) das bicicletas que fui fotografando e que espero que não se importem de aparecer assim retratadas(os). Ao Jornal Pedal (João Pinheiro e Helena César) pelo convite. Ao Nuno Sota ter feito a minha bicicleta. À Hibou Gris, pela ajuda na produção da fotografia onde eu apareço. Ao livro “Bicycle Diaries”, de David Byrne, sim esse mesmo o músico, por ser um dos livros mais inspiradores que li recentemente.
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Maio—Junho 2013 • número 16 • Jornal Pedal
“…e o resto é paisagem”
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texto: Joana Bértholo fotos: Pedro Cardoso & Agnelo Quelhas pedronc.smugmug.com agneloquelhas.com
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m Maio tive o privilégio de fazer parte da equipa que todos os anos leva a cabo a Transportugal Garmin Race, este ano na sua 11ª edição. A Transportugal, como o nome indica, atravessa o país de norte a sul, através de trilhos não asfaltados ou estradas florestais, cruzando planaltos e montanhas, atravessando rios, florestas, reservas naturais, fugindo a zonas habitacionais de maior densidade, sempre pelo interior do país, e quase sempre em diálogo com a fronteira espanhola. É uma prova de aventura, extremamente exigente, em que os 1150km totais se cumprem em apenas nove etapas, e é tida por muitos como uma das mais duras, no género, do circuito internacional. Foi concebida por António Malvar, figura emblemática do BTT nacional, pai não só da Transportugal mas de outras façanhas como a Tróia-Sagres. Cabe-me dizer que adorei a experiência. Catapultou--me para um vórtice espaço-temporal, uma inesperada “máquina do tempo” que me fez revisitar sensações recuadas aos idos tempos como triatleta, por um lado, mas também um outro tempo colectivo, um Portugal suspenso no tempo, à espera, sentado no alpendre, envelhecido, a assistir à sua própria desertificação. Alguns cenários com que me deparei ao acompanhar esta travessia eram tão antigos que já não pertenciam mais à nossa pretensa modernidade. Alguns contavam ainda histórias de mouros, com direito a fortalezas e invasões, e um tal de Afonso Henriques que se encheria de consternação por um país que à custa de tanto suor se conquistou, e tão prontamente se abandonou. Que andamos a fazer dos lugares donde vimos? Há ainda uma outra acepção pela qual o espaço e o tempo se expandiram e perderam a sua sensação rotineira: a quietude da natureza, o tempo sempre certo da paisagem imóvel, que só se move se soubermos ser pacientes, regulando o relógio interno para a existência de outros ciclos que não sejam os laborais, os culturais, os televisivos ou a desestruturante dispersão do tempo na internet. Tudo se aquietou - excepto os anacrónicos atletas. Na sua luta diária contra o cronómetro, numa tentativa constante de superação da sua própria cadência interior, do seu corpo, com os seus ritmos de descanso e nutrição, os atletas eram um exercício de aceleração num contexto em que nada se impacienta. Na natureza tudo acontece no tempo certo e não há qualquer recorde a ser batido. Apenas os atletas extemporâneos e, de alguma forma, eu: conto-vos como esta experiência acelerou imensa coisa em mim. Pensei coisas em que só iria pensar daqui a dois anos, imagino, se me tivesse mantido na minha rotina na minha cidade. O meu corpo começou a mover-se adiante de mim, a minha vida acelerou o passo: é como se o exercício do meu pensar normalmente andasse a pé, minha velocidade natural e, de repente, me tivessem dado uma bicicleta. Ao pensamento. Como explicá-lo melhor? A sensação que hoje trago, retornada à cidade e presa de uma enorme ressaca de horizonte, é que se passaram muitos nove dias dentro destes nove dias: os elos
