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#22 maio/junho porto alegre 2013

} jornalismo tântrico }

sunga horĂłscopo colombianos proibicionismo


Chico Guazzelli, Felipe Martini, Frederico Stumpf, Gabriel Jacobsen, Gênova Wisniewski, Jonatan Tavares, Jonas Lunardon, Jessica Dachs, Leandro Hein Rodrigues, Luísa Santos, Luna Mendes, Marcus Pereira, Martino Piccinini, Natålia Otto, Natascha Castro Projeto Gråfico: Martino Piccinini Diagramação: Frederico Stumpf, Martino Piccinini

ta o quanto nos esforcemos, nosso pĂşblico super-mega-ultra-seleto insiste em folhear as pĂĄginas do TabarĂŠ. Apesar de tudo, continuamos trabalhando para honrar a frase de HonorĂŠ de Balzac: “Se a imprensa nĂŁo existisse, seria necessĂĄrio nĂŁo inventĂĄ-la.â€? Estamos desinventando a imprensa hĂĄ 22 ediçþes.

Capa: Frederico Stumpf Colaboradores: Beto Atles, Paulo H. Lange Tiragem: 2 mil exemplares Contatos: comercial@tabare.net tabare@tabare.net facebook.com/jtabare Distribuição: Fabico } 5P\TR^b } 8]bcXcdc^ de Artes UFRGS } 2PbP ST 2d[cdaP <PaX^ @dX]cP]P } >RXST]cT } ?P[PeaPaXP } 324 D5A6B } BcdSX^2[X^ } 2^\Xc� Latino-americano } =^eP >[PaXP } Banca da República

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h, caríssimos leitores! Viva ao jornal TabarÊ! Nesse mês, o periódico comemora dois anos de existência. Aliås, a vigÊsima segunda edição Ê especial, pois, segundo dados da nossa última pesquisa, atingimos um recorde de audiência: 27,5 leitores (o vigÊsimo oitavo perdeu um olho num acidente trågico). Sabemos que são números espantosos, mas, não impor-

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as, falando em folhear o jornal, depois que alguÊm lê uma das nossas matÊrias revolucionårias, sempre fica com uma dúvida: afinal, por que esses caras fundaram o TabarÊ? Ora, a resposta Ê óbvia: sonhåvamos em ficar ricos, degustar os melhores champanhes, almoçar sanduíches de caviar, conquistar o sonho do iate próprio, tirar fÊrias

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ros emocionadĂ­ssimos: “Queria parabenizar voceis pela qualidade do jornal! É o melhor jornal pra enrolar peixe, carne, fruta... Antigamente a gente enrolava no DiĂĄrio GaĂşcho ou n’ O Sul, mas o pessoal reclamava que eram uns jornal muito fraco. O papel rasgava tudo. Depois que começamo a usar o jornal de voceis, os cliente nunca mais reclamaram.â€? E, por fim, quando caminhamos pelos altos do bairro Moinhos de Ventos, somos agraciados pelos depoimentos das dondocas satisfeitas: “Hello people! Queria dizer que o jornal TabarĂŠ is the best from Porto Alegre. Agora minha cadelinha sĂł quer fazer xixi no TabarĂŠ. AtĂŠ cancelei as assinaturas da Zero Hora e do Correio do Povo.â€? É assim que, aos poucos, estamos cooptando o pĂşblico-leitor da

no Caribe, bronzear nossos corpos na praia de Ibiza... E, modĂŠstia Ă parte, nesses dois anos, o TabarĂŠ movimentou uma fortuna: perdemos cifras exorbitantes ao longo dessas 22 ediçþes. Contudo, nĂŁo se trata de um fracasso, mas, sim, de um sucesso lento – beeeeeeem lento.

or outro lado, apesar do dĂŠficit financeiro, o jornal TabarĂŠ goza de grande status perante a sociedade – desde os moradores de rua, passando pelos trabalhadores braçais, atĂŠ as madames da high society. Quando caminhamos pela rua, somos interpelados por mendigos entusiasmados: “Ba, gosto muito do trabalho de voceis. Sempre passava frio de noite. Mas, depois que conheci o TabarĂŠ, nunca mais passei frio. O TabarĂŠ esquenta nĂłis a noite toda.â€? Quando caminhamos pelos arredores do Mercado PĂşblico, somos elogiados por feirantes, açougueiros e peixei-

grande imprensa.

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ontudo, o jornal TabarĂŠ nĂŁo recebe apenas gracejos. TambĂŠm somos criticados. E, sem

dĂşvidas, a crĂ­tica mais copĂĄginas do periĂłdico: “Vo-

O jornal mais usado de Porto Alegre!

mum se refere ao nĂşmero de cĂŞs tĂŞm que aumentar o nĂş-

mero de pĂĄginas do jornal!â€? Realmente ĂŠ uma reivindicação plausĂ­vel. Afinal de contas, a pobreza tem se consolidado, os feirantes tem vendido satisfatoriamente, e os animais de estimação tem se reproduzido. Quem sabe, no futuro, nĂŁo atendamos os inĂşmeros pedidos? De qualquer maneira, distintos leitores, saudemos o TabarĂŠ!


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Estimada pessoa que responde as cartas do jornal Tabaré, vim até aqui pra te dizer que eu sei como tu te sente. Sei mesmo. Trabalho respondendo as cartas da revista Crochê Magazine. Vivemos o mesmo ritual. Sento no escritório, todo dia, com a mesma ânsia, de receber uma boa carta, uma baita carta, uma carta relevante, carta surpreendente ou até mesmo uma que contenha Antrax (nas horas de desespero). Mas como tu bem sabe, a carta aquela, nunca vem. Te compadeço. Madalena Alves, Jornalista Compañera, Madalena. Lágrimas, apenas.

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Eu leio leio leio leio leio leio leio os lema do Tabaré e não entendo. Parece os livro do Saramago. Dorivaldo de Lucena, Concretista Dori, meu nego... Minha vó já dizia que da incompreensão nasce a arte. Ô das carta, chupô limão? Matheus Tajes, Chistoso Teteu, teteu...Não queira saber o que eu ando chupando ultimamente. Não cabe no espaço que me cedem.

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Olá, somos uma agencia de mkt especializada em aumento de acessos e clicks para seu negócio. O que vamos apresentar é um produto fantástico com um alcance fabuloso e um formato totalmente diferenciado do aplicável nos dias atuais. Carlos Büll, Cafetão da Polishop Quero só vê qualéque é desse vibrador aí.

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Tabaré, Tabarézinho bonequinho de marmelada o mês que não te leio não como, não faço nada. Carlos Medeiros, Galinha Cafajeste! Tu mandou o mesmo poema pro Correio do Povo que eu vi. Minha primeira boa impressão, quando conheci o jornal no inicio de 2012, foi a linguagem comum. Tirou aquele pudor do periódico “tradicional”. A arte inclusa também é sensacional. Saquei que o Tabaré é feito por

S gente que tu vê na rua, protestando, e que tu pode sentar na mesa do buteco e se perder em devaneios. Há braços, gurizada, pa’lante! Felipe Magnus, Shiva Porto-Alegrense Veja bem, Fefo, ficamos chocados com as tuas impressões. Até agora, estávamos certos de ser donos de uma linguagem sui generis e vanguardista... Aí tu chega e desmorona o ego dos pinta, assim não dá. Lamentamos te decepcionar, mas essa gente que tu vê na rua, protestando, divagando na mesa do bar são os dublês que a gente contrata pros hippies gostarem de nós. 100 braços, a direção.

Vaca Juan de Barro (22/05 – 24/06) (21/04 – 21/05) Usté é duas cara, faz ninho pra todas. Usté es teimoso, pavio-corto, egocêntrico, materialista, atraente, fiel y guerrero. Tiene Marte em Carlos Gardel, sextil em Ernesto Sabato y trígono em Sergio Faraco. As personas do signo de Vaca normalmente son cabezas dura.

És inquieto e inconstante, sarcástico às vezes. Em cima do muro. Comunicativo, extramamente comunicativo. Lua em Getúlio Vargas, ascendente em Pepe Mujica. Combina con el signo de Bugio.

Quero-quero (21/03 – 20/04) Usté es regido por Jorge Luis Borges

Zorrillo (21/06 – 23/07) Desconfiado, paranóico, ciumento. Se faz de vítima, bipolar, desbocado, leal, curioso, moderno. Júpiter em Aníbal Troilo, Saturno em Borges de Medeiros. Se prevê trânsitos turbulentos para el 2013.

con trígono em Mecedonio Fernández. É um bichito mui sensual e impulsivo. Quando fica brabo chega dando no meio. Tudo é ahora, nada después. Usté impõe respeto e intimida os outro. Cuidado com Plutão em Bebeto Alves.

Bugio (24/07 – 23/08) Usté tiene Mario Benedetti na

Emma (20/02 – 20/03)

Casa 4. Se acha, quer aparecer, é narcisista, super-pop, tá só pela barraca do beijo. É um signo querido por todos (quando todos tan de buen humor). Lua em Jorge Drexler, ascendente em Wander Wilder.

