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porto alegre abril 2012

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meramente ilustrativo

RTO ABORTO lei geral • paul singer • papel • jesus


TABARÉ [Jessica Dachs]

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oca-Cola, Adidas, Sony, Visa, Castrol, Oi, Itaú, Liberty Seguros, Odebrecht, OAS e Camargo Corrêa. Se você é dono ou acionista de uma dessas empresas, tem motivos de sobra pra estar feliz com a Copa do Mundo de 2014. Se não é, tem motivos de sobra pra estar indignado. Muito se fala a respeito dos problemas da Copa no Brasil: corrupção, obras superfaturadas e mau aproveitamento da infraestrutura após os grandes eventos (vide o Panamericano 2007 no Rio). De fato, são temas preocupantes. No entanto, mais preocupante é ver que muitas vezes o debate se limita a essas questões. Em nome do “desenvolvimento”, as obras de infra-estrutura destruirão as casas de cerca de 170 mil pessoas, que, mesmo realocadas, na maior parte das vezes o são longe de seu trabalho, de postos de saúde e dos vínculos criados com suas antigas comunidades. E não é só em nome do “progresso da nação” que o governo destrói habitações. A Vila Autódromo, no Rio de Janeiro, por exemplo, será parcialmente destruída por infringir “a legislação ambiental”. Mas até mesmo a consultora da ONU no Brasil para moradia adequada, Raquel Rolnik, admite que a verdadeira razão é tornar a área mais apetitosa à especulação imobiliária. Nas Copas do terceiro mundo, os pobres não são removidos apenas em termos habitacionais, mas também em termos paisagísticos. Direitos trabalhistas também serão atacados. São 13 categorias de trabalhadores que terão seus direitos à greve tolhidos durante a Copa. Se quiserem paralisar as atividades, terão que comunicar com 15 dias de antecedência e manter 70% dos trabalhadores em atividade. O direito ao trabalho também será pisoteado pelos cordões de isolamento que impedirão ambulantes de vender comidas e bebidas nas ruas próximas aos estádios, acabando com o comércio popular. Esqueça o pastel de um pila e os dois latão por cinco. Quem quiser beber, tem que beber Budweiser. Quem quiser comer, tem que comer McDonalds. Como já foi dito, a FIFA não deixa cair migalhas da mesa. Também podem ser criados tribunais de exceção. A Constituição brasileira veta previamente qualquer medida nesse sentido, mas é uma das condições da FIFA para a realização do evento. Na África do Sul foram esses tribunais que condenaram um nigeriano a três anos de cadeia pelo simples fato de ser cambista e um sul-africano a 20 meses pela tentativa de furtar um edredom, entre outros casos. O Congresso também se esforça para criar uma lei anti-terrorismo vaga e ambígua, que deve tipificar crimes não previstos no Código Penal brasileiro, outra medida claramente inconstitucional. Diversos juristas e lideranças de movimentos sociais apontam que, do jeito que se encontra o Projeto de Lei, qualquer manifestação e protesto poderá ser enquadrado como “terrorismo”. Temos ainda as questões da privatização dos aeroportos, das regalias fiscais que o governo abrirá para os parceiros

da FIFA, etc, tudo com base no Caderno de Garantias e Responsabilidades, entregue pelo governo brasileiro à FIFA em 2007, sem discussão alguma com a sociedade civil e entregue a uma entidade privada que não possui absolutamente nenhum compromisso com nossa sociedade. O fato é que a Copa não é nossa. É da FIFA. E de seus patrocinadores. Nada muito novo na história do Brasil: prejuízos socializados, lucros – grandes lucros – privados.

Ariel Fagundes, Chico Guazzelli, Felipe Martini, Gabriel Jacobsen, Guilherme Dal Sasso, Iván Marrom, Jessica Dachs, Júlia Schwarz, Juliana Loureiro, Leandro Hein Rodrigues, Luísa Santos, Luna Mendes, Maíra Oliveira, Matheus Chaparini, Marcus Pereira, Martino Piccinini, Natascha Castro Projeto Gráfico: Martino Piccinini Capa: Paola Alfamor wix.com/alfamor/alfamor Colaboradores: Fernando Costa, Glauber Winck, Mario Arruda, Roberta Perin, Ubiratan Carlos Gomes, Yajna Moreira Tiragem: 2 mil exemplares Contatos: comercial@tabare.net tabare@tabare.net facebook.com/jtabare @jornaltabare Distribuição: Fabico Famecos Instituto de Artes UFRGS Xerox da Clê Espaço Contraponto Palavraria Ocidente Tutti Giorni Casa de Cultura Mario Quintana Comitê Latino-americano Instituto NT Nova Olaria


Refri do $enhor Coca-Cola, tremei: a Leão de Judá Cola quer tua cabeça. O refrigerante gospel produzido desde 1999 pelo empresário Moisés Magalhães quer destronar a multinacional com a grana da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), que se tornou sócia da companhia Leão de Judá. Moisés é fiel ao culto de Edir Macedo e odeia a Coca mais do que tudo na vida. “Ela é a água suja do inferno, é a água podre do Diabo”, afirma no Youtube. Segundo Moisés, a Coca-Cola “foi criada com um único propósito por Lúcifer”, que seria “viciar a pessoa na cocaína”. “Quem cria a base de consumo [de cocaína] no mundo inteiro é a Coca”, assegura o fiel. O empresário quer derrotar a gigante dos refrigerantes como Davi venceu Golias: com violência. “Deus nos mandou substituir ela e nós vamos estar substituindo a Coca-Cola. É o nosso boi, é o nosso alvo. Nós somos leões e nós vamos partir pra cima desse mercado”, avisa Moisés.

Político verde fisga peixes em extinção O vice-prefeito de São Sebastião, no litoral paulista, foi pego com pesca ilegal na Estação Ecológica Tupinambás, no Arquipélago de Alcatrazes. E isso que Wagner Teixeira é do Partido Verde, foi até eleito presidente do PV no município. O Ibama flagrou o dito ambientalista com 116 kg de peixes de várias espécies, algumas delas ameaçadas de extinção. Wagner guiava uma lancha que só parou para ser fiscalizada porque seu combustível acabou após uma perseguição de 20 minutos a 100 km/h, com direito a gritos e sirenes. Teixeira e seus cinco parceiros de pesca foram detidos, mas logo liberados. Serão processados e pagarão multa, a do vice-prefeito deve chegar a R$ 60 mil. Em tempo De 2001 a 2008, Wagner Teixeira foi vereador e, durante seu mandato, redigiu uma moção de apelo ao Ministério do Meio Ambiente pedindo proteção ecológica ao Arquipélago de Alcatrazes. Que laje!