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que estabeleci com alguns dos atletas e companheiros de equipa não se explicam em nove argumentos; a sensação de jornada que trago não se descreve com 1150km; atravessámos lonjuras maiores que a escala do Portugal que eu conhecia, ou seja, Portugal para mim tornou-se muito maior. Quanto mais vi mais percebi que ficava por ver. O tempo voou - ou pedalou - muito rápido? Voltei atordoada. A cada dia me perguntava: o que leva quase 80 pessoas a deslocar-se dos quatro cantos do mundo para vir comportar uma média de 125km diários no meio de desconhecidos num país que nem imaginam os tesouros que contém? Que impulso de auto-superação moveria cada um deles, cada dia, todos os dias, para que a única coisa que importava fosse atravessar a linha de chegada, desenhada muitas horas adiante de si…? Nunca obtive resposta, ou obtive tantas que foi como não obter nenhuma. As hipóteses variavam com a pessoa, mudavam de dia para dia, dependiam de fazer sol ou de ter chovido e o terreno estar coberto de lama. Não eram as mesmas se a descer ou se a subir, se a noite tinha sido bem dormida ou quando o companheiro de quarto ressonou - a motivação é afinal um fenómeno frágil, quase mágico na sua misteriosa delicadeza. As motivações mais profundas, as que os levaram até ali, entrecruzavam-se com histórias singulares (mas universais) de perda, compensação, frustração, ambição e - muitas vezes - pura e simplesmente, curiosidade. A experiência pela experiência. É que há que imaginar que, passados os 10 ou 15 primeiros, estes atletas eram amadores; altamente empenhados, mas amadores. Não eram pessoas com uma carreira desportiva de alta competição, que viviam para aquilo, não. Era um professor, um farmacêutico, um mecânico, um engenheiro, pessoas que nos tempos livres gostam de pedalar. Pessoas que em algum momento ouviram falar desta duríssima prova, recompensada pelas maravilhas naturais do nosso país, a nossa gastronomia, a nossa hospitalidade, e determinaram - mas porquê? - “…vou fazer isto”. A partir desse momento o propósito de cada um clarificou-se, havia um “para-quê” específico às horas vagas do dia, e a cada dia que passava se estava mais próximo de um objectivo traçado - é até fácil perceber porque tudo isto vicia como vicia. Apercebi-me de que, além da nacionalidade e da idade, pouco ou nada sabia acerca deles, das vidas deles, mesmo daqueles com quem já tinha estado à conversa.
Percebi também como isso não interessa, naquele contexto. Percebi como provas destas permitem a 80 pessoas celebrarem simplesmente o estar juntas, partilharem uma experiência única, acabarem por sentirse inexplicavelmente próximas, sem nunca terem de narrar a história das suas vidas, ou desempenhar os papéis que os definem - mas também limitam - de volta a casa. Sem terem de continuar a ser o “Senhor Gerente do Banco” ou o “Pai de Família” - ali eram todos atletas, unidos pelo amor à bicicleta e à bela arte do verbo “ir”, com um objectivo comum: chegar. Tudo o resto são histórias. Neste sentido, a bicicleta horizontalizou completamente a dinâmica do grupo, vestindo todos de licra e despindo todos daquilo que acham que são “lá fora”. Observando-os momentos antes de partirem, agitados, a conferirem o GPS pela enésima vez, a confirmarem--se uns aos outros com o olhar em sinal silencioso de camaradagem, a olharem em frente sem antevisão possível do que os esperava a cada dia - não existe banqueiro, director de empresa ou dona de casa. Existe só o caminho. O caminho, esse, foi bem generoso em sensações,