Pa’ empezar as persona deste signo são lóqui. Trígono Caio Fernando Abreu, João Cabral de Melo Neto e Alfonsina Storni. São sinceros (demais), sarcásticos (demais), malvados (sempre). Borrachitos y extremamente sensibles são pessoas dificiles de lidar. Shampoo johnson neles! Metidos a artistas tienen grande propenção a se tornar pastores árcades.

Capivara (24/08 – 23/09) Erico Veríssimo na casa 9 com trígono em João Gilberto Noll. Es inteligente (se sabe el Martín Fierro), analítico, organizado (separa as alpargata por cor), hipocondríaco y perfeccionista. Lua em Iberê Camargo.

Aquello que faltou na Estética do Frio e nos Contos do Simões Lopes Neto. Colagens: Jessica Dachs

Jundiá (21/01 – 19/02) Usté tiene Horacio Quiroga trígono Dyonélio Machado. Guarda mágoas mui facilmente, es individualista, indiferente, grosso, frio, rebelde, desbocado, leal, curioso, moderno e antiquado. Não tem nadie conocido nos planeta, foi mal.

Lambari (24/09 – 23/10) Coati (22/12 – 20/01)

Mandão, cabeça-dura, curtem dinheiro, sempre insatisfechos, desconfiados, resmugones, a veces se fazem de vítima. São especialista em dá nos dedo. O negócio é abstrair. Quíron em Moacyr Scliar.

Gato-do-Mato (23/11 – 21/12)

O melhor signo do zodíaco austral. Aventureiros, bonitos, charmosos, reclamões às vezes. Depressivos quando tem lua cheia. Borrachos y engraçadinhos. Uns mimo. Se tu ver alguém do signo Gato-do-Mato chega chegando que é pra casá.

maio/junho 2013 #22

Jararaca (24/10 – 22/11) Rancoroso, manipulador, desconfiado,

Exibido, elegante, diplomata, perseverante, às vezes mentirosinho. Cyro Martins na casa 3 e Sol em Ernesto Sábato. 2013 trouxe trânsitos empolgantes pra usté, dá na pleura!

temperamental, metido, dedicado e companheiro. Un fuefo quando quer. Vênus quadratura Chico Stockinger, Caio Fernando Abreu na casa 7.

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uier saber más? Com que signo usté combina? Mapa Austral completo? Perfil Psicológico? Ahora assinando el Tabaré por 1 ano [50 pilinha] tu tem acesso ilimitado al horuescopo dos pampas. Não vai perde!

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histĂłria da civilização tambĂŠm ĂŠ a histĂłria das drogas. Veja bem, ĂŠ a histĂłria dos alimentos, da escrita, do comĂŠrcio, da polĂ­tica... e das drogas. A histĂłria do proibicionismo, essa ĂŠ bem mais recente. De todos os sĂŠculos que jĂĄ vivemos ela tem sĂł um. É hĂĄ mais ou menos 100 anos – somente – que se proĂ­be o uso de certas drogas. A histĂłria da proibição destas drogas tem muito a ver com a histĂłria do como vivemos atualmente. A criminalização e a legalização do uso destas substâncias pode ser debatida (ou combatida) por inĂşmeras vertentes. HĂĄ de se dizer da liberdade que tem o indivĂ­duo de alterar a sua consciĂŞncia, por que nĂŁo?; hĂĄ de se atentar ao fato de que muitas das drogas permitidas sĂŁo mais nocivas do que algumas das proibidas; hĂĄ de se lembrar que a maconha, por exemplo, teve motivos de interesses empresariais que articularam sua criminalização. Nessas prĂłximas linhas discutiremos a proibição das drogas por uma vertente que se resume assim: P _a^XQXĂŒĂˆ^ SPb Sa^VPb R^\^ RaX\X]P[XiPĂŒĂˆ^ b^RXP[ Ou seja, o proibicionismo como uma polĂ­tica pĂşblica de Estado para um determinado controle social desejado. Sejamos o prĂłprio exemplo, a proibição da maconha no paĂ­s. A RP]]PQXb chega aqui onde agora chamamos Brasil antes de sermos pĂĄtria. As caravelas de Pedro Ă lvares tinham velas, cordas, trapos feitos da planta. Seu Ăłleo tinha outras diversas utilidades, fazia-se papel com seu caule e vestiase roupas produzidas com sua fibra, muito mais resistentes que fibras como a do algodĂŁo – imagine sĂł o trabalho das velas naquelas naus atravessando

o oceano. JĂĄ o uso psicotrĂłpico da maconha veio junto com os escravos, principalmente os oriundos de Angola, que escondiam nas vestes as sementes. O _Xc^ ST 0]V^[P era fumado, principalmente, nos momentos de rituais religiosos dos negros. E assim se foi por sĂŠculos, nĂŁo havia problema no fumo da maconha porque este ficava encurralado junto Ă queles que o utilizavam. Assim como nĂŁo havia o problema dos ritos, dos curandeiros, das cantorias. Afinal, nĂŁo hĂĄ maior controle do que escravizar. É com nossa torta abolição que nasce a questĂŁo. Com a perda da ferramenta da escravidĂŁo hĂĄ de se criar outras para que se possa controlar a cultura negra que agora luta para fazer parte do tecido social. NĂŁo se pode correr o risco dos negros impregnarem os brancos e seus costumes, diziam Ă ĂŠpoca polĂ­ticos, governantes, cidadĂŁos. Segundo Henrique Carneiro, professor de HistĂłria Moderna da USP, câmaras municipais do Rio de Janeiro, em 1830, de Santos, em 1870, e de Campinas, em 1876, jĂĄ emitiam documentos com vistas para a proibição do uso recreativo de maconha. Estas, apesar de iniciarem um processo, nĂŁo foram efetivadas. Nessa ĂŠpoca, cigarros de maconha eram vendidos em lojas e tabacarias. Seu uso crescia entre os brancos pobres, fazendo-se notar nas elites abastadas. Na primeira dĂŠcada dos 1900 isso jĂĄ era evidente. O crescimento dos centros urbanos tanto acelerava o processo de aumento do uso quanto preocupava aqueles interessados na repressĂŁo. Outros fenĂ´menos tambĂŠm se alastravam pela sociedade brasileira e mereciam atenção: o samba, a capoeira e a umbanda. Nos anos 20, instaurouse, de fato, a criminalização do uso da maconha no

tabare.net

territĂłrio brasileiro. Para Carneiro, dois pontos sĂŁo interessantes nesse momento: primeiro, ĂŠ que, ao contrĂĄrio do que se pratica hoje, o usuĂĄrio era punido muito mais severamente do que o comerciante. Focava-se, mesmo, no hĂĄbito social do uso. Outro ponto que ĂŠ definidor: com sugestivo nome, a Delegacia de TĂłxicos e Mistificaçþes do Rio de Janeiro, encarregada de tratar dos crimes dessa nova droga ilĂ­cita, era a mesma encarregada de controlar e reprimir as rodas de samba, o jogo de capoeira e os ritos da umbanda – todas caracterĂ­sticas da cultura dos ex-escravos. Aos poucos houve a liberação, mesmo dotada de preconceitos, destas outras prĂĄticas. NĂŁo da maconha, que evoluiu, junto a outras drogas, para problemĂĄticas muito mais complexas. Essa lĂłgica nĂŁo se encerra em nossas fronteiras: nos Estados Unidos a fracassada Lei Seca (de 1919 a 1932) teve como objetivo conter os hĂĄbitos dos miserĂĄveis imigrantes irlandeses e italianos chegados ao paĂ­s. A Lei, alĂŠm de desastrosa em outros sentidos, serviu para o aumento do consumo de maconha na puritana sociedade estadunidense. LĂĄ o proibicionismo tambĂŠm ĂŠ prĂĄtica preconceituosa e de exclusĂŁo social dos latinos e negros vindos do sul. Entre os fatos mais usados para legitimar a criminalização estĂŁo artigos da dĂŠcada de 30 alegando que o uso da RP]]PQXb provocava preguiça, atos violentos e desejos sexuais incontrolĂĄveis, levando ao estupro. Embasados em pesquisas cientĂ­ficas que nunca existiram, todos estes achados foram inventados pelas autoridades. A evolução dessas polĂ­ticas criminalizantes levou ao que Richard Nixon, presidente dos Estados Unidos, chamou, em 1971, de VdTaaP Ă…b Sa^VPb. Os (ilegais) entorpecentes tornavam-se o “inimigo pĂşblico nĂşmero umâ€?. A partir daĂ­, foram bilhĂľes de dĂłlares gastos, milhares de pessoas encarceradas, e rios de sangue – em geral negro, pardo e pobre – escorridos da favela ao asfalto das grandes cidades, atĂŠ que se começasse a declarar: a guerra falhou. Depois de todos os esforços, o planeta nĂŁo reduziu o nĂşmero de usuĂĄrios de drogas nem a força do trĂĄfico, pelo contrĂĄrio. Mas talvez a empreitada de Nixon tenha sido muitĂ­ssimo bemsucedida. Ela sĂł tinha outros objetivos: controlar e criminalizar culturas e populaçþes vulnerĂĄveis atravĂŠs da força policial e do sistema punitivo. Marcelo Mayora, professor de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina e autor de 4]caT P 2d[cdaP S^ 2^]ca^[T T ^ 2^]ca^[T 2d[cdaP[) D\ 4bcdS^ B^QaT ?aÆcXRPb CĂ˜gXRPb ]P 2XSPST ST ?^ac^ 0[TVaT, conta: — Na AmĂŠrica Latina, a proibição possui uma afinidade eletiva com os interesses do Estado e das classes que o sustentam, de controlar, vigiar por câmeras e helicĂłpteros, revistar as pessoas que vivem nos territĂłrios onde ocorre a venda varejista de algumas drogas proibidas. Talvez por isso que nĂŁo se abandone o proibicionismo. Aparentemente ele ĂŠ um fracasso, nĂŁo reduz a oferta e a demanda, por exemplo. Contudo, no fundo, ele ĂŠ um sucesso, pois permite os mais variados tipos de intervenção no corpo e na vida das classes dominadas – no limite, inclusive o extermĂ­nio. Por isso, o Estado nĂŁo estĂĄ disposto a abdicar desse instrumento de controle social. O criminĂłlogo Salo de Carvalho, autor do livro 0 ?^[Ă’cXRP 2aX\X]P[ ST 3a^VPb ]^ 1aPbX[, avança na explicação da estratĂŠgia de criminalização de grupos sociais:


— No final da dĂŠcada de 60, analisando grupos desviantes de jovens, a lĂłgica ĂŠ muito parecida. A droga ĂŠ um ingrediente de uma cultura desviante, o que os antigos criminĂłlogos chamavam de subcultura, que envolve toda uma estĂŠtica, vestimenta, mĂşsica, atos de vandalismo, uma linguagem prĂłpria. Mas se pega um elemento da cultura, se demoniza, e isso permite que se criminalize a cultura toda. O que se fez com a maconha, com os negros, foi exatamente isso. ENTRE O 28 E O 33, A PERIFERIA A arbitrariedade do proibicionismo no Brasil começa na escolha das drogas proibidas e se estende atĂŠ a legislação. O caminho entre os artigos 28 (porte de droga para consumo) e 33 (porte de droga para comĂŠrcio) do CĂłdigo Penal ĂŠ subjetivo e fica a cargo das autoridades policias e judiciĂĄrias. Segundo a lei, as autoridades devem levar em consideração circunstâncias como antecendentes do rĂŠu, o local onde ele foi encontrado e a quantidade de droga para decidir enquadrar o suspeito como usuĂĄrio ou traficante. Salo de Carvalho explica: — A lei estabelece um critĂŠrio que ĂŠ um nĂŁocritĂŠrio para uma diferenciação elementar entre usuĂĄrio e traficante. Essa maleabilidade da legislação acaba gerando uma zona cinzenta de criminalização que ĂŠ sempre preenchida por punitivismo – no caso, por atribuiçþes de condutas de trĂĄfico. Essa prĂĄtica dĂĄ uma carta branca para a polĂ­cia negociar o conflito, abre espaço para a corrupção e coloca zonas vulnerĂĄveis em situação de violĂŞncia extrema. Sob o signo da guerra Ă s drogas, os policiais se sentem legitimados a atuar de forma truculenta naquelas condutas que eles consideram trĂĄfico. Apesar da sentença final caber ao juiz, Carvalho explica que juĂ­zes e promotores em geral nĂŁo questionam a primeira decisĂŁo tomada pelo policial no momento da prisĂŁo. Um exemplo dos excessos que podem ocorrer devido a essa maleabilidade da lei ĂŠ a população carcerĂĄria feminina: segundo dados do governo federal, das 31 mil mulheres encarceradas no Brasil, aproximadamente 14 mil cumprem pena por trĂĄfico de drogas. No entanto, de acordo com Carvalho, muitas delas nĂŁo estavam exercendo, necessariamente, uma conduta de comĂŠrcio. É comum que mulheres sejam enquadradas por trĂĄfico de drogas pelo ato de carregar ou armazenar drogas para seus companheiros ou filhos. De acordo com Carvalho, a criminalização do porte de produtos ilegalizados contribui fortemente para a crise carcerĂĄria do paĂ­s. Na população masculina, 25% dos encarcerados foram enquadrados por trĂĄfico. Cerca de 10%, por porte nĂŁo autorizado de arma de uso permitido. Somandose aos 20% presos por crimes contra o patrimĂ´nio sem violĂŞncia (furto, estelionato), sĂŁo praticamente 250 mil brasileiros – mais da metade da população prisional – encarcerados por crimes que nĂŁo geram violĂŞncia fĂ­sica direta. O criminolĂłgo explica: — A polĂ­tica criminal de drogas ĂŠ o carro chefe de toda nossa polĂ­tica criminal. EntĂŁo, se temos uma polĂ­tica bĂŠlica, baseada no proibicionismo, toda a polĂ­tica criminal vai seguir nesse caminho. Temos milhares de pessoas presas por condutas que nĂŁo geram violĂŞncia direta, sĂŁo TbcPS^b: portar droga, portar uma arma, furtar um relĂłgio. Condutas violentas, que impactam, como o homicĂ­dio e o estupro, nĂŁo chegam a 20% da população carcerĂĄria. HĂĄ todo um investimento nessa lĂłgica de guerra

enquanto hĂĄ questĂľes que a polĂ­cia deveria se dedicar mais, como investigar homicĂ­dios. Na prĂĄtica, as circunstâncias legais que supostamente definem se um indivĂ­duo ĂŠ usuĂĄrio ou traficante transformam algumas pessoas em suspeitos pelo simples fato de existirem. Moradores da periferia, entĂŁo, tornam-se traficantes em potencial apenas por habitarem regiĂľes de trĂĄfico. Em uma pesquisa que resultou no artigo 3TbRaX\X]P[XiPBC5) D\ <P]XUTbc^ 0]cX_a^XQXRX^]XbcP 0]R^aPS^ ]^ 4\_Ă’aXR^, Salo de Carvalho, Marcelo Mayora, Mariana Weigert e Mariana Garcia revelaram o perfil majoritĂĄrio desse suspeito naturalizado: homem, jovem (entre 18 a 24 anos), com profissĂľes de prestação de serviço Ă s classes altas, como motoboy, taxista, garçom, carroceiro. Carvalho explica: — Encontramos diversos relatos de policiais que usaram como argumento para enquadramento por trĂĄfico o fato de que o suspeito estava em uma regiĂŁo onde se sabe que hĂĄ trĂĄfico. Ou seja, se cria um estigma sobre determinada regiĂŁo, e todas as pessoas que ali habitam ou circulam sĂŁo suspeitas. Na periferia, o fato de uma pessoa portar uma determinada quantidade de drogas ĂŠ interpretado como conduta de trĂĄfico. O pânico moral instaurado pela mĂ­dia densifica essa questĂŁo atravĂŠs do medo. Criam-se espaços onde a sociedade passa a admitir violĂŞncia. SAĂ?DA PELA TANGENTE (OU PELO JUDICIĂ RIO) O Brasil vive hoje um embate entre movimentos sociais anti-proibicionistas e setores polĂ­ticos conservadores que apoiam o projeto de lei da Nova Lei de Drogas, do deputado federal Osmar Terra (PMDB-RS). O PL, entre outras atribuiçþes, aumenta a pena dos traficantes e institui a internação compulsĂłria de usuĂĄrios de drogas ilĂ­citas. Ainda assim, parece haver alguma luz no fim do tĂşnel do proibicionismo. Com os exemplos dos vizinhos Uruguai, que discute a legalização e o controle estatal da produção de maconha, e Argentina, cuja Suprema Corte descriminalizou o porte de droga para consumo individual em 2009, os brasileiros debatem a questĂŁo do proibicionismo mais do que nunca. Para Salo de Carvalho, uma importante conquista pode vir ainda este ano, quando o Supremo Tribunal Federal julgarĂĄ a constitucionalidade do crime de porte de drogas:

primeiro momento, um primeiro passo, rumo Ă legalização. Se uma potencial descriminalização chegarĂĄ Ă s periferias, enxugarĂĄ o sangue que escorre do morro, trarĂĄ pra casa os enjaulados, isso nĂŁo nĂŁo podemos saber com certeza. O que sabemos sobre o proibicionismo ĂŠ que ele fere. Nas palavras de quem sente esse (Negro) drama na pele, dos Racionais Mc’s:

VocĂŞ de ve estar pensando o que vocĂŞ tem a ver com isso. Desde o inĂ­cio, por ouro e pr ata , olha quem morre, entĂŁo ve ja vocĂŞ quem mata e recebe o mĂŠrito, a farda que pr atic a o mal . Me ver pobre, preso ou morto jĂĄ ĂŠ cultur al .