Em tempo Em parceria com a IURD, a Leão de Judá pretende criar uma rede de 7 mil distribuidores para comercializar uma linha exclusiva de 700 produtos da marca, que vende sucos, água e alimentos além de refri. A meta de faturamento mensal é de R$ 360 mil para cada distribuidor. Aluga-se a polícia A coisa tá feia na Grécia. Pra pagar as contas da Segurança Pública, o Ministério de Proteção Cidadã decidiu alugar seus policiais. Por € 30 a hora, um grego já pode alugar um tira. Mas uma viatura inteira sai até mais em conta, € 10 a hora. Esse ministério que protege seus cidadãos com o cárcere e cacetadas informou que a polícia da Grécia será alugada apenas para escoltar materiais perigosos, objetos de valor e dinheiro, treinar seguranças privados e participar de filmes de cinema ou séries de tv.

Oi!! queria ver com vocês onde eu poderia conseguir uns... 60 exemplares, mais ou menos... para distribuir aos meus alunos em um cursinho popular. Abraços!

[Maíra Oliveira]

Em tempo Tá cara a segurança grega. Desde que apertou a crise, a média de manifestações em Atenas é de três ao dia. Imagina o que eles gastam só com gás lacrimogêneo...

CARTAS

Val Vanessa Souza, professora e apreciadora do Tabaré Oi, Val! É só dizer quando e onde que iremos até e lhe entregamos a remessa. Apesar do jornal ser de graça, parcelamos em até 10 vezes.

@tabare.net

Prezado Ariel, cumprimento a equipe do Tabaré pela excelente e inédita reportagem histórica sobre a Real Feitoria do Linho Cânhamo de Canguçu continuada em São Leopoldo. Agradeço os exemplares enviados; distribuirei a interessados. Cláudio Moreira Bento, Coronel historiador Graaande Coronel! O Tabaré agradece e te manda um forte abraço.

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Malhação de Judas Cagueta bom é cagueta morto: eis a primeira das leis criadas pelo homem. Ainda hoje, persiste a tradição cristã de surrar aquele que traiu Jesus. Incusive o próprio Judas, o dedo-de-gesso primordial, arrependido da crocodilagem cometida, se enforcou e a cada ano vemos a cena repetida nas incontáveis encenações da Paixão de Cristo. Mas uma dessas peças, em Itararé, SP, foi longe demais. A cena protagonizada pelo ator Thiago Klimeck ficou perfeita, tão perfeita que a equipe custou a perceber que o rapaz estava se enforcando de verdade. Ao que tudo indica, foi um acidente com o equipamento de segurança. A produção disse que o aparato era do Corpo de Bombeiros. Os bombeiros lavaram as mãos. Em tempo Após duas semanas de coma profundo, Tiago Klimeck morreu.

E aím, galera bonita! Seguinte, andei pensando e decidi que quero assinar o Tabaré, visto que não bebo e posso reverter R$15 que seriam gastos em ceva em uma contribuição pequena, porém, honesta, ao jornal mais simpático e descontraído dos últimos tempos. Falando nisso, vocês escrevem bêbados? Abraços! Morena Chagas, abstêmia Que isso, não somos disso! Mas,

Morena, assina o Tabaré mesmo. Afinal, ler o Tabaré e tomar um porre tem o mesmo efeito

O Capoeira — Qué apanhá sordado? — O quê? — Qué apanhá? Pernas e cabeças na calçada. Oswald de Andrade, poeta recorrente nas cartas do Tabaré Desculpa, não entendi.

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A odisseia do papel texto e fotos Yajna Moreira

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ocê pegou o jornal. Dobrou-o e jogou-o na mochila, na bolsa, embrulhou o pão e, finalmente, sentou-se na privada para lê-lo. Mas antes da leitura, há um longo processo que começa na produção do papel nas indústrias de celulose, onde são utilizadas substâncias extremamente tóxicas – principalmente o cloro – para branquear as folhas que preenchem os livros, revistas, jornais. Dependendo do tipo de papel, o tratamento de clareamento pode ser mais ou menos agressivo. Por exemplo, o papel jornal 48 passa por um procedimento de branqueamento mais ameno, além de ser feito a partir de restos de madeira, o que o torna inclusive mais barato. No entanto, a procura por papel sulfite branquinho, limpinho, certinho é bastante volumosa. Para suprir essa demanda, a empresa Celulose Riograndense, que é parte da companhia chilena CMPC, presente em mais de sete países, vai expandir o seu parque industrial. Hoje, o complexo produz 500 mil toneladas de celulose por ano, porém pretende até o segundo semestre de 2014 quase quadruplicar essa produção, atingindo a marca de 1,8 milhões de toneladas por ano, tornando-se a maior produtora da região sul do Brasil. Entretanto, aumentando a produção, aumentam-se também os riscos em caso de contaminação do ambiente. Durante o clareamento da celulose, além do cloro, são utilizados derivados desse elemento, o que produz uma substância carcinogênica radicalmente nociva aos seres vivos – a dioxina. Em 1997, o composto foi classificado pela Organização Mundial da Saúde como cancerígeno, já que o organismo o confunde com um hormônio que estimula a formação de tumores. As principais ocorrências são no trato intestinal, linfomas, leucemias, além de sarcomas em partes moles. A dioxina pode ser liberada naturalmente na atmosfera em forma de gás, através de incêndios em florestas e erupções vulcânicas. Porém, na vida urbana, criou-se outras formas de liberação da dioxina gasosa: enquanto carros, fogões, lixões liberam uma quantidade ínfima da substância,

a queima inadequada de compostos clorados em indústrias de reciclagem de metais, por exemplo, libera uma quantidade enorme. As indústrias de celulose despejam uma quantia relativamente pequena do composto no ambiente, mas, mesmo assim, o risco à saúde é grande. No mês passado, a Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (US EPA) divulgou uma pesquisa sobre os efeitos da dioxina, realizada ao longo de 27 anos. Visto que a substância pode ser ingerida através de alimentos contaminados, sobretudo, gordura animal, a US EPA estabeleceu um valor-referência de consumo “seguro” desse efluente: 0,000000000007 g por quilo por dia. Por isso a Associação Gaúcha de Proteção ao Meio Natural (Agapan) já entrou com duas ações judiciais contra a ampliação da fábrica da Celulose Riograndense, pois acredita que o aumento da produção vai gerar, por conseguinte, mais dioxina. “Os efluentes são todos liberados no