obstáculos e recompensas. Foram nove dias plenos de histórias. As histórias à cabeça do pelotão sentia que já vagamente as conhecia, que não diferem muito de prova para prova. Um que foge, outro que ataca, o mais estratégico, aquele que se corta ao exercício do revezar. Todos se prepararam intensamente, os sacrifícios foram vários e há imensa coisa em jogo. A coisa é bem séria, para os dez primeiros. As histórias que a mim me diziam mais encontrava-as se me deixasse ficar para trás. Atletas que se permitiam parar, entrar em cafés, apreciar a paisagem, fazer um desvio (bem, não demasiado…), conversar com os locais, tirar uma foto… Pela forma como a prova está desenhada, não há zonas de abastecimento, ou seja, não é a organização que fornece nada daquilo que os atletas precisam durante os 125km (em média) diários. Todo o apoio externo está proibido pelo regulamento, e a prova está desenhada para que os atletas tenham uma experiência “mais real”, ou seja, menos mediada, perante a paisagem. Que não se limitem a atravessá-la, como um pano de fundo, mas que a integrem. Eu imaginava - ou melhor, romantizava - como se
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mais informação online: trans-portugal.com
sentiriam no decorrer de tantos quilómetros que percorreriam sem ver ninguém. Se dariam uso à possibilidade de fantasiar que não estão em prova, que não são o seu passado, que ninguém os espera em hotel algum, que não são quem julgam ser, que só existe o momento presente: eles, a bicicleta, os pneus sobre o solo acidentado, a linha do horizonte, eventualmente a melodia pacificadora de uma queda de água, um animal ao fundo, as flores selvagens, um velho que passa e acena. Ah, como os invejava: horas e horas de libertadora coisa nenhuma! Um outro detalhe técnico desta prova possibilita esta experiência - a navegação com o GPS. Não é deixada qualquer marca no terreno, nunca se magoa a paisagem, não há setas coladas nem pintadas, apenas três ou quatro checkpoints por prova, e o ocasional carro da organização a garantir que tudo corre bem. Não só a prova passa sem que fiquem pegadas, o que é ambientalmente muito interessante, como se possibilita uma relação mais imediata com a experiência de desbravar um percurso desconhecido. Lembrou-me uma derradeira fantasia minha de um dia pegar na bicicleta e, simplesmente, ir. Na prática, a maioria preferia o mais possível andar em grupo, sobretudo nas últimas etapas, mais rápidas, em que as lógicas de pelotão traziam considerável vantagem a quem não fosse sozinho. Porque nem só de solidão e autoconfronto se fazia cada etapa, muito pelo contrário. Não só havia a camaradagem crescente entre atletas, como as horas passadas entre hotéis, totalmente perdidos em plena segurança, ganharam outra cor com as narrativas acumuladas lado a lado, quando uma boa história faz com que 20km passem a voar. Viveram-se diversas situações caricatas em cafés à beira de estrada, nas pequenas povoações pelas quais se passava ou até nos hotéis ao chegar. Lembro-me de quando a atleta americana, comovida pela pobreza para ela exótica da aldeia onde parou, insiste em deixar uma nota de cinco euros para pagar uma água de 50 cêntimos. Os senhores do café, do qual ela parecia ser a primeira cliente em dias, insistem em dar-lhe o troco, que ela recusa. Ficam nesta dança algum tempo, e os donos do café, atrapalhados, oferecem-lhe então uma cautela de lotaria e garantem-lhe, no seu português de sotaque encoberto:
- Não diga a ninguém mas esta cautela que lhe damos é que é a vencedora…! Apaziguados pela troca agora justa de valores. Ela não percebe nada do que ele diz mas todos rimos, e retoma-se caminho com esta sensação de haver tanta grandeza nos sítios mais pequenos, tanta generosidade nos recantos mais pobres. Eu via o pasmo dos atletas estrangeiros perante a beleza contínua da paisagem e parecia-me irónico que eles descubram um Portugal que a grande maioria dos portugueses desconhece. A Transportugal escolheu passar sobretudo por um país omisso, povoações que não prosperam porque as gerações mais jovem partiram em busca de trabalho, situado sobretudo no litoral e nas grandes