— O debate estĂĄ pautado no STF para este ano, e acho que hĂĄ boas chances do Supremo votar pela inconstitucionalidade da criminalização do porte. Acredito que, se dermos esse passo, serĂĄ via JudiciĂĄrio. O Legislativo nĂŁo consegue ultrapassar essa questĂŁo no momento. A descriminalização ĂŠ o maio/junho 2013 #22

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[Gabriel Jacobsen]

MAUTNER um tropicalista entre Einstein e Jesus de NazarĂŠ _^a 6PQaXT[ 9PR^QbT] T 1Tc^ 0c[Tb

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m mito do tropicalismo, daqueles que muitos só conhecem porque Caetano vive tocando no seu nome, estava tocando de graça no Centro de Porto Alegre. Recitando. Fomos encontrå-lo, ver de perto o que havia de intensidade nele e na sua música. Como usou toda a sua voz no palco, cantando aos quatro ventos, e nos recebeu instantes depois, foi como se nos contasse um segredo, sem usar força nas cordas vocais ou filtro entre a mente e a língua. Seu pensamento? Simultâneo, como se estivesse a contar mais de uma história ao mesmo tempo e ou praticasse saltos quânticos na ideia. Fala como um poeta nada burocråtico, que escancara seus mitos politicamente corretos ou incorretos. No cÊrebro heptagenårio de Jorge Mautner, um brasileiro transmiscigenado, se passa a própria conexão global. Ali, Jesus pode se tornar marxista ou Einstein se tornar tão judeu quanto seu pai, que casou com uma católica iuguslava com quem veio ao Brasil. Autodenominado O Filho do Holocausto, no Brasil foi criado por uma babå que lhe ofereceu o candomblÊ. Outro brasileiro, desta vez branco e seu padrasto, lhe ensinaria o violino, com quem dança no palco. A entrevista ou conversa foi tão livre quanto permitiu o gerador que alimentava eletricamente o camarim em que eståvamos e a toda a estrutura montada para o show, no chão de pedra da Casa de Cultura Mario Quintava. Dali, partiríamos para o seu hotel, onde ele sugeriu que continuåssemos a conversa, onde ele poderia nos contar mais sobre os

40 anos de parceria com o violonista e guitarrista, tambĂŠm carioca, Nelson Jacobina - falecido hĂĄ um ano. Entretanto, livre que ĂŠ, nĂŁo compareceu ao compromisso, marcado para Ă s 23h30 no quarto 408, e sabe-se lĂĄ que delĂ­cias a noite porto-alegrense nĂŁo lhe ofereceu. Quem sabe tenha dormido. A sua previsĂ­vel liberdade, seu relativismo cristĂŁo, seu anarquismo governista... sabe-se lĂĄ onde lhe levam. AtĂŠ as prĂłximas pĂĄginas, com certeza levaram.

Porto Alegre te remete a quĂŞ? Ah, Porto Alegre... Desde sempre eu li Érico VerĂ­ssimo, Mario Quintana, e eu venho para cĂĄ desde 72 com o Nelson, sem parar durante essas dĂŠcadas todas. E o Rio Grande do Sul, como o Caetano disse, ĂŠ que nem a Bahia. Fundamental isso aqui. VocĂŞs sĂŁo... nĂŁo precisa falar, nĂŁo ĂŠ? Eu voltei para cĂĄ tambĂŠm nas gravaçþes do [programa do Canal Brasil] OncotĂ´, pesquisando as raĂ­zes negras, com Negrinho do Pastoreio. E Porto Alegre, pelo nĂ­vel de leitura, de formação que tem, ĂŠ fundamental para o Brasil. Essa ĂŠ a primeira vez que tu vens para cĂĄ desde que o Nelson morreu. Como foi essa parceria e como ĂŠ tocar a bola para a frente? Quarenta anos, dia e noite, vinte e cinco horas por dia, shows, militância, tudo, tudo, tudo, o tempo todo! A ausĂŞncia ĂŠ imensa, mas a presença ĂŠ mais forte. NĂłs tĂ­nhamos um trato: o primeiro que morresse, o outro faria um show no mesmo dia. Claro que achei que seria eu, mas foi ele. Nosso Ăşltimo show foi em JacareĂ­ [26 de maio de 2012] e

ele deu um bis de 45 minutos. Foi impressionante! No palco as dores desapareciam, e tambĂŠm no encontro com a UNE, com o Partido Verde, com o Partido Comunista... A militância e a mĂşsica causavam essa coisa nos neurĂ´nios que nem a metadona [poderoso analgĂŠsico] nem a pĂ­lula especial vinda do Estados Unidos resolviam. Quando tu fazes um show como o desta noite, o que enxergas nos olhos dessa juventude? Eu enxergo que vocĂŞs tĂŞm os neurĂ´nios saltitantes em ebulição absoluta. É a primeira geração que aprende, me compreende e me recebe totalmente, porque vocĂŞs sĂŁo o sonho que eu imaginava que um dia, talvez, depois de eu estar morto, existiria. E veio tudo antes! Nossa, vocĂŞs estĂŁo vivendo o apogeu da histĂłria da humanidade, do meio ambiente, das doenças... em 20, 25 anos vocĂŞs vĂŁo viver 300 anos e farĂŁo tudo de novo, melhor que muitos. E quanto Ă s mĂşsicas produzidas por esta geração, consegues capturar uma nova identidade? Consigo. É uma diversidade imensa, amagalmada, em que entra tudo, de ruĂ­do, de dissonância, tudo estĂĄ absolvido hoje, e jĂĄ estava aqui na cultura brasileira, nos tambores e tudo mais. Mas agora emerge num nĂ­vel de universalidade. Tanto que eu repito: essa minha missĂŁo de consultor cultural das OlimpĂ­adas ĂŠ a urgĂŞncia do planeta todo, de todos os paĂ­ses. Eles querem mimetizar, absolver o amĂĄlgama que o Brasil precisa irradiar. Isso foi apagado, ofuscado por vĂĄrios motivos polĂ­ticos. Mas


tudo no Brasil é amálgama desde o início. Os tupisguaranis, a escravidão, o governo compartilhado... é uma imensidão, uma originalidade, um salto em qualidade. E vocês representam isso com plenitude, como geração, como possibilidade concreta, com entusiasmo e, acima de tudo, com as suas ideologias, nos seus direitos humanos que imperam, a vontade do indivíduo - que são várias personalidades. Conhecimento dos poetas, Fernando Pessoa, o poeta é a única pessoa que pode ter várias personalidades ao mesmo tempo. Isso hoje a ciência dos neurônios captou. Vocês já sabem o que eu vou falar e vão além, porque já estão com essas informações mimetizadas e absolvidas no coração. Isso é impressionante! Vocês são as lideranças naturais, sem superiority or inferiority, já é uma igualdade dentro da diferença, com todos os relativismos. E quanto mais relativismo, mais escolhas fundamentais no amor.

Mas a ciência hoje, nós chegamos em um ponto de dois mistérios absolutos que vocês vão ter que desvendar: a matéria porosa escura e a energia escura. A matéria porosa escura gruda as galáxias, para permanecerem juntas. E a energia escura faz o universo se expandir cada vez mais velozmente, e que em bilhões de anos vai se esmigalhar. É além do buraco negro, mais misterioso. A democracia vai ser superada? Pela democracia participativa e instantânea. Você vai votar num instante e não vai precisar de governo, vai ser descentralizado pela tecnologia. O caminho é esse. Ou você pode deixar os robôs sensitivos superiores cuidarem disso. Segundo um dos gurus da tecnologia, em breve estaremos acoplados a robôs.

E quanto mais relativismo, mais escolhas fundamentais

Um dos teus primeiros livros e teu partido se chamam Kaos, mas tu também te dizes comunista. Como tuas esferas anarquista e marxista convivem? (Risos) É a simultaneidades das simultaneidades. Eu fiz o partido Kaos de 56 a 62. Quando eu publiquei Deus da Chuva e da Morte, eu fui convidado para entrar para o Comitê Central pelo professor Mario Schenberg - que trabalhava com Einstein. Einstein disse: "Ele é o único que pode continuar minha obra". Mas Mario Schenberg preferiu por paixão pelo país vir ao Brasil e foi deputado. E ele disse: "Nós não queremos o realismo socialista. Nem cubismo, nem dadaísmo, nem surrealismo, nem nada pode retratar o novo ser humano. Somente uma nova mitologia". Combinam bem. Agora, não existe mais ditadura do proletariado. Cuba também está caminhando para a democracia. O que acontece é o seguinte: pela internet, no mundo atual, o que interessa são os direitos humanos. Jesus de Nazaré que inventou os direitos humanos, o romantismo, o socialismo e, através do livre arbítrio, o liberalismo. Mas a afirmação primeira é do amor. Tratar o próximo como se fosse você mesmo. E ao mesmo tempo você é muitas pessoas, então a complexidade é cada vez maior. E todo mundo tem que ser poeta. O maior inimigo hoje de Jesus de Nazaré não é o Jesus pintado por diversas religiões? Como fugir disso? Não há dúvida. Em Os Irmãos Karamazov, por exemplo, Aliosha, que é o monge, tem um pesadelo onde Jesus volta e a Inquisição o julga e afirma: “Nós sabemos que você é Jesus de Nazaré, mas agora você vai para a fogueira!”. O Marco Feliciano, por exemplo, é uma abominação, que usa os direitos humanos de Jesus, mas é totalmente o contrário. Isso é o tempo todo: temos que estar sempre em cautela com o nazismo, neonazismo, protonazismo e nazismo camuflado. Agora, claro que não é tudo mar-de-rosas, senão não teria graça, a dificuldade é o motivo para você continuar. Não é isso? Imagina, viemos da pré-história, um chimpanzé evoluído enlouquecido que foi, foi, foi, foi... Mas existiu vida, felicidade, tristeza, antes de Jesus de Nazaré, não? O mundo antes... Nossa Senhora! A historia é longa! O ser humano lá, na primeira hora, fome o tempo todo. Quando a horda estava perdida, ia lá caçar mamute, Era do Gelo, fazia as danças propiciatórias e tudo mais. Aí, por exemplo, eu morria na caçada e

no amor.