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Guaíba e a fábrica não tem controle, já que são quantidades ínfimas e que mesmo assim são poderosíssimas”, denunciou o presidente da Agapan e ex-funcionário da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (FEPAM), Francisco Milanez. O ambientalista lembra ainda que em alguns países, como a Alemanha, proíbem o despejo da dioxina na água, por conta da alta toxidade da substância. No entanto, o gerente de qualidade e meio ambiente da CMPC, Clóvis Zimmer, garante que semestralmente a empresa é submetida a testes da FEPAM sobre a qualidade da água. De qualquer forma, a população que vive nos arredores da Celulose Rio Grandense não vê problema na ampliação da fábrica. “Eles nos chamaram há mais ou menos uns dois anos para explicar o aumento da fábrica e eles mesmos disseram


que poluem um pouco, mas em quantidade insignificante, o que não afetaria nem o ambiente, nem a nossa saúde”, afirmou o frentista José Augusto Pereira. O morador de Guaíba, Clarélio Santos, também não se opõe ao aumento do parque industrial. “Antes, quando era a Borregaard, era muito pior, fedia a ovo podre o tempo inteiro. Agora é só às vezes que fede”, compara Santos. O representante da Secretaria de Meio Ambiente e Agricultura de Guaíba, Maximiliano Finkler, afirma que os moradores não se incomodam com a presença da fábrica na região, pois ela gera empregos, movimenta a economia, além de desenvolver a infraestrutura. “É uma obra de R$ 50 milhões que já começou a abrir ruas, vai melhorar a iluminação, o sistema de esgotos, enfim, vai gerar toda uma urbanização da área”, argumenta.

Zimmer tranqüiliza a população sobre a poluição da dioxina e insiste que, desde 1992, a empresa se preocupa em reduzir os poluentes e investir em novas tecnologias para diminuir a geração de efluentes: “Agora estamos totalmente em conformidade com a Convenção de Estocolmo que regulamenta a emissão de compostos como a dioxina”. Mas, apesar dos esforços em não poluir, a Celulose Riograndense ainda não encontrou uma solução plena para a emissão da toxina. O presidente da AGAPAN propõe a substituição do cloro por outras substâncias: “É possível a utilização de peróxido de hidrogênio ou de ozônio para o clareamento da celulose em vez de dióxido de cloro, o que não produziria dioxina”. Ele sustenta

ainda que, se a fábrica de celulose instalada em Guaíba deixasse de usar cloro no branqueamento das folhas, a AGAPAN retiraria os dois processos contra a empresa. O professor Dexheimer chama a atenção para a inviabilidade financeira da substituição: “Ambos, tanto o peróxido quanto o ozônio são ótimos alvejantes, mas bem mais caros que o cloro”. Ele defende que os papeis reciclados ainda são a melhor alternativa: “Além de reutilizarem o papel que já foi usado anteriormente, ele não passa por esse processo de clareamento, sendo ecologicamente muito mais correto.” Por isso, antes de imprimir, rabiscar, jogar papel fora, é importante lembrar o quanto a natureza foi afetada para produzi-lo.

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Toca do Disco - Garibaldi, 1043 Dirty Old Man - Lima e Silva, 956 Psico Bar Café - Barros Cassal, 719

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[Gabriel Jacobsen]

por Júlia Schwarz, Juliana Loureiro, Luna Mendes e Natascha Castro colaborou Iván Marrom

MULHERES sANGRADAS No mundo, são realizados 42 milhões de abortos todos os anos. Mais de um milhão deles, no Brasil. A cada sete minutos uma mulher morre em algum dos cinco continentes em decorrência das complicações de procedimentos mal feitos. Em nosso país, essa é a terceira causa de morte materna. Esses são os dados da Organização Mundial da Saúde e do Ministério da Saúde do Brasil.

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lara e o namorado pagaram três mil reais pelo aborto em uma clínica localizada em um bairro de classe alta. Simone fez no consultório de seu ginecologista há cinquenta anos. Maria era adolescente e foi levada pela mãe a uma curandeira. Gisele passou uma semana internada por complicações decorrentes de um aborto caseiro. Todos esses casos aconteceram em Porto Alegre, contrariando o Código Penal Brasileiro, que prevê de um a três anos de prisão para a mulher que provoque um aborto em si mesma ou consinta que outros o façam. Se essa norma penal fosse colocada em prática, cerca de 20% das mulheres brasileiras estariam ou teriam estado presas, segundo a Pesquisa Nacional de Aborto (PNA), realizada em 2010 pela Universidade de Brasília e pelo Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Instituto Anis). A pesquisa, feita com mais de duas mil mulheres entre 18 e 39 anos das áreas urbanas do país, mostra que, ao completar os 40 anos, uma em cada cinco brasileiras já abortou. “Se todos esses abortos fossem processados, acho que seria o maior crime cometido por mulheres e talvez pela população brasileira”, afirma Carmen Hein Campos, coordenadora da ONG Themis – Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero e coordenadora nacional do CLADEM (Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher). Uma das fundadoras da Themis, Virgínia Feix, acredita que o dispositivo penal que criminaliza o aborto está no código apenas como retórica, como “uma forma de controle social, político e religioso sobre o corpo das mulheres, porque na prática, as estatísticas demonstram que não há nem abertura de processos em delegacia de polícia e, quando há, poucos desses processos são levados à denúncia pelo Ministério Público e muito menos viram condenação por parte do poder judiciário”. Algumas ações pontuais para coibir o aborto são realizadas esporadicamente, por pressão de setores religiosos. Nessas ações, clínicas são estouradas e médicos e mulheres são presos. Contudo, do ponto de vista de uma política criminal com uma pretensão punitiva e coativa, os números demonstram que essa ação é extremamente ineficaz. O alto número de abortos realizados no país - cerca de 1 milhão por ano - indica que essa é uma prática recorrente, realizada por uma diversidade de mulheres em situações bastante diferentes.