cidades. Não discuto a validade deste direito pessoal à luta por uma vida melhor, mas quando se sente o potencial destes lugares para gerar dinâmicas alternativas que poderiam passar pela agricultura ou até por lógicas de turismo rural, sente-se sobretudo que houve uma política de negligência. Daí pensar num país omisso, que se omitiu ou se deixou para trás no nosso movimento avante. Dos magníficos horizontes que esta travessia dá a ver, este foi porventura o mais difícil de encarar, o da crescente desertificação do interior. Como afirma o geógrafo Álvaro Domingues, em “Vida no Campo”: “os destroços do mundo rural estão por todo o lado”. Nesse sentido havia uma certa arqueologia nesta prova, que nos remete de novo para aquela estranha sensação espaço-tempo que confessei de início ter pautado para mim estes nove dias. Por outro lado, seria desumano apelidar as pessoas que ainda ali vivem de “achados arqueológicos”, por muito que as conversações fenomenais que espontaneamente travei em torno do percurso me oferecessem a sensação frequente de ter achado um “tesouro”. Lembro-me de uma senhora muito divertida junto a quem me sentei perto de um checkpoint na etapa entre Unhais da Serra e Monfortinho, que me contou que todos os anos se sentava ali a ver passar os ciclistas, mas que, para meu espanto, não sabia absolutamente nada acerca da prova. Era um ritual que ela parecia apreciar bastante, a cada ano, que ela me disse que lhe dava muito gozo, apesar do facto de que quando passava um atleta só eu o aplaudia. Ela não só não fazia ideia que a prova percorria Portugal de uma ponta a outra, como não acreditou - de todo! -
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quando tentei convencê-la de que só na etapa daquele dia os atletas pedalariam até Monfortinho. - Monfortinho? Mas não é de bicicleta com certeza! Muito me ri. Mas esta era uma reacção comum das raras pessoas que atravessavam o caminho da prova e com quem conversava, como um expressivo senhor na etapa do dia seguinte: - Castelo de Vide? Isso é longe pa’ car****…! Denunciando, na sua espontaneidade, um mundo cuja escala é bem mais diminuta e inexcedível que aquele em que eu me movo, aquele em que a internet já ligou tudo a tudo. Ou quase tudo. Essa foi a minha aventura pessoal, a de tentar trabalhar online desde os lugares mais recônditos do país. Ainda não me ocorreu explicar o essencial ainda vamos a tempo - mas a minha função durante a prova era fazer a ponte entre o que se passava no terreno e o (dito) mundo, sobretudo através do Facebook. Sim, sim, é verdade - fui paga para estar no Facebook! Esse trabalho existe, e eu tive-o. Cheguei foi a desejar não o ter, porque tentar actualizar o Facebook em locais em que o acesso à net é simbólico pode tornar-se num pequeno pesadelo. Mas também me obrigou a entrar nos lugares e a interagir com as pessoas em busca de apoio: - Desculpe senhor, sabe aqui perto onde consigo apanhar rede? - Oh menina, aqui tudo o que vem à rede é peixe. Epifanias várias de um Portugal - muito literalmente - “profundo”. Testemunhos de uma experiência marcante à mistura com a paisagem, o desafio da auto-superação, a queda dos papéis sociais, o milagre da motivação humana, tudo isto muito lindo, sem dúvida, mas então e a prova, os tempos, ou os recordes batidos? Mas e o resto? Para aqueles que esperavam que vos falasse de resultados, vencedores e marcas de bicicleta, pois bem: conto-vos que ganhou o Vítor Gamito. E o Marco Chagas andou muito bem. E houve vários portugueses nos dez primeiros. E dominava a roda 29”. E o americano que fez terceiro na geral pedalou 20km de selim partido ao chegar a Monchique. E havia cinco mulheres em prova, todas estrangeiras. E o maior valor de acumulado foi logo na primeira etapa: 3842 metros. E o resto, e o resto…? O resto é paisagem!