[Gênova Wisniewski]

voltavam e enterravam o cadáver. Alguns sonham comigo e já vinha a ideia que não, não morreu, ele está aqui. Mesmo que eu vá embora, eu fico. A gente sempre fica, nos neurônios sempre está. O principal é a explicação. A explicação é a âncora do absurdo. “Ah, o Jorge Mautner, antes de caçar, era pra cuspir quatro vezes na água sagrada, mas ele errou a última cuspida, desviou um pouquinho, então foi isso, por isso morreu”. Não interessa, qualquer explicação é a âncora do absurdo! A ciência mostrou, através do Positivismo, que também é crença? Virou crença. E o amigo do Augusto Comte, o Allan Kardec, ainda falou: “Então eu vou mostrar, vou criar o Espiritismo”. Foram duas ideias contemporâneas, quase científicas, inventadas. maio/junho 2013 #22

E o artista onde fica com tanta máquina? Como lidas com a tecnologia? Sou ligadíssimo tanto nos astrofísicos, como em Einstein e nos neurocientistas. Vou repetir o Heidegger, depois que ele se desdisse nazista: em breve, através da cibernética, viveremos em um planeta em que todos serão controlados e controladores simultaneamente. O Nelson Jacobina emendava dizendo que “não, serão descontrolados e descontroladores”. Heidegger disse também: a metafísica acabou, as respostas virão da ciência e da técnica. Dito e feito, o que os neurônios descobriram vai além de qualquer romantismo ou surrealismo. E depois, na única entrevista que ele concedeu, para provar que não era nazista, lhe perguntaram sobre o que achava do Sartre. E ele: "Quem? É um jornalista sensacionalista? Não conheço, não". Depois perguntaram o que ele achava da bomba atômica, e ele: "Qual? A primeira ou a segunda?". Mas qual foi a primeira? E ele: "Todo mundo sabe, foi Jesus de Nazaré". Encerrada a entrevista. Além disso, com a tecnologia, o artista tem uma extensão magnífica. É uma extensão do nosso sistema nervoso, de nossos neurônios, de nossas capacidades. O science fiction se tornou realidade. O amor... os nossos neurônios são emoção pura, a maior abstração é a emoção. E ao mesmo tempo tu estás no palco com o bom e velho violino, um instrumento de séculos atrás. E então? O violino fica para sempre. É o violino de batuque que fica diguidiguidiguidigui. Dos ciganos. O Hitler tinha três vítimas preferenciais: os judeus, os ciganos e os homossexuais e por isso tinha raiva dos violinos dos ciganos. Tu és um pouco cigano, judeu e homossexual? Ah, tudo junto. Não existe isso aí, o ser humano é pansexual e são tudo escolhas, preferências. O ascetismo também é sexo e mesmo a castidade também é um ato sexual intrínseco. Tudo é dominado pelo sexo. 7


[Gabriel Jacobsen]

cada geração tem que reconquistar sua liberdade

Freud? A natureza carregou todos os animais. Os seres extremófilos não tinham sexo. Algas que viviam eternamente, tipo cloragem. A sobrevivência da espécie com pulsões e pressões inacreditáveis criou um ser mais sotifiscado ao inventar os sexos masculino e feminino e isso permeia toda natureza. Você imagina que em uma ejaculação de esperma são milhões de espermatozoides e só um que vai pegar e conquistar. Ao mesmo tempo, a natureza esbanja o desperdício e não pensa muito em considerações detalhadas. De novo, é a simultaneidade. Isso está nos présocráticos, no taoísmo, que foi encaixotado, mas depois voltou. Ficou só com os poetas, com Jesus de Nazaré, com os profetas. Agora é a ciência. Bohr, Einstein, Max Planck, Stroedinger... eles só puderam desenvolver essa ciência atual, do cálculo das incertezas, por causa dessa conversa com os artistas. Foram eles que forneceram os parâmetros o tempo todo. Nossa irmandade é total. Tu tiveste uma experiência intensa com as drogas. O que de melhor elas têm? A visão mais resplandecente vem dos próprios neurônios. Vou repetir John Lennon: "o álcool e as drogas me deram asas para voar e depois me tiraram o céu".

Tu combateste intensamente a ditadura militar através da arte e da militância. A Globo é, ao menos, acusada de ser uma das patrocinadoras desse golpe. Que papel que tu vês na Globo e como lidar hoje com a tua filha trabalhando lá, ou com o Pedro Bial, que dirigiu teu documentário? A Globo, as organizações do Roberto Marinho, sempre tiveram um caráter de simultaneidade. Eles se colocaram logo contra a linha dura. Então, foi a quebra da hierarquia da organização militar... 90% do Exército era legalista e ia apoiar Juscelino. Já tinha até plano. E foi o Cabo Anselmo quem provocou isso. E o tempo todo foi costurado: o Exército que era legalista participou do Golpe porque tinha a Revolução Cubana na cabeça de todo o mundo e, até o Franco Montoro, nós não. Nós apoiávamos o Batista, imagina? O Partido Comunista tinha feito um tratado de co-existência pacífica, nacionalista, e aí veio o Fidel, e revolução você não breca. Ao mesmo tempo, veja a simultaneidade de Fidel: foi o New York Times que fez a propaganda. Mas aí a revolução teve efeitos totais. Mas, voltando para a Globo... ao mesmo tempo irradiava o contrário nas novelas. Tem vários comunistas trabalhando como escritores o tempo todo. Não estou dizendo que são comunistas, mas têm novelas como Cordel Encantado e Avenida Brasil , por exemplo. Eles é que impedem esse perigo de um governo ditatorial,

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populista em nome. E não é só, porque ao mesmo tempo tem outros lugares que querem pena capital. Pena capital no Brasil é matar os pobres, de novo, com legalidade. Isso são discussões que vocês vão resolver. Você teve algum contato com o Brizola? Muito. Eu trabalhei com o Brizola. Primeiro no meu livro, o Kaos, que foi escrito em 59 e publicado em 63. E depois, na volta dele, eu e o Gil apoiamos o Socialismo Moreno, participamos de comícios, mais de seis anos, dia e noite. E o próprio filho do Brizola, que acho que faleceu, foi quem propiciou o meu disco dirigido pelo Caetano. Tu tens medo da morte? Mas é claro, a morte... Imagina! Eu queria viver para sempre. O filho de um grande amigo meu, que está no filme, foi trotskista, é amigo do Fernando Henrique, disse: “que sacanagem eu pertencer à última geração dos mortais”. Vocês vão viver trezentos anos e não vão ter doenças. A ciência é o máximo! O tempo de vocês é a plenitude e o apogeu da humanidade, nunca houve tempo assim, e o Brasil é realmente abençoado e escolhido por vários acasos ou decisões. Estamos em um mundo novo mesmo para sempre. E os direitos humanos são essa amálgama. Está na Bíblia, cada geração tem que reconquistar sua liberdade e agora em um nível inimaginável.


Brasil, um refĂşgio _^a =PcPbRWP ST 2Pbca^ U^c^VaPUXP) 6Ă?]^eP FXb]XTfbZX

E

ntro na casa dos desconhecidos como uma visita aguardada. NatĂĄlia busca uma garrafa de Pepsi para oferecer. Efren pede desculpas, mas precisa terminar de consertar a cadeirinha do pequeno Nicolay. O tĂ­mido Aldair sai do quarto, jovem que chegou hĂĄ apenas dois dias. NĂŁo ĂŠ um sĂĄbado normal para a famĂ­lia de refugiados colombianos radicados em Sapiranga. O eloquente Efren jĂĄ começa a contar sua histĂłria, acostumado a falar e fazer rir. Nicolay permanece por perto, brincando com seu caminhĂŁo de plĂĄstico, lançando beijos e piscadelas a pedido do pai. A pequena casa amarela, de dois quartos e uma salacozinha, tem vida. Ainda assim, o relato exposto de forma tĂŁo aberta e simpĂĄtica nĂŁo ĂŠ nada colorido. Na Convenção de Genebra de 1951 foi estabelecido que refugiado ĂŠ aquela pessoa que estĂĄ fora de seu paĂ­s natal devido a temores de perseguição relacionados a raça, religiĂŁo, nacionalidade, grupo social ou opiniĂŁo polĂ­tica. A Organização das Naçþes Unidas tambĂŠm considera refugiadas as pessoas que foram obrigadas a deixar seu paĂ­s devido a conflitos armados, violĂŞncia generalizada e violação massiva dos direitos humanos. A proteção das pessoas que por qualquer um desses motivos forem obrigadas a abandonar a vida construĂ­da atĂŠ entĂŁo estĂĄ sob o comando do ACNUR – Alto Comissariado das Naçþes Unidas para Refugiados. Fundado em 1950, o ACNUR trabalha em colaboração com governos e entidades da sociedade civil para garantir o resguardo e as condiçþes bĂĄsicas necessĂĄrias para o desenvolvimento dessas populaçþes desamparadas. O Brasil foi o primeiro paĂ­s do Cone Sul a se comprometer com a Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951. Atualmente o paĂ­s tem a legislação mais avançada sobre o tema na regiĂŁo e abriga cerca de 4.600 refugiados. Dado o histĂłrico livre de grandes conflitos armados, guerras ou desastres naturais, pessoas de mais de 70 paĂ­ses encontraram no paĂ­s de proporçþes continentais um novo porto seguro. Efren Andrade Arellano ĂŠ um desses tantos nomes estrangeiros que por aqui buscaram a tranquilidade para recomeçar a vida. Veio para o Rio Grande do Sul em 2010 com sua esposa Yulieth Natalia Higuita, e seu filho depois de fugir do intenso Valle del Cauca, na ColĂ´mbia, para o Equador e entrar no programa de reassentamento. A ColĂ´mbia ĂŠ hoje um dos principais pontos de fuga e o paĂ­s