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Um perfil impreciso Clara tinha 21 anos e cursava uma universidade particular. Ela e Bruno, o namorado, estavam juntos há pelo menos três anos. A decisão de interromper a gravidez partiu dela, que acreditava não ter a estrutura psicológica necessária para criar uma criança. Apesar das boas condições econômicas das famílias, o casal não tinha a independência financeira que julgava necessária. Foi através de uma ginecologista que os dois conseguiram o contato de um médico disposto a interromper a gravidez. Bruno, que ficou aguardando do lado de fora da sala cirúrgica, disse que o procedimento foi rápido. Clara afirma que não sentiu dor e foi trabalhar no mesmo dia, sem qualquer tipo de arrependimento ou culpa. Ela faz parte do grupo de mulheres que têm acesso a um aborto seguro e discreto. Grupo esse que não se destaca no imaginário social que vê a mulher que recorre à prática do aborto como sendo alguém sem instrução, condições econômicas e estabilidade conjugal. Tampouco é o grupo que predomina nas pesquisas sobre aborto realizadas no Brasil. Um mapeamento dessas pesquisas nos últimos 20 anos, realizado pelo Ministério da Saúde, revela que as mulheres que recorrem à prática têm, em sua maioria, entre 20 e 29 anos e se encontram em união estável. Grande parte delas têm até oito anos de estudo e são trabalhadoras, católicas, com pelo menos um filho e usuárias de métodos contraceptivos. Contudo, essas pesquisas não abrangem a diversidade de mulheres que optam por interromper a gravidez, uma vez que se baseiam em prontuários e relatórios médicos coletados em hospitais da rede pública de saúde. A estimativa é de que as pacientes que recorrem ao SUS correspondam a apenas 20% de todas que fazem aborto no país. O restante abrange desde mulheres que têm acesso a um aborto em uma clínica segura, como Clara, até aquelas que fazem em casa e não precisam se dirigir aos hospitais.

o resultado esperado: a menstruação. Após alguns minutos de enjoo, ela sentiu-se melhor. Voltou sozinha de ônibus para casa e trabalhou ainda no mesmo dia. Simone recorda que naquela época a realização de aborto pelo mesmo médico das consultas e exames de rotina era o procedimento padrão, desde que a gravidez estivesse nas primeiras semanas. “Ninguém sabia se [induzir um aborto] era proibido ou não. Todo mundo fazia”, afirma. Havia, inclusive, um médico cujos nome e clínica eram conhecidos em Porto Alegre pelo método diferente que utilizava para o abortamento: gotas pingadas diretamente na vagina da mulher que trariam a menstruação em poucos dias. A sobrinha de dona Simone, Maria, não teve o mesmo conforto quando precisou interromper a gravidez. Entre as décadas de 1980 e 1990, o cerco contra o aborto havia apertado bastante. As pessoas já estavam cientes de sua proibição e a maioria dos ginecologistas haviam deixado de praticá-lo. Quando a adolescente engravidou de um namorado ainda mais jovem e decidiu

Uma forma de controle social, político e religioso sobre o corpo das mulheres

Todo mundo fazia Em 1962, Simone era cozinheira, mãe de dois filhos e esposa de um homem viciado em álcool e jogo. Ao notar que sua menstruação estava atrasada, decidiu ir ao ginecologista para que ele “forçasse”. Da mesma forma como foi feito em suas irmãs, Simone não viu nada do procedimento, apenas

pelo procedimento, o preço cobrado era maior do que a família tinha condições de pagar. Foi então que sua mãe, Lúcia, ouviu falar de uma curandeira que fazia abortos em Gravataí pela metade do preço cobrado na clínica. O procedimento realizado pela curandeira parecia ter acontecido da forma esperada, mas o sangue não estancava e Maria continuava sentindo enjoos. Ao ver que o sangue derramado já enchia duas bacias, sua família optou por levá-la ao Hospital Conceição, em Porto Alegre, onde ela ficou internada por uma semana. Após o medo de perder a sobrinha, o fantasma da cadeia: com receio de que a irmã pudesse ser presa por ter levado a filha ao local do abortamento, Simone orientou Maria a dizer no hospital que havia ido sozinha. Lúcia e Maria nunca chegaram a ser indiciadas; a curandeira, que já respondia a outros processos, foi presa anos mais tarde. As origens da proibição O abortamento passou a ser abominado como crime contra a vida nas comunidades ocidentais a partir da oficialização e popularização do cristianismo no século IV. Antes disso, na fase de expansão do Império Romano, a sociedade encarava o aborto como uma prática normal e o nascituro como parte do corpo materno, não como um ser humano dotado de direitos. Nessa época, o aborto somente constituía delito caso a mulher o realizasse a contra gosto do esposo, a quem cabia a punição do ato.

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“Foi o cristianismo que, nesse ponto, revolucionou as ideias morais, dotando o embrião de uma alma; então o aborto tornou-se um crime contra o próprio feto”, explica a filósofa francesa Simone de Beauvoir no primeiro volume de “O segundo sexo”. A partir daí, o aborto passou a ser considerado crime comparável ao homicídio e a mulher passou a ser criminalizada por não levar a cabo suas gestações. Durante a Idade Média, um livro penitencial editado pela Igreja Católica previa diferentes punições de acordo com o tempo de gestação e as supostas condições sexuais e sociais da gestante: “Há uma grande diferença entre a mulher pobre que destrói o filho por causa da dificuldade que tem em nutri-lo e a que não tem outro fim senão esconder o crime de fornicação”. Mesmo em 1917, a Igreja ainda abominava o ato, declarando em seu Código de Direito Canônico: “os que provocarem o aborto, desde que conseguido o efeito, incorrem, sem exceção da mãe, em excomunhão latae sententiae a cargo do bispo”. Segundo as investigações realizadas por Beauvoir sobre tal código, “Nenhum motivo pode ser alegado, nem mesmo o perigo de morte a que se exponha a mãe”. Nos anos 1940, o Papa Pio XII declarou que por não ser batizado o embrião deveria ser protegido, mesmo quando da iminência da morte da mãe em decorrência da gravidez, pois ela, diferentemente dele, poderia alcançar o céu por ser batizada. Lei para conservador ver Escrito na mesma década da declaração de Pio XII, o Código Penal Brasileiro de 1940 também criminaliza o aborto, porém de forma um pouco mais branda. Apesar de prever a punição ao abortamento, há duas situações nas quais ele é permitido: quando a gravidez é consequência de um estupro ou quando a gestação põe a mãe em risco de morte. Nos casos de gravidez decorrente de estupro, a mulher tem o direito de interromper a gravidez em qualquer hospital do Sistema Único de Saúde, sem necessidade de levar boletim de ocorrência ou ordem judicial. De acordo com Carmen Campos, uma norma técnica do Ministério da Saúde regula o atendimento nesses casos, estabelecendo que uma junta médica, formada por um médico, um assistente social e um psicólogo, faça uma entrevista com a mulher para saber como foi a situação de violência sexual. Depois de passar por essa junta médica, ela deve assinar um termo de responsabilidade e o procedimento deve ser realizado por um médico do hospital. O profissional pode se recusar a fazer o procedimento por objeção de consciência, um direito previsto no Código de Ética Médica que afirma que o médico pode “recusar a realização de atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência”.