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14 Uma alface a fazer das tripas condução
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primeira impressão que surge na exploração de uma cidade desconhecida é a facilidade com que assoma o exercício comparativo aos felinos olhos do curioso visitante; caminha-se numa avenida, observa-se uma fachada, aprecia-se um panorama e é-se logo encaminhado para um confronto; o visitado é posto em prélio com o habitado através de contrastes, paralelismos, convergências e divergências… de modo que ambos nunca são vistos em si próprios, mas apenas pela diferença que ilustram e oferecem. Ora, este jogo pendular que averigua “o que tem cada cidade que a outra não tenha” é bastante redutor. Introduz fadiga no olhar, obstando a que cada uma delas surja nua ao visitante, na sua dádiva singular. Há que merecer o lugar que visitamos aceitando o desafio de inaugurar e renovar a nossa percepção. No caso de Lisboa e Porto, e da rivalidade que as assiste, o caso é tanto mais flagrante porque indicia uma tensão histórica. Quantifica-se o mais e o menos, qualifica-se algo como melhor ou pior, detalha-se o respectivo carácter tal como quem fala em nome próprio. Os Aliados serão uma Liberdade em ponto pequeno, os tripeiros mais calorosos e bairristas e o sotaque alfacinha uma algaraviada piegas. Será assim? De certo modo, é impossível fugir às influências do chão em que moramos. Transportamo-lo connosco, embebido na nossa carne e projectamo-lo nas novas redondezas. Reconhecê-lo é só aceitar essa bendita e recíproca afectação entre o corpo e o lugar. Se a tivermos em conta, podemos reformular que cada viagem deverá passar também por uma vontade de uma inscrição original e de um abandono temporário dos hábitos e perspectivas que viajam connosco. É por isso inútil, creio, manter qual das cidades é mais ciclável, no cômputo geral. Pelo contrário, devemos esquivar-nos a tais generalidades, sabendo que conhecer e reconhecer uma cidade pela bicicleta facilita essa vontade, porque obriga a uma entrega experiencial despojada às ruas, aos pavimentos e às pessoas. Se pedalar no quotidiano é instalarmo-nos num movimento lúdico, pedalar por caminhos ignorados é um lembrete de quão fantástico é poder descobrir em demorada autonomia um território não cartografado, alheio a mapas, roteiros turísticos e classificações da “Time Out” ou dos “Lonely Planets”. Não há preço para esta liberdade. Porque a ilusão do turismo especializado ou de massas é tal que faz crer que o acesso à vivência de uma cidade pode acontecer em poucos dias, em afã e amealhando umas quantas vistas pitorescas pré-definidas de paisagens e monumentos. Desde que sou puto que vou ao Porto visitar os costados daquelas bandas. Aprendi a pedalar para os
lados da Maia, numa BMX do meu primo. As cicatrizes da perna direita não desmentem as medalhas sanguinolentas dessa aprendizagem. Nas férias de Verão a rotina era ser estremunhado de manhãzinha pela minha avó, seduzido por croissants melados e logo atirado para a maratona nas lojas da Baixa; a corrida durava até à tardinha, quando o meu avô regressava do seu zeloso trabalho, encontrando-me já encostado a um canto com dores nas pernas e saturado de ver escaparates de malhas, miudezas e atoalhados. Corríamos a cidade toda à procura de certo tecido, bibelô ou marroquinaria, sempre em busca do melhor preço. A ida ao Bulhão ficou-me, assim conhecendo a demonstração cabal da dependência alimentar local da cidade; legumes, repolhos, coelhos e pintainhos agitados a circularem como bolas de ténis entre vendedeiras e fregueses ao pé de sacos com fruta, cereais e leguminosas a granel. O regateio era tácito e para um “menino de Lisboa” aventurar-me através dos sinais de uma herança rural ainda bastante acesa eram talvez as melhores férias a que podia aspirar. Hoje uso voltar ao Porto porque também preciso de me certificar se o fascínio que esta cidade continuamente me oferece está relacionado com