com maior nĂşmero de refugiados internos nas AmĂŠricas. Muitas famĂ­lias atravessam a fronteira procurando no Equador o abrigo necessĂĄrio. — TĂ­nhamos que sair porque eles queriam nos matar. Fomos parar no Equador, solicitamos refĂşgio. Muita gente tĂĄ indo pra lĂĄ, a coisa nĂŁo tĂĄ fĂĄcil lĂĄ. As pessoas acham que ĂŠ bobagem nossa. Ficamos 15 meses lĂĄ, depois apareceu uma pessoa da Guerrilha e os responsĂĄveis pelo nosso refĂşgio decidiram nos mandar para o Brasil. – Relata Efren em seu portuguĂŞs fortemente carregado de sotaque. Assim funciona o reassentamento no Rio Grande do Sul. É um programa diferente porque trabalha com um refugiado que saiu do seu paĂ­s de origem, buscou refĂşgio em um primeiro paĂ­s, no caso da ColĂ´mbia ĂŠ muito comum que seja o Equador, teve seu pedido analisado e aceito, mas continuou sofrendo perseguição, ou nĂŁo conseguiu se integrar, sofreu discriminação. Se o refugiado continua sendo vĂ­tima da violação dos direitos humanos o ACNUR oferece a solução do reassentamento. A Associação AntĂ´nio Vieira, instituição da Companhia de Jesus (congregação da Igreja CatĂłlica) criou uma agĂŞncia responsĂĄvel pela implementação do Programa Tripartite do Projeto de Reassentamento SolidĂĄrio no Rio Grande do Sul. Governo, Naçþes Unidas e Sociedade Civil (no caso, ASAV) sĂŁo os trĂŞs elos de uma rede de trabalho responsĂĄvel por garantir a inclusĂŁo dos refugiados na regiĂŁo. SĂŁo cerca de 250 pessoas atendidas pela entidade aqui no estado, dispersas por 13 municĂ­pios previamente selecionados. A maior parte dessa população ĂŠ colombiana. A sociĂłloga Aline Passuelo de Oliveira explica essa situação: — Em 2004 foi criado o Plano de Ação do MĂŠxico, que seria uma proposta para uma solução regional para o problema colombiano, que jĂĄ tem 50 anos e ĂŠ bem crĂ­tico. A ColĂ´mbia agora estĂĄ em um processo de paz, mas mesmo assim ainda vai demorar muito tempo para que as pessoas possam retornar ou reaver os bens, terras e tudo. EntĂŁo o governo brasileiro propĂ´s o reassentamento no Plano do MĂŠxico com esse carĂĄter solidĂĄrio, uma solução regional, ou seja, a gente tĂĄ ajudando o paĂ­s que fica aqui ao nosso lado. Karin Wapechowski, coordenadora do programa de reassentamento solidĂĄrio ASAV/ACNUR, complementa: maio/junho 2013 #22

— No desenho de programa aqui do sul, a gente optou pela dispersĂŁo territorial, colocar as famĂ­lias em cidades diferentes. Cidades com educação boa, saĂşde tambĂŠm de qualidade, uma administração municipal relativamente boa, em que possam ser incluĂ­dos esses refugiados. Hoje nĂłs temos: SĂŁo Leopoldo, Sapucaia, Sapiranga, Santa Maria, Passo Fundo, GuaporĂŠ, Serafina CorrĂŞa e Pelotas, entre outras. Fazemos isso para que as famĂ­lias sejam acolhidas e se dispersem na comunidade de forma tranquila. O Brasil nĂŁo tem histĂłrico de perseguiçþes, entĂŁo o programa ĂŠ para integrar, fazer com que ele nĂŁo fique mais naquela clausura, no sentimento de refugiado, a gente quer que ele retome o sentimento de pertencer e de retomar sua vida, seu trabalho, seu estudo, sua organização familiar. Ser incluĂ­do como um brasileiro. É um programa de integração local. DA COLĂ”MBIA Ă€ SAPIRANGA — NĂłs fizemos um emprĂŠstimo no banco para abrir um negĂłcio de avicultura. E deu problema porque de um lado passava a Guerrilha, do outro lado passava o ExĂŠrcito e do outro lado passavam os Paramilitares. Começou a dar problema porque nĂłs tĂ­nhamos que dar “ajudaâ€? pra eles [alimento e dinheiro]. Todos que passavam exigiam isso. Chegou um dia em que eu disse que nĂŁo iria ajudar mais, tinha dĂ­vida com o banco, nĂŁo conseguia pagar os juros. Isso gerou dificuldades. Efren foi reunindo dessa forma um perigoso grupo de inimizades. — As pessoas acham que ĂŠ fĂĄcil na ColĂ´mbia, o presidente fala que nĂŁo tem mais problema. NĂŁo ĂŠ fĂĄcil. Uma prova ĂŠ o Aldair [amigo da famĂ­lia que chegou recentemente ao Brasil], trabalhou na polĂ­cia, teve que sair, passou fome, ficou doente... A gente de BogotĂĄ tambĂŠm tem dificuldade, jogam bombas, mas nĂŁo ĂŠ igual Ă gente que mora perto [dos enfrentamentos]. TĂ­nhamos casa, terreno, carro, dependĂ­amos daquilo, tivemos que abandonar tudo. SaĂ­mos com o pouco de roupa que tĂ­nhamos no corpo. — NĂłs morĂĄvamos em um ninho de guerrilha. – completa Natalia. — A gente viu como matavam a outras pessoas lĂĄ e eles nĂŁo gostam que a gente conte as coisas. Eles se fazem de bons, que estĂŁo com o povo, mas nĂŁo ĂŠ assim. Eu tinha um colega de serviço no campo. Pegaram ele e deram trĂŞs tiros na cara. Com pistola, a Guerrilha. Dois caras pegaram ele na moto, fizeram ele descer, eu tava um pouco atrĂĄs, levaram ele para o 9


lado e deram trĂŞs tiros. Desci com a moto desligada, boca fechada. Eles sabiam que eu tinha visto. Por causa das ameaças e represĂĄlias, Efren deixou tudo que tinha e cruzou a fronteira com o Equador. Acompanhado da esposa e do filho, pediu refĂşgio e trabalhou no paĂ­s. — No Equador eu trabalhava que nem burro. Minha cultura ĂŠ de gente que trabalha. Trabalhava em uma chĂĄcara que tinha rosas. Era bem ruim. Eu emagreci, tinha uns 49 quilos. Magrinho, almoçava e tinha que continuar caminhando com carga atrĂĄs como um cavalo. Cheio de flores. Trabalhava de segunda Ă sexta, e em alguns finais de semana tambĂŠm. Das 4h da manhĂŁ atĂŠ Ă s 18h. Ganhava 198 dĂłlares por mĂŞs. SĂł dava para pagar o aluguel e meio comer. Meio. NĂŁo dava pra outra coisa. Tinha que pagar aluguel, energia, ĂĄgua, transporte para meu filho que tava estudando. Ele parou de estudar e começou a me ajudar, mas dava sĂł pra cobrir os gastos. Dali fui empacotar açúcar num engenho. SĂł colombianos trabalhavam lĂĄ. AtĂŠ que a situação por lĂĄ tambĂŠm ficou insustentĂĄvel. — No Equador estavam me procurando para me matar. Falei para a psicĂłloga e ela viu que nĂŁo tinha como me proteger lĂĄ. — Ele tava muito esquisito, chegava do serviço nervoso, nĂŁo falava nada, eu nĂŁo sabia o que tinha acontecido. E eu falei para a psicĂłloga e ela disse pra ele me contar, sĂł aĂ­ ele me contou. Tinha um cara me seguindo no Equador, um dia quase me pegou, e falaram que a gente nĂŁo podia continuar lĂĄ. – acrescenta Natalia.