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No entanto, se um profissional se recusar a fazer o procedimento, deve haver no hospital outro médico que o faça. Se não houver, ele é obrigado a realizá-lo, independentemente de suas convicções pessoais. Carmen defende que é obrigação do poder público oferecer profissionais que realizem o aborto legal. “A mulher não pode ser obrigada por omissão do Estado ou por omissão profissional a levar a gravidez a termo porque isso é violador dos direitos humanos”, sustenta. No entanto, a recusa é rara na classe médica, como afirma a ginecologista e obstetra Rosemarie Flemming dos Reis: “Das poucas vezes que tivemos [eu e meus colegas] consentimento para praticar aborto, eu não me lembro de ter havido alguma objeção dos meus colegas. Eu mesma não teria nenhum problema nesse sentido”. A médica, que trabalha no Sistema Único de Saúde, coloca ainda que são poucos os casos de aborto legal. “É tão difícil de acontecer, porque só existe em dois casos, e às vezes demora tanto na Justiça que isso não acontece, as pessoas acabam fazendo por outras outras vias, pelo uso do Cytotec (nome fantasia do princípio ativo misoprostol) ou ainda recorrendo a outras formas”. Apesar da ilegalidade, são várias as formas de interrupção da gravidez adotadas pelas mulheres brasileiras, mas as pesquisas sobre aborto no Brasil ainda carecem de informações confiáveis acerca dos métodos utilizados para sua indução nas clínicas privadas, com leigas ou parteiras. Assim, não há dados oficiais sobre como as mulheres têm acesso aos instrumentos abortivos, ao misoprostol ou aos chás, tampouco sobre os métodos empregados pelas mulheres do meio rural. O que se pode afirmar é que nos anos 1990 as mulheres das grandes cidades que optavam por realizar o procedimento por contra própria diminuíram o uso de métodos altamente arriscados como venenos, líquidos cáusticos e injeções, comuns até os anos 1980, graças à popularização do misoprostol. “O uso desse medicamento em casa e o acesso imediato ao hospital para curetagem por aborto incompleto garantiram que as mulheres recebessem assistência rapidamente, reduzindo a gravidade das hemorragias ou infecções”, informa a publicação do Ministério da Saúde “20 anos de pesquisas sobre aborto no Brasil”. O misoprostol entrou no mercado brasileiro em 1986 para tratamento de úlcera gástrica, e até 1991 sua venda era permitida nas farmácias. Desde então, devido à difusão do conhecimento sobre seu efeito abortivo a baixo custo e com menos risco à saúde da mulher, o medicamento só pode ser armazenado e usado em hospitais, nos casos de aborto legal e indução do parto de fetos mortos, para facilitar a curetagem. De acordo com um dos estudos utilizados citados na publicação do Ministério da Saúde, “o misoprostol permitiu tão-somente uma mudança de métodos, isto é, não provocou uma epidemia de aborto no Brasil, mas o tornou mais seguro”.

o relacionamento ficou mais sério. Ela estava novamente grávida e mais uma vez sozinha. Aos 19 anos, Gisele não teve dúvidas, não tinha condições de ter mais um filho. “Me desesperei. Estava grávida, com um filho pequeno e sozinha. Me desesperei e me obriguei a fazer o aborto.” A clínica recomendada por uma amiga cobrava 600 reais pelo procedimento dito simples, realizado antes dos dois meses de gestação. Era um valor excessivo para seu padrão de vida. Outra recomendação levou Gisele ao Cytotec, adquirido sem nenhuma complicação na

sentei no vaso e desceu o feto. Ficou pendurado pelo cordão umbilical. Até pouco tempo eu ainda tinha essa sensação. E era uma menina, que era meu sonho. Foi muito horrível. Eu não cheguei a ver, eu não tive coragem. Minha mãe que viu, que juntou. Me enrolaram em um lençol pra me levar para o hospital, mas eu sentia o feto no meio das minhas pernas”. Levada às pressas para o hospital, ela ficou internada por uma semana sofrendo não só as consequências físicas do aborto caseiro, como também a culpa e o

farmácia do bairro. Ela tomou a quantidade indicada pela manhã e na noite do mesmo dia tudo tinha terminado. Ela perdeu sangue, mas não chegou a sentir dor. No hospital, trataram seu caso como o de um aborto espontâneo e na manhã seguinte ela já estava em casa. Depois dessa experiência ela manteve um relacionamento de idas e vindas com André, o pai de seu filho. Sempre que eles estavam bem, ela se descuidava, acreditando que uma possível gravidez não traria problemas e seria incentivo para uma maior aproximação entre os dois. Aos 20 anos, ela descobriu que estava grávida e foi novamente abandonada. Com dois meses de gestação, Gisele já não conseguia encontrar o remédio nas farmácias com facilidade. O controle da venda da medicação havia sido intensificado e foi um amigo quem comprou a droga. “Era por falta de apoio, por não querer ter outra gravidez complicada, por falta de condições financeiras. Mas o maior motivo era não ter o pai do lado, porque se eu tivesse uma pessoa do meu lado eu teria assumido a gravidez, mas como eu não tinha, não dava. E eu me culpo muito porque eu queria ter uma família, eu me deixei engravidar quando a gente tava bem. Meu sonho sempre foi ser mãe, mas com uma família estruturada. Esse sempre foi meu sonho.” Nesta segunda experiência ela sentiu fortes dores e passou alguns dias internada. “A última foi a mais marcante de todas. Foi horrível, foram dores de parto. Porque eu tava com quatro meses de gravidez.” Aos 22 anos, Gisele foi novamente abandonada por André quando estava grávida. “Meu maior medo era botar uma criança no mundo. Eu não tinha medo de morrer. Claro, me preocupava com meu filho, mas eu não tinha medo de complicações. Meu medo era ter outra gravidez sem estabilidade”. Sabendo das dificuldades de interromper uma gestação tão avançada, ela procurou uma clínica. O custo seria de 1.200 reais e Gisele não tinha condições de pagar o dobro do previsto. Uma grande quantidade de Cytotec foi sua única opção. “Eu simplesmente