uma possível nostalgia das memórias de infância; ou se esse encanto não deriva de ele ser uma panaceia para quando os ares da capital estão por demais saturados. Escrever é pois tentar uma resposta sem saber se ela existe. Porque uma ida ao Porto pacifica e revigora(-me). Voltando aos limites da comparação, podemos vislumbrar como estes exercícios de urbanismo pedalado poderão ajudar a perceber o que Lisboa já foi e o que o Porto poderá vir a ser. Percorrer uma cidade de bicicleta é talvez o mais próximo que poderemos ter para uma metodologia crítica de exploração de cidades “no terreno”; é achá-la e imaginá-la nos interstícios do verosímil, para que no fim possamos “todos” rejeitar certos espaços e defender outros, barricando-os das ameaças que os espreitam. Em 1949, na Lisboa herdada das mãos de Duarte Pacheco, o mercado da Figueira e parte da Mouraria, no que é hoje o Martim Moniz, tinham já sido demolidos com o argumentário higienista e da necessidade de avanço do progresso através de mais vias para o tráfego rodoviário. Pelo caminho ficaram a demolição de Alfama e a construção de túneis entre os Restauradores, a Rua da Palma e o Corpo Santo. Entretanto, construíam--se largas e rectilíneas avenidas e a cidade expandiu-se para lá do centro, esvaziando-o. Hoje, e cada vez mais, o casco histórico de Lisboa é sacrificado a pataco à instalação de uma feira mediática de variedades que o vai tornando num postal pretensamente típico, cheio de atracções e lembranças para turistas estrangeiros, onde
Texto: Tiago CarvALHO Ilustração: Vai Elena vaidaelena.tumblr.com
os poucos residentes idosos vão assistindo ao avanço do deserto especulativo. Neste sentido, o Porto deve muitas das suas qualidades urbanas ao facto de não ter sido o centro político e financeiro do país e de, com isso, ter ficado poupado a profundas reestruturações urbanas e a experimentos de engenharia social em que a capital é pródiga; nesta acepção, uma cidade pode, como um corpo anafado, padecer de maleitas derivadas de alimentação demasiado calórica que arquitectos e urbanistas lhe vão prescrevendo; ter uma horta, comer frugalmente ou na dose certa é, por vezes, o segredo para a grande saúde dos lugares. Pedalar pelo Porto, desbravando-lhe a dieta, exige pois alguns segredos. Um passeio inicial óbvio é o da marginal, seguindo até à Foz, e daí até à rotunda da Boavista. Desde a ponte do Freixo, a montante de Campanhã, até à ponte da Arrábida, a jusante, sucedem-se aquelas várias vertigens invertidas à passagem sob os vãos abobadados das pontes, acompanhando-se a sinuosidade do rio Douro; caudaloso, selvagem, está hoje amansado por barragens que lhe ocultam a força que escavou o enrocamento entre Porto e Gaia. Com um leito menor, a relação entre as margens é mais pronunciada; um salto à Afurada, no termo de Gaia, pela ponte D. Luís, põe-nos juntos ao cabedelo do rio e daquela comunidade piscatória já falada nos “Pescadores”, de Raul Brandão. Daí pode voltar-se de barco para o cais de Massarelos, na margem direita. Para trás e nessa margem, ficam, cavaleiros ao rio, as torres do Bairro do Aleixo e o Jardim Botânico da Universidade do Porto, no Campo Alegre. Continuando para poente, chega-se à Rua do Passeio Alegre, onde estão instalados alguns aprestos para a faina da comunidade piscatória dos Pilotos. A relação da cidade com o rio, ao longo desta linha, é tangível. Cheira a maresia, há gaivotas à coca no céu e nos telhados; abaixo, e as canas e os iscos sondam o espelho de água e as peles vão sendo tisnadas. Seguindo o rio até ao fim, já na foz, surge-nos, ao redor da barra do Douro, uma ciclovia; prolonga-se, ladeando a praia com o mar alteroso, até ao Castelo do Queijo e aí estremando o concelho de Matosinhos. Dependendo da hora, a nortada pode aparecer, afectando o equilíbrio da pedalada, acrescentando virtualmente mudanças extras ou dando um resfriado a pescoços desabrigados. O casario, ao longo da costa, mudou de feição; aburguesou-se, tornando-se mais rasteiro, adornado, perdendo aquele amontoado encavalitado do centro ribeirinho, para aparecer aqui mais geométrico. Na Massa Crítica de Abril, o Tiago Silva, da MUBi, referiu-me como essa ciclovia está mal desenhada, carecendo de visibilidade. Existe também outra ciclovia instalada na Avenida da Boavista até meados do seu comprimento, seguindo igualmente até