— Temos trĂŞs anos e quatro meses aqui e graças a Deus e as pessoas que nos trouxeram para cĂĄ nunca fomos deitar com fome, nunca fomos deitar sem tomar banho. Aqui sĂł se precisa de desejo de trabalhar. Fomos a primeira famĂ­lia colombiana a chegar a Sapiranga, chegamos aqui em dezembro de 2009. Nos prometeram um ano de ajuda. TĂ­nhamos 15 dias morando aqui e começamos a trabalhar, eu na metalĂşrgica, de pedreiro, ela trabalhando em lojas, meu filho tambĂŠm trabalhando. Depois de cinco ou quatro meses jĂĄ tĂ­nhamos tudo pronto, carteira de trabalho, documentos. NĂłs nunca incomodamos eles. O que temos aqui tudo [foi garantido pela ASAV], sĂł aquela televisĂŁo que minha esposa comprou, e o som, e a mĂĄquina de lavar que trocamos porque aquela outra era muito fraquinha, e o fogĂŁo que a gente foi comprando. E agora o carro que estamos parcelando porque fica muito longe e por causa do bebĂŞ, que ela nĂŁo podia andar de bicicleta com ele. Ela teve uma hemorragia, quase perdeu o bebĂŞ, passamos coisas feias, mas graças a Deus, demos um jeito. O pequeno Nicolay segue brincando na sala, o Ăşnico brasileiro da casa ĂŠ bastante desenvolto e se diverte posando para as fotos. — Assim que tem que ser o refugiado, tem que vir com vontade de trabalhar, sĂł porque nos prometeram um ano de ajuda vamos ficar parados? NĂŁo dĂĄ. A cultura nossa nĂŁo ĂŠ assim. Agora a gente tĂĄ querendo fazer um emprĂŠstimo do Minha Casa, Minha vida. Pra dar um jeito. Estamos pagando aluguel aqui, e isso dĂĄ pra parcelar a casa.

Qu a l Q u e r c o i s a s o b r e o a m o r,

HISTĂ“RIAS DE UM RECÉM-CHEGADO — A luta nĂŁo ĂŠ polĂ­tica, agora ĂŠ sĂł vandalismo. Antes a gente sabia, quando eu tinha uns sete anos, eles roubavam um caminhĂŁo com leite e ovos e levavam para as famĂ­lias pobres. Mas hoje nĂŁo, eles roubam para sustentar a guerrilha, para fazer festas, eles nĂŁo estĂŁo fazendo nada. É sĂł econĂ´mico, nĂŁo ĂŠ algo que esteja ajudando ou que vĂĄ ajudar. Eles nĂŁo estĂŁo nem aĂ­. – opina Efren. — Todos matam. PolĂ­cia, exĂŠrcito, guerrilha, paramilitares. Todos matam entre todos. – Desabafa Aldair rompendo a barreira da timidez. Aldair Ezequiel Brochero chegou hĂĄ pouco tempo. Ainda nĂŁo ĂŠ refugiado, veio para o Brasil sem nada. Teve a mĂŁe assassinada pela Guerrilha. Os jornais da ColĂ´mbia publicaram a manchete “Bala perdida mata mulher em casaâ€?. Ele carrega uma cĂłpia da pĂĄgina com a notĂ­cia mentirosa. Para vingar sua perda, entrou para o ExĂŠrcito. Permaneceu por dois anos e meio e enfrentou as frentes 37 e 35 das Farc. — Eles nĂŁo sabem a dor que ele sentiu. As consequĂŞncias daquele ato. Foi pro exĂŠrcito para enfrentar a guerrilha para vingar a morte da mĂŁe. Mas nĂŁo adianta expor a vida por bobagens. A mĂŁe jĂĄ morreu, tem que dar aquele passo. NĂŁo volta. Tem que seguir a vida dele. Tem que vir aqui para buscar novas oportunidades. O que ficou para trĂĄs, ficou. Começar uma nova vida aqui. – aconselha Efren. Aldair inicia o processo de pedido de refĂşgio tentando se livrar de um passado violento. Quer trazer a irmĂŁ que ficou sozinha no Equador. É mais um colombiano fugindo do prĂłprio paĂ­s.

o tempo e as bombas.

_^a <PaRdb ?TaTXaP Ah, minha querida... Em manhĂŁs como aquela – quando o sol se insinuava como o olhar da pessoa amada, aquecendo os transeuntes do frio – eu sentia ânsia de exortar um amor bombĂĄstico. Eu me acomodava na mesa da cafeteria, como se imitasse a discrição dos terroristas que chegam insuspeitos ao local do atentado. Sem aviso, seguia o Ă­mpeto dos homens-bomba, e puxava o pino da granada guardada no lado esquerdo do peito. EntĂŁo, diante do testemunho dos passantes, explodia um sentimento que me espedaçava em mil palavras pirotĂŠcnicas. Finalmente, juntava todos os vocĂĄbulos incandescentes – que nada mais sĂŁo que estilhaços de idĂŠias, sentimentos e lembranças – e os reunia em textos parecidos com liturgias fĂşnebres: ao mesmo tempo que lamentavam a expiração de uma parte de mim, tambĂŠm louvavam a recordação da tua beleza divina. Assim, ajuntando os escombros de mim mesmo, redigia panegĂ­ricos de arquitetura suntuosa, para proteger as reminiscĂŞncias da tua pessoa das intempĂŠries do tempo. Eu permanecia horas naquela cafeteria perto da Redenção. Meu olhar – compenetrado num caderninho amarrotado – desmoronava emoçþes estrepitosas. Meu punho desfiava, em caligrafia vermelha, a catarse que se

deflagrava dentro de mim. Eu escrevia feito um Balzac apaixonado: tentava guardar a vida em descriçþes pormenorizadas. Pintava cenas da nossa vida privada usando palavras de matizes diversas. Por exemplo, quando acordava mais cedo para preparar nosso desjejum: a aurora refletia no azulejo da cozinha; eu me entretinha enquanto coava o cafĂŠ, esquentava o leite, separava o pĂŁo, estendia a toalha na mesa; tu aparecias na cozinha vestindo aquela camisola rĂłsea que, sob a profusĂŁo da luz matinal, revelava o contorno do teu corpo alvo e macio; tu te espreguiçavas em mim num abraço felino e voluptuoso, enquanto ronronava no meu ouvido um “bom dia, amorâ€?; e teu semblante – olhos e cabelos embaraçados – adquiria as feiçþes duma VĂŞnus renascentista. Aqueles momentos, tĂŁo banais quanto deslumbrantes, deveriam ser perpetuados a todo custo. Assim, eu cuidava de emoldurar teus despretensiosos encantos nos moldes dum lirismo exacerbado. Os transeuntes se sucediam no passeio pĂşblico alheios ao meu labor. Eu procurava nas palavras – como um Hermes Trimegisto moderno – o elixir da vida eterna. Dessa forma, imortalizaria a juventude do teu rosto Ă­talo-lusitano. Teus cabelos permaneceriam sempre curtos: tingidos da cor do ouroalquĂ­mico, franja sobre a testa, desarrumados

sob o perfume do laquĂŞ. O azul-esverdeado dos teus olhos graĂşdos seria sempre aquele oceano profundo que, ocasionalmente, se polui com a visĂŁo da grande metrĂłpole. Teus lĂĄbios proeminentes manteriam sempre a cor cinematogrĂĄfica do batom: um escarlate tĂŁo lĂşbrico que, por contraste, faria o resto do mundo parecer menos vĂ­vido, como um filme em preto e branco. Eu utilizava a escrita como se fosse um laboratĂłrio e, aplicando as tĂŠcnicas narrativas de vanguarda, tentava interferir no maquinĂĄrio do tempo. Dessa forma, tu serias eternamente a musa urbana e fashion. Os clientes do cafĂŠ me lançavam olhares intrigados. Talvez se perguntassem o que me levava a escrever daquele jeito silenciosamente trĂĄgico. NĂŁo imaginavam o quĂŁo ambiciosa era a minha odissĂŠia. Eu precisava assassinar Cronos; precisava resguardar nossas memĂłrias em Taj Mahals escritos Ă mĂŁo; precisava te eternizar a qualquer preço – mesmo que a caneta tragasse o vermelho das minhas veias, afinal, existia bem mais que um gota de sangue em cada um daqueles textos. Mas como eu poderia matar a divindade do tempo, visto que as deidades sĂŁo imortais? Como poderia perpetuar nossos momentos, visto que a vida nĂŁo cabe no papel? Como poderia te tornar eterna, visto que tua

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presença inspira emoçþes mais densas que qualquer arte? E como poderia resguardar a vida na escrita, visto que a existĂŞncia escapa ao prĂłprio indivĂ­duo? Naquela ĂŠpoca, eu nĂŁo sabia que a literatura ĂŠ insuficiente. Por isso, me debatia contra um objetivo impossĂ­vel: tentava estancar o fluxo da existĂŞncia como um homem que tenta conter a correnteza do rio usando as prĂłprias mĂŁos. Ah, minha cara... Hoje, porĂŠm, enquanto redijo este texto, na mesma cafeteria, sob o mesmo sol invernal, compreendo que o verbo viver deve ser conjugado no gerĂşndio. Admito que o relĂłgio ĂŠ um ralo por onde a existĂŞncia escorre devagar. Consinto que os momentos felizes se percam pelos encanamentos subterrâneos da memĂłria – atĂŠ, enfim, desembocarem no mais obscuro esquecimento. Aceito que o perfume evapore pelas entrelinhas da prosa. Se em outros tempos minhas palavras te tornaram deusa, musa, mito... hoje deixo que os dias te convertam novamente em mulher – simplesmente mulher. Nunca mais implodo o meu presente para preservar o passado. SĂł nĂŁo entendo por que, quando sento no lugar de sempre, sinto como se estivesse acomodado sobre um barril de pĂłlvora. SĂł nĂŁo entendo por que, quando acendo um cigarro, sinto como se estivesse ateando fogo num pavio...