julgamento daqueles que a atenderam. “No hospital eles sabiam, na segunda e terceira vez, que era um aborto. E me trataram supermal. Foi horrível. Me falavam, ‘agora tu tem que pagar, tu fez agora tem que sofrer’. Me lembro que na hora de tirar sangue, não tinham cuidado. Eles me culpavam, me julgavam”. Gisele não teve que responder legalmente por nenhum dos abortos. Mesmo assim, os traumas dessa última experiência ainda acompanham seu cotidiano. Cristã, Gisele não conseguia se livrar do sentimento de culpa, mesmo afirmando que não teria condições de sustentar mais um filho sozinha. Pode parecer um caso isolado, mas este é um reflexo de abandono. Abandonadas por homens que não sentem responsabilidade pela gravidez, pelo Estado que arbitrariamente proíbe e ignora a realidade dessas mulheres e por uma sociedade fortemente influenciada pela religião que condena veementemente a decisão. O enfermeiro Eduardo Pazini, funcionário do Hospital Conceição, é testemunha diária das histórias de centenas de meninas e mulheres como Gisele: “A frequência [dos casos] é enorme, é diário”. Ele conta que grande parte das pacientes tem perfil jovem, meninas de 14, 15 ou 16 anos, que tentaram o abortamento caseiro. As inúmeras maneiras relatadas demonstram o desespero dessas tentativas: “Elas introduzem algum tipo de objeto pontiagudo, agulha de tricô; ou compram medicamentos em lugares suspeitos, o Cytotec vem muitas vezes do Paraguai; ou tomam algum chá abortivo também”. Os perigos a que essas mulheres são submetidas devido ao uso de métodos caseiros são inúmeros. Sempre que chegam com muito sangramento, elas precisam passar por um procedimento cirúrgico: “Às vezes o aborto não foi completo e ficam resíduos dentro do útero, então se faz uma raspagem, uma curetagem. Em seguida a paciente vai para o quarto receber um tratamento com antibiótico, analgésico, e depois de uns três dias ela faz um exame de sangue para saber se está tudo bem. Em média são cinco dias de internação”. Os maiores problemas decorrem das tentativas mal-sucedidas. Um quadro de doença inflamatória

Me desesperei e me obriguei a fazer o aborto

Abandonadas Gisele engravidou quatro vezes. Aos 16, aos 19, aos 20 e aos 22 anos. Ela se recusou a fazer o procedimento na primeira gravidez apesar da insistência de sua mãe, que já havia abortado algumas vezes, optando por encarar as dificuldades de criar um menino quando ainda era adolescente. Seu sonho era encontrar alguém que quisesse fazer parte dessa família, um homem disposto a casar e assumir o prazer e as responsabilidades daquela vida. Nessa procura, se envolveu com um homem que prometeu tudo que ela queria, mas que sumiu assim que

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condições para as mulheres interromperem a gravidez e quem paga bem pode fazer. Então [a legalização] é uma questão de justiça social, porque [a criminalização] é uma penalização das mulheres pobres brasileiras”. A política do moralismo A discussão sobre a descriminalização do aborto no Brasil já passou por uma série de episódios. Desde a década de 1990, o assunto eventualmente aparece nas pautas da Câmara de Deputados e do Senado Federal. O Executivo, contudo, procura se manter afastado das discussões. Somente com a pressão de organismos internacionais o governo federal demonstra iniciativa em discutir a descriminalização e a legalização do aborto. Foi o que aconteceu em 2005, quando o então presidente, Lula, pressionado pela Organização das Nações Unidas, solicitou a formação de um comitê tripartite, que reúne o poder legislativo, o poder executivo e a sociedade civil, para formular um projeto de lei para a reforma da legislação punitiva e para legalização do aborto. O projeto foi arquivado em 2008, por pressão de setores religiosos. Hoje, um grupo de juristas que está encarregado da reforma do Código Penal está propondo uma revisão da legislação que pune o abortamento no Brasil. Esse grupo, instituído pelo Senado Federal, pretende ampliar para cinco os casos de abortamento legal: em caso de gravidez decorrente de violência sexual; em caso de a mulher ter sido vítima de inseminação artificial sem sua concordância; quando o feto tiver doenças físicas e mentais graves ou incompatíveis com a vida; quando houver risco à saúde ou à vida da gestante; e por vontade da mulher até a 12ª semana de gestação, quando um médico ou um psicólogo constatar que ela não apresenta condições de arcar com a maternidade. A proposta será ainda encaminhada ao presidente do Senado, José Sarney (PMDB - AP), que irá colocar em discussão no Congresso Nacional. Mas, para Carmen Campos, essa questão não deve ser somente do legislativo: “É importante que o governo assuma a sua parte. Essa é uma questão de saúde pública e, portanto, não é apenas do Congresso Nacional”.

No entanto, o maniqueísmo daqueles que se dizem “pró-vida” reduz a discussão do aborto a um dualismo “bem x mal”, como se eles fossem os grandes defensores da vida e todos aqueles - médicos, juristas, movimentos feministas e de defesa aos direitos das mulheres que se posicionam a favor da descriminalização do aborto fossem contra a vida. Esses discursos ignoram a complexidade e a delicadeza de um tema como esse, e priorizam projetos de vida em detrimento das inúmeras vidas das mulheres que morrem anualmente em decorrência de um aborto mal feito. A incapacidade de se colocar no lugar dessas mulheres, em buscar compreender seus motivos – que vão desde a falta de condições psicológicas e financeiras até a certeza de que a responsabilidade diante de um filho é muito maior para as mulheres do que para os homens – leva a uma intolerância extrema, acusando-se essas mulheres de serem irresponsáveis e afirmando que elas “têm que pagar pelos próprios erros”. Assume-se, assim, uma postura inconsequente, que prega a gravidez como uma punição e não como uma decisão da mulher. Esses discursos ignoram o grande problema social que se esconde por trás da restrição do aborto e a própria ineficácia da criminalização em impedir que ele ocorra. Também ignoram que grande parte das mulheres que recorrem ao aborto usam métodos contraceptivos e que, portanto, não existem métodos preventivos 100% seguros. Contudo, embora a gravidez indesejada possa acontecer com todas as mulheres, independentemente de classe, cor, idade, etc., apenas parte delas tem direito a um abortamento seguro. Assim, o aborto é uma realidade, não um caso de polícia e nem um problema religioso ou filosófico. É uma questão de saúde pública, direito fundamental que garante a liberdade do sexo feminino, independente da origem social de cada mulher. A hipocrisia manifestada com contundência pelos conservadores e impressa em nossos códigos de convivência ignora taxativamente a realidade de inúmeras Claras, Marias, Giseles e Simones, que, obrigadas por uma vida sofrida, econômica ou afetivamente dependente, ou mesmo por não terem intenção de exercer a maternidade, são julgadas e punidas pelo conservadorismo de quem não consegue se colocar no lugar delas.