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próximo de Serralves e que também não colhe uma boa opinião do Tiago, dada a quantidade elevada de intersecções. A mim ajudou-me porque desconhecia essa avenida dada a aceleradelas, vendo até alguns ciclistas descerem-na até ao Parque da Cidade. Da rotunda da Boavista escolhi descer para o centro pela Rua Júlio Dinis. Com a excepção do planalto mais alto do Porto, a nascente, em torno da Praça Marquês de Pombal, esta rotunda distribui o tráfego para um extenso planalto. No percurso até Cedofeita ou até à Praça dos Leões, há ainda duas possíveis vias, de elevada pendente, que acedem à marginal, e que talvez aproveitem os vales de ribeiros tributários ao Douro, entretanto encanados. Do Campo Alegre, perpendicular à margem, desce a rua D. Pedro V, que subi numa relação com a pedaleira 54, arfando por água. A outra, mais curva, é a Rua da Restauração, com o piso em mau estado; o eléctrico 18 acompanha-a, numa bitola diferente da lisboeta e que, sendo mais larga, talvez não os torne tão perigosos. Um dos passos para aumentar a ciclabilidade do Porto seria talvez prôpor à STCP a instalação nestes eléctricos de amparos para duas ou três bicicletas e que, decerto, poupariam muitas pernas a estudantes que venham da cota ribeirinha. Chegados aos Clérigos, a cidade abaixo densifica--se num apertado agasalho de granito, adaptadas as suas ruas, travessas, vielas e quelhas aos sabores do enrugamento da superfície. Talvez um vislumbre do dédalo lisboeta antes da regra e esquadro do Marquês de Pombal. Nesse escuro regaço, abrigados do sol, a luz cai-nos como quem beija. Só nos Aliados há alguma folga desse abraço apertado, implorando que desçamos do selim. Sobranceira ao vale, a colina leste, compreendendo a Batalha e os Poveiros; no colo dessa encosta, várias ruas de festo correm paralelas, como a de Santa Catarina ou a da Alegria; com a Rua do Bonjardim, à Trindade, este triunvirato serve de saída para o planalto superior do Porto, em direcção à praça do Marquês de Pombal e à cicloficina da Casa
Viva. Daí podemos apanhar a rua mais comprida do Porto, a Costa Cabral, e conhecer na Alberto Silva & Filho um dos poucos mestres em Portugal que ainda domina a feitura de quadros de bicicletas. Para a Praça da República, na colina que remata nos Clérigos, leva-nos a Rua dos Mártires da Liberdade, com a Mirita e a fonte das Oliveiras a oferecerem o contraste entre o vinho e a água, marcando o começo de um trecho pedonal. Circular de um morro para o o outro nem sempre é óbvio, pois no Porto as ruas, não sendo tão largas, são amiúde de sentido único e, sendo estreitas, obstam à circulação em sentido contrário. É em duas dessas vias de acesso ao Vale dos Aliados que podemos encontrar várias antigas lojas e oficinas de bicicletas, como a “Barbosa”, ao túnel de Ceuta ou a BiciPorto, à Rua da Conceição. Para sul, debruçamo-nos para a Ribeira e a Alfândega, tornando o terreno a cair. Acima deles, o morro da Sé, quase suspenso e com o acesso, na linha de cumeada, ao funicular de Guindais, à ponte D. Luís e às escadas do Codeçal, entroncando estas nas escadas da Verdade. A Rua das Flores e a Mouzinho da Silveira são vias incontornáveis para o mergulho ou a fuga ao degrau mais fundo da cidade. É neste afunilamento, desde as praças referidas, que o Porto se mostra na sua melhor escala, e para a qual a bicicleta mostra a sua amizade. Tudo é perto, por ali ou acolá e, com paciência, vence-se as calçadas declivosas e aguenta-se as trepidações do empedrado. E as inúmeras confeitarias vão reabastecendo os mais velozes metabolismos. Por alguma razão, o tráfego automóvel não é tão pronunciado como na capital, nem o é o estacionamento selvático nos passeios. E contudo, para nos entranharmos no Porto, é necessário um ritmo mais pausado. Apearmo-nos da bina é o melhor reconhecimento que lhe podemos fazer. Andar nos passeios do Porto é já treinar o enraizamento das solas que, sem a calçada portuguesa escorregadia, se afundam pelas esconsas ruelas no cimento quadriculado ou nos blocos graníticos onde a mica