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“Esse ĂŠ o louco que a gente sempre vĂŞ correndo no ParcĂŁo, aquele que sĂł corre de noite!â€?, diz uma mulher atrĂĄs de nĂłs, enquanto do outro lado do espelho d’ågua da Redenção desliza Eduardo: o corredor porto-alegrense de sunga das madrugadas. Um folclore ambulante, que mantĂŠm ao seu redor mitos como ser careca, dono das farmĂĄcias Panvel ou professor de Educação FĂ­sica. Mal sabe aquela mulher, como nĂłs tambĂŠm nĂŁo sabĂ­amos, que disfarçado, trabalha no setor de informĂĄtica do Banrisul, analisando contas emitidas por operadoras de telefonia. Trabalho que gosta de fazer, inclusive de Q[PiTa. De noite, corre vinte quilĂ´metros sem bolsos. As chaves ficam com algum policial, civil ou militar, algumas das classes com qual convive harmonicamente nas madrugadas da Capital. Tanto quanto convive com os mendigos, que jĂĄ lhe salvaram a pele do ataque de furiosos colorados que, per-

cebendo no seu meiĂŁo azul e chapĂŠu preto uma inclinação tricolor, buscaram as vias de fato. Eram muitos colorados, o que nĂŁo lhe impediu de parar sua corrida para se defender dos xingamentos, pois, segundo ele, os hormĂ´nios liberados pela corrida lhe deixam com a sensação de onipotĂŞncia. Quando caiu por si, prestes a apanhar, um morador de rua, de muleta e com passagem pela cadeia, se entrepĂ´s e gritou: “NinguĂŠm mexe com o Professor! VĂŁo ter que me matar primeiro!â€?. Moradores de rua, mendigos, guardadores de carro: seres que habitam a noite dos parques e que calçam os seus antigos tĂŞnis, com mais de mil quilĂ´metros. Homens acostumados a se esgueirar pelas sombras, mas visĂ­veis ao seu olhar estrĂĄbico (que disfarça perfeitamente). Entre as ĂĄrvores dos parques, correndo, Eduardo jĂĄ viu de tudo, e tambĂŠm jĂĄ aprendeu a nĂŁo ver. A estes homens, que lhe tratam como Professor, dĂĄ conselhos sentimentais e corpĂłreos, ou comida mesmo, uma barra de cereal, uma maçã. Sua real vocação professoral, entretanto, vem dos Estados Unidos da AmĂŠrica, onde aprendeu o inglĂŞs que ensina atĂŠ mesmo correndo. Ao terminar o ColĂŠgio Militar, onde comia areia dos demais corredores e engolia a educação repressora, estudou com recursos da ONU no estado do Oregon. LĂĄ, ainda sem dominar a lĂ­ngua

e antes de se tornar o melhor aluno do colĂŠgio, sofreu Qd[[h]V - o original. Experimentou uma realidade distante da infância, das primeiras sĂŠries na Vila Cruzeiro, dos meninos repetentes que lhe apresentaram a rua e vice-versa. Enganam-se aqueles que, como a mulher do inĂ­cio do texto, acham que ele ĂŠ louco. Doutra sorte, Eduardo ĂŠ um RWP_PSĂˆ^, ainda que tenha deixado para trĂĄs os baseados, o lolĂł e os tragos homĂŠricos que fizeram parte de seus vinte anos. Diga-se de passagem, um viciado, pois hĂĄ vinte anos corre todos os dias. Todos mesmo. Tamanho ĂŠ o efeito de entorpecimento, que considera inseguro dirigir apĂłs o exercĂ­cio. Nas poucas horas em que sonha, pode voar. Quando acontece, sonho raro, lhe acontecem viradas na vida. Isto ocorreu, por exemplo, quando abandonou a camisa e passou a correr sĂł de sunga, ou melhor, de calção sendo uma das razĂľes um problema com o seu intenso suor. Independentemente do frio, da chuva, do vento ou dos muitos xingamentos que ouve por aĂ­ - normalmente de homens enciumados. Muitos dos quais lhe xingariam ainda mais se soubessem que, correndo, pode estar simplesmente fazendo uma pausa entre um orgasmo sem ejaculação e outro. Sexo tântrico, sabe? NĂłs nem imaginĂĄvamos que era possĂ­vel gozar sem ejacular apĂłs horas trepando. Sexo tântrico que lhe foi apresentado por um terapeuta de florais e homeopatia, mas que realmente avançou quando aprimorou sua respiração, isto ĂŠ, correndo. NĂŁo encontramos moderação em um aspecto sequer da vida de Eduardo AndrĂŠ Viamonte, que desde 69 vive intensamente. Entre sonho e realidade, entre voos e corridas, entre aulas em que ĂŠ professor de inglĂŞs e outras em que ĂŠ aluno de Psicologia, Eduardo ingere sua dose diĂĄria de ovos: doze.

nĂŁo ĂŠ documento chĂŁo, ao lado de algumas garrafas de vinho. Um pĂ´ster do Elton John caĂ­ra no chĂŁo,

parecia tĂŁo apaixonado na noite precedente: ele lhe beijara com tanta volĂşpia, fizera

saĂ­do para trabalhar. Levantou-se da cama vazia. Esperava que ele tivesse lhe

Ela acordou no apartamento dele – um dos seus raros fãs – mas ele jå tinha

quebrando a moldura de vidro. Os lençóis da cama estavam desarrumados, um

questão de dançar com os rostos colados, lambera sua bochecha, queixo, pescoço,

deixado um bilhete apaixonado. Encontrou a mensagem em cima do travesseiro

pouco Ăşmidos, manchas claras aqui e acolĂĄ. O colchĂŁo apresentava uma enorme

nuca, lĂĄbios... enfim, se fixara na sua face. PorĂŠm, se ele nĂŁo estava deslumbrado

onde ele dormira: “Quando sair, deixe a chave com o porteiro. NĂŁo precisa me

mĂĄcula bordĂ´. Em cima da mesa de cabeceira, havia os vestĂ­gios mais incomuns da

com sua beleza, o que procurava no semblante daquela mulher? Sentada na beira da

ligar.� Ficou decepcionada ao ler aquelas duas frases: o homem com quem

luxĂşria noturna: um tubo vazio de lubrificante e um cinto peniano, cuja prĂłtese

cama, ela se negava a aceitar a resposta mais plausível: suas apresentaçþes atraíam

tinha dividido uma noite romanamente lasciva, na manhĂŁ seguinte, apenas lhe

de tamanho avantajado exibia um brilho viscoso e reluzente. Nesse momento,

certo tipo de homens que, depois do sexo, abandonavam-na justamente por causa do

dedicara instruçþes triviais; nĂŁo lhe desejara sequer um “bom diaâ€?. Por que,

lembrou-se de alguns detalhes sórdidos: ele em posição quadrúpede; ele emitindo

seu trabalho. Inconsolada, levantou-se para ir ao banheiro. Precisava lavar o rosto.

nas manhĂŁs seguintes, os homens sempre lhe imputavam o mesmo tratamento?

gemidos andrĂłginos; ele gritando, exigindo, implorando para que ela fosse mais

Por que ignoravam a sua existĂŞncia se eram sempre eles que iniciavam o flerte

severa. Por que os homens sempre lhe pediam que usasse aquele artefato? Por

navalha (provavelmente a mesma que ele usava para se barbear todas as manhĂŁs).

– e não o contrårio? Por que a tietavam se, depois, iam lhe abandonar? Por

que pediam para ela – justo ela? E por que ela consentia tais fetiches, se aquilo

Com hesitação, pegou o instrumento. Respirou fundo. Pensou nos colegas do

que lhe tratavam com tanta frieza se ela atendia a todos os seus desejos?

nĂŁo lhe proporcionava nenhum prazer? Talvez – por insegurança com a prĂłpria

trabalho – a única coisa relevante que iria deixar para trås. Observou seu rosto

imagem – ela tivesse medo de ser rejeitada caso nĂŁo topasse a “brincadeiraâ€?.

refletido no espelho. AĂ­, navalha em mĂŁos, ela agiu cuidadosamente: desfez-se da

Ela permaneceu sentada na cama enquanto divagava sobre sua sina. O dormitĂłrio – luz baixa, atmosfera de ar respirado, desorganização beirando ao caos – ostentava indĂ­cios da noite alucinante. As roupas jaziam amarrotadas pelo

Levou as mĂŁos ao rosto e pressentiu outro abandono iminente. Chorou. E, quando as lĂĄgrimas escorreram pelo seu rosto, percebeu o quanto havia se enganado. Ele

maio/junho 2013 #22

Na frente da pia, percebeu algo que poderia dar fim ao seu dilema: uma

sua barba messiânica. Depois daquele dia, ela abandonou o circo. Hoje, seus fãs enrustidos não tietam mais ninguÊm; apenas sentem saudades da mulher barbada.

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TABARÉ

Convido-te [Martino Piccinini]


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