Os olhares condenadores estão por todos os lados

[Mario Arruda] A foto também estará no Camera Diynamite #1 cameradiynamite.tumblr.com/

pélvica é comum em mulheres que tentaram concluir o procedimento há dias, mas não conseguiram. Fortes dores e febre são os sintomas mais comuns. Se não for tratada a tempo, elas correm o risco de infecção, perfuração do útero e até morte. Mesmo sabendo das questões legais do procedimento, Eduardo afirma que nenhum enfermeiro ou médico faz a denúncia, “até porque nós não temos plantão policial aqui e também as meninas sempre negam”. Relatos de descaso por parte dos enfermeiros, como o de Gisele, não são poucos. Questionado, Eduardo garante que pela ética profissional todos os pacientes que chegam são atendidos, mas é possível que alguns funcionários deixem transparecer sua inconformidade com a situação. Carmen Campos afirma que os casos de maus tratos são mais comuns do que se imagina. “A Fundação Perseu Abramo comprovou que uma em cada quatro mulheres já sofreu maus tratos por profissional médico quando se dirigiu a um hospital em razão de um aborto”. Segundo ela, essa conduta contraria o Código de Ética Médica e deve ser denunciada. “Ele pode ser denunciada às autoridades policiais, como denúncia de maus tratos e de violação do código profissional, e ao próprio setor administrativo do hospital. É muito importante que as mulheres não admitam ser mal tratadas, que tomem nota do nome do médico ou do enfermeiro, porque essa é uma conduta punível tanto administrativa quanto criminalmente”. A omissão masculina e os reflexos da desigualdade No entanto, os pré-julgamentos não acontecem apenas por parte de médicos e enfermeiros. Os olhares condenadores estão por todos os lados: na família, entre os amigos e desconhecidos. Todos se acham no direito de culpar e discriminar o aborto dos outros. Esquecem, contudo, que a responsabilidade da gravidez não é só da mulher. É aí que se demonstra a grande desigualdade entre mulheres e homens. “A gravidez só pode ocorrer no corpo da mulher, mas ambos participam da produção do filho que será objeto da conduta que será criminalizada. Então não se pode criminalizar uma conduta que dois participaram mas que só um será julgado, porque isso fere o direito à igualdade”, sustenta Virgínia Feix, professora de direito do Centro Universitário Metodista - IPA e uma das fundadoras da Themis. Ela acrescenta ainda que muitos casos de gravidez indesejada decorrem da desigualdade de gênero: “Na relação homem e mulher, muitas vezes há pouca negociação do uso de preservativo, ou da hora e do momento de fazer sexo. As mulheres são muitas vezes obrigadas a atender os interesses [dos maridos, namorados, etc] e são incapacitadas pela cultura de obrigar o homem a usar o preservativo ou ela mesma usar. Então, a desigualdade de negociação na relação sexual leva à gravidez indesejada”, conclui. A desigualdade, contudo, não para por aí. Existe um abismo entre a realidade de mulheres de classe média alta, que podem recorrer a um aborto discreto e seguro, mediante o pagamento de 2, 3 mil reais, e a de mulheres que, por falta de condições financeiras, acabam recorrendo a métodos completamente arriscados. “Quem tem dinheiro consegue fazer um aborto em condições boas e quem não tem acaba fazendo em condições precárias, chegando aos hospitais em situações bem complicadas, muitas vezes com problemas graves, inclusive chegando à morte”, afirma a médica Rosemarie dos Reis. Virgínia concorda: “Não é possível não se dar conta que as mulheres ricas fazem aborto quando querem, porque está estabelecido que as clínicas existem, dão

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O socialista que parou São Paulo por Marcus Pereira, Fernando Costa, Glauber Winck foto: Roberta Perin

E

m 22 de abril de 1953, em São Paulo, terminava a maior greve da história do Brasil: a greve dos 300 mil. Na ocasião, três centenas de milhares de trabalhadores do ABC Paulista pararam de trabalhar durante um mês. Eles reivindicavam uma reposição salarial de 32%, correspondente à inflação daquele ano. A paralisação promovida pelos cinco maiores sindicatos da região – têxteis, metalúrgicos, gráficos, vidreiros e marceneiros – deu resultado: o Tribunal Regional do Trabalho decretou que fosse pago o reajuste pleiteado. Um dos líderes do movimento foi o professor de economia Paul Singer, na época, funcionário da fábrica de elevadores Atlas. Hoje, aos 80 anos, Singer é conhecido como um dos principais teóricos socialistas do Brasil, além de ser referência mundial em Economia Solidária. Austríaco, origem judaica, veio para São Paulo em 1940, onde tomaria contato com o Partido Socialista Brasileiro (PSB) e onde começaria a trabalhar como metalúrgico em 1952. Hoje, analisando a greve dos 300 mil, ele considera que a perseguição ao movimento sindical realizada pelo governo do presidente Eurico Gaspar Dutra (1946-1951) ajudou a aglutinar os trabalhadores numa classe coesa: – A greve foi resultado da repressão feita pelo governo Dutra, principalmente contra o movimento sindical. O partido mais forte dentro do meio sindical era o Partido Comunista, que teve o registro eleitoral caçado pelo governo (1947). Por isso, os

sindicatos estavam nas mãos dos “pelegos”, que era como chamávamos essa gente ligada ao patronato. Depois, o Getúlio Vargas foi eleito presidente (19511954) e, gradativamente, foi admitindo eleições com registro das chapas de oposição. E, quando as chapas de oposição começaram a ser liberadas, houve uma mudança grande nos sindicatos. Surgiram novas lideranças de esquerda. Como não havia tido nenhum aumento de salário, porque, os pelegos não tinham interesse nisso, a gente se uniu para pedir a reposição da inflação do último ano. Aí, reunimos cinco grandes sindicatos para reforçar a reivindicação. O Partido Comunista foi importante para isso. Dois anos depois da greve, Paul Singer ingressou na Universidade de São Paulo: formou-se e lecionou no curso de Economia até ser aposentado compulsoriamente pela Ditadura Militar (1964-1985) em 1969. Nesse meio tempo, fundou o movimento Política Operária (Polop) em 1959, junto com Erich Sachs (gráfico alemão ligado ao Partido Comunista da Alemanha); o grupo reunia uma série de intelectuais de esquerda de diversos partidos que pensavam a realidade brasileira. Também fundou o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), que reunia os professores aposentados precocemente pela ditadura (Fernando Henrique Cardoso, Cândido Procópio Camargo, Octavio Ianni, Juarez Brandão Lopes, Elza Berquó, etc). Por essa trajetória, Paul Singer é considerado referência para a divulgação das ideias marxistas e socialistas no Brasil.