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reluz. Esta ronceira errância atira-nos para uma arqueologia feita pelos pés. As casas comerciais (de lavores, de acordeões, cutelarias, vidrarias ou a bombonaria, sirgaria, paramentaria, manteigaria, escovaria, etc.) do Porto ainda assinalam os tempos em que cada mester estava confinado a uma delas; tal como no baptismo da Baixa lisboeta, em que os fanqueiros, ourives e sapateiros tinham os seus estabelecimentos fixados. Por outro lado, é uma delícia notar nelas o brio e o carinho com que as montras e os letreiros são decorados e personalizados, como se o dono nos estendesse a mão para uma visita à sua humilde mas orgulhosa morada. São poucas as lojas em Lisboa com este denodo; a maioria delas engrola o ofício. No Porto, a presença do entorno rural ainda existe bem para lá da toponímia; se lhe somarmos a ausência pronunciada de funcionários da administração central, o resultado é uma maior distância e indiferença aos jogos de poder e dinheiro do Terreiro do Paço. E por isso surge aqui, ainda com pujança relativamente a Lisboa, o comércio local e familiar, numa minuciosa diversidade de artes e negócios que são afinal um indício da resistência ao rolo compressor de duas faces, mas da mesma moeda: o turismo no centro histórico artificial e as grandes superfícies da periferia. Porque o pequeno comércio, longe de romantismos, tem uma dupla função. É o ganha-pão do dono baseado no valor de troca da mercadoria mas também é, pela familiaridade destas casas, uma promoção do valor de uso da rua, pelo convívio e confiança. Nessas lojas compra-se, claro, mas também se repara, prolongando assim a vida de vários bens, em vez de remeter os “consumidores” à compra de um novo artigo. É impressionante ver como uma cidade com menos população do que Lisboa consegue no seu centro ter mais pessoas de todas as idades nos passeios. Sugere que, ao invés de nos batermos por mais bicicletas nas ruas, uma estratégia talvez mais eficaz é a luta pelo direito à apropriação dos espaços, pela habitação ou pela ausência de automóveis, combatendo o fantasma especulativo que drena de vida o centro das cidades.
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NÚMERO DEZASSEIS – MAIO—JUNHO 2013 Ficha Técnica: Director: Bráulio Amado ba@jornalpedal.com Director Adjunto: Luís Gregório lg@jornalpedal.com Editor: João Pinheiro jp@jornalpedal.com Redacção: João Bentes jb@jornalpedal. com, Joana Bértholo, Tiago Carvalho Colaboraram nesta edição: Fotografia: Fábio Teixeira, Ana Pérez-Quiroga, Pedro Cardoso, Agnelo Quelhas, Enrique Díaz Ilustração: Dawid Ryski Textos: Ana Santos, Mário Alves, António Borges Cruz, Eduardo Mendonça, Ana Pérez-Quiroga Banda Desenhada: Rick Smith Revisão: Helena César Design e Direcção de Arte: Estúdio HHH Comunicação: Helena César hc@jornalpedal.com Departamento Comercial e-mail: info@jornalpedal.com tlm: 915044437/933514506 Distribuição: Algarve: Bike Postal, Markko Bike Messenger. Porto: Roda Livre JORNAL PEDAL é uma marca registada / Morada: Praça Gonçalo Trancoso 2 – 2 esq, 1700-220 Lisboa Tel: 933514506/915044437 email: info@jornalpedal.com web: facebook.com/JornalPedal / jornalpedal.com / twitter.com/JornalPedal Impressão: Empresa Gráfica Funchalense S.A. funchalense.pt | email: geral@egf.com. pt Tel. 219677450 Fax 219677459 Tiragem: 5.000 exemplares Depósito Legal: 340117/12 O JORNAL PEDAL faz parte da Cooperativa POST postcoop.org Jornal Pedal é uma publicação gratuita que não pode ser vendida.