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No Entanto, seus estudos sobre Economia Solidária, já nos anos 1990, também foram muito influentes. O interesse pelo tema surgiu quando o economista assumiu a secretaria Municipal de Planejamento de São Paulo, durante o governo da ex-prefeita Luíza Erundina (1989-1993). Na época, a capital paulista tinha cerca de um milhão de desempregados, e havia a necessidade de organizar essa parcela da população para lhe garantir a sobrevivência. Nesse contexto, as teorias de economia solidária foram concebidas e postas em prática. E deu certo. Tanto que, em 2003, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva criou a Secretaria Nacional de Economia Solidária. Paul Singer assumiu a pasta. Nas palavras do próprio teórico, esse modelo econômico funciona assim: – O princípio básico é uma organização de entidades econômicas totalmente igualitárias e democráticas. As pessoas que trabalham são os donos do seu empreendimento e o administram democraticamente. É a chamada auto-gestão por voto. Se há pessoas que têm a responsabilidade pelo empreendimento, devem ser eleitas por voto. Não tem mandato fixo. Deve haver rodízio. Hoje a Economia Solidária existe efetivamente em vários países. Na Venezuela, por exemplo, tem bastante. Com mil contradições, porque, ao contrário do Brasil, a política venezuelana de apoio à Economia Solidária é muito mais forte que aqui. A grande diferença entre o Brasil e a Venezuela é que lá eles são um ministério e aqui nós somos uma secretaria do Ministério do Trabalho. Eles não só tomam a iniciativa, mas também oferecem muito dinheiro às cooperativas. Eles criaram em dois, três anos 274 mil cooperativas, o que não é difícil quando você oferece grandes incentivos econômicos. Só que depois eles descobriram que três quartos dessas cooperativas não funcionam. O nosso processo é muito mais de iniciativa da sociedade civil, que nós apoiamos. Mas, não temos nem os recursos, e nem a política para incentivar fortemente a Economia Solidária, a fim de que se torne uma coisa de massa em pouco tempo. Hoje, milhões de pessoas recorrem à Economia Solidária no Brasil. A gente está mapeando isso e, efetivamente, me dá a ideia de que é mais sólido aqui. Exatamente, porque, vem de baixo para cima. Sendo um socialista declarado e mentor da Economia Solidária no país, seria inevitável perguntar sobre uma possível fusão entre as duas ideias: na Secretaria de Economia Solidária, foram desenvolvidos uma série de trabalhos em parcerias com as ONGs; há alguma forma desse segmento da sociedade civil organizada ser convergida num projeto socialista? – Possibilidade há. Mas, não vejo nenhuma tendência nessa direção nesse momento. Inclusive porque tenho relação com algumas ONGs funcionais. São parceiros nas políticas que desenvolvemos no governo. Mas, têm 388 mil ONGs no Brasil. Estamos trabalhando com 50, 60 ONGs, que estão muito ligadas à economia solidária, evidentemente. Então, para cada ONG que a gente faz parceria, conhecemos mais cinco ou seis que se candidataram. Mas temos que escolher uma só. De qualquer forma, as ONGs são importantíssimas hoje. Todas as políticas que minha secretaria fez através de convênios com entidades da sociedade civil se fez em lucro. Sem elas, não se faria coisíssima nenhuma.


Há 1978 anos em Tabaré (08/04/34)

“Ele disse que voltava” Mistério ronda a morte de Jesus Cristo

A Polícia Civil de Jerusalém investiga o desaparecimento do corpo do líder fundamentalista Jesus Cristo, vulgo Jesus de Nazaré. Considerado subversivo, Cristo foi condenado à crucificação, executado na última sexta-feira e sepultado em uma gruta comum. O sumiço teria sido noticiado às autoridades no domingo por sua mãe, Maria, e por Maria Madalena, que preferiu não revelar sua ligação com Ele. “Quando chegamos lá, a gruta estava aberta e o corpo do meu filho não estava dentro. Eis que um anjo do Senhor desceu dos céus, resplandecente como um relâmpago, e disse que Jesus havia ressuscitado” explicou a virgem. Maria Madalena garantiu: “Ele disse que voltaria no terceiro dia.” O delegado responsável garantiu empenho nas investigações, apesar de considerar a dificuldade do caso. “Essa história de ressurreição e de anjinho tá muito mal contada. Estamos interrogando pessoas ligadas ao bando desse tal messias para averiguar se haveriam motivações para o extravio do corpo.” Um dos principais suspeitos é um pescador identificado apenas como Pedro, embora se tenha informações de que seu nome verdadeiro seja Simão. Para a polícia, ele seria o braço direito e sucessor de Jesus, entretanto, ele nega, ele nega, ele nega. Os guardas da gruta também serão interrogados por suspeita de facilitação. Ainda segundo as duas Marias, o profeta teria anunciado outra aparição, com dia e hora marcada, e convocado seus apóstolos. “Nós estamos de olho, mas eu também não posso deslocar uma equipe porque um morto disse que vai voltar no dia tal. E mesmo que eu o encontre, como eu vou prender um espírito desmaterializado?” O advogado da família aponta diversas irregularidades no processo: “O meu cliente é um preso político e foi tratado como preso comum. Além do que, ele foi condenado à cruz e já cumpriu a pena. Qualquer tentativa de detenção é inconstitucional.” Para entender o caso Autointitulado o Rei dos Judeus, Jesus vinha sofrendo constantes perseguições de Tibério, o Imperador de Roma. Foi levado ao tribunal acusado de atentar contra a ordem estabelecida. O juiz da primeira vara criminal, Pôncio Pilatos, o condenou à pena máxima, crucificação, mas voltou atrás e deu ao júri popular a chance de salvar um dos condenados. Entre o filho do Senhor e Barrabás, que respondia por assassinato, o povo preferiu o pistoleiro. Em tempo E dizem que a voz do povo é a voz de Deus.

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[Ubiratan Carlos Gomes] ubiranima@yahoo.com.br

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abril/ 2012 #12

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